As pinturas sacras do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

May 27, 2017 | Autor: Wilton Cavalcante | Categoria: Literatura, Interart studies, Pintura, José Saramago, Ecfrásis, Estudos Interartes
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Trabalho apresentado na disciplina Seminário Temático III – em 2015.1, dedicada às relações entre literatura e visualidade –, ministrada pelo prof. Dr. José Leite de Oliveira Júnior, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC), como umas das atividades avaliativas.
Aluno do Mestrado em Letras – Literatura Comparada, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFC.
Não se sabe se Saramago teve alguma igreja como base para a disposição dos quadros descritos na passagem em análise, mas recordamos que, em Portugal, é famosa a lenda de São Vicente e os corvos. Esse animal é representado também na entrada de alguns estabelecimentos. Uma pesquisa de maior calibre, que consiga documentos e informações sobre uma possível igreja ou sobre as referências exatas de Saramago para essas descrições poderia revolver as inconclusões ora apresentadas.


AS PINTURAS SACRAS DO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ SARAMAGO

Francisco Wilton Lima Cavalcante

RESUMO
Propomo-nos a tecer alguns comentários a respeito das pinturas sacras descritas no romance Ensaio sobre a cegueira (1995), do escritor português José Saramago (1922-2010), discutindo o reconhecimento das dezoito personagens bíblicas e/ou católicas e das cenas descritas.

Palavras-chave: Literatura Portuguesa. Romance. Pintura. Bíblia. Santos.

1 EXPERIÊNCIAS INTERARTES NA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO

Na obra de José Saramago, não é raro encontrarmos experiências interartes. No caso da pintura, por exemplo, em O ano de 1993, de 1975, começa a obra já inserindo a narração nas nuances de uma pintura surrealista, ao informar: "As pessoas estão sentadas numa paisagem de Dalí com as sombras muito recortadas por causa de um sol que diremos parado." (SARAMAGO, 2014, p. 1081). Em Manual de pintura e caligrafia, de 1977, o protagonista vive um drama propriamente interartes: a pintura e a literatura. N'O Evangelho segundo Jesus Cristo, de 1991, o narrador inicia a obra com a descrição e a interpretação de uma gravura da crucificação de Jesus Cristo, feita pelo pintor e ilustrador alemão Albrecht Dürer (1471-1528).
Neste breve estudo, nosso objeto de análise é um trecho (pouco menos de uma página) do Ensaio sobre a cegueira, de 1995, em que o narrador, depois que a "mulher do médico" tem uma vertigem e resolve adentrar uma igreja, descreve uma escultura e dezessete pinturas dessa igreja. Nosso reconhecimento é ativado a partir dos poucos elementos de cada pintura fornecidos pelo narrador, a depender de nossa familiaridade com as personagens bíblicas, santos e cenas descritas.
Há pelo menos dois estudos em que esse trecho é exposto e em que se fala do reconhecimento das pinturas descritas: o de Marcella Abboud, "Ensaio sobre a cegueira e as narrativas bíblicas: a construção de um romance ateísta", e o de Nanci Geroldo Richter, Os espaços infernais e labirínticos em Ensaio sobre a cegueira. Porém, observamos discrepâncias no reconhecimento das pinturas, um dos detalhes motivadores de nosso estudo. Assim, verificamos a probabilidade de associação de algumas personagens às respostas dadas pelas duas pesquisadoras, a partir de um estudo das mais comuns representações de personagens e cenas bíblicas e de santos.
A essas descrições de obras de arte na literatura damos o nome de ecfrase (ou écfrasis) literária, que, "[...] resumidamente, é a representação literária de uma obra de arte plástica, principalmente a pintura." (FRITOLI, 2006, p. 24). Garcia (2008) complementa a definição da ecfrase observando que o termo "[...] ekphrasis (no plural, ekphraseis) significa 'descrição', tal como descrição de uma obra de arte (pintura ou escultura) em (ou através de) um texto verbal, ou a representação verbal de uma representação não-verbal, sendo esta plástica, visual, pictórica." (GARCIA, 2008, p. 2).
No texto em estudo, narra-se que a personagem "mulher do médico", após uma vertigem, adentrou uma igreja e lá observa que estavam "[...] as pinturas com uma grossa pincelada de tinta branca [...]" (SARAMAGO, 1995, p. 301) sobre os olhos, o que elimina a possibilidade de essas representações serem mosaicos. Esse detalhe é importante porque, ao sabermos que se trata de pinturas, recorremos a representações das personagens descritas no trecho em estudo nesse tipo de arte. Mesmo que variem as representações, não são muitas as diferenças entre uma e outra, o que não gera grandes problemas, dada a especificidade dos elementos descritos no trecho do Ensaio sobre a cegueira.

2 AS PINTURAS DA IGREJA, EM ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

O trecho escolhido para análise não é o único em que Saramago dialoga com a pintura ou em que descreve pinturas. Porém, enquanto, nesses outros trechos, poderíamos identificar que quadros são descritos e interpretá-los, a partir de critérios técnicos, no trecho escolhido, concentra-se o maior número de descrições de pinturas, e o que nos importa, a partir das pistas de cada quadro – isto é, os elementos definidos pelo narrador como marcantes de cada pintura–, é verificar como esses elementos convergem para o reconhecimento dessas peças, na maioria dos casos, de fácil assimilação. Há, apesar disso, algumas que geram dúvidas, mesmo para entendidos da cultura católica e da hagiografia.
No trecho, acompanhamos o olhar do narrador percorrendo, provavelmente em sequência, as dezoito peças:

Levantou a cabeça para as colunas esguias, para as altas abóbadas, a comprovar a segurança e a estabilidade da circulação sanguínea, depois disse, Já me sinto bem, mas naquele mesmo instante pensou que tinha enlouquecido, ou que desaparecida a vertigem ficara a sofrer de alucinações, não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma mulher com o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados por uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim estavam, todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados, as esculturas com um pano branco atado ao redor da cabeça, as pinturas com uma grossa pincelada de tinta branca, e estava além uma mulher a ensinar a filha a ler, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com um livro aberto onde se sentava um menino pequeno, e os dois tinham os olhos tapados, e um velho de barbas compridas, com três chaves na mão, e tinha os olhos tapados, e outro homem com o corpo cravejado de flechas, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma lanterna acesa, e tinha os olhos tapados, e um homem com feridas nas mãos e nos pés e no peito, e tinha os olhos tapados, e outro homem com um leão, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com um cordeiro, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma águia, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma lança dominando um homem caído, chavelhudo e com pés de bode, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma balança, e tinha os olhos tapados, e um velho calvo segurando um lírio branco, e tinha os olhos tapados, e outro velho apoiado a uma espada desembainhada, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma pomba, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com dois corvos, e os três tinham os olhos tapados, só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. (SARAMAGO, 1995, p. 301).

Como se pode observar, o narrador inicia todas as descrições pelo sexo da personagem, na maioria das vezes usando "homem" ou "mulher", mas também "velho". Essa informação é a primeira especificação, mas não é capaz de nos dizer de quem se trata, Somente quando ele indica a posição, os objetos, flores ou animais que compõem a cena (às vezes precisando o número) ou a situação em que se encontra a personagem (ferida ou lutando, por exemplo), é que adquirimos elementos para desvendar que personagem bíblica ou santo da Igreja Católica – o que se revela pela identificação de santos dessa igreja entre as pinturas – visualizamos nas palavras do narrador.
Ao comparar os dois trabalhos que comentam o trecho, observamos que há divergências no reconhecimento das personagens, o que nos instigou a fazer uma pesquisa mais detalhada da simbologia das representações católicas e das associações desses símbolos e objetos às personagens bíblicas e católicas. Como informado, são dezoito as peças descritas no trecho em análise. Faremos alguns comentários breves sobre cada uma, algumas de fácil reconhecimento, pois não deixam margem a dúvidas, outras nem tanto.
1. "aquele homem pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos" – A qualquer dúvida que poderia surgir: se se trata de Jesus ou de um dos dois ladrões, a resposta nos é dada pela natureza da produção artística: a venda indica que a primeira peça descrita é uma escultura (se fosse pintura, teria uma pincelada de tinta sobre os olhos), e, como sabemos, há nas igrejas, comumente sobre os altares, uma escultura de Jesus Cristo, o que não acontece com os dois ladrões, representados geralmente em pinturas e gravuras, como a de Albrecht Dürer, ao lado do Cristo.
Albrecht Dürer,crucificação de Jesus2. "uma mulher com o coração trespassado por sete espadas" – Nessa descrição, uma das mais claras das dezoito feitas pelo narrador, identifica-se Nossa Senhora das Dores, um dos títulos dados a Maria, mãe de Jesus, ao longo do tempo; nas representações dessa personagem, ela geralmente aparece com o coração trespassado por sete adagas ou espadas – que indicam as sete dores sofridas por Maria –, número descrito com exatidão pelo narrador, mas também pode ser representada sendo trespassada apenas por uma espada ou adaga.
Albrecht Dürer,
crucificação de Jesus
2. "uma mulher com o coração trespassado por sete espadas" – Nessa descrição, uma das mais claras das dezoito feitas pelo narrador, identifica-se Nossa Senhora das Dores, um dos títulos dados a Maria, mãe de Jesus, ao longo do tempo; nas representações dessa personagem, ela geralmente aparece com o coração trespassado por sete adagas ou espadas – que indicam as sete dores sofridas por Maria –, número descrito com exatidão pelo narrador, mas também pode ser representada sendo trespassada apenas por uma espada ou adaga.


4. "um homem com um livro aberto onde se sentava um menino pequeno" – Richter (2007), em sua tese de doutorado, afirma que se trata de São Marcos. Note-se, porém, que é mais comum encontrar Jesus sentado sobre um livro ao lado de Santo Antônio, como na pintura de Stephan Kessler. Se atentarmos às chaves dessa descrição: homem, livro aberto e menino pequeno, e fizermos uma pesquisa com as palavras-chave "santo", "menino Jesus" e "livro aberto", Santo Antônio aparecerá em grande número, sendo difícil aparecer alguma imagem de São Marcos.3. "estava além uma mulher a ensinar a filha a ler" – Diferentemente da descrição anterior, em que as chaves de assimilação da personagem são seu sexo e objetos em número exato, aqui nos deparamos com duas personagens em uma ação: uma mãe ensina a filha a ler; trata-se de Santa Ana, mãe de Maria e avó de Jesus, geralmente representada ao lado de Maria, com um livro aberto.
4. "um homem com um livro aberto onde se sentava um menino pequeno" – Richter (2007), em sua tese de doutorado, afirma que se trata de São Marcos. Note-se, porém, que é mais comum encontrar Jesus sentado sobre um livro ao lado de Santo Antônio, como na pintura de Stephan Kessler. Se atentarmos às chaves dessa descrição: homem, livro aberto e menino pequeno, e fizermos uma pesquisa com as palavras-chave "santo", "menino Jesus" e "livro aberto", Santo Antônio aparecerá em grande número, sendo difícil aparecer alguma imagem de São Marcos.

Domingos Antônio Sequeira,Nossa Senhora das Dores
Domingos Antônio Sequeira,
Nossa Senhora das Dores

Nossa Senhora das Dores5. "um velho de barbas compridas, com três chaves na mão" – Embora "velho" e "barbas compridas" não deem imediatamente as informações que nos façam saber que se trata de São Pedro, as "três chaves" não deixam dúvida. Note-se que o narrador fala de três chaves, número diferente das mais comuns representações desse apóstolo: duas, a chave do reino dos homens e a chave do reino dos céus. Mesmo assim, somos levados a crer que se trata de São Pedro, pois não há outra personagem abundantemente representada que tenha como símbolo o porte desse objeto.
Nossa Senhora das Dores

5. "um velho de barbas compridas, com três chaves na mão" – Embora "velho" e "barbas compridas" não deem imediatamente as informações que nos façam saber que se trata de São Pedro, as "três chaves" não deixam dúvida. Note-se que o narrador fala de três chaves, número diferente das mais comuns representações desse apóstolo: duas, a chave do reino dos homens e a chave do reino dos céus. Mesmo assim, somos levados a crer que se trata de São Pedro, pois não há outra personagem abundantemente representada que tenha como símbolo o porte desse objeto.


6. "outro homem com o corpo cravejado de flechas" – Aqui, as "flechas" deixam claro que se trata de São Sebastião, representado quase sempre preso a um tronco (exceto quando recebendo auxílio de outrem, já solto do tronco), com poucas vestes, e perfurado por três ou mais flechas.
8. "um homem com feridas nas mãos e nos pés e no peito" – Observa-se que esse homem provavelmente está seminu, pois é possível ver feridas no peito e nos pés. Das personagens representadas seminuas, certamente vêm à mente Jesus Cristo e São Sebastião, ambos feridos, inclusive no peito. Porém, a indicação do narrador das três partes em que essas feridas se encontram (mãos, pés e peito) revela que se trata de Jesus, já crucificado, quando recebe pregos nos pés e nas mãos e é ferido por uma lança no peito, enquanto São Sebastião não tem feridas nos pés e nas mãos, se as tem, não conseguimos ver, pois são amarradas para trás, no tronco. 7. "uma mulher com uma lanterna acesa" – Como no caso de Nossa Senhora das Dores (a dor representada pelas espadas), para quem tem alguma familiaridade com os santos católicos, o objeto lanterna (lampião, luminária) revela que se trata de Santa Clara, comumente representada portando esse objeto.
8. "um homem com feridas nas mãos e nos pés e no peito" – Observa-se que esse homem provavelmente está seminu, pois é possível ver feridas no peito e nos pés. Das personagens representadas seminuas, certamente vêm à mente Jesus Cristo e São Sebastião, ambos feridos, inclusive no peito. Porém, a indicação do narrador das três partes em que essas feridas se encontram (mãos, pés e peito) revela que se trata de Jesus, já crucificado, quando recebe pregos nos pés e nas mãos e é ferido por uma lança no peito, enquanto São Sebastião não tem feridas nos pés e nas mãos, se as tem, não conseguimos ver, pois são amarradas para trás, no tronco.

Stephan Kessler,Santo António com o Menino Jesus
Stephan Kessler,
Santo António com o Menino Jesus



9. "outro homem com um leão" – O leão revela que esse homem é São Jerônimo, comumente representado ao lado desse animal, com ou sem material de escrita, além de variantes em que aparece também uma caveira ou uma coruja, símbolo da erudição.
Albrecht Dürer,São Jerônimo no Deserto10. "outro homem com um cordeiro" – O "cordeiro" é a chave dessa descrição, e não é difícil encontrar representações de personagens e cenas bíblicas e católicas em que ele aparece. Richter (2007) afirma que se trata de Jesus Cristo, às vezes representado segurando um cordeiro. Notamos, porém, que também São João Batista é representado ao lado desse animal, até com mais frequência. Jovem ou adulto, o cordeiro aparece nos braços desse santo, como no quadro de Frans Badens.
Albrecht Dürer,
São Jerônimo no Deserto

10. "outro homem com um cordeiro" – O "cordeiro" é a chave dessa descrição, e não é difícil encontrar representações de personagens e cenas bíblicas e católicas em que ele aparece. Richter (2007) afirma que se trata de Jesus Cristo, às vezes representado segurando um cordeiro. Notamos, porém, que também São João Batista é representado ao lado desse animal, até com mais frequência. Jovem ou adulto, o cordeiro aparece nos braços desse santo, como no quadro de Frans Badens.


11. "outro homem com uma águia" – A décima primeira descrição é de fácil reconhecimento, pois, embora nem sempre este santo seja representado ao lado de uma águia, o é muitas vezes; trata-se de São João Evangelista, que comumente aparece escrevendo seu evangelho, em ambiente fechado ou aberto, ou ao lado de uma águia, ou ambos, como retrata Carlo Dolci.
12. "outro homem com uma lança dominando um homem caído, chavelhudo e com pés de bode" – Nessa descrição, o narrador escolhe uma representação específica do Arcanjo Miguel, ou São Miguel, que também é representado em outras situações, como na pintura de Juan de Espinal, São Miguel. Opta-se por "lança", como na pintura que escolhemos, mas há outras em que ele porta uma espada desembainhada e/ou flamejante. O demônio não é apresentado por seu nome, mas por características que o diferenciam de um corpo humano: chavelhos (chifres) e pés de bode, embora ele costume ser representado com pés humanos. Carlo Dolci, São João Evangelista escreve seu evangelho
12. "outro homem com uma lança dominando um homem caído, chavelhudo e com pés de bode" – Nessa descrição, o narrador escolhe uma representação específica do Arcanjo Miguel, ou São Miguel, que também é representado em outras situações, como na pintura de Juan de Espinal, São Miguel. Opta-se por "lança", como na pintura que escolhemos, mas há outras em que ele porta uma espada desembainhada e/ou flamejante. O demônio não é apresentado por seu nome, mas por características que o diferenciam de um corpo humano: chavelhos (chifres) e pés de bode, embora ele costume ser representado com pés humanos.

Carlo Dolci,
São João Evangelista escreve seu evangelho




13. "outro homem com uma balança" – Outra vez, temos São Miguel Arcanjo, que, às vezes, porta, além da espada ou lança, uma balança, como se pode ver na pintura de Marcílio Soares.14. "um velho calvo segurando um lírio branco" – Essa descrição é outra que pode gerar alguma confusão, pela semelhança de elementos com as representações de Santo Antônio, as quais costumam conter: o próprio santo, o menino Jesus, um livro aberto – sobre o qual se senta o menino – e um lírio branco na mão do menino ou do santo. A falta do livro (aberto ou fechado), porém, indica que se trata de São José, comumente representado ao lado do menino Jesus, segurando (ele ou o menino) um lírio branco.15. "outro velho apoiado a uma espada desembainhada" – Richter (2007) afirma que se trata de São Tiago. Há, de fato, pinturas em que esse apóstolo aparece segurando uma espada, mas ela está levantada, em momento de luta. Em algumas pinturas em que aparece em situação diferente, como no quadro de Juan de Juanes, ele porta um cajado. 16. "uma mulher com uma pomba" – Como o cordeiro, a pomba não é exclusividade da iconografia dum ou doutro santo ou personagem bíblica. São Francisco de Assis, por exemplo, é representado cercado por pombos, a céu aberto, ali- Frans Badens, São João Batista com o cordeiro em uma paisagem arborizada
13. "outro homem com uma balança" – Outra vez, temos São Miguel Arcanjo, que, às vezes, porta, além da espada ou lança, uma balança, como se pode ver na pintura de Marcílio Soares.
14. "um velho calvo segurando um lírio branco" – Essa descrição é outra que pode gerar alguma confusão, pela semelhança de elementos com as representações de Santo Antônio, as quais costumam conter: o próprio santo, o menino Jesus, um livro aberto – sobre o qual se senta o menino – e um lírio branco na mão do menino ou do santo. A falta do livro (aberto ou fechado), porém, indica que se trata de São José, comumente representado ao lado do menino Jesus, segurando (ele ou o menino) um lírio branco.
15. "outro velho apoiado a uma espada desembainhada" – Richter (2007) afirma que se trata de São Tiago. Há, de fato, pinturas em que esse apóstolo aparece segurando uma espada, mas ela está levantada, em momento de luta. Em algumas pinturas em que aparece em situação diferente, como no quadro de Juan de Juanes, ele porta um cajado.
16. "uma mulher com uma pomba" – Como o cordeiro, a pomba não é exclusividade da iconografia dum ou doutro santo ou personagem bíblica. São Francisco de Assis, por exemplo, é representado cercado por pombos, a céu aberto, ali-


Frans Badens,
São João Batista com o cordeiro em uma paisagem arborizada


Juan de Espinal,São Miguel
Juan de Espinal,
São Miguel

mentando-os. Porém, quando se trata de uma mulher, não são muitas as que são representadas com pombas: a "mulher do médico" estava diante de uma representação de Santa Tereza D'Ávila.
mentando-os. Porém, quando se trata de uma mulher, não são muitas as que são representadas com pombas: a "mulher do médico" estava diante de uma representação de Santa Tereza D'Ávila.





17. "um homem com dois corvos" – Segundo Richter (2007), trata-se de uma variante de São Paulo. Porém, em pesquisa sobre a iconografia desse santo, o número de representação de São Paulo ao lado de corvos é quase nulo. O mais encontrado, sem dúvidas, é São Expedito, mas somente com um corvo, sob o pé. São Bento também é representado ao lado de um corvo, e profetas, como Elias, a quem Deus enviou pão e carne pelos corvos, também são associados a esse animal. Como são dois os corvos indicados na descrição, fica difícil saber quem é a personagem referida. Encontramos, antes de tomar nota da resposta de Richter (2007), referências a exatos dois corvos na lenda de São Vicente; depois de torturado, estando seu corpo num barco, dois corvos pousaram sobre ele. Há algumas representações, e também a lenda, de São Vicente e os corvos.
18. "só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata" – Por fim, temos uma representação de Santa Luzia, que – segundo uma entre muitas histórias – teria arrancado os próprios olhos para que os homens que iriam violá-la perdessem o interesse. A imagem dessa santa é uma das mais famosas e é facilmente reconhecida por católicos e não católicos.









Juan de Juanes,Santiago peregrinoMarcílio Soares,São Miguel ArcanjoRafael Sanzio,A Vitória do Arcanjo Miguel

Juan de Juanes,
Santiago peregrino


Marcílio Soares,
São Miguel Arcanjo


Rafael Sanzio,
A Vitória do Arcanjo Miguel



3 DIVERGÊNCIAS NO RECONHECIMENTO DAS PINTURAS

Nos dois trabalhos selecionados para comparação, encontramos algumas divergências. As respostas de Richter (2007) parecem ser mais precisas: há um parágrafo dedicado exclusivamente ao reconhecimento das pinturas descritas no trecho em estudo. No estudo de Abboud (2011), fala-se apenas de alguns santos que, segundo a autora, fazem parte da descrição: "[...] Santa Faustina, São Pedro, São Sebastião, Santa Rita, São Francisco de Assis, Santo Antônio [...]" (ABBOUD, 2011, p. 114). Confrontando com a versão de Richter (2007) e em pesquisa sobre a iconografia dos santos católicos, podemos afirmar que Santa Faustina, Santa Rita e São Francisco de Assis não se encontram na descrição feita pelo narrador; Santa Faustina, por exemplo, costuma ser representada segurando uma imagem de Jesus Cristo ou algum escrito ou ainda junto a Jesus; São Francisco de Assis, que, dos elementos de reconhecimento apontados nas descrições, poderia ser associado a algum: é calvo, segura uma pomba ou é rodeado por pombos, não se encaixa em outros; já Santa Rita é comumente representada segurando uma cruz.
Quanto às respostas de Richter (2007), quase todas, assim como as nossas, foram conseguidas facilmente, pois os elementos utilizados na descrição para construirmos as imagens dos santos e personagens bíblicas são reconhecidos e associados mesmo por quem não tem formação católica. Saramago teve-a e dispunha de conhecimento considerável – devido às suas viagens a Roma e às visitas a templos religiosos – sobre a representação dessas personagens. Ele construiu sua descrição de forma pessoal, mas também atentou ao reconhecimento que desejava que o leitor fizesse.

A ekphrasis torna-se, assim, uma expressão subjetiva, pois a descrição realizada do objeto ou de algum elemento seu passa pelo crivo interpretativo do escritor, constituindo não uma versão daquele objeto primeiro, mas uma outra expressão, que somente é reconhecida como um processo ekphrásico, no caso de haver uma alusão ou acompanhamento do texto anterior. E ainda é subjetiva, no sentido de que qualquer texto, ou obra de arte, faz referência a textos anteriores, porém neste caso, a descrição diferencia-se por tratar de um texto com apelos imagéticos ou com uma narrativa que tende à plasticidade. (GARCIA, 2008, p. 4).

Nessa perspectiva, o leitor tende a buscar em sua própria memória os elementos que o fazem associar as descrições a cada personagem, tornando-se o trecho um momento de adivinhação. Ao lermos a passagem em análise, nossa "[...] capacidade intelectual figurativa (adestrada pela técnica) de extrair das palavras a imagem de um objeto sensível – que na verdade será um objeto virtual [...]" (FRITOLI, 2006, p. 29), direciona-se, muitas vezes, a pinturas já conhecidas por nós, de formação cristã.
Um pequeno trecho de uma obra de Saramago como esse é capaz de suscitar muita pesquisa e demorado debate. O que pode parecer simples e de fácil assimilação permite ao leitor buscar novas referências e atentar aos pequenos detalhes, cruzados com a iconografia dos santos da Igreja Católica Apostólica Romana e de personagens bíblicas.
Este exercício foi apenas uma tentativa de reconhecimento das pinturas descritas, ou, pelo menos, de lançar mais dúvidas sobre elas, a partir dos elementos associados a mais de uma personagem. A descrição de Saramago partiu de uma visualização própria dessas imagens, ou foi calcada na memória, mas nós, leitores, incumbidos de decifrá-la, somos obrigados, caso queiramos concluir a tarefa, a percorrer muito mais pinturas dos que as dezoito descritas por ele.

REFERÊNCIAS

ABBOUD, Marcella. Ensaio sobre a cegueira e as narrativas bíblicas: a construção de um romance ateísta. Cadernos de Pós-Graduação em Letras, v. 11, p. 105-116, 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015.

FRITOLI, Luiz Ernani. Os mistérios da pintura escrita na narrativa de Osman Lins: a poética da écfrasis. Revista Letras, Curitiba, n. 69, p. 21-31, maio-ago. 2006.

GARCIA, Gismara Rosane. A ekphrasis n'O conquistador: Entre a presença e a ausência da imagem. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC, 11, 2008, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 2008.

RICHTER, Nanci Geroldo. Os espaços infernais e labirínticos em Ensaio sobre a cegueira. 2007. 165 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. v. 1

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