As populações originárias do altiplano boliviano: adaptação e rupturas

June 19, 2017 | Autor: Alexandre Belmonte | Categoria: Bolivian studies, Arqueología americana, BOLIVIAN ALTIPLANO
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As populações originárias do altiplano boliviano: adaptação e rupturas.
Alexandre Belmonte e Leonardo B. P. da Costa
A história da adaptação humana à natureza possui aspectos que aparecem mais expressivamente nos registros arqueológicos, além de evidentemente estarem presentes no DNA humano. Assim, a partir de comparações de restos fósseis, supõe-se hoje que o homo sapiens neanderthalensis fosse muito mais adaptado ao clima frio que predominava na Europa pleistocênica do que a nossa espécie, tendo sido talvez essa característica adaptativa que lhe permitiu o contato com o homo sapiens sapiens por pelo menos 6 mil anos. Infelizmente, para o homem de Neanderthal, esse convívio inusitado ocasionou sua extinção, não sem que antes intensos processos de hibridismo ocorressem.
A adaptação humana à natureza conta com esse aspecto genético, silencioso, que opera na longuíssima duração, selecionando as características humanas que, a cada momento, devem prevalecer naquilo que Darwin chamou de struggle for life. Sua adaptação às hostilidades do ambiente carece de registros a que estão acostumados os historiadores do período moderno. Este processo, porém, é compartilhado e comunicado de diferentes formas, não apenas através do DNA, mas também nas sociedades humanas, através da linguagem e das próprias ações humanas. Nesse sentido, ninguém propriamente "inventou" as vestimentas de peles de animais, embora seu uso tenha sido compartilhado e os processos de confecção dessas primitivas roupas tenham sido passados através das gerações que nos precederam há milhares de anos.
O homem que chegou aos Andes durante o pleistoceno convivia com a chamada megafauna: dentes-de-sabre, aves do terror, águias gigantes, elefantes e lhamas gigantes. Com as transformações geológicas da passagem do pleistoceno para o holoceno, mais ou menos 11.500 anos atrás, as condições climáticas e do manto vegetal aceleraram a extinção dessa megafauna, e o homem do período holocênico teve que adaptar-se às novas condições impostas pelo meio. É provável que o homem tenha alcançado os Andes ao fugir do intenso frio típico do final da última era glacial. Após a extinção das espécies pleistocênicas, foram necessários apenas alguns milhares de anos para que o homem andino domesticasse as plantas.
As sociedades andinas parecem desde sempre destinadas ao altiplano. O homem do altiplano fez subir a batata dos vales e terras baixas à cordilheira, adaptando-a a climas mais frios e secos. Através de complexos sistemas subterrâneos, o curso dos rios foi desviado, surgindo uma irrigação que permitiu que montanhas frias e inóspitas fossem adequadas ao cultivo de tubérculos, quínua, amendoim e amaranto. Adaptar-se, aqui, significa interagir com a natureza, desarticulando o corte civilizatório ao qual estamos habituados, que coloca natureza e cultura em polos distintos. A essas culturas incipientes dos Andes bolivianos, anteriores à agricultura e à cerâmica, corresponde a cultura lítica de Viscachani, com suas pontas de projétil toscamente lascadas e de dimensões relativamente grandes, indicando seu uso para a caça de grandes mamíferos. Após sucessivas adaptações, após a domesticação das plantas e do uso intenso de animais na alimentação, as culturas andinas de dois milênios a.C. já mostram-se plenamente caracterizadas pelo uso de tubérculos e camelídeos na alimentação(sobretudo lhama, alpaca e vicunha).
Esta readaptação do homem a uma nova dieta e a novas formas de extrair nutrientes da natureza tem sido uma constante na história humana, e é mais facilmente observada na longuíssima duração. As mudanças nos padrões de entalhe e no tamanho das pontas de projétil datadas entre 13.000 e 7.000 anos atrás nos mostram que também suas ferramentas foram adaptadas a novos usos. Animais menores e com o couro menos resistente necessitavam facas e pontas diferentes das usadas quando o homem precisava afrontar animais da megafauna, durante a última fase do pleistoceno.
A interação entre o homem e o meio é incessante, sempre determinada por necessidades temporais das comunidades, e sempre sujeita às transformações físico-químicas do próprio meio. Esta interação é expressa de diferentes formas. Está também expressa nas cosmogonias, nos mitos e ritos e no uso mágico de substâncias e fenômenos naturais. Algumas tumbas andinas datadas de mais de 4 mil anos contêm sementes de amaranto, planta considerada afrodisíaca e até mesmo esotérica, sendo oferecida a divindades em determinados períodos. Rituais consagrados às chuvas e às águas doces têm sido constantes nas práticas religiosas das populações andinas, até os dias de hoje.
Escavações em necrópoles da chamada cultura Paracas, na Bolívia, nos mostram a figura do jaguar nas peças têxteis, na cerâmica etc., indicando que a representação do animal não era apenas decorativa, mas possuía inspirações religiosas. Por vezes associando-se a formas antropomorfas, os felinos parecem sugerir força e belicosidade aos homens que o adoravam. Povos atuais da região andina da Argentina consideram os felinos como homens transformados, e diz-se que caçá-los traz má sorte. Garcilaso de la Vega conta que o culto ao felino é muito anterior aos incas, e que estes se deixavam matar pelo felino quando o encontravam. Também entre os guaranis se repetem as crenças na metamorfose homem-jaguar. Venerado pelo seu poder, várias culturas, dos astecas à Argentina, tiveram verdadeira obsessão pelo animal, evidenciada pela sua reprodução em diversos objetos de uso ritual e também utilitário. O registro arqueológico da cultura boliviana Chiripa (1500 a.C. – 100 a.C.) mostra evidências de sacrifícios em cultos à fertilidade da terra e da mulher, com repercussão na divisão de classes sociais.
A cultura Tiwanaku desenvolveu-se entre Peru e Bolívia, entre 1580 a.C. e 1187 d.C. Sua principal cidade e centro religioso era a cidade de Tiwanaku, atualmente no Departamento de La Paz. Sua principal divindade era o chamado Dios de las Varas, um deus celestial que teria influenciado aimarás e incas. Aparentemente, os ritos tiahuanacotas eram de incrível sofisticação e complexidade, envolvendo o uso de plantas e raízes alucinógenas (sobretudo a anadenanthera, também utilizada em rituais na Bacia Amazônica, e a acácia angustiloba, também chamada de parica, além das onipresentes folhas de coca). Essas substâncias eram consumidas tanto pelos sacerdotes encarregados dos rituais, quanto pelas pessoas sacrificadas. Os tiahuanacotas realizavam sacrifícios, embora não tão periódicos quanto os dos astecas ou maias.
As limitações e hostilidades do altiplano andino determinaram não somente a alimentação, mas também a religiosidade desses homens. Assim, o culto à Pachamama pode ser visto na longa duração como uma relação de troca entre o homem e a terra. Até os dias de hoje, as corpachadas são realizadas utilizando fetos de lhama que, consagrados à Deusa Terra, fertilizam a terra e garantem a boa colheita e o sustento do indígena. Corpachar a terra quer dizer dar de comer à Pachamama. Da mesma forma, muitos nativos vertem ao solo um pouco da cerveja ou da chicha que bebem, dizendo: "Antes para la Pacha!". Por todo o altiplano andino são encontrados pequenos montes de pedras sobrepostas, que os quéchuas chamam de apacheta. Acredita-se que deixar uma pedra proteja o viajante. Geralmente também são oferecidos folhas de coca, tabaco e bebidas, e retirar as pedras do lugar é considerado profanação.
No interior das minas de Potosí, reina El Tio. Comumente representado como um demônio com chifres e grande falo, são várias as imagens de El Tio pelas minas do Cerro Rico, sempre alimentado pelos mineiros com folhas de coca, cigarros e aguardente. Também parte da população asperge o sangue de uma lhama sacrificada na entrada das minas, em devoção a El Tio. A tradição oral sobre El Tio estende-se sobretudo pela região de Potosí, mas é também cultuado em outras minas pela Bolívia. Alguns cronistas dizem que já era cultuado pelos nativos antes da chegada dos espanhóis. O culto a El Tio pode provir do antigo culto dos urus a Wari, deus do fogo que vivia nas montanhas. Humilhado pela Ñusta, Wari é obrigado a descer ao uku pacha, o inframundo. Qualificado de diabo pelos espanhóis, vai se transformando em El Tio, afastando-se do mundo para adentrar os socavões das minas, para que fosse cuidado assim como cuidara dos urus. (Tiw em língua uru quer dizer protetor).
Iniciamos nossa conversa no Pleistoceno, e chegamos ao presente. O que será que um olhar na longa duração nos conta sobre a realidade dos países andinos? Percebemos um conjunto de permanências que, a despeito de tantas adaptações do homem ao meio e de tantas rupturas e descontinuidades no seu processo histórico, persistem no cotidiano, na cosmovisão e nas práticas populares dos povos do altiplano, herdeiros das culturas locais originárias.








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Professor Adjunto de História da América Antiga e Colonial na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Graduando em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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