As Práticas Sociais de Leitura e de Escrita no Processo de Alfabetização

June 20, 2017 | Autor: Kátia Brakling | Categoria: Ensino Língua Portuguesa
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AS PRÁTICAS SOCIAIS DE LEITURA E ESCRITA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO1 Kátia Lomba Bräkling2 “trago a sina do peixe nascido pra beber o rio.” (Marcos Caiado)

A escrita é importante na escola, porque é importante fora dela (Ferreiro; 2001)3. Eis aqui uma frase que, nas últimas décadas, se tornou parte do ideário brasileiro sobre alfabetização. Como é comum nos processos de apropriação de conhecimentos, a compreensão desse enunciado tem se traduzido de diferentes maneiras. Por exemplo, pode significar que, na prática de ensino de linguagem, ela deva ser utilizada com “função social”, o que pode, por si, ter múltiplos significados. Por exemplo, escrever em situações necessariamente nas quais se tenha um leitor externo à escola, ou como se escrever devesse assumir um sentido utilitarista, sempre cumprindo uma tarefa específica (escrever para nomear objetos em uma estante, por exemplo; as situações sem “utilidade” seriam, assim, inadequadas ao ensino.). Pode, ainda, ser compreendido como fala que se contrapõe ao ensino que utiliza textos escritos com uma linguagem característica dos textos da cartilha, os quais não têm sentido fora da escola. Pode ter esses sentidos e múltiplos outros. Juntos ou em separado. Certamente, essas compreensões da idéia subjacente ao enunciado, ainda que parciais ou não inteiramente adequadas, já incorporam aspectos do seu sentido efetivo. Mas, como já se disse, ainda que compreendendo a necessidade de constituição de sensos comuns inevitáveis ao processo de aprendizado, de tempos em tempos, é necessário revisar nossa

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BRÄKLING, K. L. As Práticas Sociais de Leitura e de Escrita no Processo de Alfabetização. In: Educação. Fazer e Aprender na Cidade de São Paulo. Fundação Padre Anchieta/Secretaria Municipal de Educação. São Paulo (SP): SME/DOT; 2008 (PP. 174-185).

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Kátia Lomba Bräkling Pedagoga e Mestre em Lingüística Aplicada pela PUC de SP; Professora da PósGraduação ISE Vera Cruz (São Paulo – SP); Coordenadora de Língua Portuguesa do Colégio HebraicoRenascença (São Paulo); Assessora de Instituições de Ensino na Área de Ensino da Linguagem Verbal.

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FERREIRO, Emilia. Cultura escrita e educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 2001.

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bagagem conceitual, ressignificar conceitos, pois a estagnação não contribui, para o nosso aprimoramento. Dessa forma, parece que é chegado o momento de revisitarmos essa afirmação representativa de uma mudança significativa da compreensão do processo de alfabetização, procurando buscar seus sentidos mais profundos. Não por mero exercício intelectual, e sim porque a sua compreensão traz sérias implicações para a prática pedagógica de alfabetização. Nessa perspectiva, parodiando o poeta, bebamos o rio, pois é essa a nossa sina: as águas profundas, inteiras, todas as águas do rio (e) da linguagem.

O que é mesmo a linguagem? Fundamentalmente, a linguagem é uma prática social. Quando a língua é tomada pelo sujeito para organizar um discurso — oral ou escrito — e, portanto, para significar, quando a língua é colocada em funcionamento, é aí que a linguagem acontece. Como todos sabemos, as circunstâncias nas quais a linguagem se realiza são múltiplas, e delas participamos cotidianamente: - ler uma revista na sala de espera do dentista; - ler a estante da banca de jornal ao passar por ela, para ver as notícias mais recentes; - ler a primeira página do site, quando acessamos nosso provedor; - ler o Evangelho em voz alta, em uma cerimônia religiosa; - ler a tela do Banco Eletrônico para verificarmos a movimentação de nossa conta bancária; - ler um artigo de lingüística para estudarmos determinado conteúdo; - ouvir as notícias no rádio do carro, quando vamos para o trabalho; - participar de um sarau literário; - ler e responder mensagens recebidas por e-mail; - ler um romance à noite, antes de pegarmos no sono; - investigar os livros de poesia na estante da livraria para ampliarmos nosso acervo pessoal; - ler o edital de um concurso; - escrever uma carta de reclamação por nos sentirmos lesados por determinado serviço ou produto; - participar de uma entrevista de emprego; - ler o manual do usuário para conseguir utilizar o celular recém adquirido; - apresentar uma comunicação em um seminário; - assistir um debate em um programa televisivo...

Ser cidadão, portanto, requer a inevitável participação de situações de comunicação verbal, de situações de linguagem, quer a linguagem requerida nessas situações seja a oral, quer seja a escrita. A escola, como instituição cuja finalidade é a formação do sujeito para a cidadania, deve possibilitar a ele a apropriação de conhecimentos que permitam a sua participação social 2

efetiva. Essa participação requer o domínio de todos os conhecimentos requeridos nas situações de interação verbal. E quais seriam esses conhecimentos? No que se refere à linguagem escrita, fundamentalmente, seriam: a) procedimentos de leitura: saber ler da esquerda para a direita e de cima para baixo; considerar a leitura da orelha e da quarta-capa na seleção de material de leitura; utilizar um índice para procurar informações, entre outros; b) procedimentos de escrita: a. de planejamento dos textos que escreverá: como tomar nota de aspectos que precisarão estar contidos no texto; organizar um esquema do texto que será escrito e orientar a textualização por ele, por exemplo; b. de textualização: seleção do léxico, das expressões, do registro em função do leitor; elaboração dos enunciados; ler o trecho anteriormente escrito para continuar escrevendo, de modo a garantir a coesão e a coerência das informações, entre outros; c. de revisão processual e final dos textos; c) comportamentos leitores e escritores: socializar material de leitura; compartilhar critérios de escolha de material de leitura; pedir a opinião de terceiros sobre o texto que escreveu; considerar essa opinião ao revisar o texto, por exemplo; d) capacidades de leitura e de produção de textos: antecipar eventuais conteúdos do texto em função dos conhecimentos prévios sobre o autor, sua obra, seu estilo, assuntos que costuma tratar, portador e veículo no qual o texto foi publicado, época em que o texto foi escrito; relacionar um texto com outros lidos partir de referências como autor, temática, época de produção; ser capaz de refutar opiniões contrárias às que defende em um texto; organizar os fatos relatados em uma notícia a partir do eixo de relevância, entre outras. Além desses conhecimentos, de natureza mais propriamente procedimental, devem ser tomados como objeto de ensino, os seguintes conhecimentos lingüísticos constitutivos da linguagem: - discursivos (relativos à adequação do discurso ao contexto de produção, inclusive as características dos gêneros nos quais os textos se organizam); - pragmáticos (relacionados às características de eventos de comunicação, como seminários, saraus, congressos, fóruns); - textuais (concernentes à coesão, coerência, paragrafação, pontuação); - gramaticais (referentes aos conteúdos gramaticais clássicos, como sintaxe, morfologia, semântica, estilística, fonética, ortografia, estilística); - notacionais (relativos à compreensão do sistema de escrita). A participação nas práticas de linguagem será tanto melhor quanto maior for a mestria do sujeito ao articular adequadamente todos esses saberes, sabendo mobilizá-los em função das características da situação de comunicação. A primeira decorrência da compreensão da linguagem como prática social relaciona-se, portanto, com os aspectos que, na escola, devem ser tomados como objeto de ensino. Se antes, em uma visão mais conservadora, apenas conteúdos gramaticais eram o foco e, nas práticas de alfabetização, os notacionais, agora, o leque se amplia, diversifica e complexifica. 3

Grafar um texto e produzir um texto em linguagem escrita são a mesma atividade? A reflexão lingüística atual nos permite compreender que a capacidade de grafar um texto não é sinônimo de capacidade de produzir um texto em linguagem escrita. A escrita — tal como hoje se sabe — é uma ferramenta tecnológica que permite registrar a palavra, o texto produzido. Por meio da escrita – um sistema de representação alfabético dos sons da fala no caso da escrita brasileira –, podemos grafar, inclusive, textos orais. É o caso, por exemplo, da transcrição de uma palestra gravada em áudio, para estudo. A linguagem escrita é mais do que o registro gráfico de um texto: é um modo de organizar o discurso, previamente ao momento de dá-lo a conhecer ao seu interlocutor, de modo que se possa recuperá-lo posteriormente, tal como elaborado pelo seu produtor. Esse processo supõe uma organização textual que requer, por exemplo, a apresentação de todas as referências contextuais relevantes do momento de produção, sob pena de o leitor não conseguir recuperá-las. Isso posto, podemos dizer que aprender sobre a linguagem escrita e sobre a escrita da linguagem não é o mesmo. São objetos diferentes, ainda que, historicamente, poder grafar a linguagem possa ter sido elemento definidor das características que a linguagem passaria a ter, pois, por influência desse suporte, também ela se foi modificando ao longo da história, em especial, pelo recurso mnemônico que se tornou. Saber disso é fundamental para a prática de alfabetização, pois esse conhecimento coloca para o professor a possibilidade de trabalhar a linguagem escrita junto a seus alunos, ainda que por meio da oralidade, não sendo necessário esperar que eles aprendam a grafar/escrever para passarem a produzir textos em linguagem escrita. Ao contrário, enquanto aprendem sobre a linguagem escrita, os alunos estudam a escrita, ferramenta de registro de textos. Assim, atividades como recontar oralmente um conto, lido como se o estivesse lendo em um livro, são fundamentais para a aprendizagem da linguagem escrita; ditar um texto para que o professor o grafe, também. Em ambas as situações, os alunos estão sendo solicitados a produzir textos escritos, aprendendo a planejá-los e a revisá-los, de modo a estarem adequados a todas as características do contexto de produção (incluindo-se as especificidades do gênero). Estão aprendendo conteúdos gramaticais, textuais e discursivos.

Uma conversa indispensável: o texto e seu contexto de produção Compreender a linguagem verbal como prática social significa concebê-la como processo de interação e interlocução entre sujeitos. Significa assumirmos a posição de que toda palavra é orientada para outrem, ainda que esse outrem seja a si mesmo desdobrado, como na situação de produção de um diário pessoal.

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Assim, a cada vez que tomamos a palavra — oral ou escrita — para dizer alguma coisa para alguém, ajustamos o nosso discurso a esse alguém, considerando os saberes (sobre a linguagem, sobre o conteúdo do texto) que supomos que esse interlocutor possua, considerando o grau de familiaridade que temos com ele (de maior ou menor proximidade), considerando os valores e idéias já construídas sobre o assunto que supomos que possua. Mas não apenas a ele ajustamos o nosso discurso. Ele deve ser ajustado também ao: - gênero no qual o discurso será organizado, considerando suas características de organização interna, suas marcas lingüísticas e de estilo, o conteúdo que é dizível por meio dele; - lugar no qual esse discurso circulará - na escola, na igreja, em casa, na faculdade, no trabalho, na mídia impressa, televisiva, radiofônica, entre amigos, em um comício, por exemplo; - portador no qual será publicado - revista, livro, folder, mural, jornal, panfleto, outdoor, entre outros; - veículo no qual circulará - Folha de São Paulo, O Estado, Revista Nova Escola, Veja, Época, TPM, Ciência Hoje, Caros Amigos, Toda Teen, Jornal Nacional, Esporte Espetacular, Vitrine, Roda Viva, Sempre um Papo, entre tantos outros. As características do gênero, do lugar de circulação, do portador e do veículo no qual o texto será publicado também determinarão as escolhas que faremos quanto ao conteúdo possível de ser dito, quanto à maneira mais adequada para dizer, quanto à extensão do discurso a ser organizado. Escrever um verbete sobre o que vem a ser um bioma, para ser apresentado no mural da escola, como parte de um trabalho de esclarecimento dos alunos a respeito das questões ambientais atuais, vai requerer escolhas diferentes de uma proposta de escrita de um verbete para ser publicado no site da Secretaria do Meio Ambiente, na página de questões ambientais gerais. Devem ser considerados, por exemplo: a escolha dos recursos de linguagem; a definição do tipo de linguagem - mais ou menos técnica, por exemplo; a seleção dos aspectos a serem focalizados nesse verbete; a adequação da extensão do texto; e, até mesmo, a determinação do tamanho da letra a ser utilizada. Podemos dizer, assim, que um texto será tanto mais eficiente, quanto mais adequado estiver aos elementos constitutivos do seu contexto de produção. Disso concluímos que as características do contexto de produção de um texto determinam diretamente esse texto. Nessa perspectiva, o ajuste de um texto ao contexto de produção definido deve ser conteúdo de ensino. A ação didática deve, assim, supor propostas de trabalho que definam previamente tais parâmetros (para quem se irá escrever, em que lugar o texto circulará, em que portador será publicado, com qual finalidade será escrito, em que gênero se organizará, em que veículo circulará, por exemplo), que ensinem o aluno a planejar o seu texto em função desses parâmetros, que tematizem a revisão do texto em relação aos mesmos e que avaliem o texto em termos de sua adequação a eles. Não se trata de mera questão intelectual e retórica, e sim de uma capacidade fundamental da proficiência lingüística do cidadão. Não tomá-la como objeto de ensino implica em deixar de contribuir para a constituição da competência discursiva efetiva desse cidadão, 5

significa deixar de formar cidadãos que saibam produzir discursos que, de fato, cumpram sua finalidade. A constituição dessa proficiência — como já se disse anteriormente — não requer que se saiba grafar textos para que seja tematizada, podendo ser trabalhada em situações didáticas nas quais, por exemplo, o professor grafe o texto elaborado pelos alunos. Por isso, pode ser constituída antes mesmo da compreensão do sistema de escrita, ou durante o processo de constituição desse saber. O processo de alfabetização, portanto, não pode prescindir desse trabalho. Se as características do contexto de produção definem um texto, então tematizar esse aspecto não é importante apenas no processo de produção de textos, mas sim no de leitura também. Ensinar os alunos a recuperarem elementos do contexto no qual o texto que será lido foi produzido é fundamental para que eles se aproximem mais adequadamente dos sentidos pretendidos pelo autor, compreendam as escolhas lexicais que ele fez, possíveis argumentos que escolheu, por exemplo. E essa atividade também não requer compreensão do sistema para ser realizada, dado que é possível ter contato com textos escritos por meio da leitura em voz alta feita pelo professor.

À guiza de conclusão, provisória conclusão, como é da natureza do conhecer. Face à discussão realizada, podemos dizer que, se a linguagem é compreendida como prática social, as implicações para o ensino são óbvias: alfabetizar também precisa acontecer em um espaço discursivo, ou seja, em um processo no qual se produza linguagem, se interaja por meio da linguagem, se comunique verbalmente por meio de práticas sociais similares às que se realizam nos contextos públicos, expandindo-se o espaço comunicativo para além do espaço escolar. Mas isso não significa esquecer que, assim como os demais, a escola é um espaço social que possui práticas de linguagem específicas, as quais devem ser consideradas no processo educativo. Uma das especificidades do espaço discursivo escolar é tomar as práticas de linguagem de outros espaços como objeto de estudo e de ensino. Há que cuidar para que, nesse processo, em função das transposições didáticas inevitáveis, não sejam descaracterizadas. Há que cuidar, ainda, para não cair no exagero de considerar que toda proposta de produção de texto deva, necessariamente, prever um interlocutor externo real. Ao contrário, deve-se propor e definir interlocutores e contextos para os textos que se refiram às situações externas, ainda que de maneira simulada. Para finalizar, uma última consideração.

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Nas sociedades atuais, cada vez mais grafocêntricas, o conhecimento da escrita passa a ter importância fundamental, quer seja para a formação da opinião do cidadão, ou para a obtenção de informações para a constituição dessa opinião, para a produção e registro de conhecimento produzido pelo cidadão, ou, ainda, para a divulgação desse conhecimento. Por cada uma dessas razões, o sujeito precisará participar de situações nas quais a sua proficiência verbal será requerida, seja para ler, para escrever, para ouvir ou para falar. Assim, é de fundamental importância garantir que os alunos compreendam, efetivamente, e no menor tempo possível, o sistema de escrita. Mas não de maneira isolada e, sim, como parte de uma atividade discursiva mais ampla, ainda que, didaticamente, seja necessário realizar atividades específicas para esse aprendizado. O processo de linguagem é complexo. Requer a aprendizagem de muitos aspectos e a constituição de muitos saberes. A escrita é um deles. A proficiência cidadã também depende desse saber. Por isso a escrita é importante na escola porque é fundamental fora dela.

PARA SABER MAIS BRAKLING, K. L Leitura do mundo, leitura da palavra, leitura proficiente: qual é a coisa que esse nome chama. Revista Aprender Juntos. São Paulo (SP): Edições SM; 2008 (no prelo) PASQUIER, A.; DOLZ, J. Un decálogo para enseñar a escribir. In: CULTURA y Educación, 2: 1996, p. 31-41. Madrid:Infancia y Aprendizaje. Tradução provisória de Roxane Helena Rodrigues Rojo. Circulação restrita. ROJO, R. H. R. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania. São Paulo(SP): SEE/CENP: 2004. Apresentação em Congresso, em maio de 2004.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. (V. N. Volochinov) (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo (SP):Hucitec.6ª ed. 1992. BRAKLING, K. L. Concepções de linguagem e suas implicações para a prática pedagógica. In “LÍNGUA PORTUGUESA. MÓDULO 1: O Ensino da Língua Portuguesa: linguagem, interação e participação social. UNIDADE 5: Diferentes maneiras de se compreender a linguagem e as implicações para a prática pedagógica”. REDEENSINAR/UNIARARAS; 2002. GERALDI, J. W. Linguagem e Ensino. Exercícios de militância e divulgação. Campinas (SP): ALB - Mercado de Letras, 1996. __________. (1991). Portos de Passagem. São Paulo (SP): Martins Fontes. 1991. LERNER, Delia. Ler e escrever na escola. O real, o possível e o necessário. Porto Alegre (RS): Artmed; 2002.

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ROJO, R. H,. R. Perspectivas enunciativo-discursivas em produção de textos. Comunicação realizada no VI Congresso Brasileiro de Lingüística Aplicada. Campinas: UNICAMP. 1995

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