As quintas vinhateiras na construção do património paisagístico do Douro

September 10, 2017 | Autor: Natália Fauvrelle | Categoria: Douro, Quintas, Arquitectura do vinho
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Descrição do Produto

Atas das 2as

CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM 2014 24 e 25 de outubro

QUINTAS DO DOURO História, Património e Desenvolvimento

Geraldo Coelho Dias

ATAS das 2as

CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2014 Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento Disponível online em www.museudelamego.pt

ABREVIATURAS AMVR – Arquivo Municipal de Vila Real ASCR – CQ - Amigos do Solar dos Condes de Resende – Confraria Queirosiana ASRAVD – Associação de Desenvolvimento da Rede de Aldeias Vinhateiras do Douro CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória CNRS – Centre National de la Recherche Sciéntifique, Lyon

DL – Diocese de Lamego DRCN – Direção Regional de Cultura do Norte FCSH – UNL – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto GHAP - Gabinete de História, Arqueologia e Património MD – Museu do Douro ML – Museu de Lamego

ORGANIZAÇÃO ML DRCN / CITCEM FLUP

CONCEPÇÃO E COMPOSIÇÃO GRÁFICA Pe. Hermínio Lopes (DL)

COMISSÃO ORGANIZADORA Alexandra Braga (ML DRCN) Gaspar Martins Pereira (FLUP CITCEM) Luís Sebastian (ML DRCN) Paula Montes Leal (FLUP CITCEM)

IMAGEM DE CAPA Pedro Martins. © Direção Regional de Cultura do Norte

COORDENAÇÃO EDITORIAL Alexandra Braga Luís Sebastian

EDIÇÃO © Museu de Lamego – Direção Regional de Cultura do Norte DATA DE EDIÇÃO Outubro de 2014

CONFERENCISTAS António Martinho (ADRAVD) Carlota Cabral (FCSH-UNL) Celeste Pereira (Greengrape) Gaspar Martins Pereira (CITCEM) Gonçalves Guimarães (GHAP – ASCR-CQ) Luís Ramos (UTAD) Manuel Carvalho (Jornal «Público») Natália Fauvrelle (MD/CITCEM) Nuno Magalhães (UTAD) Nuno Resende (CITCEM) Otília Lage (CITCEM) Paula Montes Leal (CITCEM) Paulo Amaral (DRCN) Pedro Peixoto (AMVR) Pedro Pereira (CITCEM/CNRS)

e-ISBN 978-989-98657-7-8

O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica são da responsabilidade dos autores.

DESIGN DE COMUNICAÇÃO Luís Sebastian COMUNICAÇÃO Patrícia Brás (ML - DRCN) SECRETARIADO Paula Duarte (ML DRCN) Patrícia Brás (ML DRCN) Teresa Sequeira (ML DRCN) LOGÍSTICA Paula Pinto (ML DRCN)

APOIOS: Liga dos Amigos do Museu de Lamego Município de Lamego Diocese de Lamego Hotel Lamego Solta Giga Casa de Santo António de Britiande ESTGL Lamego Escola de Hotelaria e Turismo do Douro – Lamego Quinta de Mosteirô

Índice Conferência de Abertura Gaspar Martins Pereira (FLUP/CITCEM) Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento ......................................................... 09

Mesa-redonda QUINTAS DO DOURO: MEMÓRIA E RECURSO António Martinho (Membro da Direção da Douro Generation – Associação de Desenvolvimento) A História e o património das quintas do Douro como valor de recurso para o Turismo ........................... 21 Celeste Pereira (Greengrape - consultoria) A importância do vinho do Porto na valorização do enoturismo e do território Douro ............................ 29

Painel 1 O PATRIMÓNIO DAS QUINTAS DO DOURO Natália Fauvrelle (Museu do Douro – Coordenadora dos Serviços de Museologia (em licença). Bolseira de doutoramento FCT/MD: Investigadora CITCEM) As quintas vinhateiras na construção do património paisagístico do Douro......................................... 35 Carlota Cabral (Mestre FCSH-UNL) Quinta do Paço de Monsul: um património singular ................................................................... 53 Nuno Resende (DCTP- FLUP) Santos da casa: capelas, devoção e poderes a sul do Douro no memorialismo paroquial .......................... 61 J,A, Gonçalves Guimarães (arqueólogo; coordenador do Gabinete de História, Arqueologia e Património – ASCR-CQ) Da intervenção arqueológica ao museu de sítio: a experiência da Quinta de Ervamoira........................... 81

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Painel 2 QUINTAS DO DOURO: PATRIMÓNIO VITIVINÍCOLA, ENOTURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL Nuno Magalhães (UTAD) O papel e importância das “quintas” na investigação e desenvolvimento da vitivinicultura duriense......... 105

Painel 3 QUINTAS DO DOURO: DOS ARQUIVOS À HISTÓRIA Paula Montes Leal (CITCEM) Arquivos de quintas do Douro: os casos de Santa Júlia e da Pacheca .............................................. 117 Pedro Peixoto (diretor do Arquivo Municipal de Vila Real) Os arquivos das quintas do Douro: que estratégias de salvaguarda?............................................... 125 Otília Lage (CITCEM) Dos arquivos patrticulares, património a preservar, à história da Quinta da Alegria de Cima (Carrazeda de Ansiães, 1890-2014) ....................................................................................................... 129

Painel 4 ARQUEOLOGIA DAS QUINTAS DO DOURO Pedro Pereira (CITCEM; UMR 5138 Archéométrie et Arqchéologie – ULLII/CNRS) A importância da Arqueologia para a história da vinha e do vinho na região do Douro .......................... 143

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Painel 1

O Património das Quintas do Douro Natalia Fauvrelle Carlota Cabral Nuno Resende Gonçalves Guimarães

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As quintas vinhateiras na construção do património paisagístico do Douro texto: Natália Fauvrelle Museu do Douro - Coordenadora dos Serviços de Museologia (em licença) Bolseira de doutoramento FCT/MD. Investigadora do CITCEM ([email protected])

Nota biográfica: Natália Fauvrelle   Mestre em História da Arte na área de património e restauro, tendo obtido o grau de mestre com uma tese sobre a arquitetura das quintas do Douro, e a frequentar o doutoramento em museologia, centrando a sua investigação na paisagem classificada do Alto Douro Vinhateiro e os desafios da gestão deste património. É coordenadora dos serviços de museologia do Museu do Douro, projeto no qual tem colaborado desde 2002, estando presentemente em licença com uma bolsa de Doutoramento em Empresas da FCT. É investigadora do CITCEM, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», com sede na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Publicou vários livros e artigos sobre o património duriense e sobre a sua história, centrando as suas investigações no património arquitectónico e na paisagem rural, em particular no património associado à vitivinicultura. Integrou a equipa responsável pela candidatura a Património Mundial do Alto Douro Vinhateiro. Resumo Pela qualidade excepcional da sua paisagem cultural a Região Demarcada do Douro viu inscrita na lista do Património Mundial parte do seu território, em 2001. Esta paisagem resulta de um processo histórico de adaptação de um território de montanha, de condições adversas, à viticultura, constituindo os testemunhos desta prática a malha patrimonial que sustenta a classificação. Neste artigo discute-se qual o papel das quintas vinhateiras na construção da paisagem duriense, tendo em conta o património vernacular que conservam e a forma como a sua acção sobre o território condiciona a transformação do terreno em paisagem.

Abstract Due to the exceptional quality of its cultural landscape, the Douro Wine Region saw part of its territory inscribed on the World Heritage Site list in 2001. This landscape is the result of a historical process of adapting a mountain region to viticulture. Testifying this practice are different types of heritage. In this paper we examine the role of the quintas (wine producing estates) in the construction of the Douro winescape, taking into account the role on preservation of vernacular heritage and how its action on the territory affects the transformation of the land into landscape.

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Palavras-chave Paisagem vinhateira, Arquitectura do vinho, Quintas

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classificação de uma parte da paisagem do Douro, o Alto Douro Vinhateiro (ADV), como Património Mundial, em 2001, veio validar culturalmente a qualidade de um espaço cuja história, já longa, se encontra associada à produção de vinho. Incluída na Lista da UNESCO na categoria de “paisagem cultural evolutiva e viva”, a área do ADV (24.600 ha) pretende represen-

Key words Winescape, Wine Architecture, Port Wine Quintas

tar a Região Demarcada do Douro (RDD) (250.000 ha), a mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo, cuja paisagem resulta «de um processo multissecular de adaptação de técnicas e saberes específicos de cultivo da vinha em solos de especiais potencialidades para a produção de vinhos de qualidade e tipicidade mundialmente reconhecidas»45.

Fig. 1 - Mapa do Alto Douro Vinhateiro, Património Mundial. Fonte CCDR-N

45  AGUIAR, 2000: 7

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s testemunhos deste processo inscrevem-se no próprio território, já que a constituição montanhosa da região duriense obrigou a transformar as encostas para possibilitar o cultivo da vinha. Criou-se solo a partir da pedra e construíram-se socalcos para o sustentar. Mas, além dos muros, que alteraram profundamente a configuração natural do espaço, o viticultor duriense acrescentou outros elementos, como os diferentes edifícios de apoio à actividade agrícola, pomares, bordaduras de árvores, sistemas de retenção e condução de água, etc. Todas estas estruturas, resultantes da actividade agrícola, integram a paisagem do ADV, sendo agora consideradas património, tal como os saber-fazer tradicionais associados às diferentes práticas. A agricultura é assim geradora de património, material e imaterial, que se conserva na paisagem de forma cumulativa, coexistindo práticas seculares com rotinas contemporâneas do amanho da terra. Estamos perante uma “paisagem de trabalho” no sentido descrito por Elias Pastor, autor que associa o trabalho, que mantém e transforma o espaço agrícola, como o motor da paisagem, a origem das modificações territoriais.46 A exploração deste território vitícola é feita, essencialmente, através de duas formas: pequenas parcelas 46  ELIAS PASTOR, 2011: 85

Fig. 2 - Quinta do Arnozelo (Vila Nova de Foz Côa) © Museu do Douro

de vinha dispersas ou quintas. As vinhas isoladas, por vezes, organizadas em casais com sede nos povoados, marcam a paisagem através de bordaduras de árvores, muros de delimitação dos caminhos e pequenas estruturas arquitectónicas, como abrigos para guardar as alfaias ou armazéns de média dimensão, onde se fazia e guardava o vinho, espaços maioritariamente desativados no presente. Muitas vezes a vinha surge a par de pomares, hortas ou zonas de mata, servindo estes cultivos complementares essencialmente para o consumo local. As quintas são propriedades de maior dimensão, composta por número alargado de estruturas arquitectónicas, destinadas à habitação e à produção, que lhe permitem uma gestão autónoma da actividade vitivinícola. Impondo-se como ícones emblemáticos da RDD, ocupam um papel importante na modelação do território enquanto paisagem cultural. É devido a esta complexidade estrutural que aqui se interroga o seu papel na construção da paisagem do ADV e na forma como a sua gestão afecta a conservação do próprio bem classificado. Refira-se, desde logo, que a área Património Mundial, com excepção da zona do Baixo Corgo até aos rios Corgo e Varosa, é marcada por quintas de média a grande dimensão, algumas com grande simbolismo para a história da Região.

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nquanto unidade de exploração agrícola deste território, a quinta evidencia-se pela sua organização funcional associada à vitivinicultura, sobressaindo em local estratégico, entre as áreas de cultivo e de monte, um núcleo de edifícios estruturados entre caminhos e pátios fechados, onde se concentram as principais estruturas de habitação e de produção, na sua maioria associadas à actividade vinhateira, mas também adaptadas a outras culturas. Lembre-se que a monocultura da vinha é um fenómeno recente, pois até meados do século XX o isolamento da maioria das quintas obrigava ao desenvolvimento de outros cultivos e actividades, que garantiam a subsistência de quem lá habitava e trabalhava.

As estruturas habitacionais organizam-se também em função do trabalho, reflectindo a hierarquia laboral. Associados a uma época de trabalho essencialmente manual, que exigia grande quantidade de mão-de-obra para a execução da maioria das tarefas, os edifícios dividem-se de acordo com o tipo de ocupantes, havendo casa para o proprietário, para o caseiro e para os trabalhadores. Nestes últimos, nota-se em alguns casos uma estratificação dos espaços de acordo com a categoria do trabalhador, reservando-se aos operários especializados, como podadores, enxertadores, artistas e tanoeiros, espaços próprios e individuais (FAUVRELLE, 2001: 89), distintos dos cardenhos, camaratas comuns destinadas aos jornaleiros, com diminutas condições de higiene e conforto.

Fig. 3 – Casa do proprietário da Quinta dos Frades (Armamar) © Museu do Douro

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sta relação estreita com o trabalho é notória na casa do proprietário. Representativa do status social e económico da família ou empresa que a possui, aqui se agregavam inicialmente as funções produtivas, associadas à transformação das uvas — o piso térreo era destinado a adega de armazenamento e o sobrado a habitação, implantando-se o edifício dos lagares na cota superior

Fig. 4 –Quinta do Noval (Alijó) © Museu do Douro

junto à casa. Este esquema evolui com o crescimento do negócio do vinho do Porto, que ditou a separação entre a casa e as funções produtivas. O volume de vinhos e a importância dada ao seu armazenamento implicou a construção autónoma da oficina vinária, onde se reúnem lagares e armazém de vinho. Afastando-se da casa, implanta-se junto a vias de comunicação, como os caminhos e o rio, facilitando a condução do vinho para fora da Região.

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eflectindo o desenvolvimento da dinâmica agrícola ao longo do tempo, a quinta comporta uma grande diversidade de arquitecturas de produção, cuja forma mais evidente é a que resulta dos sistemas de armação do terreno, em particular para a cultura da vinha, de que se fala mais à frente. Não tão monumentais como os muros de vinha, as estruturas de apoio e transformação são construções vernaculares que enformam a paisagem duriense e que contribuem para a sua diversidade. Nem sempre directamente associados à vitivinicultura, como referido, são testemunhos materiais de uma dinâmica agrícola passada, a memória de um Douro mais diverso, que gerava os produtos necessários ao funcionamento do dia-a-dia, como o azeite, a farinha, a telha, a cal ou os próprios instrumentos de trabalho. Não cabendo nesta análise o tratamento individual e detalhado de cada produção e seus ciclos produtivos, elencam-se aqui apenas alguns dos vestígios materiais que se conservam nas quintas pela sua importância enquanto patrimónios a (re)conhecer na paisagem duriense. Neste contexto inserem-se as construções para animais, como cavalariças, pocilgas, galinheiros,

Fig. 5 – Abrigo na Quinta do Paço (Mesão Frio) © Museu do Douro

pombais e os mais diversos cobertos a elas associadas, para armazenamento de alimentos ou abrigo dos trabalhadores que deles cuidavam. Na sua maioria são construções simples e precárias, mas que em alguns casos se evidenciam pela qualidade, como no caso dos galinheiros da Quinta da Pacheca47 ou da Quinta da Eira Velha, onde cada espécie animal é sinalizada por azulejo de figura avulsa e a pocilga está equipada com chuveiro de água quente e fria.48 Igual estrutura rudimentar apresentam as oficinas ou telheiros destinadas aos artesãos especializados, que se deslocavam às quintas para produzir e reparar ferramentas, vasilhas, cestos e outros instrumentos necessários no dia-a-dia. Ao registo destas construções é importante juntar o reconhecimento quer dos objectos produzidos, quer dos saber-fazer associados, já largamente descontinuados. O mesmo se aplica a outras estruturas de transformação, como os fornos de telha ou cal, associados à construção dos edifícios da própria quinta, agora já sem qualquer uso, sendo condenados ao desaparecimento, muitas vezes por desconhecimento da sua importância enquanto memória. 47  FAUVRELLE, 2001: 101 48  AGUIAR, 2000: A-16

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odas as estruturas de transformação associadas a outras culturas que não a vinha têm idêntico destino, já que a sua pouca rentabilidade e obsolescência ditou o abandono. Refiram-se a esse propósito as construções associadas à cultura dos cereais, à secagem de frutas ou à cultura da oliveira. Se esta última continua activa, marcando presença na paisagem duriense, já as estruturas ligadas à transformação da azeitona, que muitas quintas possuíam, estão na sua maioria em desuso, como é o caso dos lagares tradicionais, de tracção animal ou mecânicos, conhecidos pelos seus “carrinhos”, por não corresponderem às exigências higienistas actuais. De igual forma deixou de fazer sentido manter grandes armazéns para guardar azeite, como se conservam em quintas como os Aciprestes, o Arnozelo ou o Monte Meão. O mesmo sucede com a secagem de frutos como o figo ou a amêndoa – se os cultivos persistem a sua transformação não é feita localmente mas em unidades industriais apropriadas, levando ao abandono dos fornos de figos ou das estruturas secagem da amêndoa.

Fig. 7 – Eira na Quinta do Boucal (Mesão Frio) © Museu do Douro

Fig. 6 – Forno de secar figos (Alijó) ©Museu do Douro

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s culturas que desapareceram da paisagem, como é o caso do cereal, vêem o seu património ainda menos protegido. Se as eiras de debulha parecem sobreviver por entre outras estruturas, já as unidades de moagem, particularmente as situadas nas margens do Douro, foram condenadas ao desaparecimento devido à alteração do leito do rio provocada pela construção de barragens.

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sses vestígios estão igualmente presentes na transformação do solo que cada actividade determinou, como os socalcos e bordaduras criadas pela cultura da oliveira, as estruturas muradas para o resguardo dos

laranjais e apiários, os socalcos compartilhados por espécies hortícolas ou as manchas de vegetação densa formadas por matas, espontâneas ou plantadas. Todas estas intervenções alteram o território e contribuem para a sua polimorfia, característica fundamental da paisagem duriense.

Fig. 8 – Quinta das Sopas, onde sobressai o laranjal circular murado (Sabrosa) © Museu do Douro

Fig. 9 – Entrada do laranjal da Quinta das Peixotas (Peso da Régua) © Museu do Douro

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ns mais monumentais e complexos que outros, estes elementos testificam um período da história agrotécnica duriense, presente também nos diferentes instrumentos e utensílios necessários para o desenvolvimento de cada actividade, bem como nos saber-fazer associados. Só um olhar global do património permite o entendimento das cadeias operatórias de cada ciclo produtivo, sendo a frequente descontextualização dos objectos um impedimento para o conhecimento efectivo da realidade. Esta questão tanto se aplica a culturas descontinuadas, como o cereal, como à própria vitivinicultura, onde a evolução/inovação técnica rapidamente põe de parte muitos instrumentos e práticas,

como é o caso dos antigos lagares de pedra, preteridos por modernos sistemas de vinificação. Uma das características mais peculiares, e que confere autenticidade à paisagem vinhateira duriense, é a constante transformação a que está sujeita, gerando diferentes sistemas de armação do terreno de acordo com as contingências de cada momento. O território torna-se um “livro” onde as marcas da identidade se revelam pela metamorfose do espaço e do tempo. Neste aspecto, o papel das quintas é fundamental, pois a gestão de cada unidade, em função do contexto social e económico, tem o seu maior reflexo na paisagem, sendo a intervenção mais visível a da armação do terreno para o plantio da vinha.

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e forma sumária, consideram-se dois tipos de técnicas de armação do terreno, as históricas e as contemporâneas ou modernas segundo Nuno Maga49 lhães , sendo as primeiras associadas ao trabalho manual e as mais recentes à introdução de meios mecânicos. As formas de armação históricas, praticadas até às décadas de 1960/1970, têm como principal característica o recurso a muros de pedra, xisto ou granito consoante a zona, para a contenção do solo, exigindo uma grande quantidade de mão-de-obra, que manipulava uma variedade limitada de ferramentas, como a marra ou o ferro de desmonte, recorrendo-se ocasionalmente à dinamite para desfazer rochas de maior dimensão, se a disponibilidade financeira assim o permitisse. Quando tal não era possível, estas fragas eram incorporadas na própria parede. 49  MAGALHÃES, 2011

Ainda que já não se edifiquem na actualidade, a sua manutenção vem sendo estimulada, dado o estatuto de Património Mundial da região, conservando-se algum do saber-fazer associado às técnicas de construção vernacular. O antropólogo Elias Pastor nomeia este tipo de paisagem de “paisagens vinhateiras esquecidas”, isto é, aquelas que, pela introdução de novas tecnologias, se estão perdendo e das quais restam poucos exemplos a nível mundial50. Este termo poderá ter significado em regiões onde a presença do terraceamento com muros de pedra é marginal. Contudo, no caso do Douro, adequa-se melhor o termo “paisagens vinhateiras históricas” dada a sua forte presença, testemunhando um momento do passado, associado a processos considerados históricos para a viticultura, mas cuja manutenção é ainda activa.

50  ELIAS PASTOR, 2011: 145

Fig. 11 – Socalcos pré-filoxera. Quinta do Síbio (Alijó) © Museu do Douro

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entro das formas históricas podemos ainda distinguir dois tipos de armação, os socalcos pré-filoxera e pós-filoxera, cuja utilização está marcada pela devastação provocada pela filoxera na região, na segunda metade do século XIX. Estes sistemas têm em comum o uso da pedra saída do terreno de cultivo, quer para erguer os muros de sustentação, quer para a construção de abrigos, tanques e outras estruturas de apoio. A pedra torna-se a «linguagem complementar do vinhedo»51, cuja gramática se foi aperfeiçoando ao longo do tempo nas diferentes construções vernaculares agrícolas já referenciadas. Assim, até meados do século XIX, antes do aparecimento da filoxera, o solo era sustido por muros baixos de pedra-seca, por norma de construção tosca, formando terraços planos e estreitos, cujo desenho se-

guia as curvas de nível. O solo disponível era limitado, comportando uma a duas fiadas de vinha, verificando-se por vezes o uso dos próprios muros para plantio da vinha com a abertura de “pilheiros”. Em alguns casos este sistema permitia a ocupação do solo com hortícolas ou cereais, maximizando assim o espaço arável.

51  ELIAS PASTOR, 2011: 127

Fig. 12 – Mortório. Quinta de D. Matilde (Peso da Régua) © Museu do Douro

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nquadram-se neste tipo pré-filoxera a maioria dos “mortórios” vinhas mortas cujo abandono se associa à falta de meios dos seus proprietários para as replantar depois da destruição da filoxera. Alguns foram apro-

veitados para outras culturas, como a oliveira, e outros foram recolonizados com vegetação arbórea e arbustiva autóctone. Sendo facilmente identificados pelas marcas dos muros, por vezes o forte crescimento da vegetação pode camuflar os vestígios do cultivo da vinha, sendo estas áreas confundidas com matas.

Fig. 13 – Vinha pós-filoxera. Quinta de Valcovo (Vila Real) © Museu do Douro

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m meados da segunda metade do século XIX, foi adoptado um novo modo de armar o terreno, o sistema pós-filoxera, como forma de combate à filoxera, que impôs o uso de porta-enxertos de videira americana, a única resistente ao insecto. Por esta planta necessitar de mais solo, efectuam-se surribas mais fundas, cuja terra exige muros mais sólidos, com paredes mais largas e altas, formando terraços amplos e ligeiramente inclinados, que comportam um maior número de fiadas de vinha. O traçado das encostas passa a ser rectilí-

neo e compartimentado. Este sistema manteve-se até às décadas de 1960/70 e entrou em declínio pela falta de mão-de-obra e custo de construção. O aumento do tamanho dos muros permitiu o desenvolvimento das arquitecturas de água, que se tornam mais complexas, e dos elementos de circulação, que, acompanhando as paredes, ganham monumentalidade e se impõem na paisagem. Juntamente com este sistema, outras inovações alteraram a leitura da paisagem, nomeadamente o plantio da vinha em bardos, em vez da condução individual e desordenada das videiras. É a própria arquitectura da videira que se altera.

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A partir dos anos 1970 começam as primeiras experiências com novas formas de armação do terreno, resultantes da mecanização do trabalho. Estas formas contemporâneas surgem em parte devido à crescente falta de mão-de-obra, mas também graças ao avanço tecnológico, que permitiu não só a utilização de meios

mecânicos na construção da paisagem como a mecanização de várias operações culturais, como a aplicação de fitossanitários, as mobilizações do terreno ou o transporte de uvas na vindima52. 52  MAGALHÃES, 2011: 65

Fig. 14 – Vinha em patamares. Quinta da Soalheira (S. João da Pesqueira) © Museu do Douro

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entro destas novas técnicas de armação distinguem-se os patamares e a vinha ao alto, implementadas de forma sistemática na região a partir dos anos 1980. No primeiro sistema a videira é plantada em plataformas horizontais e estreitas, traçadas segundo as curvas de nível, comportando em média uma a três fiadas de vinha, cujo resultado é um desenho ondulante semelhante aos socalcos pré-filoxera. Estes terraços são sustentados por taludes de terra, cuja exposição à erosão constitui um inconveniente.

Fig. 15 – Vinha ao alto. Quinta do Bonfim (Alijó) © Museu do Douro

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o sistema da vinha ao alto as videiras são plantadas seguindo a linha de maior declive do terreno, armação que altera profundamente a leitura da paisagem, até então unicamente horizontal. Permitindo um maior aproveitamento do terreno e maior eficácia da mecanização das operações culturais, esta armação, quando correctamente instalada, apresenta menor risco de erosão que os patamares. Estes novos métodos acarretaram não só alguns problemas de conservação dos sistemas tradicionais, mas também de salvaguarda das próprias encostas, mais sujeitas aos fenómenos erosivos. Implementados durante séculos, fruto do saber acumulado de gerações, os sistemas de armação com recurso a muros de pedra criaram uma paisagem equilibrada, em que o Homem se soube adaptar às exigências da Natureza. Intervenções agressivas, sem respeito pelas linhas de água, nem pela inclinação do terreno, revelaram-se, por vezes, desastrosas em termos ambientais, para o que também contribui certamente o desaparecimento de zonas arborizadas no cimo dos montes ou nas bordaduras dos caminhos, quando não dos próprios caminhos. Os sucessivos deslizamentos de terras não significam apenas a perda da plantação e do que nela se investiu; a este valor acresce a destruição do património público, como os caminhos e as estradas, e do património paisagístico. Esta situação levou a que se procurasse aperfeiçoar os novos métodos de sistematização

Fig. 16 – Quinta da Soalheira, foto Casa Alvão (c. 1940) © IVDP

na procura de uma maior harmonia com a Natureza. Paralelamente, a crescente valorização da paisagem tradicional conduziu a uma relação de compromisso entre as diferentes formas de armação, permitindo a manutenção da polimorfia da paisagem. A este facto não é alheia a classificação como Património Mundial, que contribuiu para um aumento da sensibilização e protecção. No caso das vinhas em patamares, se as primeiras instalações apresentavam taludes com uma dimensão elevada, as plantações actuais utilizam taludes mais baixos, optimizando assim o aproveitamento do terreno e diminuindo os riscos de desgaste, havendo paralelamente uma maior integração paisagística. Passou igualmente a ser frequente instalar a vinha em micropatamares, sistematização que permite a mecanização evitando a destruição dos antigos socalcos. Refira-se que esta opção de compromisso pode ser um tanto enviesada, no que se refere às políticas de conservação patrimonial, uma vez que qualquer intervenção implica uma alteração na leitura da paisagem – essa é uma condição inerente a um património vivo. Aquilo a que se assiste frequentemente é à manutenção dos muros por si só, destruindo-se sistemas de condução de águas, alterando-se ou mesmo eliminando formas de circulação. Por outro lado, as intervenções nos muros nem sempre respeitam a sua estrutura original, utilizando-se técnicas e materiais que não respeitam a estrutura original. Os muros são “objectificados”, destruindo-se a sua ligação a um sistema vivo e activo de produção.

Fig. 17 – Quinta da Soalheira, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira

Evolução da paisagem da Quinta da Soalheira, situada no vale do rio Torto, em que a armação de socalcos pré-filoxera e zonas de mata deu lugar a áreas de patamares, desaparecendo as zonas de vegetação arbórea.

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Fig. 18 – Quinta Nova do Rio Torto, foto Casa Alvão (c. 1940) © IVDP

Fig. 19 – Quinta Nova do Rio Torto, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira

Evolução da paisagem da Quinta Nova do Rio Torto, situada no vale do rio Torto, em que a armação de socalcos pós-filoxera foi parcialmente substituída por micropatamares e patamares. Além das alterações visíveis no volume dos edifícios da quinta, note-se o desaparecimento dos caminhos murados, mortórios e áreas de olival.

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questão reside no modo como o bem “paisagem” é percepcionado, pois tal condiciona a forma como se age sobre o mesmo. Grande parte da política de gestão tem-se centrado na manutenção dos muros, esquecendo-se, por vezes, que fazem parte de um conjunto mais alargado e que o seu entendimento necessita desse contexto significante. Exemplo disso são as quintas, onde todo o património vernacular que a

compõe está intimamente ligado, onde arquitecturas produtivas e de habitação criam paisagem. No caso do espaço agricultado, quando se altera uma forma histórica de sistematização do terreno nem sempre se olha para os elementos circundantes, e que marcam o espaço, como as estruturas de circulação, os tanques para caldas, os telheiros ou as formas antigas de plantio, isto já para não falar nas questões do património genético vitícola ou nos já referidos elementos de património vernacular que se disseminam pelo espaço agrícola.

Fig. 20 – Tanque para recolha de águas e preparação de caldas. Quinta da Corredoura (Peso da Régua) © Museu do Douro

Fig. 21 – Sistema de condução de vinha em pilheiros. Quinta do Valado de Cima (Peso da Régua) © Museu do Douro

Fig. 22 – Sistema de suporte para vinha em pilheiros (Mesão Frio) © Museu do Douro

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o ser fruto do trabalho, de uma actividade específica, a paisagem duriense define-se a partir dos elementos que estruturam esse contexto. A paisagem cultural é pois uma obra combinada da Natureza e do Homem, resultando quer dos componentes de ordem natural, como o solo, relevo ou vegetação, quer dos factores humanos como as actividades económicas ou as relações sociais, que modificam e alteram o ambiente53. Ao mesmo tempo, a paisagem é um fenómeno 53  GARGUREVICH GONZÁLEZ, 2013: 39

complexo, cuja percepção varia de acordo com quem a vê e com a vive. É uma abstracção que depende do olhar, mas «cujo carácter resulta da acção e interacção de factores naturais e/ou humanos», como definido na Convenção Europeia da Paisagem (EUROPE, 2000: 5). Mais do que a imagem que retemos, a percepção visual, a paisagem contém a identidade da região através de formas de ocupação do solo, da arquitectura, das redes viárias, das devoções, em suma, a vida e os costumes das gentes que habitam o território. A “patrimonialização” da paisagem, isto é, a sua valorização cultural e transformação em património,

Fig. 23 – Quintas de S. Martinho e Banco, foto Casa Alvão (c. 1940) © IVDP

Evolução da paisagem das Quintas de S. Martinho e Banco, situadas em Soutelo do Douro, em que além das mudanças provocadas pela alteração do rio Douro, se assinalam as alterações provocadas pelos avanços e recuos dos cultivos e a transformação das arquitecturas de habitação e produção.

Fig. 24 – Quintas de S. Martinho e Banco, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira

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insere-se numa necessidade da sociedade contemporânea de preservar o passado em face do progresso acelerado e dos ímpetos consumistas que a caracterizam. No caso do Douro, a valorização centra-se especialmente nos elementos produzidos pelo plantio da vinha, mas cuja existência está associada um universo patrimonial mais vasto, também ele transformador da paisagem. Sem o (re)conhecimento deste suporte as formas de armação do terreno correm o risco de serem elementos quase isolados, quando na verdade se inserem numa realidade mais complexa, da qual as quintas são um excelente repositório. Estas unidades de exploração agrária são o elemento mais dinâmico da paisagem cultural do Douro, alterando as suas estruturas em função dos ciclos produtivos e das lógicas de rendimento. O (re)conhecimento desta realidade é um ponto de partida para a valorização integrada do património paisagístico, evitando a perda de importantes valores patrimoniais da história regional duriense. Porque associada a épocas de trabalho duro e mal recompensado, a importância desta paisagem nem sempre é reconhecida pelos seus construtores. Para a generalidade dos durienses a modernidade é sinónimo de melhoria de vida e de colheitas mais compensadoras. Se a sensibilização da população é um processo demorado, os grandes viticultores e empresas têm já consciência do valor deste património e da necessidade de o conservar. Visto como um recurso, a imagem da quinta serve para promover os produtos aí preparados, aliando modernidade e tradição.

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