As recentes mudanças no tratamento dispensado pela Lei nº 11.101/2005 às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial: progresso ou retrocesso?

May 26, 2017 | Autor: G. Lacerda Franco | Categoria: Small Business, Bankruptcy, Recuperação Judicial e Falências
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As recentes mudanças no tratamento dispensado pela Lei nº 11.101/2005 às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial: progresso ou retrocesso? Por Gustavo Lacerda Franco* 1. Introdução

A importância das microempresas e empresas de pequeno porte no cenário econômico brasileiro é evidente. De acordo com a relação anual de informações sociais do Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS-MTE), as chamadas micro e pequenas empresas, em 2011, representavam 99% das empresas privadas brasileiras, bem como agregavam 51,6% das pessoas ocupadas no país1. Estudo do Sebrae aponta também que, em 2011, essas empresas contribuíram com 39,7% da renda de trabalho e cerca de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil2. Destaque-se ainda que, por conta da economia informal, que chega a representar 17% do PIB brasileiro3, esses dados podem ser, na verdade, ainda mais impressionantes. A relevância das microempresas e empresas de pequeno porte ocasionou, inclusive, a elevação do tratamento favorecido para tal categoria ao patamar de princípio da ordem econômica brasileira, como estabe-

1 Mauro Oddo Nogueira e João Maria de Oliveira, Da Baleia ao Ornitorrinco: Contribuições Para a Compreensão do Universo das Micro e Pequenas Empresas Brasileiras in Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, Radar 25 (2013), p. 7. DisRevista Comercialista

ponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/radar/130507_radar25.pdf. Acessado em 12.05.2013.

2 M. O. Nogueira e J. M. de Oliveira, Da Baleia ao Ornitorrinco cit., p. 7. 3 M. O. Nogueira e J. M. de Oliveira, Da Baleia ao Ornitorrinco cit., p. 14.

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lecido no art. 170, IX da Constituição Federal4. O art. 179 da Carta Magna, por sua vez, apresenta disposição no mesmo sentido5. A concretização das disposições constitucionais referidas, então, exigiu a edição de diversas normas destinadas, de modo específico, à disciplina das microempresas e empresas de pequeno porte, levando-se em consideração as suas particularidades em relação às demais empresas em atividade no mercado. Nesse contexto surgiram, por exemplo, o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar nº 123/2006) e a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei nº 11.101/2005), que contém disposições específicas sobre a categoria empresarial abordada6. Cumpre apontar que, a despeito dos esforços do legislador em estabelecer um regime apropriado às microempresas e empresas de pequeno porte, no tocante à sua recuperação judicial, ao elaborar o projeto que originou a Lei nº 11.101/2005, a adequação dessas disposições legais à realidade das empresas em questão tem sido objeto de controvérsia desde o surgi-

mento do novo diploma concursal, como será demonstrado adiante. A recente Lei Complementar nº 147/2014, então, promoveu notáveis mudanças na Lei de Recuperação de Empresas e Falência, não apenas quanto à recuperação judicial das microempresas e empresas de pequeno porte, mas, também, com relação à sua participação no processo recuperacional de outras empresas, como credoras. Nesse cenário, o presente estudo busca examinar, sucintamente e sem a pretensão de esgotar a discussão, que está apenas em seu início, a adequação do tratamento dispensado pelo diploma concursal às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial, como devedoras e credoras, após o advento da mencionada Lei Complementar nº 147/2014, que promoveu modificações em seu regime. Propõe-se, nesse sentido, reflexão sobre tais mudanças à luz das críticas dirigidas pela doutrina ao regime até então adotado.

4 O dispositivo estabelece, mais precisamente, que deve ser observado “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.

6 Justifica-se o tratamento específico, no âmbito do direito da empresa em crise, por serem as micro e pequenas empresas aquelas com menor possibilidade de recuperação, em razão de não serem devidamente assessoradas nos momentos de constituição e de crise econômica, de sua frequente informalidade, de seu fluxo de caixa restrito, de sua dependência estrutural de outras empresas na venda de bens ou prestação de serviços e da rapidez com que sofrem os efeitos da queda no consumo de pessoas físicas (Frederico Augusto Monte Simionato, Tratado de Direito Falimentar, Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 205).

5 Dispondo, por sua vez, que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”.

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de recuperação judicial, ou seja, o regime de recuperação das microempresas e empresas de pequeno porte. Antes das mudanças recentemente operadas nesse âmbito, apontou-se que a seção específica da Lei de Recuperação e Falência sobre a matéria tratada, a qual abrange os artigos 70 a 72 do diploma, apresentava diversos problemas. Afirmou-se, por exemplo, que a legislação atual teria mantido, com relação ao pequeno empresário, sistema bastante semelhante à concordata do diploma concursal anterior7, instituto criticado por não envolver a participação dos credores, consistindo em um “favor legal”, e pela excessiva rigidez, inclusive quanto ao tempo de suspensão de pagamentos. Indicou-se que a esfera de incidência da recuperação judicial dessa categoria empresarial seria mais restrita do que a da concordata, que ao menos alcançaria todos os créditos quirografários8, assim como o prazo de duração do novo regime 2. A recuperação judicial de seria pouco mais flexível do que o microempresas e empresas anterior.9 A exclusão das instituições financeiras do procedimento de pequeno porte Deve-se analisar, primeiramen- recuperacional, por meio do afaste, a disciplina do plano especial tamento da incidência deste nas

7 Manoel Justino Bezerra Filho, Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada – Lei

11.101/2005 - Comentário Artigo por Artigo, 5ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 195. 8 O dispositivo criticado, relativo à restrição do procedimento aos créditos quirografários, sofreu recente mudança pela Lei complementar nº 147/2014, que será abordada adiante. 9 Osmar Brina Corrêa-Lima e Leonardo Netto Parentoni, Gargalos no Procedimento da Recuperação Judicial de Empresas, in Newton De Lucca, Alessandra de Azevedo Domingues e Nilva M. Leonardi Antonio (coords.), Direito Recuperacional II – Aspectos Teóricos e Práticos, São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp. 284-286. Revista Comercialista

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hipóteses de propriedade fiduciária e leasing, igualmente, foi objeto de críticas pela doutrina10, bem como o fato de que as disposições específicas não teriam logrado êxito na redução dos custos do processo recuperacional para os agentes com menor capacidade econômica.11 A suspensão apenas das ações e execuções versando sobre créditos envolvidos no plano de recuperação dessas empresas, outrossim, foi alvo de crítica doutrinária, que sugere ser a recuperação extrajudicial mais interessante, em alguns casos, a esses agentes.12 A previsão de rejeição do pedido de recuperação e da decretação de falência pelo juiz na hipótese do art. 72, parágrafo único, da Lei nº 11.101/2005, no mesmo sentido, foi alvo de severas críticas.13 Expostas as críticas mais recorrentes ao regime legal discutido antes das modificações ocorridas, cabe apresentar o conteúdo destas e, em seguida, tecer considerações críticas sobre os dispositivos alterados. A Lei Complementar nº 147/2014 promoveu alterações quanto aos créditos alcançados pelo plano especial de recuperação judicial. Antes, em disposição criticada do art. 71, I14, o plano especial abrangia exclusivamen-

te os créditos quirografários, com exceção daqueles decorrentes de repasse de recursos oficiais e dos previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005. Com as alterações introduzidas no diploma, o plano especial passou a abranger todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, salvo os decorrentes de repasse de recursos oficiais, os fiscais e os previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49. Entende-se que houve, nesse ponto, alguma melhora, porquanto já não se limita a abrangência do plano especial aos créditos quirografários, o que deve ensejar aumento no interesse dos credores integrantes das demais classes em negociar com as micro e pequenas empresas em crise e colaborar para a sua recuperação, ampliando-se as chances de êxito no processo recuperacional. A manutenção das exceções previstas anteriormente, com o acréscimo dos créditos fiscais, não é isenta de críticas, mas reflete orientação que afeta a Lei de Recuperação de Empresas como um todo, não dizendo respeito apenas ao regime das micro e pequenas empresas. É de se notar, porém, que o alegado favorecimento ao capital financeiro de um modo geral, que decorreria da

exclusão dos débitos relativos a alienação fiduciária, arrendamento e outros, além dos valores devidos a título de adiantamento de contrato de câmbio, da esfera recuperacional15, pode atingir de forma ainda mais grave as microempresas e empresas de pequeno porte16. A Lei Complementar nº 147/2014 trouxe modificações, igualmente, ao art. 71, II, do diploma falimentar, referente ao prazo de parcelamento do débito. A redação do dispositivo mencionado, que antes estabelecia a previsão, no plano especial, de parcelamento em até trinta e seis parcelas mensais, iguais e sucessivas, com correção monetária e juros de doze por cento ao ano, passou a permitir parcelamento em até trinta e seis prestações mensais, iguais e sucessivas, com o acréscimo de juros equivalentes à taxa Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC, sendo admissível, também, proposta de abatimento do montante das dívidas. Nota-se, inicialmente, não ter havido qualquer evolução da legislação no tocante à rigidez do prazo máximo fixado, que permanece em trinta e seis meses, prazo que seria “desarrazoado” para alguns autores17, sendo mais per-

10 F. A. M. Simionato, Tratado de Direito Falimentar cit., p. 206.

14 F. A. M. Simionato, por exemplo, chegou a afirmar que, com a redação anterior do art. 71, I, do diploma concursal, havia sido decretada a morte das micro e pequenas empresas que buscassem a Justiça para enfrentar crise econômica, caso tivessem passivo bancário como leasing ou reserva de domínio, pois as disposições do dispositivo inviabilizariam a recuperação das empresas em questão, in Tratado de Direito Falimentar cit., p. 206.

15 M. J. Bezerra Filho, Lei de Recuperação cit., p. 197

11 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 286-287. 12 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 288-289. 13 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., p. 291. Revista Comercialista

16 Cf., nesse sentido, O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 286287. 17 Cf., por exemplo, F. A. M. Simionato, Tratado de Direito Falimentar cit., p. 207.

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tinente, porém, apontar que a imposição de prazo máximo inviabiliza a negociação do pequeno empresário com seus credores acerca de períodos específicos para o adimplemento de determinadas obrigações, conforme as peculiaridades do caso concreto18, que deveriam balizar o exame de razoabilidade do prazo previsto no plano. Persiste, ainda, a necessidade de previsão de pagamento em parcelas mensais, iguais e sucessivas, o que confirma o caráter inflexível do regime analisado. A modificação concernente aos juros que devem incidir sobre o débito parcelado, por sua vez, afastou a adoção de percentual fixo, tornando-o equivalente à taxa SELIC. Conquanto seja possível defender que, com isso, o percentual aplicado passará a refletir de maneira mais verdadeira a realidade econômica do país, causa preocupação a possibilidade de variação significativa da SELIC, o que poderia afetar sobremaneira a situação da recuperanda. Na prática, contudo, essa alteração ainda não tem ocasionado grandes variações. Mudança mais expressiva e elogiável, no dispositivo apreciado, refere-se à possibilidade de o plano conter “proposta de abatimento do valor das dívidas”, que antes não estava presente na Lei, ao menos expressamente, como

afirma Carlos Klein Zanini19. Desse modo, atenua-se a rigidez do regime de recuperação judicial dispensado às micro e pequenas empresas, permitindo a adoção de medidas mais adequadas às peculiaridades de cada uma delas, de seus credores e das crises por elas enfrentadas, ainda que os instrumentos fornecidos pela legislação possam não ser suficientes à ocorrência de uma negociação favorável à devedora e que, ao mesmo tempo, prestigie os interesses dos credores. A mudança operada no parágrafo único do art. 72, o qual afirmava que o magistrado julgaria improcedente o pedido de recuperação judicial e decretaria a falência do devedor se existissem objeções, nos termos do art. 55 do diploma, de credores titulares de mais da metade dos créditos apontados no inciso I do art. 71 e passou a dispor que o juiz rejeitará o pedido de recuperação e decretará a falência do devedor se houver objeções, conforme o art. 55, de credores titulares de mais da metade de qualquer uma das classes de créditos estabelecidos no art. 83, computados nos termos do art. 45 da Lei de Recuperação, buscou harmonizá-lo com a nova redação do art. 71, I, desta, condicionando a procedência do pedido de recuperação judicial da micro e pequena empre-

sa em crise, porém, como visto, à ausência de objeções de credores titulares de mais da metade de qualquer uma das classes de créditos dispostas no art. 83, ou seja, do dispositivo que determina a ordem de classificação dos créditos na falência. Além de eventuais debates sobre a compatibilidade entre os dispositivos legais adotados como parâmetros no art. 72, parágrafo único, cumpre ressaltar que não se superou, com sua nova redação, a crítica sobre ser excessivo o poder atribuído aos credores20, especialmente se adotada a interpretação de que a discordância dos credores deve ser apreciada separadamente, em cada uma das numerosas classes previstas no art. 83, e não no todo. Conforme essa interpretação, bastaria a objeção de credores titulares de mais da metade dos créditos alocados em determinada classe, por exemplo, para se inviabilizar o procedimento almejado pela empresa em crise, o que tornaria provável o acúmulo de poder considerável e até determinante na decisão de certos credores, integrantes de classes esvaziadas, consistindo em claro contrassenso. Essa situação evidencia, aliás, com relação à recuperação de micro e pequenas empresas, a necessidade de desenvolvimento da disciplina sobre o abuso

18 O. B. Corrêa-Lima e L. N. Parentoni, Gargalos no Procedimento cit., pp. 286-287.

Falência – Lei 11.101/2005 – Artigo por Artigo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 325.

19 Comentários ao Art. 71 da Lei nº 11.101/2005, in F. S. de Souza Junior e A. S. A. de M. Pitombo (coords.), Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e

20 Nesse sentido, como afirma William Eustáquio de Carvalho, “deixar a aprovação de um plano de recuperação ao alvedrio de mais da metade des-

ses credores talvez implique condenar à falência a empresa em dificuldades financeiras” (O Abuso no Poder de Voto na Recuperação Judicial de Microempresas e Empresas de Pequeno Porte no Brasil, in Revista de Direito Empresarial, 13 [2010], p. 131).

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de direito dos credores ao manifestarem objeção ao plano especial, ausência que também se verifica, de modo geral, no campo recuperacional.21 Com relação ao plano especial de recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte, portanto, conclui-se que houve modificações pontuais, as quais ensejaram algumas melhoras no regime discutido, sendo insuficientes, no entanto, para promover verdadeira mudança em sua orientação. As críticas estruturais da doutrina, apresentadas acima, em grande medida não foram superadas. A nova redação do parágrafo único do art. 72, inclusive, pode trazer uma piora ao sistema em questão, a depender da interpretação que lhe for conferida, assim como a vinculação dos juros aplicáveis ao débito da recuperanda à taxa SELIC, dependendo de sua variação.

de recuperação judicial de outras empresas, como credoras. Essas alterações também merecem ser examinadas, o que se faz em seguida. Com efeito, a mudança promovida no art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, que passou a prever o estabelecimento de uma quarta classe de credores, “titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte”, tem reflexos bastante profundos no processo recuperacional. E, embora se trate de reforma operada recentemente na legislação concursal brasileira, já se mostra possível indicar que o legislador aparentemente não buscou inspiração nos apontamentos da doutrina sobre a inadequação do texto legal nos pontos modificados. A alteração promovida no art. 41, por exemplo, criou uma nova classe de credores com base em critério relativo à natureza do 3. Participação de credor, e não do crédito detido, gerando dúvidas sobre a obrigamicroempresas e toriedade de inclusão dos credoempresas de pequeno res micro e pequenas empresas porte como credoras em processos recuperacionais na nova classe ou, frente ao enA Lei Complementar nº 147/2014 quadramento em mais de uma operou algumas modificações re- classe e à orientação de favorecilevantes na Lei nº 11.101/2005, mento dessa categoria empresaalém disso, quanto à participação rial, a concessão da oportunidade das microempresas e empresas de escolha, pelos credores em de pequeno porte nos processos tais circunstâncias, entre as clas-

ses possíveis de acordo com a sua condição e a natureza do seu crédito, conforme lhes seja mais vantajoso. Trata-se de questão complexa, que reflete na segurança jurídica do processo recuperacional e deverá ser dirimida na seara jurisprudencial. A mudança promovida nesse dispositivo legal, ademais, encontra-se distante das sugestões doutrinárias para uma melhor organização dos interesses dos credores, com destaque para as profundas considerações de Sheila C. Neder Cerezetti acerca do tema22. Critica-se, nesse ponto, a separação dos credores em classes na forma operada pela legislação brasileira, em que não teriam sido observados critérios de verdadeira homogeneidade, sendo tal regra de vital importância no estabelecimento do equilíbrio entre interesses e na própria legitimação da atribuição aos credores da deliberação sobre o plano apresentado.23 Nesse sentido, apresentando possível solução, na atual conjuntura, ao problema apresentado, editou-se o enunciado nº 57 da I jornada de direito comercial do Conselho da Justiça Federal, o qual estabelece que “o plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma classe de credores que possuam in-

21 Deve-se destacar, contudo, que já existem pesquisas sobre o tema. Cf., nesse sentido, Newton De Lucca, Abuso do Direito de Voto de Credor na Assembleia geral de credores Prevista nos Arts. 35 a 46 da Lei 11.101/05, in N. De Lucca, A. de A. Domingues e N. M. Leonardi Antonio (coords.), Direito Recuperacional II – Aspectos Teóricos e Práticos, São Paulo, Quartier Latin, 2012, pp. 223-249; Ga-

ganização de Interesses, in P. F. C. S. de Toledo e F. Satiro, Direito das Empresas em Crise: Problemas e Soluções, São Paulo, Quartier Latin, 2012.

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briel Saad Kik Buschinelli, Abuso do Direito de Voto na Assembleia geral de credores, Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2013, e Álvaro A. C. Mariano, Abuso de Voto na Recuperação Judicial, Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2012. 22 Cf. As Classes de Credores como Técnica de Or-

23 S. C. N. Cerezetti, A Recuperação Judicial de Sociedade por Ações – O Princípio da Preservação da Empresa na Lei de Recuperação e Falência, São Paulo, Malheiros, 2012, pp. 287-288.

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teresses homogêneos, sejam estes delineados em função da natureza do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado”24. Crítica semelhante à divisão fixa de classes estabelecida pelo diploma é realizada por Jairo Saddi, ao afirmar que a reunião de pessoas com interesses divergentes pode atrapalhar substancialmente as deliberações dentro das classes. O autor defende que a assembleia seria mais representativa se a Lei de Recuperação adotasse um sistema com maior flexibilidade, no qual a composição das classes não estaria estabelecida legalmente, mas seria determinada pelo magistrado, após verificação da recuperanda e do perfil do seu passivo, em classificação atenta à melhor representação de cada grupo de credores.25 Nota-se, dessa maneira, que a doutrina apresenta críticas ao art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, de modo geral, em razão da rigidez na separação das classes de credores, que não teria observado critérios de verdadeira homogeneidade entre os interesses destes, prejudicando-se o equilíbrio que seria desejável nas suas deliberações. E a Lei Complementar nº 147/2014, em vez de flexibilizar a divisão de classes até

então estabelecida, solucionando os problemas abordados acima, optou por apenas criar mais uma classe, nos mesmos moldes adotados anteriormente. É possível apontar vantagens surgidas com a criação da quarta classe de credores, já que geralmente as micro e pequenas empresas integrariam a classe dos titulares de créditos quirografários e, com uma classe própria, ganharam maior poder de negociação, que não teriam naquela. Essa perspectiva é reforçada por ocorrer a aprovação do plano de recuperação judicial, na nova classe, como já acontecia na classe de titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho, ou seja, pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor do seu crédito, conforme disposto no art. 45, § 2º do diploma concursal, também modificado pela lei complementar referida. Pode-se considerar, ainda, que os integrantes da quarta classe de credores, por serem microempresas ou empresas de pequeno porte, provavelmente serão fornecedores da recuperanda, os quais, em tese, apresentarão maior preocupação com a efetiva superação da crise e, por isso, tornarão mais simples a aprovação do plano proposto. Não se pode deixar de notar, porém, que os aspectos indicados

apenas são considerados positivos na medida em que representam avanço, ainda que pouco expressivo, na direção da observância aos critérios de homogeneidade propostos. Ocorre que esse pretenso avanço manteve, como base, o mesmo modelo inflexível de separação dos credores em classes, de modo que os benefícios apontados apenas existirão se confirmadas as suposições no sentido da homogeneidade entre os interesses das micro e pequenas empresas credoras, que pertenceriam à classe dos quirografários e seriam fornecedoras do devedor. E, ainda que tal hipótese seja confirmada, a nova classe representará progresso mínimo em um sistema que permanece insatisfatório. As modificações promovidas pela Lei Complementar nº 147/2014 no art. 41 da Lei de Recuperação de Empresas, ademais, suscitaram dúvidas quanto à aplicação do cram down, mecanismo disposto no art. 58, §§ 1º e 2º, do diploma que permite ao magistrado superar o veto de classe de credores e homologar o plano de recuperação apresentado se houver sido lograda a aprovação por mais da metade do valor dos créditos presentes à assembleia geral de credores, independentemente de classes; se ao menos uma (existindo apenas duas classes) ou duas classes

24 I Jornada de Direito Comercial, Brasília, Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2013, p. 55, disponível in http://www.cjf.jus. br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/LIVRETO%20 -%20I%20JORNADA%20DE%20DIREITO%20

COMERCIAL.pdf [14-07-2014]

Recuperação de Empresas – Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 293.

25 J. Saddi, Comentários aos arts. 41 a 46, in Osmar Brina Corrêa-Lima e Sérgio Mourão Corrêa Lima (coords.), Comentários à Nova Lei de Falência e

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46 Doutrina (havendo três classes, até então) houver(em) concordado com o plano; se houver ocorrido a aprovação do plano por mais de um terço dos credores da classe destoante e, por fim, se não houver tratamento diferenciado entre os credores dessa classe, exigindo-se o preenchimento cumulativo de tais requisitos. Conquanto possa o legislador ter se omitido em operar mudanças no mencionado art. 58, conferindo-lhe clara conformidade em relação ao disposto no art. 41, deve-se esclarecer que inexiste, atualmente, efetiva contradição entre esses dispositivos, de modo que, havendo a aprovação do plano por duas das quatro classes de credores, observados os demais requisitos legais, inclusive o voto favorável de mais de um terço dos credores nas classes que rejeitaram a proposta, o juiz poderá conceder a recuperação judicial pleiteada. Com efeito, é essa a interpretação que parece mais correta, por atender aos propósitos elencados pela Lei em seu art. 47.

4. Outras modificações

As demais alterações operadas pela Lei Complementar nº 147/2014 que se inserem no âmbito do presente estudo, ou seja, a redução do limite imposto à remuneração do administrador judicial ao patamar de 2% (art. 24, § 5º da Lei nº 11.101/2005), a inclusão de um representante indicado pela classe de micro e pequenas empresas no comitê de credores (art. 26, IV do diploma), a redução de prazo mínimo a ser observado após a concessão de recupeRevista Comercialista

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ração com base no plano especial para se requerer nova recuperação (art. 48, III da legislação) e a concessão de prazo superior no parcelamento de débitos fiscais (art. 68, par. único do diploma), igualmente, decorrem das principais modificações realizadas no diploma concursal, já abordadas, ou consistem em simples estabelecimento de regras mais favoráveis às empresas referidas, sem qualquer transformação efetiva na orientação do tratamento a elas dispensado, sendo prescindível análise mais profunda nesse ponto.

porte na recuperação judicial, tratando-se, porém, em perspectiva otimista, de mero aperfeiçoamento de dispositivos insuficientes e ineficazes, provavelmente incapaz de atribuir à disciplina examinada a relevância que deveria ter. Essa visão é reforçada, ainda, pela existência de preocupantes imprecisões no texto legal, como apontado. Eis, em conclusão, a funesta resposta para a pergunta inicialmente formulada: estagnação.

5. Observações finais

Realizada a análise sobre o tratamento dispensado pela Lei nº 11.101/2005 às microempresas e empresas de pequeno porte na recuperação judicial após o advento da Lei Complementar nº 147/2014, resta responder ao questionamento proposto no título deste artigo, sobre se as mudanças promovidas no diploma concursal consistiriam em progresso ou retrocesso. Nesse tocante, entende-se que o legislador perdeu valiosa oportunidade de modificar estruturalmente a recuperação judicial das micro e pequenas empresas, tornando-a mais adequada à realidade econômica destas e solucionando a notória ineficácia do mecanismo, bem como deixou de operar imprescindível flexibilização das classes de credores, observando critérios de homogeneidade. Nota-se, portanto, que houve melhoras pontuais no tratamento legal dirigido às microempresas e empresas de pequeno

* Gustavo Lacerda Franco Bacharel em Direito e Mestrando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Membro do Conselho Editorial Discente da Revista Comercialista.

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