AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES E O CONTROLO DO USO DA FORÇA. UMA PERSPETIVA CLAUSEWITZIANA

June 2, 2017 | Autor: Luis Barroso | Categoria: History, Strategy (Military Science), Political Science
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AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES E O CONTROLO DO USO DA FORÇA. UMA PERSPETIVA CLAUSEWITZIANA

Tenente-Coronel Luís Fernando Machado Barroso

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As Relações Civis-Militares e o Controlo do Uso da Força. Uma Perspetiva Clausewitziana Tenente-Coronel Luís Fernando Machado Barroso O objetivo deste texto é estabelecer uma base teórica de referência para as relações civis-militares em relação ao controlo político do uso da força, em situação de guerra ou de crise, baseada na obra de Carl Von Clausewitz: “Da Guerra”. A principal razão para termos optado por “Da Guerra” resulta do facto de ser uma obra de referência no âmbito da estratégia, que estabelece muito claramente as referências para o estudo do fenómeno da guerra, como empreendimento de uma sociedade, dirigida por uma classe política e conduzida pelos militares1. Portanto, de acordo com a definição de relações civis-militares que a seguir apresentamos, aquela obra tem todos os ingredientes para fornecer o corpo de conceitos que necessitamos para descrever as relações civis-militares. Clausewitz, que viveu entre 1780 e 1831, foi simultaneamente soldado e teorizador do fenómeno da guerra. O seu mais importante trabalho foi “Da Guerra”, no qual tentou registar os elementos mais importantes da estratégia tal como os percecionava2. Publicada a título póstumo em 1832, a obra “Da Guerra” tornou-se um clássico na compreensão da relação entre guerra e política e de onde foram retirados conhecidos aforismos. Clausewitz estabelece uma base relacional entre guerra e política até ao nível das considerações e dinâmicas que regem a relação entre os líderes militares e os líderes políticos, uma vez que o seu ponto de referência é a eficácia estratégica. Para Clausewitz, a manutenção do controlo político não é apenas uma questão de princípio, mas a chave para o sucesso na guerra.

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Na verdade, Carl von Clausewitz é essencialmente conhecido pelo estudo da guerra no seu livro “Da Guerra”. O seu legado em termos do estudo das operações militares tem sido negligenciado, apesar de ter elaborado um texto publicado pelo US Army War College intitulado “Two Letters on Strategy”, cujo objetivo principal era lidar com os problemas do planeamento de uma campanha colocados pelo Chefe de Estado-Maior da Prússia em 1827 (Cf. Clausewitz, Carl von (1984), Two Letters on Strategy, Edit. And Trans. Peter Paret and Daniel Moran, Fort Leavenworth: US Army Command and General Staff College, p. ix). Clausewitz, Carl Von (1976), On War, Trans. and Eds. Michael Howard and Peter Paret, Princeton: Princeton University Press, p. 76.

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O modelo de análise que vamos utilizar corresponde à definição teórica das relações civis militares. Estas descrevem a relação entre os militares de um Estado, as instituições e a população que servem, especialmente como comunicam, como interagem e como se regula a sua a ligação. Do mesmo modo, o controlo civil significa o grau de controlo que os líderes políticos utilizam para exercer a sua autoridade sobre as forças armadas3. Assim, consideramos que devemos responder às seguintes questões: Qual é a relação adequada entre o comandante e o líder político do Estado? Quais são os limites das suas responsabilidades? Que grau de controlo político deve existir sobre as operações militares? Será que atualmente há pouco espaço para a interferência dos fatores políticos? Que influência tem aquela relação na conduta da guerra? Onde está a fronteira que limita a influência política na conduta das operações militares? O que deve fazer o general se o governante faz uma leitura desadequada da situação? Tem o general o dever e o direito de desobedecer? Alguns autores têm-se debruçado sobre este importante assunto nos últimos anos, especialmente depois de um movimento “anti-Rumsfeld”, levado a cabo por alguns generais norte-americanos na reserva por causa da decisão em avançar na guerra contra o Iraque em 2003 e das críticas de quanto à estratégia seguida no Afeganistão4. Por essa razão, estabelecer uma base teórica para as relações civis-militares é um importante contributo para elevar a eficácia no emprego do instrumento militar. Neste âmbito, tem especial relevância compreender os processos de relacionamento civil-militar para determinar a linha que separa as respetivas responsabilidades e onde se confundem, que dinâmicas existem na assessoria estratégica por parte do chefe militar e que influência tem aquele relacionamento na eficácia das operações5. Iremos deixar de parte as considerações relativas aos tipos de regime e sua influência nas relações civis-militares, apesar de serem um fator extraordinariamente importante. Em regimes autocráticos, onde normalmente desempenham importantes cargos políticos, as altas patentes militares estão numa posição que lhes permite exercerem pressão política que pode redundar na queda do líder político. Por essa razão, as nomeações e as promoções podem ter esse dado como fator decisivo. Por outro lado, em regimes 3

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Cf. Hooker, Jr., Richard D. (2011), “Soldiers of the State: Reconsidering American Civil-Military”, Parameters (Winter 2011-12), pp. 1-14. Cf. Cook, Martin L. (2008), “Revolt of the Generals: A Case Study in Professional Ethics”, Parameters (Spring 2008), pp. 4-15. Cf. Owens, Thomas Mackubin (2006), “Rumsfeld, The Generals, and Civil-Military Relations”, Naval War College Review, Vol. 59 (4), pp. 68-80. Cf. Desch Michael C. (2007), “Bush and the Generals,” Foreign Affairs, Vol. 86 (May/June), disponível em http://www.foreignaffairs.com/articles/62616/michael-cdesch/bush-and-the-generals# [Consultado em 28 de agosto de 2012]. Relativamente à influência das relações civis-militares e eficácia das operações Cf. Brooks, Risa A. (2007), “Civil-Military Relations and Military Effectiveness: Egypt in the 1967 and 1973 Wars”, em Brooks, Risa e Elisabeth A. Stanley (Eds.), Creating Military Power: The Sources of Military Effectiveness, Stanford University Press, p. 107.

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democráticos há uma tendência para o não envolvimento dos militares nas atividades políticas em tempo de paz. Porém, em tempo de guerra, a sua relação deve ser muito mais próxima. Isto é tanto mais evidente quanto é a dificuldade em caracterizar atualmente o fenómeno da guerra, especialmente devido ao facto de o Estado estar a deixar de ter o monopólio do uso da força, o surgimento de atores transnacionais capazes de expandir a violência a nível global, à prevalência dos conflitos de baixa intensidade1 e à irrelevância da confrontação direta no campo de batalha. Neste âmbito, um dos autores mais relevantes é Mary Kaldor que, em muitos aspetos, exemplifica uma corrente que propõe um novo tipo de guerras. Argumenta que o pensamento de Clausewitz deixou de ser relevante porque não há lugar para uma confrontação direta entre Estados com meios exclusivamente militares7. O general Ruppert Smith afirma que os conflitos atuais não se resolvem pelo resultado de uma confrontação militar porque são os assuntos de mobilização política através do uso da violência que se tornou o seu principal objetivo8. Muitas vezes os objetivos políticos estão ausentes porque os combatentes pretendem manter um estádio de conflitualidade permanente porque procuram o lucro. A sua hipótese centra-se no facto de que este tipo de conflitos será o responsável por desintegrar o Estado-nação de Vestefália tal como o conhecemos. Adianta M. Kaldor que o fim da Guerra Fria marcou o início do fim dos conflitos entre Estados, sendo substituídos por conflitos caracterizados por uma luta civil isenta de racionalidade9. Uma outra referência é Thomas X. Hammes, o qual nos apresenta uma imagem de um novo tipo de conflitos que vem evoluindo ao longo do tempo10. O seu argumento central baseia-se na evidência de que a guerra progrediu ao longo da História por gerações, estando a Guerra de Quarta Geração (G4G) atualmente em evidência. T. Hammes sustenta que a guerra evolui em paralelo com as mudanças mais significativas da sociedade. A G4G mudou o foco do emprego da força da destruição do adversário para a mudança de opinião dos líderes políticos adversários. Este foco não se alcança através da superioridade no campo de batalha, mas através da utilização de todas as redes disponíveis – sociais, políticas e culturais – a fim de mostrar ao adversário que o preço a pagar é demasiado elevado. O estratega da G4G pretende mostrar que os exércitos da Terceira Geração Independentemente do nível de análise (estratégico, operacional ou tático), consideramos que o conflito de baixa intensidade está na faixa do espetro que engloba as operações militares que não têm como missão primária a derrota ou destruição das forças do adversário. 7 Kaldor, Mary (2005), “Elaborating the ‘New War’ Thesis”, em Duyvesteyn, Isabelle e Jan Angstrom (eds.), Rethinking the Nature of War, New York: Frank Cass, 2005, p. 221. 8 Ibid., p. 212 e 221. Para Rupert Smith o campo de batalha é o povo, o qual representa os alvos, os objetivos e as ameaças (Smith, Ruppert (2005), The Utility of Force: The Art of War in Modern War, NY: Alfred A. Knof, pp. 5-6). 9 Smith, pp. 210-220; Kaldor (1996), pp. 505-554. 10 Hammes, Thomas X. (2004), The Sling and the Stone, MN: Zenith Press. 6

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(G3G) não são invencíveis num campo de batalha caracterizado pelas dinâmicas da globalização. Se recordarmos o conflito entre o Hezbollah e Israel, ocorrido no Verão de 2006, rapidamente se pode associar a G4G ao grupo islâmico e a G3G às Forças de Defesa de Israel (FDI). O Hezbollah capitalizou de forma soberba todos os danos colaterais, a maior parte delas provocadas intencionalmente, das FDI sobre as populações para radicalizar o conflito junto das populações libanesas11. O modus operandi do grupo Al Qaeda é também um claro exemplo de G4G. O Al Qaeda e seus franchisados pretendem evidenciar ao Ocidente que o esforço na “guerra contra o terrorismo” não produzirá os resultados pretendidos e que terá um elevado preço a pagar. Apesar de se ter vindo a assistir a uma evidente alteração – evolucionária ou revolucionária – do caráter da guerra e as forças armadas poderem deixar de desempenhar o papel principal na sua condução, a herança de Clausewitz continua a manter-se relevante. Talvez o seu mais conhecido e importante aforismo seja que a guerra é a continuação da política por outros meios12. Isto quer dizer que a guerra é um método para proteger interesses, alcançar objetivos e que tem uma natureza intrinsecamente política. Por esta razão, é também aplicável a todos os grupos ou centros de decisão política para além do Estado, colocando, todavia, a política no centro da guerra. Em Clausewitz encontramos também a guerra como um duelo entre dois adversários que atuam de acordo com as circunstâncias do momento, o qual é dominado pela fricção, pela desordem, pela fluidez e pela dimensão humana. Qual é a relação adequada entre o comandante e o líder político do Estado? Quais são os limites das suas responsabilidades? Que grau de controlo político deve existir sobre as operações militares? Será que há pouco espaço para a interferência dos fatores políticos? Responder a estas questões é um enorme desafio. Sun Tzu, que se crê ter escrito “Arte da Guerra” no século IV A.C., argumenta que a decisão de ir para a guerra deve ser meramente política, mas que o general deve atuar de forma autónoma a partir do momento em que a decisão é tomada13. Contudo, este aforismo terá uma óbvia aplicação se a finalidade da ação militar for a inequívoca vitória militar. A História está repleta de casos em que existe um excessivo controlo político sobre as operações militares e sobre a estratégia militar. Apenas para citar alguns exemplos, referimos que na recente História de Portugal, o general António de Spínola, como governador e comandante-chefe na Guiné, sofreu intensas Cfr. Barroso, Luís (2007), “Forças de Defesa Israelitas VS Hezbollah: A Guerra de 4ª Geração”, Jornal do Exército (Maio 2007), pp. 12-21. 12 Clausewitz, p. 87. 13 Quando o “general é competente e não sofre interferência do soberano será vitorioso” (Tzu, Sun (2002), A Arte da Guerra, Trad., Introd. e Notas de Luís Serrão, Queluz: Edições Coisas de Ler, p. 35). 11

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influências na sua estratégia por parte de Marcelo Caetano14. Durante a 2ª Guerra Mundial, Adolf Hitler influenciou de forma determinante a conduta das operações, especialmente a partir de 1941 aquando da preparação e invasão da União Soviética em 194115. Estes dois exemplos referem-se a duas guerras com caráter diferente – subversiva e clássica, respetivamente. Porém, em ambos os casos, a intervenção do líder político foi em sentido contrário ao da avaliação militar. Mais recentemente, a decisão em avançar para a invasão do Iraque em 2003 pela coligação liderada pelos Estados Unidos da América e a conduta das operações deixou muitas marcas nas relações entre os líderes militares e os políticos, com consequência que todos sabemos16. A obra escrita por Clausewitz é essencialmente conhecida por causa dos aforismos que relacionam a guerra com a política, devendo por essa razão ser considerada uma obra de referência no estudo das relações civis-militares e no uso da força. Antes de mais, temos de ter em conta que o general prussiano considerava a guerra como uma atividade humana única, que se distinguia das outras devido a alguns dos seus atributos: inerência do perigo, a incerteza, a dimensão humana e o acaso. Além do mais, considerava que a guerra não poderia ser analisada sem estar enquadrada pelo contexto político e societal. A reflexão orientada na teoria da guerra é uma componente crucial na educação dos líderes militares e um aspeto essencial para o estudo da relação entre meios e fins. Para Clausewitz, esta relação focaliza-se na orientação política do uso da força. A guerra é uma atividade especial por causa da natureza específica dos meios empregues, e “os meios” da guerra são sempre o combate17. Ao mais baixo nível da guerra – nível tático – é mais fácil definir aquela relação, uma vez que os meios são as forças de combate e o objetivo é a vitória18. Porém, aos níveis estratégico e operacional da guerra os meios são muito mais variados e os fins estão mais relacionados com os objetivos que levam à paz19. Este aspeto é central para respondermos às questões formuladas anteriormente, uma vez que indica o domínio da atividade política sobre os assuntos estritamente militares. Curiosamente, em “Da Guerra”, Clausewitz não refere as relações civis-militares em tempo de paz, quando o foco é gerar os meios e organizá-los para utilização em tempo de guerra20.

Cf. Rodrigues, Luís Nuno (2010), Spínola: Biografia, Lisboa: a Esfera dos Livros. Ver o Capítulo 3. Cf. Manstein, Erich Von (2004), Lost Victories, Zenith Press, pp. 176-177 16 Cf. West, Bing (2008), The Strongest Tribe: War, Politics and the Endgame in Iraq, NY: Random House. Ver especialmente o Cap. V e Cap. XV. 17 Ibid., p. 95. 18 Ibid., p. 142. 19 Ibid., p. 143. 20 Ibid., pp. 131-132. 14 15

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A guerra, como atividade humana singular, tem como meio principal o combate, o qual decorre num ambiente de incerteza, exaustão física e pressão psicológica. A relação entre a guerra e outras atividades políticas baseia-se no facto de que aquela é apenas uma ramificação, sendo por essa razão uma atividade não autónoma21. A guerra é o produto de forças políticas que se mantêm ao longo do tempo, razão pela qual a origem da guerra é política e é uma atividade não autónoma com objetivos por si definidos e moldados. Assim, a lógica política da guerra estabelece as características desejadas para a paz que se lhe segue22. Por ser um ato de força para compelir o adversário, em termos abstratos não há limites para a sua utilização na prossecução dos objetivos pretendidos. Porém, a realidade impede que a guerra seja absoluta porque não se resume a um único e curto confronto. Isto deriva do facto de os recursos de um Estado, próprios ou resultantes de alianças, não poderem ser utilizados de uma vez só23. Este é mais um fator que reforça o aforismo de que a guerra é a continuação da política por outros meios, a sua causa, quem lhe estabelece os objetivos e se mantém como fator supremo na sua conduta24. Um outro ponto de referência quanto à relação entre os assuntos políticos e guerra é a sua conceção trinitária: a violência primordial; o jogo das probabilidades e do acaso; e subordinação à política25. Cada um destes elementos pode caracterizar um determinado tipo de guerra. Contudo, é o domínio da finalidade política que assume em Clausewitz a importância principal, uma vez que a política é a inteligência orientadora e a guerra apenas o seu instrumento, e não o contrário. Não existe mais nenhuma possibilidade do que a subordinação dos assuntos militares aos assuntos políticos26. E quanto à conduta da guerra? Que influência tem a relação entre aqueles elementos? Clausewitz salienta que os interesses políticos que levam à eclosão da guerra podem ser encontrados num espetro alargado de possibilidades, que vão desde a sobrevivência do Estado (guerra total) a outras causas que não refletem interesses vitais em causa (guerra limitada), como o caso de se combater por um aliado27. Como a guerra é um instrumento da política, o objetivo militar deve ser visto como seu subordinado. Assim, como a conduta da guerra deve ser orientada pela racionalidade política, os interesses em causa determinam o grau de esforço a levar a cabo28. Ibid., p. 127; p. 605. Cf. Ibid., p. 70. 23 Cf. Ibid., p. 70. 24 Cf. Ibid., p. 87. 25 Ibid., p. 89. 26 Ibid., p. 607. 27 Ibid., p. 94. 28 Ibid., p. 81. 21 22

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Apesar da correspondência entre os meios e os objetivos poder explicar, em parte, o carácter de uma guerra, é importante referir que a conceção trinitária da guerra ajuda a aprofundar este assunto. Em primeiro lugar, o envolvimento do elemento “povo”, que Clausewitz considera a fonte da violência primordial, pode fazer variar grandemente o caráter da guerra, uma vez que este pode não estar disposto a pagar o preço por objetivos não vitais29. Também o jogo das probabilidades e do acaso deixa espaço ao “general” para aplicar o seu génio na batalha e tirar partido das forças morais, da dimensão humana e do perigo30. Para analisar a guerra em abstrato ou compreender uma guerra em particular, mas também para planear ou conduzir a guerra, é necessário o estudo e a interação daqueles três elementos31. Afinal, a guerra consiste numa trindade paradoxal que é afetada pelo papel do povo, pelo caráter do comandante e do seu exército e pelos objetivos políticos definidos pelo governo. É a complexa interação entre estes três elementos que mais faz variar o caráter de uma guerra e nos dá importantes pontos de ligação para as relações civis-militares conforme as definimos anteriormente e que serviram de modelo de análise. Um outro ponto que é necessário ter em consideração nas relações civismilitares é que o objetivo político pode variar durante a condutada guerra. Isto está relacionado com o facto de a atividade política não cessar durante a guerra, podendo modificar a sua orientação uma vez que pode ser influenciada pelos acontecimentos e pelas suas consequências32. A relação entre política e guerra tem também implicações na influência contínua entre a execução das operações e o seu objetivo político. Sendo a guerra uma manifestação pura de violência, pode tomar o lugar da política fora do “gabinete” e ser regida pelas suas próprias regras33. Esta afirmação de Clausewitz indica que a guerra pode perder a sua racionalidade – subordinação à política –, apesar de referir que a linhas principais ao longo das quais progridem as operações militares, e às quais devem estar restringidos, são linhas políticas que pretendem alcançar a paz subsequente34. Pelo facto de a guerra ser um ato de política e um meio para alcançar o seu objetivo, determinar o grau de esforço que aquele objetivo justifica tem de ser uma decisão política. Esta decisão não é apenas requerida no início do conflito, mas, por causa das inerentes incertezas, deve ser continuamente avaliada35. Se influencia o esforço necessário, então também influencia a conduta das operações, uma vez que Ibid., p. 81. Ibid., p. 86. 31 Cf. Paret, Peter, “Clausewitz”, em Paret, Peter (Ed.), Makers of Modern Strategy: From Machiavelli to the Nuclear Age, p. 201. 32 Clausewitz, On War, p. 92. 33 Ibid., p. 87. 34 Ibid., p. 605. 35 Ibid., p. 92. 29 30

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Clausewitz rejeita a ideia de que apenas existe um caminho para a vitória. O que é importante é que o “general” tenha o conhecimento completo da política nacional e atue em conformidade36. Aos níveis mais elevados, a ideia de uma solução puramente militar não faz muito sentido, porque nenhum objetivo pode ser definido com ignorância dos fatores políticos37. Um importante elemento relativo à ideia de que a política é a inteligência que governa as operações militares, é o reconhecimento do facto que o governo tem um importante papel na determinação do sucesso das operações militares. Neste âmbito, Clausewitz refere que o governo é o custódio dos interesses do povo, pelo que o “general” não serve o governo em si mesmo, mas toda a comunidade38. Apesar de subtil, em “Da Guerra” há também espaço para a crítica à ação política. Clausewitz serviu nas forças prussianas durante as guerras napoleónicas, tendo sido capturado pelos franceses em outubro de 1806 e ficado retido em França, uma experiência que considerou humilhante. A sua estadia em França permitiulhe obter contacto direto com a sociedade e cultura francesas e a oportunidade para estabelecer as suas diferenças em relação à sociedade prussiana. Clausewitz considera que a derrota dos prussianos se deveu principalmente ao facto de o seu governo não ter utilizado a guerra como instrumento da política externa e de ter dado uma missão impossível ao seu exército. Além do mais, a sociedade prussiana considerava que a guerra era assunto apenas do foro militar39. Portanto, Clausewitz criticava o seu governo por não ter sabido envolver a sociedade prussiana. Assim, considera que a chave para o sucesso militar de Napoleão estava relacionada com as mudanças na sociedade e que os seus adversários não conseguiram identificar. Afinal, a principal marca da Revolução Francesa não foi a revolução dos métodos militares de Napoleão, mas as radicais mudanças na sociedade, administração e a tenacidade do povo francês em manter os ventos da revolução40. Foi o general francês que percebeu e tirou vantagem do facto de que o “coração e a têmpera” de uma nação pode ser um enorme contributo para a soma total do seu potencial político e potencial de combate41. Operando nestas condições, a mais importante das quais foi o papel do envolvimento do povo na guerra, Clausewitz considera que Napoleão merece ser elogiado pela sua determinação em perseguir “objetivos grandiosos”. Na realidade, aperfeiçoou e explorou o potencial das suas forças armadas, tendo sido considerado por si como “Deus da Guerra”42. Por conseguinte, os governos podem também Cf. Ibid., p. 94; p. 111. Cf. Ibid., pp. 607-608. Cf. Clausewitz, Two Letters on Strategy. 38 Ibid., p. 607. 39 Paret, “Clausewitz”, pp. 191-192. 40 Ibid., p. 609. 41 Clausewitz, On War, p. 202. 42 Ibid., p. 583. 36 37

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contribuir para o sucesso do seu país se interpretarem com precisão os fundamentos das relações internacionais. Tudo depende de afiliações políticas, interesses, tradições, linhas de ação política e personalidades dos príncipes e ministros43. Todavia, é importante notar que a habilidade para analisar estes fatores deve ser do líder político e não do comandante militar. Para além disso, deve assegurar a mobilização dos necessários recursos a tempo de serem utilizados. Esta proposição leva-nos a questionar como Clausewitz considerava ser julgado o mérito de uma determinada estratégia. Uma estratégia ótima alcança os objetivos políticos com o mínimo de recursos. Assim, o príncipe pode demonstrar o seu génio gerindo a campanha através da adequação dos seus objetivos e meios. Neste caso, o génio é demonstrado não pelo método da ação mas pelo seu sucesso em relação aos objetivos pretendidos44. Aplicar o máximo esforço onde e quando não é justificável por motivos políticos é meio caminho para o desastre, uma vez que objetivos “menores” não são suficientes para motivar as pessoas ao sacrifício extremo e o esforço de guerra pode vacilar por razões domésticas45. Por isso, os meios devem ser proporcionais aos fins46. Isto não implica apenas uma gestão judiciosa dos recursos, mas também a procura de outras linhas de ação para além do uso da força máxima para alcançar os objetivos47. Na realidade, Clausewitz sublinha que o governante pode escolher a guerra como o caminho mais adequado para alcançar os seus objetivos políticos, mas deve também considerar que ao fazê-lo está a assumir o preço a pagar pela sua opção. Apesar de considerar que a atividade central na guerra é o combate, não significa que este ocorra sempre, uma vez que só se deve levar a cabo se as probabilidades de sucesso forem elevadas48. Como é lógico, deve estabelecer-se uma criteriosa comparação entre o preço a pagar em território, população e outros recursos com os objetivos a alcançar. Apesar de Clausewitz ser relutante em estabelecer comparações, considera que o povo pode pretender pagar um preço elevado pela sobrevivência da sua comunidade política49. Ou seja, quando a sobrevivência está em jogo, Clausewitz considera dever haver pouca relutância na aplicação dos meios. A política deve permitir todas as operações militares, e, na medida em que a sua natureza violenta o admita, deve ter uma influência continua no decurso da campanha50.

Ibid., p. 569. Ibid., p. 177. 45 Cf. Ibid., p. 78; p. 585. 46 Ibid., p. 602. 47 Ibid., p. 93. 48 Cf. Ibid., p. 97. 49 Cf. Ibid., p. 286; p. 483. 50 Cf. Ibid., p. 87. 43 44

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Onde está a fronteira que limita a influência política na conduta das operações militares? Que relação deve existir entre o governante e o comandante militar? A natureza do objetivo político, o esforço pretendido por cada um dos lados e a situação política de cada um são fatores que influenciam decisivamente a conduta da guerra51. Em “Da Guerra”, Clausewitz não delimita claramente a fronteira para a influência da política sobre a conduta das operações. Todavia, se o governante perceciona que as movimentações militares produzem os efeitos contrários ao que espera, deve influenciá-las52. Porém, a falta de compreensão da “gramática” da guerra por parte do governante pode ter impacto negativo nas operações militares. Este aspeto será obviado se o líder político estiver familiarizado com os assuntos militares. Contudo, isso pode não ser decisivo desde que tenha acesso à assessoria militar sempre que necessite53. Quanto à influência do nível político sobre a conduta das operações, Clausewitz dá-nos a entender que é ao nível estratégico da guerra que aquela é mais significativa e, como vimos anteriormente, corresponde ao nível em que os objetivos políticos devem ser adequados aos meios disponíveis. Quanto ao nível operacional e tático da guerra, Clausewitz é menos taxativo e até ambíguo. Considera que o governante não os deve influenciar, uma vez que as considerações políticas nada têm a ver com o “emprego de guardas ou de patrulhas”, exemplificando deste modo o nível tático. Porém, considera também que aquelas considerações podem ser importantes nos planos de guerra, das campanhas e às vezes da batalha54. Portanto, há aqui uma certa ambiguidade que pode ter resultado do facto de ter falecido sem acabar a obra. O plano da batalha é geralmente tomado como sendo da esfera da tática. Se as considerações políticas são importantes neste nível, Clausewitz não define um limite claro para essa influência. Como referimos, apesar de considerar que o governante pode não estar preparado para lidar com os assuntos militares, também não nos refere que não se deve envolver no controlo das operações militares. Assim, tal como ao mais alto nível da guerra o governante não deve ter em conta apenas as considerações militares, deve reconhecer que ao nível tático as operações militares com objetivos limitados podem ter efeitos inerentemente políticos. Uma outra explicação pode residir no facto de o comandante dever identificar claramente que tipo de guerra enfrenta e atuar de acordo com esse quadro geral55. Dado que Clausewitz não estabelece claramente a divisão para a esfera de influência do comandante e do governante, é necessário saber como é que perceciona Ibid., p. 602. Ibid., p. 608. 53 Ibid., p. 608. 54 Ibid., p. 606. 55 Ibid., p. 88; p. 111; p. 222. 51 52

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a relação entre aqueles dois. Se o príncipe é o general, como foi o caso de Napoleão, então deve ter as características de governante e de comandante. Se por um lado o general deve ter as perícias necessárias para avaliar a situação política, deve também ser perito na utilização dos meios ao seu dispor56. Neste caso não existem tensões entre os dois. Uma outra possibilidade é o príncipe e o general serem duas pessoas diferentes. Neste caso, Clausewitz dá primazia ao governante. Refere que é esperado que as principais linhas de ação na guerra sejam resultado de forte influência política57. Para além do estabelecimento dos objetivos políticos, que são da responsabilidade do governo, espera até que as considerações mais importantes sobre o potencial do exército e seu sistema logístico sejam assuntos da política58. Por conseguinte, o general aceita os recursos dados pelo seu governo e aplica-os o mais eficazmente possível. Clausewitz considera também importante que exista muita proximidade entre o general e o político, considerando que o comandante deve ter lugar no gabinete para que os seus membros possam ser envolvidos nas atividades militares e viceversa59. Porém, não faz referências explícitas a situações de tensão entre os dois. Por essa razão, o que deve fazer o general se o governante faz uma leitura desadequada da situação? Tem o general o dever e o direito de desobedecer? Clausewitz dá-nos poucas indicações a esse respeito, referindo que a obrigação do general é não favorecer o inimigo e que nesse caso não se trata de uma verdadeira guerra60. Portanto, considera como ponto de partida a existência de harmonia entre os dois níveis. Possivelmente, Clausewitz considera que o papel do líder militar é apoiar o líder político na sua máxima capacidade e que a última opção é sempre do governante. Se considerarmos as democracias ocidentais, em que a eleição do governante é da responsabilidade do povo, o argumento para o controlo civil do instrumento militar é ainda mais forte. Apesar de Clausewitz não referir qualquer limite na influência do líder político, espera que a sua influência seja extensiva para que a guerra seja um verdadeiro instrumento da política. Ao considerarmos que a obra “Da Guerra” é uma das principais referências na doutrina estratégica nos países ocidentais, devemos tê-la em consideração também no âmbito das relações civis-militares. Como se pretendeu demonstrar, em Clausewitz existe um conjunto de pontos que são extremamente claros e importantes na definição de um corpo de conceitos naquele âmbito. Ibid., p. 112. Ibid., p. 608. 58 Ibid., p. 89; 196; 337; p. 360, 59 Ibid., p. 608. 60 Ibid., p. 604. 56 57

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O primeiro a ter em conta é o de que a guerra, sendo um ato de política, deve ser dominada pelas suas considerações. A finalidade da guerra é alcançar um objetivo político, pelo que os objetivos militares decorrem dessa dependência. Além do mais, como a atividade política não termina com o início da guerra, durante a sua conduta as considerações políticas continuam a exercer a sua influência nas operações militares. Por seu lado, com a finalidade de levar a cabo com sucesso as políticas do Estado, é importante que o comandante não seja apenas um bom general mas que seja imbuído do espírito do governante e com sólidos conhecimentos da política nacional e política internacional. Um segundo ponto a referir é o facto de os líderes políticos se envolverem claramente na conduta das operações militares. Para Clausewitz, o governante representa os interesses de toda a comunidade. Em conjunto com o comandante, o governante procurará os meios necessários para obter sucesso na guerra, defendendo desse modo os interesses da população e assegurando que os objetivos compensam o esforço de toda a comunidade. Por essa razão, os dois, comandante e líder político, devem estar em permanente contacto, sendo ideal que o comandante tenha assento no seu gabinete. Afinal, se o governante não tem perícia nos assuntos militares deve socorrer-se dos conselhos do líder militar. Em terceiro lugar, apesar de Clausewitz esperar que alguns detalhes operacionais estão para além da influência do líder político, isso não delimita uma linha clara para separar as suas responsabilidades. Assim, podemos considerar que em cada caso o governante e o comandante devem acertar os respetivos âmbitos de atuação. Se estiver em causa a sobrevivência da comunidade política é lógico que a linha de separação seja muito ténue, uma vez que os objetivos políticos são muito parecidos com os militares, orientando-se na derrota militar inequívoca do seu adversário. Onde “Da Guerra” tem pouca expressão é na possibilidade de tensão entre o comandante e o governante. Possivelmente, tal como deve ser conhecedor do potencial interno e da situação externa, Clausewitz considera que o líder político, ao dever conhecer os meios que tem á sua disposição, também considera dever manter harmoniosas as relações com o comandante. No mínimo deve socorrer-se dos seus conselhos. Clausewitz não nos dá sugestões quanto à possibilidade de intervenção do general contra ordens suicidas do governante nem que tipo de autonomia deve ter na conduta das operações militares. Porém, a conceção trinitária orienta-nos para a responsabilidade do general na relação entre o povo e o príncipe. Ler Clausewitz continua a ser um desafio para estadistas e para comandantes. O estadista deve pensar como estrategista e deve estar familiarizado com os assuntos militares. O comandante, por seu lado, deve ser um claro conhecedor dos assuntos de política nacional para saber qual o seu verdadeiro contributo para a consecução dos objetivos do país.

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