As relações de afeto e psico na atenção à psicose.

July 1, 2017 | Autor: Rosangela Mota | Categoria: Sociology, Antropología, Terapia Ocupacional, Sofrimento Social
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As relações de afeto e política na atenção a psicose1. Rosangela Gomes da Mota de Souza Terapeuta Ocupacional, mestre em Psicologia pelo IP-USP, especialista em Saúde Mental pela EE-USP, doutoranda em Saúde Coletiva pela UNIFESP e gestora do CAPS Adulto III Sapopemba. Em maio de 2009 eu iniciava minhas atividades como gestora do CAPS Adulto III Sapopemba. Em novembro do mesmo ano iniciamos as reuniões mensais de mobilização para constituição do Conselho Gestor. Nestas reuniões participavam os pacientes em acompanhamento no serviço, eu e alguns profissionais do CAPS. Conversávamos sobre o que seria um Conselho Gestor, sua constituição e as atribuições dos Conselheiros de Saúde. Para alguns pacientes, a discussão do papel do conselheiro, abriu caminho para que eles mesmos se questionassem sobre a capacidade ou não de ser conselheiro. Nas primeiras reuniões foi possível abordar as questões relativas à Luta Antimanicomial, a Reforma psiquiátrica e as Conferências de Saúde Mental. Assim, os pacientes também ficaram sabendo que pelo Brasil afora usuários de serviços de saúde mental e seus familiares participavam do Movimento antimanicomial. A princípio, o conhecimento deste fato parece ter causado espanto e estranhamento: um esboço de um desejo de quem sabe talvez ser alguém para além de sua própria doença? Podemos dizer que talvez ali tenha se iniciado para alguns um processo de mudança do lugar de paciente para usuário de um serviço de saúde mental; ou, como apontou Saraceno (2001:p.122) do processo de trocar as identidades de louco para cidadão comum. Em paralelo a estas reuniões aconteciam no CAPS a Assembléia dos usuários: espaço coletivo, de freqüência semanal, preferencialmente conduzida pelos próprios pacientes e com a presença da maior parte dos profissionais do CAPS. Na Assembléia as pautas são colocadas pelo coletivo e busca-se a livre expressão de opiniões e pactuação de regras de convivência. Foi neste espaço que Marlon (os nomes são fictícios ) – um dos usuários do CAPS - sugeriu que houvesse uma Oficina de Política na qual “seria falado sobre as regras da sociedade, o que é certo e o que é errado”. Ele, hoje com 29 anos, freqüenta há alguns anos o serviço CAPS e olha para as mulheres e depois desvia o olhar, pois pensamentos de desejo sexual logo lhe vêm à mente. Nestas situações era freqüente que logo em seguida ele se ajoelhasse e começasse a orar implorando perdão a Deus. Seu pai é pastor e tem uma igreja; quando Marlon não está no CAPS está com sua mãe. Diríamos que Marlon é um psicótico para o qual a lei materna é onipotente e para o qual há um interdito sob seu pensamento, discurso e afeto (Aulagnier: 1979, p.173-201). A Oficina de Política surgiu na confluência desses acontecimentos: a construção do Conselho Gestor, a Assembléia dos usuários e o pedido do Marlon. O objetivo seria constituir um espaço potencial de construção narrativa das histórias de sujeitos no contexto da psicose tendo por enquadre a discussão política. Discutir política é entrar no campo de como se dão as relações sociais no âmbito do Estado e as conseqüências disto na vida civil; é uma tentativa de compreender como são os seres humanos, seus anseios individuais e porque buscam constituir uma vida em sociedade (Chauí: 1995, p.73). Num dos primeiros encontros fizemos a leitura do poema de Berthold Brecht “O analfabeto político” e Sirlei releu um trecho do poema e disse que aquilo era exatamente o seu marido: “O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. A fala dela não reverberou no grupo e o que surgiu depois foi um debate sobre que “a política não vale a pena”. Naquele momento a política ainda era algo impessoal, que nada lhes dizia respeito. Nos encontros posteriores foram introduzidos temas que poderiam ter correspondência com suas histórias de vida: o movimento da Luta antimanicomial, história da psiquiatria, a Lei 10216 etc. Aos poucos começaram a surgir os relatos das experiências individuais às quais eu entrelaçava com os temas acima citados. 1

Trabalho apresentado no IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental. 4 a 7 de setembro de 2010, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.

Em outro encontro Elói quis saber por que médico psiquiatra atendia de porta aberta? A questão do medo da loucura foi abordada: os trejeitos, o discurso, a agitação e o risco de ser violento. Alguém no grupo relembrou dos episódios de agressão que houve no CAPS ano passado: uma das pacientes agrediu outros pacientes e profissionais. Foi conversado sobre o modo como no CAPS se lidou com esta situação: abordagem verbal, contenção física, continuidade do tratamento e discussão na Assembléia dos usuários. Falou-se também da existência de outros dispositivos criados pela sociedade para lidar com o louco perigoso: a polícia, o SAMU, a emergência psiquiátrica e o hospital psiquiátrico e/ou manicômio. Entrou-se no tema do preconceito, da exclusão e do estigma do doente mental; os relatos pessoais se acentuaram e a participação na oficina também. Na comemoração da Semana da Luta Antimanicomial uma das atividades seria a inauguração do “Café com Reforma”: espaço sócio-político de discussão da loucura e suas formas de cuidado na sociedade; Rosa, uma das integrantes do grupo, coordenou a mesa. Num dos encontros na Oficina apresentei-lhes uma foto do livro “A loucura na sala de jantar” na qual aparecem duas pessoas sentadas num banco e a pergunta logo abaixo: “Quem é louco e quem é normal?”. Este acabou por ser o slogan da semana da luta e o tema para um ensaio fotográfico do qual participaram profissionais e usuários do CAPS. As atividades da Semana da Luta Antimanicomial intensificaram a discussão na Oficina sobre quem determina quem é louco ou não? Instaurou-se então, a discussão sobre normalidade, ou seja, quem é louco e quem é normal? Segundo Canguilhem (1995, 1ª parte) sabe-se da doença porque o doente fala de sua doença e é o próprio sujeito quem determina o que é normal ou o que é patológico; a doença, para o médico, não surge do conhecimento da fisiologia, das estatísticas ou exames quantitativos. Ao contrário, há um ser vivo que produz certa normatividade e se expressa no mundo por meio de normas superiores e inferiores: o conhecimento do médico sobre a doença surge a partir deste relato. No entanto, em saúde mental, quando esta expressão surge – na família, comunidade, consultórios, instituições – em geral emerge uma leitura hegemônica de doença e loucura. Na Oficina de Política, quando apareceu mais claramente a questão de quem é louco e quem é normal, surgiu também a questão do risco da expressão dos afetos: ser muito diferente parecia ser arriscado. A Oficina de Política foi um espaço no qual se acolheram os afetos oriundos das experiências de exclusão e preconceito advindas do fato de ser louco e criaram-se algumas possibilidades de existir para além da doença. Por exemplo, dois usuários da Oficina de Política participaram como delegados na Conferência Municipal de Saúde Mental do Município de São Paulo. E Marlon? Foi ele quem enunciou a Oficina e sua participação se deu da forma que ele conseguiu: quando conseguia entrar na Oficina ficava pouquíssimo tempo; ele quase sempre dizia que não podia porque não estava se sentindo muito bem. Às vezes ele se posicionava na porta e dizia que não podia entrar. À semelhança da narrativa de Kafka (1999) “Diante da Lei” na qual um homem que está diante da lei, deseja entrar, porém não consegue. O homem passa anos ao lado da porta da lei e no fim da vida questiona: se todos aspiram a lei e se ninguém mais apareceu por ali para entrar, por que não conseguiu entrar? O porteiro então responde: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você”. A Oficina de Política foi proposta por Marlon; ele queria discutir a Lei. Participou como pôde; entrou quando e como conseguiu. Ele ainda está muito mais para paciente do que para cidadão. Mas, algo aconteceu: a sua proposição de Oficina de Política estaria se contrapondo à autoridade da materna? Quem saberia... Depois, houve uma primeira vez, que Marlon conseguiu participar o tempo todo. Foi um dia em que tivemos a participação de Hugo: um paciente novo que havia sido admitido na hospitalidade noturna e que estava em crise de mania – acelerado, falando bastante e escutando pouco. A Oficina aconteceu aos pedaços: por um lado com muitas interrupções de Hugo, mas por outro surgia um olhar atento de Marlon. Aquela desorganização o atraiu; naquele dia tivemos conversas entrecortadas, descontínuas e divertidas. Houve outros encontros em que isto também aconteceu, mas esse dia foi marcante pela participação de Marlon. Depois desse dia, ele começou a participar um pouco mais da Oficina. A Oficina de Política tem-se constituído como um espaço de construção narrativa política e ao mesmo tempo afetiva; não há como ser de outra forma, pois os sujeitos se transformam a partir

de suas próprias experiências para num outro momento buscar a transformação coletiva, o deslocamento do sujeito do lugar de doente/louco para uma possibilidade de expressão de singularidades, afetos e projetos de vida. Referências bibliográficas: Aulagnier, Piera A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro, Imago, 1979. Canguilhem, Georges O normal e o patológico. 4ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995. Chauí, M. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo, Moderna, 1995. Delgado, Jacques (org). A loucura na sala de jantar. Editora Resenha, São Paulo, 1991. Kafka, Franz Diante da Lei. In: Um médico rural: narrativas curtas. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. Saraceno, Benedeto Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. TeCorá/Instituto Franco Basaglia, Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 2ª edição, 2001.

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