As relações do Egipto do Império Antigo com a Núbia

June 23, 2017 | Autor: Petra Araújo | Categoria: Ancient History, Nubian-Egyptian Relations, Ancient Nubia, Egiptology, Ancient Commercial Trades
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As relações do Egipto do Império Antigo com a Núbia The relations between Egypt from Ancient Empire and Nubia

PETRA ARAÚJO Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

Relações militares, comerciais e culturais A posição privilegiada do Egipto permite que seja uma zona de contacto com as civilizações africanas da Península Arábica, do Mediterrâneo e do Índico. Mas além desta particularidade, o país das Duas Terras assume ainda a existência do Nilo, rio que garante a sua existência e que marca também toda a sua organização. O seu vizinho directo é a Núbia, que se estende da zona da primeira catarata até à quarta, dividindo-se em Baixa Núbia ou Uauat (primeira e segunda cataratas) e Alta Núbia ou Kuch (da segunda à quarta cataratas). É uma zona caracterizada pelas regiões menos propícias para a agricultura, o que irá imprimir um traço diferente a nível da evolução e organização da civilização aí desenvolvida tendo em conta a egípcia. A fronteira precisa entre o Egipto e a Núbia nem sempre existiu, no entanto, com o estabelecimento estratégico dos egípcios em Elefantina, essa zona passa a ser o limes definido. Pelos documentos egípcios, chamava-se Ta-seti (Terra do Arco) à região da Núbia. Aliás, durante o Império Antigo, os egípcios designavam essa região de diversas formas: Uauat, Irtet, Satju ou Iam1.

Grande parte dos historiadores que se debruçam sobre a história das civilizações africanas, com destaque para as regiões da Núbia e do Egipto, afirmam que é quase impossível dissociar a história tanto de uma como outra. O facto dos historiadores considerarem esse caminho para o estudo das duas populações justifica-se na crença – e hoje, cada vez mais corroborada pelos dados arqueológicos – nas origens comuns da Préhistória salientado, entre outros autores, por Nicolas Grimal.

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Cf. Welsby (2001) 551-557. Essas designações seriam correspondentes a nomes de terras da região Núbia, como nos aponta Carita (2011) 23: “… dos chefes dos países de Medja, Irtet e Uauat que formam quase a totalidade da Baixa Núbia”.

As alterações climatológicas que ocorreram no final do Neolítico tornaram as zonas que limitavam o rio Nilo cada vez mais secas, fazendo com que as populações se deslocassem para as proximidades do Vale do Nilo. São essas populações os ascendentes comuns dos núbios e dos egípcios. No entanto, enquanto as culturas situadas mais a Norte do vale do Nilo se organizavam gradualmente de forma mais sedentária e baseada na agricultura, as populações estabelecidas a Sul da primeira catarata continuavam seminómadas2 e, como considera o egiptólogo J. Vercoutter, apesar de possuírem uma cultura material semelhante, estariam divididas em grupos menores e isolados, com maior mobilidade, começando a marcar então a diferença entre as duas culturas. Já dessa época datam os contactos comerciais: por exemplo, a população da cultura badariense tinha interesse em deslocar-se até à Núbia pela existência aí de malaquite. Portanto, haveria, de facto, grandes contactos entre a Núbia e o Egipto durante o período pré e proto dinásticos, pois a arqueologia detecta as mesmas técnicas de cerâmica e argila esmaltada, ornatos, a mesma crença na vida após a morte e ainda ritos funerários equivalentes3. Aliás, esses contactos continuaram mesmo após a unificação do Egipto, pela acção de Narmer (ou Menés), o que nos é relatado pelos monumentos da I dinastia, através de uma cena nos rochedos que mostra precisamente núbios vencidos e uma referência sobre uma vitória egípcia sobre os iuntiu (arqueiros núbios que, de resto, eram muito apreciados pelos egípcios para engrossarem os seus próprios exércitos)4. No final da I dinastia, o Sul do Egipto era já protegido por fortificações, como a de Elefantina.

O Império Antigo, em lato sensu, é iniciado com a III dinastia e estende-se desde c. 2660 a 2180 a.C., beneficiando da organização montada pelos Hórus tinitas do período anterior. Será devido à ausência de inimigos poderosos e capazes de fazer frente à crescente organização egípcia que a sociedade do Nilo irá prosperar num ambiente de estabilidade, podendo assim fomentar os seus contactos com a Núbia como com os seus outros vizinhos. Da II para a III dinastia assiste-se a uma evolução reflectida na égide de uma personalidade com estatuto divino com o intuito de criar identidade nacional e união – o faraó – e na grandiosidade das construções, marcando o início da chamada época das pirâmides. O faraó, um deus na terra, deveria ser a segurança de que a maet se manteria

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Cf. Carita (2011) 11-16. Vercouter (1980) 34-36. 4 Carita (2011) 15. 3

salvaguardada, como tal, devia zelar pela manutenção das fronteiras e por isso se justifica também as expedições para esse efeito. Desta forma, a obtenção de materiais de construção era também uma prerrogativa do Estado egípcio e seria assim uma questão de manter o equilíbrio, ou seja, a maet, pelo que o comércio foi continuamente fomentado. A III dinastia abre o período a que hoje comummente chamamos de Império Antigo e o faraó Djoser tratou de seguir a linha anterior de expedições à Núbia, tentando proteger as áreas circundantes e inclusivamente conquista a região entre Assuão e Takompso (cidade situada a Norte da segunda catarata), à entrada do Uadi5 Allaki, local que daria acesso às minas de ouro6, tal como os restantes reis do mesmo período. De resto, e porque da acção dos restantes reis da III dinastia pouco se sabe, como salienta o historiador Josep Padró “asistimos a los primeros [desde a época tinita] intentos militares egipcios por asegurarse el control de determinadas regiones vecinas de especial interés. Estas expediciones señalan ya unas direciones que representaron una constante en la historia del Egipto faraónico”7 e “en cuanto a la política exterior, sabemos que fueron los reyes de esta [III] Dinastía los que iniciaron la colonización sistemática del Sinaí y de la Baja Nubia, atraídos por los importantes recursos naturales de estas regiones”8.

As terras férteis nas margens do Nilo permitiam ao país das Duas Terras ser auto suficiente e poder deixar o comércio para segundo plano. O comércio externo – que era monopólio estatal - seria mais fomentado quanto maior fosse a necessidade de obtenção de materiais dos quais o Egipto não era detentor e essa necessidade crescia a par i passu com a complexificação das estruturas sociais e arquitectónicas. A Núbia era uma região muito cobiçada pelos egípcios tanto pelos seus materiais como pelo facto de ser uma ponte de ligação com a África Negra. As expedições eram enviadas pelos reis e conduzidas pelos funcionários governamentais, principalmente os governadores das províncias a Sul, com destaque para Elefantina. Essas expedições tinham um cunho militar e comercial, pelo que não se poderá dissociar, uma vez que as trocas comerciais seriam acompanhadas por militares que asseguravam o controlo das rotas caravaneiras que passavam entre a primeira e a segunda cataratas e o controlo dos

Sumariamente, os uadis são “leitos secos de antigos cursos de água que, em períodos muito recuados, corriam para o Nilo”, cf. Sales (2011) 848. 6 Araújo (2011) 70. 7 Cf. Parcerisa (1989) 43. 8 Cf. Parcerisa (1989) 49. 5

recursos económicos e comerciais9. J. Yoyotte refere inclusivamente a existência de um corpo paramilitar especializado para investigar, proteger e explorar as minas de ouro na Núbia: os sementi10. De facto, as expedições somente militares são típicas de períodos mais conturbados, não tendo sido o caso do Império Antigo que, pelo contrário, viveu um período de paz e prosperidade. A maioria dos autores aponta o ouro, cobre, estanho, obsidiana, turquesa, malaquite, esmeralda, pedra, madeira (como o ébano), gado, contingentes, marfim, penas e ovos de avestruz, peles de pantera, girafas, macacos, cães, entre outras coisas como os produtos mais apreciados e comercializados pelos egípcios. Contudo, nem todos os produtos referidos eram naturais daquela região: o marfim, as peles de pantera, macacos, penas e ovos de avestruz e outros produtos mais exóticos seriam trazidos da África Negra, mais a Sul da Núbia, e chegavam aos intermediários egípcios pelos contactos com os Nehesiu (ou Nehesyw: pretos ou núbios). Por outro lado, os minerais e as pedras semipreciosas eram exploradas pelos egípcios mesmo nas regiões da Núbia. Em contrapartida, os egípcios também possuíam ricos produtos que muito interessavam aos núbios, entre os quais contam-se o peixe seco, papiro, linho, algodão, cereais, vasos, pérolas e amuletos. Além disso, a existência dos tributos que os egípcios colocavam às populações núbias, que deveriam ser pagos em géneros, constituía outra forma de adquirirem os produtos. As pedras preciosas seriam utilizadas para adornar estatuetas, principalmente as funerárias, como os chauabtis que representam tanto o defunto como os seus servidores na vida após a morte11; por sua vez, a madeira seria também utilizada na elaboração dessas mesmas estatuetas (assim como a obsidiana) e outros objectos destinados ao preenchimento dos túmulos, e de igual modo na construção de barcos para o transporte, por exemplo, de pedra explorada também na zona da Núbia12, e para fins religiosos, como a barca solar13. Como já se disse, as peles de pantera (ou leopardo, ambos animais que não existiam no Egipto nos tempos históricos) muito provavelmente, como confirma a iconografia egípcia, seria utilizada pelos sacerdotes, que as colocavam como mantos sobre os ombros, para os rituais religiosos. Já a pedra tinha a sua importância pois permitia a elaboração de toda a estrutura de um túmulo ou templo que, deveriam permanecer para a eternidade. Assim, se depreende a relevância das pedreiras de diorito no deserto núbio

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Adam e Vercouter (1980) 225-242. Yoyotte (1980) 112. 11 Para um esclarecimento mais detalhado sobre as estatuetas funerárias ver Araújo (2001) 344-346. 12 Cf. Araújo (2001) 142-143. 13 Cf. Araújo (2001) 141-142. 10

(a Norte de Abu Simbel)14. O ouro era dos produtos mais cobiçados pelos egípcios, que apesar de existir em território egípcio, a sua abundância não se comparava com a existente nos solos núbios. Como se tem vindo a desenvolver, também o ouro tinha grande implicação na vida após a morte: terminado o processo de embalsamento, o ideal seria que o defunto fosse envolvido em ouro por via das máscaras ou “capas” para os dedos dos pés e das mãos feitas a partir de folha do minério, isto porque o ouro era “a carne dos deuses”15. A exploração, também patrocinada pelo Estado, era controlada pelos sementi e os centros de extracção eram principalmente as minas dos Uadis Allaqi e Cagbaba, situados no Uauat e por isso o ouro com a sua origem aí era mencionado pelos egípcios como “o ouro do Uauat”. Aliás, esta designação do ouro mostra não só a sua origem mas confirma também a profusão do minério na região núbia, o que leva a que Y. Markowitz e P. Lacovara defendam o facto da palavra Núbia ter derivado da palavra egípcia nbw, que significava ouro e era representada precisamente por um hieróglifo com forma de um “colar de ouro com pendentes”16. A IV dinastia deixou-nos imensos monumentos arquitectónicos, como são exemplo as pirâmides, no entanto, há uma enorme falta de registos escritos em comparação. A ausência de inimigos poderosos nas áreas circundantes confere a esta dinastia grande estabilidade e oportunidade para incrementar as relações comerciais que foram realmente importantes pelas construções a que os faraós procederam. Seneferu inicia esta dinastia e, pelo que atesta a Pedra de Palermo17, organiza uma campanha militar à Núbia – provavelmente para pacificar as tribos na zona da fronteira -, trazendo consigo 7000 prisioneiros que viriam a engrossar as fileiras do exército egípcio e a colaborar nos trabalhos agrícolas e 200 mil cabeças de gado18. Pensa-se que terá sido devido às expedições militares conduzidas contra os núbios nesta época que a população da Baixa Núbia entre 2700 a 2200 a. C. desaparece, por abandono da região. Aliás, terá sido com o material lítico recolhido desta expedição, que permitiu o controlo das pedreiras de diorito, que se situavam no deserto núbio e levou-os até à segunda catarata, que as estátuas

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Carita (2011) 19-20. Maria Carita aponta também para o facto do material lítico daí extraído servir posteriormente para a construção da cidade de Buhen, onde se formou um centro metalúrgico para o tratamento do cobre, atestado pelas descobertas arqueológicas de fornos para a fundição do cobre como atesta Vercoutter (1980) 225-242. 15 Markowitz e Lacovara (2009) 34. 16 Markowitz e Lacovara (2009) 34. 17 O nome deve-se à cidade da Sicília que mantém o fragmento no museu. A placa de diorito tem gravado o nome de todos os faraós até meados da V dinastia. 18 Araújo (2011) 75.

do faraó Khufu foram construídas19. Também para a construção das estátuas de Khafré o material veio da Núbia, o que atesta, como afirma o professor Luís Araújo que “o domínio egípcio na região estava estabelecido”20. Com a passagem da IV para a V dinastia deve ser ressaltado o facto da autoridade real começar a enfraquecer aos poucos devido, em parte, à ascensão do poder de certos funcionários do palácio, que se reflecte depois no estado das fronteiras circundantes. É também na V dinastia que os prisioneiros núbios de expedições anteriores prestam serviço na corte e nos contingentes da polícia, incentivando a transmissão de ideias. No entanto, não há apontamento sobre qualquer expedição à Núbia, embora sabemos que a actividade naval neste período tenha sido bastante desenvolvida e foram empreendidas campanhas militares para pacificar as tribos líbias e expedições comerciais ao Punt21. A VI dinastia marca um período de apogeu e decadência do Império Antigo: o reinado de Pepi I e parte do reinado de Pepi II constituem o zénite da dinastia, sendo que depois o declínio do Império Antigo vai-se acentuando até entrarmos no Primeiro Período Intermediário. O cargo político e económico de governador do Sul foi criado devido ao fomento das relações com a Núbia, pelo que o governador seria responsável pela defesa da entrada meridional do Egipto, pela organização dos intercâmbios comerciais e pelo favorecimento da circulação das expedições mercantis. A. H. Zayed22 refere o final da V dinastia como o momento em que o cargo foi criado. No entanto, defende-se o parecer de Maria Carita23, pois no final da V dinastia não temos notícia de expedições à Núbia e inclusivamente sabemos que as explorações nas pedreiras de diorito a Norte de Abu Simbel cessaram. Dessa forma, a criação desse cargo terá tido lugar no reinado de Pepi I, pelo facto de ser dessa altura que data a retoma intensiva dos contactos entre núbios e egípcios. Sob o reinado de Pepi I, mas pela acção de Uni – governador do Alto Egipto –, o Egipto adopta um exército permanente para fazer frente aos países inimigos, pois segundo A. Abu Bakr seria a primeira vez que, de facto, as tácticas militares egípcias passavam de defensivas para ofensivas:

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Carita (2011) 19. Araújo (2011) 79. 21 Bakr (1980) 80-82. 22 Zayed (1980) 130-131. 23 Carita (2011) 24. 20

Il constitua une armée de nombreuses dizaines de milliers d’hommes: venant de la Haute Égypte (…), venant également de la Basse Égypte (…) avec des Nègres du pays de Irtet, du pays de Medja, du pays de Iam, du pays de Ouaouat.24 Além deste feito – criação de um exército permanente - (que ainda hoje é uma questão em aberto, pois alguns autores, como Jean Vercoutter, não consideram verdadeira essa constatação), o reinado de Pepi I foi bastante dinâmico e as expedições realizadas à Núbia estão gravadas na capela da mastaba de Uni, em Abido25. A Pepi I sucedeu Merenré, seu filho, que desenvolveu um enorme interesse pela Núbia e pelos seus produtos, encomendando diversas expedições comerciais e militares. Além dos contactos comerciais, Merenré tentou expandir e consolidar o seu poder na Núbia, tanto que uma inscrição em Assuão confirma a sua presença em Uauat para receber homenagem dos chefes das províncias núbias26. Também sob as ordens de Merenré, Uni empreendeu outras expedições: Sa Majesté m’envoie ensuite à Ibhat, afin que je rapporte à mon maître – puisse-til vivre! – un sarcophage, avec son couvercle, (…) pour (sa) pyramide.27 Como se pode verificar, a exploração das pedreiras continua, pois Merenré ordena que Uni vá a Ibhat, isto é, uma pedreira de granito nas vizinhanças de Assuão, como esclarece Claire Lalouette, com o objectivo de lhe trazer um sarcófago, pensa-se ser material para fazer o sarcófago para a pirâmide que já estaria em construção. Por outro lado, essa mesma expedição (que demorou um ano), pelas inscrições no túmulo de Uni, atesta que os chefes de Irtet, Uauat, Iam e Medja cortavam a madeira para o faraó, mostrando que esses mesmos chefes estariam numa posição inferior e quase de submissão em relação ao faraó do Egipto e que os dois países estariam com as suas relações pacificadas: Puis Sa Majesté m’envoie pour creuser cinq canaux en Haute Égypt et pour construire trois cargos et quatre navires de transport, en bois d’acacia du pays de Ouaouat. Les chefs des pays de Irtet, de Ouaouat, de Iam et de Medja font couper du bois

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Lalouette (1984) 165. De modo sumário, sob as ordens de Pepi I, Uni reuniu o exército constituído por homens do Alto e Baixo Egipto e ainda pelos negros do país de Irtet, Medja, Iam, Uauat, entre outros, para reprimir os “nómadas das areias”. 25 Carita (2011) 22. 26 Carita (2011) 23. 27 Lalouette (1984) 167.

pour cela. J’accomplis l’ensemble en une seule année. Lorsque les bateaux sont mis à flot, ils sont également chargés de grands et larges blocs de granit pour la pyramide ‘Merenrê apparaît bellement.’28 Além do governador Uni, Herkhuf – governador de Assuão – também liderou expedições à Núbia. Conduziu três expedições, sendo que a primeira acompanhou o seu pai, Iri, ao país de Iam para que explorassem os caminhos. Esta primeira terá demorado sete meses: La Majesté de Merenrê, mon maître, m’a envoyé, en même temps que mon pére, l’Ami Unique et prêtre-lecteur Iri, vers le pays de Iam pour en explorer les chemins.29 A seguinte, Herkhuf foi sozinho, tendo passado o país de Irtet e durou oito meses: Sa Majesté m’envoya une second fois, seul. Je montai par la route d’Éléphantine, et je redescendis par le pays de Irtet (…), au bout d’un voyage de huit mois.30 A última viagem que realizou sob o reinado de Merenré conduziu-lhe até ao país de Iam, pela rota dos Oásis, tendo pacificado o país de Timhiou31. Quando alcançou o país de Irtet, acompanhado pelo governador de Iam, enfrentou uma coligação entre este e os chefes dos países de Satju e Uauat, que acabaram por oferecer a Herkhuf diversos produtos como incenso, ébano, fragrâncias, grão, peles de pantera e outros, que foram carregados por centenas de burros. Esta expedição deixa perceber o interesse que os egípcios tinham pelos produtos da África Negra e como a Núbia era um importante elo entre o Sul da África e o Egipto, pois os seus mercadores forneciam depois aos egípcios os produtos do Sul, como foi o caso: Sa Majesté m’envoya pour la troisième fois au pays de Iam. Je montai (…) par la route de l’Oasis; je constatai que le chef du pays de Iam était parti vers le pays des Timhiou pour châtier ceux-ci, aussi loin que le coin ocidental du ciel. Je montai à sa suite vers le pays des Timhiou, et j ele pacifiai, jusqu’à ce qu’il adorât tous les dieux pour le compte du souverain royal.

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Lalouette (1984) 168. Lalouette (1984) 170. 30 Lalouette (1984) 170. 31 Este conflito diz respeito às dissidências entre o governador de Iam e as tribos líbias, segundo Carita (2011) 26. 29

(…) je rencontrai le chef de Irtet-Setou-Ouaouat… Je redescendis alors avec trois cents ânes, charges d’encens, d’ébène, de parfum hekenou, de grains, de peaux de panthères, de defenses d’éléphants, de nombreux boomerangs, de toutes sortes de beaux et bons présents.32 Pepi II herdou o trono com cinco anos de idade, pelo que a rainha-mãe Ankhenesmeriré II assumiu a regência33. Do seu reinado, temos o registo das expedições de Herkhuf e Pepinakht. Herkhuf continuou a exercer o cargo de governador do Sul mesmo após a morte de Merenré, tendo inclusivamente liderado uma quarta e última expedição já no reinado de Pepi II. Durante essa expedição, o governador de Assuão terá encontrado um anão34 e enviado uma carta a Pepi II a informar, ao que este responde-lhe com grande entusiasmo e pedindo-lhe que trouxesse o pigmeu dançarino35. O entusiasmo por parte do faraó explica-se pela sua pouca idade, provavelmente com sete anos, pois este episódio data do ano 2 do seu reinado.36 Ainda no reinado de Pepi II, a segurança das expedições comerciais e das fronteiras a Sul começavam a estar ameaçadas, pelo que diversos autores, como Jean Vercoutter, explicam esse fenómeno com base nas alterações climáticas de 2400 a. C. que levaram a deslocamentos populacionais para a zona a Sul de Assuão, pois a aridez nas estepes oriental e ocidental fez com que vários grupos se aproximassem do Vale do Nilo. Estes perigos que então assolavam as campanhas de cunho militar enviadas por Pepi II para acalmar as revoltas de algumas tribos que se dedicavam à pilhagem das caravanas estão narrados no túmulo de outro governador, Pepinakht (de seu nome Hekaib), em Elefantina. O término do reinado de Pepi II deve-se à desorganização política, quando os governadores das províncias do Alto Egipto incrementavam o seu poder, com o controlo de algumas explorações das pedreiras e minas no deserto núbio, tentando sobrepô-lo ao do faraó. O Primeiro Período Intermediário inicia com o fim do Império Antigo e estende-

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Lalouette (1984) 170-171. Araújo (2011) 87. 34 Existem teorias que defendem que não era propriamente um anão, mas, sim, um pigmeu. No caso de se tratar de um pigmeu e, pelas lendas sabermos que os pigmeus eram oriundos da África Central, mais a Sul da Núbia, então mais uma vez atesta-se o facto dos núbios, através dos seus mercadores, trazerem produtos, neste caso seria um pigmeu, do Sul da África e depois trocassem por produtos egípcios, durante os seus contactos. Além disso, Claire Lalouette aponta, de modo a corroborar a tese que defende ser um pigmeu, que os pigmeus eram muito apreciados na corte egípcia e que o que Herkhuf trouxe poderá tê-lo encontrado como prisioneiro. Neste estudo, concorda-se que tenha sido um pigmeu. 35 Para se ler a carta que Pepi II direcionou a Herkhuf, veja-se Lalouette (1984) 171-173. 36 Carita (2011) 25. 33

se de 2180 a 2040 a.C., caracterizando-se por ser uma fase de guerra civil, ausência de grandes construções e grande instabilidade governativa. No final do Império Antigo, as relações com a Núbia interrompem-se, no entanto não na sua totalidade pois A. H. Zayed aponta para o facto do príncipe de Edfu, que deixa inscrito nas paredes do seu túmulo em Mealla, enviar cereais a Uauat com o intuito de evitar a fome da população aí estabelecida. Além disso, sublinha também o facto dos soldados núbios estarem presentes nas batalhas travadas no Médio Egipto, durante o Período Intermediário37. Relativamente a esta consideração, pensa-se que esses soldados núbios já poderiam estar integrados nos exércitos egípcios desde tempos anteriores ao Primeiro Período Intermediário (por exemplo, desde o reinado de Merenré ou Pepi II).

Ao constatar as diversas expedições egípcias feitas a Ta-Seti, percebe-se que essas viagens terão motivado também a opção individual de pessoas para se sedimentarem noutras regiões, levando a que alguns autores, como Jean Vercoutter defendam a colonização egípcia da Núbia com o intuito de explorarem cada vez melhor os seus recursos, exercendo um poder directo. Teoria com a qual se concorda em parte, pois visto primeiro que as expedições militares exercem poder directo sobre a região, os contingentes egípcios ao trabalharem na região da Núbia nas explorações de minerais e a construção de fortificações e cidades como a de Buhen permitem constatar que a presença egípcia na Núbia foi prolongada, organizada e até bem sedimentada. Contudo, salientase para o facto de, no Império Antigo, a Núbia não ser uma colónia egípcia. O termo colonização serve um sentido mais populacional, na medida em que elevados contingentes egípcios começaram a consolidar-se nessa zona na sequência dos contactos entre as duas regiões, associado a um poder directo das milícias que acompanhavam essas expedições e que mantinham a ordem. A transmissão de ideias religiosas ou de modelos culturais é facilmente incentivada quando duas culturas entram em contacto. Além disso, o ascendente comum, tendo em conta que o Egipto é uma civilização que tem as suas origens na África Negra, tal como a Núbia, mas que depois sobe até à zona do Norte contactando com o Mediterrâneo, favorece o entendimento e essa transmissão mútua. De facto, o comércio, mais que as expedições de cunho militar, fomenta o contacto, uma vez que permite o diálogo e a troca de artefactos típicos de uma região e de outra. E esse comércio é conduzido por

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Zayed (1980) 130-131.

mercadores, artesãos, milícias e inclusivamente indivíduos destinados a trabalhar na exploração mineira e que trabalhavam em colaboração com as populações locais, ou seja, grupos de indivíduos que se imiscuem no grosso da população e que passam, consciente ou inconscientemente, esses modelos e ideias. A nível religioso, pensa-se que o seu carácter politeísta tão intrínseco de região e da população habitacional do Egipto pode ser explicado em parte pela presença de diferentes religiões locais em épocas pré-históricas38. Ou seja, as antigas crenças das culturas ascendentes da civilização egípcia foi continuada por esta, fomentando a grande liberdade religiosa característica dos egípcios. Essa origem da religião num ascendente da África Negra pode explicar a existência de um deus egípcio, Tot (deus da escrita), representado sob a forma de um babuíno, animal que não faz parte da fauna egípcia, o que poderá ser uma reminiscência às suas origens africanas ou simplesmente uma adopção vinda da Núbia fronteiriça através das trocas entre os mercadores. Mas esta divindade não seria a única: o aumento dos dados arqueológicos e literários para a época a partir de 2200 a. C., com o início da VI dinastia, leva a que Jean Vercoutter considere, consequentemente, uma amplificação da cultura transmitida, pelo que o panteão egípcio foi enriquecido com a apropriação de uma divindade africana feminina, Dedun, provedora de incenso39. Apoia-se a teoria de que esta divindade africana não seria precisamente núbia, uma vez que era provedora de incenso, produto típico da região do Punt40, portanto, seria uma divindade da África Central. Os modelos culturais transmitidos pautam-se maioritariamente pelas técnicas de manusear e produzir determinados artefactos: Vercoutter, no mesmo artigo sobre a Núbia, sublinha o facto da difusão das técnicas de construção dos artefactos, por vezes, ser de difícil percepção na medida em que não se consegue definir o fluxo de transmissão que terá sofrido, pois as técnicas aparecem nas mesmas regiões praticamente ao mesmo tempo. Embora se tenha ressaltado maioritariamente as transmissões que ocorreram da Núbia para o Egipto, tal não quer dizer que o fluxo inverso não tenha acontecido. Aliás, com a ascensão do reino de Kerma (Iam), as transmissões culturais incrementaram e nos períodos seguintes, os autores apontam principalmente para a egipcianização dos núbios, levada pela imitação das vivências egípcias.

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Yoyotte (1980) 114-120. Adam e Vercoutter (1980) 225-242. 40 Araújo (2011) 723. 39

Considerações finais Tendo em conta os produtos procurados pelos egípcios a Sul de Elefantina, podese considerar que o comércio externo é realizado em primeiro lugar com o intuito de manter a maet, como já foi referido, e como tal consegue-se perceber também o porquê, além das razões políticas e económicas, de ser reservado ao faraó, pois é este homem que está ao mesmo nível que os deuses e que é capaz de assegurar o equilíbrio necessário para que tudo corra na sua ordem normal, sem haver qualquer retorno ao caos. Além disso, é uma actividade que, embora acarrete muitos interesses económicos e inclusivamente sirva como arma política (a riqueza ostentada confirmava o poder do faraó), pode ser entendida à luz da filosofia religiosa egípcia, isto é: se nos detivermos sobre as utilizações dadas aos produtos explorados pelos egípcios e trazidos na sequência do comércio realizado, compreendemos que na sua maioria têm uma utilização marcadamente religiosa, dirigida para a vida eterna. Em segundo lugar, o comércio externo seria, pode-se dizer, usufruído pelas elites egípcias, pois os produtos importados são na sua maioria mercadoria de luxo que não chega às camadas inferiores da sociedade e mesmo quando esses produtos são utilizados para templos e túmulos a sua abrangência é limitada. Veja-se: as pessoas enterradas em túmulos, tanto mais ou menos ostensivos, eram aquelas que usufruíam de cargos importantes e dessa forma tinham poder económico para tal, por outro lado, os templos não eram de todo livres à entrada de qualquer indivíduo da sociedade, sendo que as camadas inferiores estavam interditas a esses edifícios, também pelo facto de não se destinarem apenas aos rituais religiosos mas igualmente a servirem como centros políticos e económicos. Conclui-se que o declínio das relações entre a Núbia e o Egipto, principalmente durante o Primeiro Período Intermediário, tenha sido sintomático dos problemas intestinos pelos quais o Egipto passava, quer fosse a nível político (mais predominante) quer fosse a nível económico. Tendo em conta que o faraó tinha que manter a segurança interna do país e assegurar o alimento e a paz para a sua população, consegue-se entender que o abandono ou simplesmente a diminuição do fluxo das campanhas militares e comerciais à Núbia para responder com excelência às dificuldades internas era a sua prioridade enquanto deus vivo na terra.

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