AS RELAÇÕES ENTRE JORNALISMO E CAPITALISMO EM O CAPITAL DA NOTÍCIA DE CIRO MARCONDES FILHO

September 1, 2017 | Autor: Luis Coelho | Categoria: Journalism, Marxism, French Revolution, History of Capitalism, Journalism and Capitalism
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Luís Falconeri Vanessa Nogueira

AS RELAÇÕES ENTRE JORNALISMO E CAPITALISMO EM O CAPITAL DA NOTÍCIA DE CIRO MARCONDES FILHO

Belo Horizonte Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Fumec Dezembro de 2006

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Luís Falconeri Vanessa Nogueira

AS RELAÇÕES ENTRE JORNALISMO E CAPITALISMO EM “O CAPITAL DA NOTÍCIA” DE CIRO MARCONDES FILHO

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social – Jornalismo da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Fumec como o requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social. Orientador: Leônidas Dias de Faria

Belo Horizonte Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Fumec Dezembro de 2006

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Universidade Fumec Faculdade de Ciências Humanas Curso de Comunicação Social

Monografia intitulada “As Relações entre Jornalismo e Capitalismo em “O Capital da Notícia” de Ciro Marcondes Filho” de autoria dos alunos Luís Falconeri e Vanessa Nogueira, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

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Belo Horizonte Universidade Fumec Dezembro de 2006

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Dedicamos esta obra aos estudiosos e profissionais que

contribuíram

na

construção

do

nosso

conhecimento ao longo dos quatro anos do curso de Comunicação Social na Universidade Fumec.

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Agradecemos a produção desta monografia ao nosso orientador Leônidas Dias de Faria que esteve presente com seu pensamento lógico do qual nenhuma contradição escapa.

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RESUMO

Ciro Marcondes Filho em seu livro, O capital da notícia: jornalismo como produção social da segunda natureza, procura estabelecer uma relação de homologia entre o jornalismo e o capitalismo, fundamentando-a no fato de que o nascimento daquela prática teria coincidido com o surgimento deste modo de produção. Na defesa de tal asserção, o autor conceitua notícia e faz um panorama histórico em que expõe as diversas fases do jornalismo a partir de sua função como acelerador do fluxo de mercadorias durante os primeiros passos da empresa capitalista. Marcondes Filho mostra, assim, a gênese do fenômeno jornalístico como um processo intimamente relacionado ao desenvolvimento da economia de mercado.

Em nosso trabalho, procuramos explicitar e criticar as relações entre jornalismo e capitalismo apresentadas pelo referido autor em sua obra. A leitura minuciosa de seu texto nos permitiu perceber contradições significativas. E, através de tal leitura, pudemos chegar a algumas conclusões acerca da possibilidade de se aproveitar a estrutura lingüística do jornalismo para uma prática reconfigurada e desvinculada de interesses mercadológicos, contrariando a tese fundamental do autor.

Assim, apesar de intencionar expor exatamente o contrário, Ciro Marcondes Filho nos propiciou, em meio ao seu emaranhado de contradições, que o jornalismo é uma prática que não só sobreviveria ao fim do modo de produção capitalista, como poderia contribuir com sua superação, graças a potencialidades de que é dotado e que extrapolam a lógica que o gerou.

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ABSTRACT

In his book, “O capital da notícia: jornalismo como produção social da segunda natureza” (The capital of the news: journalism as a social by-product of the second nature), Ciro Marcondes Filho tries to establish a relation of homology between the birth of journalism and the foundations of the capitalist mode of production. To accomplish that, the author defines news and constructs a historical panorama throughout the diverse phases of journalism: from market flowaccelerator during the first steps of the bourgeoisie to a capitalist company. Marcondes Filho shows the genesis of the journalistic phenomenon as a process intimately related to the development of the market economy.

In our paper, we endeavoured to explicit and criticize the relations between journalism and capitalism presented by Marcondes Filho. The minute reading of his work allowed us to perceive significant contradictions, which allowed certain conclusions concerning the possibility of using the journalistic structure to society’s advantage as a whole by means of a practice that is reconfigured and disentailed of merchandizing interests.

Despite his willingness to say the contrary, Ciro Marcondes Filho showed us with his inconsistencies, that journalism is a practice that survives the end of the merchandizing era since it has potentialities that extrapolate the logic in which it was generated.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................10

1 A ESSÊNCIA MERCADOLÓGICA DA NOTÍCIA.............................................................13 1.1 Jornalismo e poderes.............................................................................................................13 1.2 Conceito de notícia.................................................................................................................17 1.3 O caráter de mercadoria da informação..............................................................................22 1.3.1 O saber tradicional..............................................................................................................22 1.3.2 Valor de uso e valor de troca..............................................................................................23 1.3.3 Imprensa e Capitalismo......................................................................................................26 1.4 As formas de encobrimento e de falseamento......................................................................28 1.4.1 O jogo com o texto noticioso...............................................................................................29 1.4.1.1 A fragmentação da realidade..........................................................................................29 1.4.1.2 A personificação dos processos sociais...........................................................................30 1.4.2 O uso da linguagem e da técnica........................................................................................31 1.4.3 A política do destaque e da supressão de informações....................................................32 1.5 O telejornalismo.....................................................................................................................33

2 A HISTÓRIA DA IMPRENSA: DE VIABILIZADORA DO FLUXO DE MERCADORIAS À GRANDE EMPRESA CAPITALISTA..................................................36 2.1 A notícia e o trânsito de mercadorias...................................................................................36 2.2 A imprensa artesanal e a político-libertária........................................................................39 2.3 A imprensa de negócios.........................................................................................................43 2.4 A concentração na imprensa.................................................................................................47 2.5 Jornalismo na era eletrônica.................................................................................................48

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3 JORNALISMO E ESFERAS DE PODER: CONFLITOS E ARRANJOS.........................49 3.1 Estado sob a economia liberal...............................................................................................49 3.2 Liberalismo e ideologia..........................................................................................................51 3.3 Imprensa liberal e sensacionalista........................................................................................52 3.4 Conflitos de poderes: liberdade de imprensa e censura.....................................................55 3.5 Excurso....................................................................................................................................56 3.5.1 A experiência da imprensa alternativa (teses).................................................................56

CONCLUSÃO.............................................................................................................................64

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................69

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INTRODUÇÃO O texto que ora se apresenta consiste no primeiro passo de uma empreitada maior, que não pretende abordar o jornalismo no que diz respeito apenas a suas perspectivas e possibilidades epistemológicas, educativas, informativas, lingüísticas e estilísticas; ao invés, consiste de uma investigação que pretende, sobretudo, avaliar, sob a luz de pressupostos filosóficos consolidados, a viabilidade de um jornalismo que possa contribuir com um eventual processo revolucionário, isto é, de um jornalismo que não seja mero elemento ou instrumento posto a operar, de modo mais ou menos consciente, com vistas à reprodução do sistema social vigente, caracterizado pelo modo de produção capitalista. Em suma, este estudo é parte de um esforço mais amplo de se verificar a eventual possibilidade de se desvincular a atividade jornalística de grande alcance das imposições características do referido sistema, avaliando a possibilidade não só de tal prática permanecer existindo após sua eventual superação, como também de ela, ainda que por ele condicionada, vir a contribuir de algum modo para o seu combate.

Para atingir o objetivo acima, pretendíamos, inicialmente, confrontar as idéias de dois importantes autores brasileiros da Teoria da Comunicação: Ciro Marcondes Filho e Adelmo Genro Filho. A partir do confronto ideológico, o objetivo era estabelecer um processo de elucidação conceitual que nos permitisse chegar a uma visão mais ou menos consistente acerca da possibilidade ou não de um jornalismo livre das imposições capitalistas, que se iria complementar progressivamente com estudos posteriores. No entanto, durante o processo de releitura rigorosa da obra de Marcondes Filho, foram sendo trazidas à luz uma série de problemas, cuja exposição sistemática se mostrou como um objetivo suficientemente amplo e complexo para ser colocado como exclusivo, de modo que o confronto com o outro autor foi

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relegado a uma futura etapa, aparecendo neste estudo de modo apenas pontual e com a finalidade apenas de auxiliar na consecução deste propósito mais estreito, mas suficientemente ambicioso para um trabalho com as características deste, de que aqui se apresentam os resultados.

A relevância de se exporem com rigor os inúmeros problemas encontrados na obra “O capital da notícia: jornalismo como produção social da segunda natureza” de Ciro Marcondes Filho como parte do projeto mais amplo a que se aludiu acima se faz perceber pelo fato de que este livro se encontra presente nas referências bibliográficas de inúmeros textos relacionados à problemática das relações entre “jornalismo e capitalismo” produzidos no país desde a sua publicação, o que, embora não evidencie sua aceitação total ou mesmo parcial pelos pesquisadores, traz à luz a sua caracterização como fonte indispensável.

Mais especificamente, a proposta deste estudo foi a de, primeiro, avaliar a consistência lógica do livro de Ciro Marcondes Filho, isto é, sua coerência interna. Além disso, e de modo secundário, buscou-se avaliar a consonância ou dissonância das idéias ali contidas com as idéias do filósofo alemão Karl Marx, a cujo livro mais influente, O Capital, o título escolhido por Marcondes Filho faz mais que uma ligeira alusão e a cuja obra como um todo este autor se diz afiliado, embora a ela se contraponha em uma ou outra passagem – de modo problemático, como se pode verificar.

Como será exposto, Marcondes Filho explora à sua maneira as idéias de Marx, associando-as com outras que a ela não são apenas distintas, mas inconciliáveis, na tentativa de elucidar e sustentar suas considerações acerca das relações entre jornalismo e capitalismo.

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A apresentação dos resultados de tal exploração peculiar da obra de Marx, que se empreende no texto a seguir, também se faz com base em pressupostos estabelecidos por este autor e desenvolvidos por alguns daqueles que deram continuidade à sua obra. Dessa forma, durante todo o trabalho, expusemos e criticamos a obra de Marcondes Filho, buscando evidenciar suas contradições, tanto através do choque de suas próprias idéias entre si, como por meio de seu confronto com as idéias de Marx e alguns de seus seguidores. A partir desse embate ideológico, pudemos entender melhor o que Marcondes Filho chama de “natureza da notícia” e verificar a inconsistência de seu postulado inicial de que o jornalismo só é possível no interior do modo de produção capitalista e, ainda mais, com a única finalidade de reproduzi-lo.

Nossa intenção com o presente trabalho é destrinchar a obra de Ciro Marcondes Filho e criticá-la. Traçado esse objetivo corremos o risco de sermos radicais ao apontar suas contradições, mas só tomamos essa obra como nosso objeto de estudo porque, acima de tudo, a consideramos relevante o suficiente para dedicar todo nosso tempo à sua análise.

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1 A ESSÊNCIA MERCADOLÓGICA DA NOTÍCIA

(...) ilusão que é ter esperanças em um jornalismo rigorosamente objetivo, uma vez libertado das exigências capitalistas. FRIEDRICH GEYRHOFER

1.1 Jornalismo e poderes

Ciro Marcondes Filho, em sua obra O capital da notícia: jornalismo como produção social da segunda natureza, analisa o jornalismo, sua relação com o sistema de produção capitalista e as possibilidades de seu desenvolvimento desvinculado de interesses mercadológicos. O autor pretende defender a posição de que há uma íntima relação entre o jornalismo e os interesses de classe.

Ele vê a produção de notícias como uma forma de supervalorizar as posições políticas e os valores da classe dominante: uma forma de auto-afirmação classista.

Criar jornais é encontrar uma forma de elevar a uma alta potência o interesse que têm indivíduos e grupos em afirmar publicamente suas opiniões e informações. É uma maneira de se dar eco às posições pessoais, de classe ou de nações, através de um complexo industrial-tecnológico, que além de preservar uma suposta impessoalidade, afirma-se, pelo seu poder e soberania, como “a verdade” (MARCONDES FILHO, 1989, p.11).

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Marcondes, ao falar em “indivíduos e grupos”, não especifica de qual grupo está falando e faz uma generalização que nos permite inferir que ele entende a estrutura do jornalismo como possível de ser apropriada por qualquer grupo para dar visibilidade às suas posições e valores. Faz-nos pensar que o jornalismo pode ser visto com uma “arma” passível de ser apropriada por qualquer grupo para travar uma luta. No entanto, ao longo do seu livro, mostra acreditar na impossibilidade da existência da atividade jornalística em outro tipo de sociedade que não a capitalista. Assim, percebe-se uma primeira contradição: ele não consegue ver outro grupo “dando eco” às suas posições que não a burguesia porque vê o jornalismo intrinsecamente capitalista, mas nesse trecho parece acreditar em possibilidades extra-capitalistas da imprensa.

Prosseguindo em sua argumentação, Ciro se refere à imprensa na sociedade capitalista como sendo uma “instituição-suporte”; pelo que parece, querendo significar com isso que se pode enquadrá-la como um elemento superestrutural do sistema capitalista. Se foi esse o intuito do autor, seria conveniente que deixasse claro o sentido em que a imprensa pode ser assim classificada; ainda mais, seria conveniente que ele determinasse com precisão como ele próprio se insere na querela que se armou em torno dessa problemática e mesmo da expressão superestrutura no interior da tradição marxista, de que se pode ter uma noção através das seguintes palavras de Ellen Wood:

A metáfora base/superestrutura sempre gerou mais problemas do que soluções. Embora o próprio Marx a tenha usado muito raramente e apenas nas formas mais aforísticas e alusivas, ela passou a suportar um peso teórico muito superior à sua limitada capacidade. (WOOD, 2003, p.51)

Indo adiante, a mesma autora oferece mais detalhes:

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Em particular, tendia-se a ver a esfera econômica mais ou menos como sinônimo para as forças técnicas de produção, operando de acordo com leis naturais intrínsecas ao progresso tecnológico, e assim a história se tornou um processo mais ou menos mecânico de desenvolvimento tecnológico. (WOOD, 2003, p.51)

Tratando da mesma problemática, tal como aparece em A Ideologia Alemã, Faria enfatiza o vínculo da produção de idéias com o intercâmbio e a produção materiais: Pode-se ler neste texto de 1845-46 que “a produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real”, o que significa que “o pensar, o representar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento real”. Além disto, pode-se ler também que “os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar”, do que se pode concluir que “a verdadeira riqueza espiritual” dos indivíduos “depende da riqueza de suas relações reais”. Daí que, por meio da exposição “do processo real de produção” a partir “da produção material da vida imediata”, bem como da concepção da “forma de intercâmbio conectada a este modo de produção e por ele engendrada”, explica-se em A Ideologia Alemã “o conjunto dos diversos produtos teóricos e formas da consciência”, “o que permite assim, naturalmente, expor a coisa em sua totalidade (e também, por isso mesmo, examinar a ação recíproca entre estes diferentes aspectos)”. (FARIA, 2003, p.10)

Logo em seguida, o autor complementa sua argumentação negando a referida idéia de uma base econômica dotada de uma lógica própria e mecânica, sobre a qual se erigiria uma superestrutura com mero reflexo passivo, que viria apenas a confirmá-la, a dar-lhe legitimidade, sem no entanto exercer sobre ela qualquer influência efetiva. Nas palavras do autor:

Com esta última afirmação transcrita acima, deixada entre parênteses pelos próprios autores, abre-se caminho para descartar a idéia de que, para Marx, a superestrutura ideal é mecanicamente determinada pela infra-estrutura material. A impertinência desta interpretação precipitada se evidencia pelo fato de que, para transformar objetivamente a natureza imediata em um ambiente próprio ao homem, é necessária a participação efetiva da atividade ideal, em seus aspectos cognitivo e proponente – do que se conclui que o pensamento comparece tanto na mais rudimentar quanto na mais complexa interatividade material de produção, não importando os vários graus de abstração e aparente independência que possa atingir em cada uma delas. (FARIA, 2003, p.10)

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E, por fim, complementa, lançando mão dos aforismos críticos redigidos por Marx contra o também filósofo alemão Ludwig Feuerbach:

A este respeito, é particularmente esclarecedora a segunda das Teses ad Feuerbach, de 1846: “A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento”. Disto se pode inferir que os planos material e ideal são âmbitos inseparáveis da atividade humana que se condicionam mutuamente, não sendo possível uma determinação mecânica de um sobre o outro – embora o âmbito material prepondere nesta relação, dado que são os indivíduos concretos, que interagem sob condições materiais efetivas (naturais ou sócio-históricas), os seres pensantes. (FARIA, 2003, p.10)

De qualquer modo, embora não deixe clara a sua posição em relação à referida problemática da relação entre base, ou infra-estrutura, e superestrutura, Marcondes nos apresenta a comunicação como um elemento que não só reforça como é essencial à manutenção do sistema vigente. É com base nessa avaliação que ele lança a afirmativa que um eventual leitor seria levado a crer consistir na tese fundamental de sua obra:

[...] seria difícil pensar o capitalismo sem imprensa (que satisfaz tanto a necessidade de difusão pública e pseudo-social de alguns monopolistas de classe, que delas se utilizam para “representar” a voz social, como a necessidade ideológica – portanto, falsa – de “multiplicidade de opiniões”, quando, de fato, as únicas opiniões diversificadas que têm livre acesso aos grandes monopólios de comunicação são as dos próprios membros dos poderes a ela associados e dos que em torno deles circulam), da mesma forma que seria impossível pensar uma imprensa sem capitalismo (MARCONDES FILHO, 1989, p.12).

O autor explica por que “seria difícil pensar o capitalismo sem imprensa”, mas apenas postula que “seria impossível pensar uma imprensa sem capitalismo”. Estabelece, portanto, uma relação de interdependência entre a imprensa e o capitalismo, mas não nos dá elementos suficientes para entender o modo como essa relação se estabelece. conceituando o elemento central do jornalismo: a notícia.

Sem dar mais detalhes, prossegue

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1.2 Conceito de notícia

Baseando-se em Umberto Eco, Marcondes Filho reitera a idéia de que a produção da notícia é amparada pelo “privilégio do anormal”. Ciro vai além e diz acreditar que a notícia tem uma anormalidade específica que está ligada às correntes políticas; mas, ainda mais uma vez, Ciro não especifica de qual corrente está falando, tornando possível pensar que até as correntes políticas revolucionárias podem servir-se do jornalismo. Dizendo que “o extraordinário, na imprensa séria, só vira notícia quando pode ser utilizado como arma no combate ideológico” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 13), ele exemplifica falando que:

Uma embriaguês qualquer não é notícia; ela o será se mexer com personagens que desagradam essas correntes ou que representam poderes que o jornal pretende combater. O jornal, assim, arranja, acomoda o extraordinário na sua argumentação diária contra setores ou grupos sociais (MARCONDES FILHO, 1989, p.13).

Portanto, segundo sua argumentação, a seleção do que é informação noticiável ou não passa, antes de qualquer coisa, pelo crivo do “grau de anormalidade”, desde que tal anormalidade possa se transformar em argumento ideológico. Aqui cumpre notar que, como também o termo “ideologia”, tanto na tradição marxista como nas críticas que se fez a ela, assume os mais diversos significados, seria conveniente o autor deixar claro o sentido a ele atribuído em sua argumentação, procedimento que, no entanto, não adota.

Para ilustrar a referida polêmica, é útil fazer mais uma pequena digressão, com o recurso às palavras do filósofo húngaro István Mészáros, em sua obra O Poder da Ideologia (1996, p. 22). Contrariando a freqüente definição de ideologia como falsa consciência, e a também freqüente

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afirmação de que é com esse sentido que o termo aparece na obra de Marx, Mészáros tenta precisar com as seguintes palavras o modo como tal expressão deve ser entendida nos textos do filósofo alemão:

Na verdade, porém, a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal, é insuperável nas sociedades de classes. Sua persistência obstinada se deve ao fato de ela se constituir objetivamente (e reconstituirse constantemente) como consciência prática das sociedades de classe, relacionada com a articulação de conjuntos de valores e estratégias rivais que visam ao controle do metabolismo social sob todos os seus principais aspectos. (MÉSZÁROS, 1996, p.22)

Precisando e desdobrando sua posição, afirma ainda Mészáros:

Assim, as ideologias conflitantes de qualquer período histórico constituem a consciência prática necessária através da qual as principais classes da sociedade se relacionam e até, de certa forma, se confrontam abertamente, articulando sua visão da ordem social correta e apropriada como um todo abrangente. (MÉSZÁROS, 1996, p.23)

Enfatizando o caráter prático das formas ideológicas e, com isso, fornecendo ainda mais subsídios para a compreensão da relação entre infra-estrutura e superestrutura tratada acima, o filósofo sustenta que:

[...] as várias formas ideológicas de consciência social acarretam (mesmo se em graus variáveis, direta ou indiretamente) diversas implicações práticas de longo alcance em todas as suas variedades, na arte e na literatura, bem como na filosofia e na teoria social, independentemente de estarem vinculadas a posições sociopolíticas progressistas ou conservadoras. (MÉSZÁROS, 1996, p.23)

Já algumas páginas antes, preparando-se para apresentar a “ideologia dominante do sistema social estabelecido” como algo que “se afirma violentamente em todos os níveis, do mais grosseiro ao

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mais refinado” (1996, p.15), o autor havia caracterizado tal ideologia dominante com as seguintes palavras: [...] em nossa cultura liberal-conservadora o sistema ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona de maneira a apresentar suas próprias regras de seletividade, tendenciosidade, discriminação e até distorção sistemática como “normalidade”, “objetividade” e “imparcialidade científica” (MÉSZÁROS, 1996, p.13)

Tendo sido evidenciada a relevância de se determinar com precisão o sentido em que se utiliza o termo “ideologia”, bem como as expressões a ele relacionadas, retoma-se o fio da argumentação de Marcondes Filho.

Para este autor, a informação selecionada só passa a ser notícia quando se torna uma mercadoria e, para isso, ela deve passar por um processo de “generalização, padronização, simplificação e negação do subjetivismo” (MARCONDES FILHO, 1985, p. 13).

Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos estéticos, emocionais, e sensacionais; para isso a informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas [...]. Além do mais, ela é um meio de manipulação ideológica de grupos de poder social e uma forma de poder político. Ela pertence, portanto, ao jogo de forças da sociedade e só é compreensível por meio de sua lógica (MARCONDES FILHO, 1989, p. 13).

O autor afirma ser ingenuidade acreditar na possibilidade de “desvincular a notícia dos confrontos de interesses e de poderes de grupos dominantes na sociedade”, bem como aceitar “que haja qualquer possibilidade de se realizar um jornalismo objetivo” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 13). Apesar de Ciro condenar como “ingênua” a crença na possibilidade de se praticar um “jornalismo objetivo”, não deixa claro o que entende por objetividade, não conceitua o termo.

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Mesmo considerando a objetividade uma característica inalcançável, já que, para ele, a possibilidade de se obter a verdade é falsa, Marcondes Filho acredita que existam diferentes graus de subjetividade e que certos recortes se aproximam mais da factualidade do que outros. Além disso, para o autor, menos subjetivo será o jornalista que, ao buscar a informação noticiosa, assuma a impossibilidade da objetividade. Assim, antes de qualquer coisa, para obter um recorte da realidade mais sensato, é necessário quebrar o mito da existência da verdade. Com essa argumentação relativista, Ciro nega, de antemão, a legitimidade de sua própria crítica que virá nas páginas adiante, e em que ele assume a possibilidade de se conhecerem os fatos, recaindo então no “mito da verdade”.

Marcondes Filho fala também da “dialética da atemorização e da tranqüilização” que está presente num conjunto de notícias. Ele explica que a condução de um noticiário possui dois momentos alternados: ora são apresentadas as catástrofes, a miséria, a corrupção, as desgraças, deixando o receptor indignado ou angustiado, ora são veiculados avanços científicos, promessas de cura e de felicidade, de crescimento econômico, atenuando a reação da massa às notícias ruins. A imprensa sustenta essa dialética a partir da supressão das causas reais das ocorrências negativas. Ou seja, a causa inicial das catástrofes e problemas sociais, localizadas nos pilares do sistema capitalista, não é abordada. Os jornalistas procuram explicações simplistas e superficiais para justificar os acontecimentos. É ainda anunciando essa lógica que Marcondes Filho descreve outra característica que acredita estar vinculada à notícia: a capacidade de incentivar “permanentemente a passividade, a acomodação e a apatia em seus receptores” (MARCONDES FILHO, 1989, p.15).

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A política de produção de notícias tem, assim, o caráter de cultivar a passividade. O tratamento que ela dá aos fatos [...] conduz, em qualquer caso, a despolitização do real: é a apresentação dos fatos como algo unívoco, fechado, somente positividade, sem contradições; não há a ambivalência, mas a disciplina e adaptação ao modelo; são – enquanto desmontagens do real – confirmação do esperado, formas que encobrem a dialética e qualquer penetração inesperada além do visível. É uma organização do mundo não-contraditória. O real, o contraditório, é esvaziado, e, como conseqüência, o sistema reforça-se e é inocentado. O conflito, o polêmico, o questionador que existe em cada fato desaparece (MARCONDES FILHO, 1989, p. 15-16).

Ciro, no início de sua obra, mostra acreditar na inexistência da objetividade: acredita que toda e qualquer observação do mundo é parcial. Agora, em um segundo momento, o autor começa a se referir a “fatos”, mas não se preocupa em conceituar o que esse termo significa para ele. Ele se contradiz, portanto, ao não acreditar na objetividade, mas, ao mesmo tempo, parecer acreditar na existência de fatos que só se tornam subjetivos depois que são recortados pela política de produção de notícias. O autor acredita que, a priori, esses mesmos fatos são imparciais e objetivos? A falta de concatenação de suas idéias deixa essa lacuna em aberto e provoca inúmeras dúvidas conceituais no leitor.

Prossegue introduzindo a idéia de que a imprensa repassa ao receptor apenas “um amontoado de fatos desconexos e sem nenhuma lógica interna” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 18). Ao dizer que não existe nenhuma lógica interna entre os fatos divulgados pela imprensa, o autor parece desprezar os conceitos expostos por ele durante toda a obra a respeito de uma visão dominante que envolve o jornalismo.

Para Marcondes Filho, nunca são satisfeitas as necessidades noticiosas do público e, assim, mantém-se a demanda para que continue funcionando a lógica mercadológica de compra e venda de produtos que sustenta o jornal, seus editores e anunciantes. Dessa forma a notícia aparece

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como “pura prestação de serviço”. É, portanto, em primeira instância, mercadoria absoluta. O autor se esquece, porém, de que as notícias são informações sobre os fatos e estes nunca param de ocorrer. Seria absurdo, então, o leitor, com o jornal de um dia, satisfazer sua necessidade de ler jornais ou um jornal específico.

Ciro conclui que o objetivo primeiro da produção de notícias é a maximização do lucro da empresa jornalística, o que não elimina sua característica de transmissão ideológica. Apesar de objetivo secundário da produção jornalística, a veiculação da ideologia nos meios de comunicação é também necessária para reificar continuamente o sistema e manter os leitores dentro da lógica capitalista.

1.3 O caráter de mercadoria da informação

1.3.1 O saber tradicional

Ciro Marcondes Filho discorre a respeito das atribuições que eram dadas à informação possuída pelos intelectuais do passado, pelo clero, pelos escribas, entre outros. Em sistemas sociais que antecederam o capitalismo, eles detinham grande quantidade de informação. Afirma que o saber estava e ainda está, por meio dos intelectuais atuais, intimamente relacionado com o poder, ou seja, acredita que os possuidores de informação são também detentores de poder. Ele estabelece, no entanto, diferenças significativas entre esse tipo de informação e a informação jornalística.

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Ao passo que no primeiro caso “o saber é negociado e serve como moeda para a ascensão na escala hierárquica da sociedade” (MARCONDES FILHO, 1989, p.24), bem como é secreto, velado e contido, a informação jornalística é simplesmente uma mercadoria cuja utilização se dá justamente para que se tornem públicos os fatos.

Mesmo que os jornais desvendem segredos militares ou escândalos públicos, esse desvendar desnuda a informação secreta e suprime-lhe o poder, na medida em que o fato é devassado. A publicidade do fato subtrai o conteúdo de poder da informação: denunciar um escândalo público vende o jornal, mas não lhe transfere o poder. Nesse caso, o poder associado ao controle da informação esvai-se pela perda do caráter fechado, acessível somente a iniciados da informação não-jornalística (MARCONDES FILHO, 1989, p. 25).

Aí reside, portanto, a diferença fundamental entre a informação como forma de conhecimento e a informação jornalística. Enquanto na primeira o poder aumenta quanto mais secreta for a informação, na segunda o que interessa é justamente a publicidade dos fatos.

1.3.2 Valor de uso e valor de troca

Marcondes Filho acredita que a notícia é uma mercadoria como outra qualquer dentro do sistema capitalista e, portanto, “encerra em si a dupla dimensão da mercadoria: o valor de uso e o valor de troca” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 25).

O valor de uso é percebido no momento em que o receptor se sente atraído pela informação jornalística e acredita que ela possa satisfazer algumas de suas necessidades pessoais. No entanto, para que a informação consiga despertar o interesse do receptor é necessário que se realize um

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processo de transformação da “matéria-prima informação” na “mercadoria notícia”. Pode-se, então, após concluído tal processo, colocar a informação à venda. É justamente a venda efetiva da mercadoria que caracteriza a outra dimensão mercadológica da notícia: seu valor de troca. “Temos, assim, em primeiro lugar, que no capitalismo o valor de troca realiza-se com a obtenção do dinheiro: o valor de uso da mercadoria notícia é, para o editor – em última instância – somente meio para realização do seu valor de troca” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 26).

No trecho acima, o autor se embasa em Marx para sustentar sua argumentação, mas, se analisada à luz dos pensamentos marxistas, a notícia não deve ser encarada como produto, mercadoria. O produto seria o jornal, pois é ele que demanda trabalho e força produtiva, a notícia é um elemento de composição do jornal, e é este que é vendido e produzido.

Ciro afirma mais adiante que o valor de troca do produto notícia deve ser maximizado na mesma medida em que o custo deve ser diminuído. Para isso seu valor de uso

deve ser tão escasso que a procura por novas mercadorias permaneça constante e, se possível, até mesmo aumente. Isso significa [...] que as necessidades de informação devem ou ser satisfeitas só aparentemente ou só a curto prazo, para que a demanda se mantenha. [...] Quanto menor for o valor de uso real para o leitor, tanto mais se faz necessária a produção de uma “manifestação de uso” – aparência do valor de uso (COLETIVO DE AUTORES... apud MARCONDES FILHO, 1989, p.29).

O autor tentar elucidar um pouco mais o significado da expressão “aparência de valor de uso”, para ele um aspecto “totalmente esquecido” por Marx, por meio de um alerta para a dimensão que a mercadoria adquire ao tentar atingir seu fim mais importante, a de maximização dos lucros:

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Com efeito, a própria produção da notícia significa a adaptação do fato social a alguma coisa mais rentável. Ele não só é embelezado, limpado, pintado de novo, como ocorre com outras mercadorias na prateleira para atrair a atenção do comprador; o fato social aqui é também acirrado, exagerado, forçado. De qualquer maneira, mudado para vender. [...] Semelhante às outras mercadorias, também no jornalismo o valor de uso não se vende enquanto tal, mas como “aparência do valor de uso” (MARCONDES FILHO, 1989, p. 29).

Ao afirmar que Marx esquece de abordar o conceito de “aparência de valor de uso”, Ciro comete um erro primário. No primeiro parágrafo de sua obra mais conhecida, O Capital, Karl Marx explica o significado de mercadoria e mostra que seu conceito envolve também as demandas da fantasia:

“A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em “imensa acumulação de mercadorias”, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza. (...) A mercadoria é, antes demais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção” (MARX, 1890, p. 41-42).

Mais adiante, Marcondes Filho conclui seu raciocínio acerca do jornalismo estabelecendo, mais uma vez, a relação do jornal com o mercado:

Jornalismo significa, portanto, informação (como notícia) com tênue vinculação com seu produtor ou emissor: objeto de compra e venda em um mercado em que não se sabe como, por que, de onde ou para onde vai. Mercadoria pura e simples., matéria solta e universal, como as demais mercadorias, fato social sem história e com reduzida ação no presente, reduzida inter-relação entre criador e receptor, reduzidas proposta e colaboração para uma transformação individual ou coletiva: alimento simbólico para a mente. Na produção da notícia, no tratamento dos acontecimentos, o que se vende é a aparência do valor de uso. A manchete, o destaque, a atratividade são o chamariz da mercadoria jornal. [...] Jornalismo [...] trabalha o fato e constrói, a partir dele, um outro mundo (MARCONDES FILHO, 1989, p. 31-32).

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O autor discorre ainda sobre a importância da publicidade na manutenção de um jornal. A mercadoria produzida por uma empresa jornalística é destinada ao público em geral, bem como serve aos interesses dos anunciantes. É necessário que os jornalistas se preocupem com a vendagem do jornal também para manter os anunciantes interessados no veículo.

A parte redacional, portanto, deve ser afinada conteudisticamente de acordo com o espaço publicitário; o público não deve diminuir, pois este é o principal argumento de vendas do editor aos anunciantes, e é ele que é oferecido como potencial de compra (MARCONDES FILHO, 1989, p. 26).

Nesse sentido, a informação passa a ser confundida com a publicidade e esta acaba por adquirir um estatuto de verdade sendo passada ao receptor como “dado neutro”, o que aumenta sua credibilidade, bem como seu poder de penetração.

1.3.3 Imprensa e Capitalismo

Marcondes Filho cita Geyhofer para dizer que “o caráter de mercadoria da informação encontrase na sua natureza e não somente no seu aproveitamento comercial” (p.32) e, usando tal premissa, diz ser possível chegar à constatação da impossibilidade de um jornalismo libertado das imposições capitalistas. Para ele, a suposta natureza mercantil da informação constitui causa suficiente para desacreditar em uma prática jornalística reconfigurada.

Pretendendo reforçar os motivos de desacreditar na viabilidade do jornalismo, retoma Geyhofer para falar de manipulação da linguagem:

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Manipula-se claramente em qualquer forma de redigir, de formular, de escolher e de acentuar as notícias. [...] Dentro da língua não há separação entre a informação objetiva e a tomada de posição subjetiva; até o informar mais cuidadoso muda o conteúdo da emissão (GEYHOFER apud MARCONDES FILHO, 1989, p.33).

Assim, diz ser utópica a possibilidade “efetiva” de um jornalismo “não-manipulativo”, mesmo que se rompa com as “determinações mercadológicas da produção de notícias” (p.33). Cita, então, os jornais nos países socialistas e atribui a eles um outro tipo de manipulação que está ligada, obviamente, à outra ideologia. O autor acredita que o jornalismo seja intrinsecamente capitalista e ao mesmo tempo procura sustentar sua argumentação com o exemplo do jornalismo praticado em países socialistas: essa surge como mais uma insuficiência do texto de Marcondes Filho.

Além disso, o autor confunde dois problemas distintos do jornalismo: as dificuldades relativas à fidedignidade de um recorte da realidade, lembrados por Geyrofer, e a suposta edição deliberada dos fatos: as duas coisas são chamadas de manipulação. Porém, narrar um fato, seja em um jornal ou não, é algo distinto de “reproduzir singelamente o que ocorreu”, mas, embora todo relato seja parcial, ele não é necessariamente uma mutilação deliberada dos fatos com vistas a defender interesses inconfessáveis.

Nesse ponto, Marcondes Filho deixa transparecer um dos maiores problemas de sua obra: ele quer descartar o jornalismo simplesmente (até mesmo admitindo o rompimento com o capital) pela impossibilidade da reprodução fiel da realidade. Esquece, no entanto, que se abandonamos a prática jornalística por esse motivo, teríamos que deixar de lado a arte, a ciência, o cinema, a

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filosofia e todas as outras manifestações simbólicas que praticam recortes e codificam o mundo, aquelas que utilizam a linguagem como instrumento.

1.4 As formas de encobrimento e de falseamento

Marcondes Filho fala também das "formas de encobrimento e de falseamento" e diz que o tratamento pelo qual a notícia passa antes de sua veiculação, é o principal meio de se "operar a manipulação jornalística". É no processo de produção da notícia que ele diz se localizar o encobrimento das reais intenções dos jornais. Mesmo acreditando em manipulação, o autor diz que "o falseamento não se dá, via de regra, de forma intencional; ao contrário, normalmente ele faz parte da própria forma de jornalista estruturar seu mundo, de discernir os fatos (inconscientemente) com uma visão dominante" (MARCONDES FILHO, 1989, p.39).

Ciro ainda tipifica as formas de falseamento ou encobrimento das notícias:

Caracterizo basicamente três formas de falseamento ou encobrimento das notícias como pensamento censurado, formas essas que concentram o mais importante do que se conhece sobre a manipulação noticiosa. São elas: a visão fragmentada e personalizada dos processo sociais, o uso da técnica e da lingüística e a sonegação e informações "indesejáveis" (MARCONDES FILHO, 1989, p.40).

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1.4.1 O jogo com o texto noticioso

1.4.1.1 A fragmentação da realidade

O autor coloca a produção fragmentada de notícias como uma estratégia mercadológica. Como a notícia é uma apreensão superficial da factualidade, ela não faz um apanhado do contexto social que a gerou e é apresentada como um fato desconexo cujas reais causas sociais são negadas.

A produção fragmentada de notícias, assim, é uma técnica também mercadológica. Opera-se, nesse caso, a desvinculação da notícia de seu fundo histórico-social, e , como um dado solto, independente, ela é colocada no mercado de informação; são destacados aspectos determinados (o sensacional, a aparência do valor de uso) e outros permanecem em segundo plano (MARCONDES FILHO, 1989, p.41).

Para Marcondes Filho, no momento do recorte, da transformação de um fato em uma narrativa, a imprensa destaca informações que sejam relevantes para o seu sucesso de vendas e cria uma “embalagem” que atrai o leitor.

Mais uma vez, Marcondes Filho inverte a lógica do processo de produção de notícias, comete uma simplificação grosseira e confunde manipulação com dificuldades de codificação de um fato. É digno de nota o fato de que Ciro não observe aqui o caráter também ideológico da descontextualização histórico-social da notícia. A única preocupação que está por trás da produção do jornal, para ele, parece ser o sucesso das vendas.

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Não vale aqui o argumento de que, neste momento de seu texto, Ciro esteja analisando a questão no tocante aos interesses econômicos imediatos do capitalista do ramo de jornais e não no tocante aos interesses de classe dos capitalistas. Por que Ciro não procede assim no texto, isto é, ele não trata cada questão a seu tempo. Ele não as separa, a ponto de confundi-las ou passar desapercebidamente de uma para outra.

1.4.1.2 A personificação dos processos sociais

A imprensa cria um processo de personalização dos fatos sociais para que as questões públicas se aproximem do receptor. Fazendo referência ao prefácio de Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, obra de Karl Marx, Marcondes alerta para o fato de que a burguesia concebe a história como se ela fosse realizada por indivíduos e não pelas classes. Acredita ele que o jornalismo tem mais essa evidência de seu comprometimento com a burguesia: se fala do presidente, do deputado, do corrupto, do ladrão, mas não do sentido de suas atitudes, não se fala no que os configuraria como pertencentes e representantes de uma classe ou outra. Abafam a luta de classes. Os atos simbólicos de atear fogo às vestes, os seqüestros, os espetaculares assaltos e reuniões de ministros de países monopolistas de petróleo não são todas formas de roubar o acesso à opinião pública, vedado intencionalmente a certos “movimentos” sociais? Nos seqüestros de personalidades diplomáticas, de agentes secretos importantes ou de “algozes” do poder político opressor, uma das primeiras reivindicações dos seqüestradores é a divulgação de seus manifestos. Isso torna claro o caráter do terrorismo de funcionar como meio de divulgação noticiosa forçada, como imposição da difusão de notícias (MARCONDES FILHO, 1989, p.45).

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Isso evidencia que a produção de notícia pode servir a outros fins que não a mera reprodução do sistema. Mais uma vez, Ciro traz à luz elementos que refutam sua tese. É por sua subordinação ao sistema vigente que o jornalista assimila (ainda que não de modo mecânico, absoluto) a sua lógica.

A personalização da notícia conduz, assim, tanto ao endeusamento quanto à execração individualizada dos agentes sociais, mantendo seus verdadeiros suportes, as classes e agrupamentos estruturais maiores, totalmente distantes dos fatos e de suas implicações. (MARCONDES FILHO, 1989, p.46).

Desta forma, Marcondes Filho atribui ao jornalismo o papel de desvincular causa e conseqüência dos fatos sociais, tratando os fatos como se fossem alheios às tensões de classe.

1.4.2 O uso da linguagem e da técnica

Técnicas redacionais específicas das redações jornalísticas são acusadas por Marcondes Filho como outra forma eficaz de manipulação noticiosa.

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O uso de formas lingüísticas, ou seja, o uso de tom oficial, de formulações anônimas tipo “fontes bem-informadas”, “porta-voz oficial”, da forma passiva neutralizante, do tempo condicional operam no sentido de favorecer um comportamento receptivo. A transmissão noticiosa que usa tais figuras de linguagem tenta passar imagens neutras, oficiais, sérias e indiscutíveis com o mesmo tom dos comunicados do governo que, se não correspondem à verdade, pelo menos possuem um tom direto, restritivo, imperativo. [...] Da mesma forma, a utilização de termos técnicos desconhecidos da maior parte dos leitores e, principalmente, dos telespectadores – assim como o uso de gráficos e tabelas, pelos quais as informações são, na verdade, quase encobertas pela própria mensagem – dificultam seu entendimento e são facilmente manipuladoras (MARCONDES FILHO, 1989, p.48).

Ele encara o jornal como empresa, instituição e, enquanto tal, produtor de padrões e normas a serem seguidas por seus funcionários. As notícias possuem, portanto, um mesmo molde de produção.

Ciro fala agora de verdade, o que antes considerava um mito. E mais uma vez simplifica o processo: reduz a atividade jornalística ao mero objetivo de vender mais, esquecendo-se, novamente, de tratas das questões ideológicas.

1.4.3 A política do destaque e da supressão de informações

Para Marcondes Filho, a transformação da realidade pela manipulação de informações não é uma característica específica da prática jornalística. Não só o jornalismo, mas também toda a parte da sociedade interessada na manutenção do sistema dominante, utiliza de inúmeras maneiras de distorção dos fatos de acordo com sua conveniência. No entanto, existem formas de distorção específicas das redações dos jornais. A pauta é um importante exemplo, já que por meio dela é

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feito um recorte muito específico da realidade, definido conscientemente segundo interesses particulares específicos. Além disso,

O editor decide o enfoque da matéria, o tamanho que esta deve ter (em linhas), o tamanho e os tipos do título e a colocação na página. Em suma, na mão do editor está a definição política de como o fato deverá repercutir na sociedade, de como suprimir naturalmente a divulgação de ocorrências, como se elas simplesmente não tivessem realmente existido (MARCONDES FILHO, 1989, p.50).

O jornal pode “montar” a realidade que deseja ser passada. A escolha de qual informação vai ser destacada ou suprimida no momento da veiculação é capaz de modificar a aparência dos fatos e, portanto, a assimilação dos mesmos pelos leitores.

1.5 O telejornalismo

Marcondes Filho faz uma abordagem breve de radiojornalismo e telejornalismo. Para ele, essas outras duas formas de transmissão jornalística obedecem à mesma lógica de compra e venda da mercadoria notícia, mas carregam características específicas devido ao meio.

O radiojornalismo e o telejornalismo, embora sejam atividades jornalísticas que obedecem às regras gerais de produção de notícia e de distorção dos fatos, têm, além disso, aspectos adicionais que os tornam, enquanto atividade noticiosa, formas que reforçam características, como superficialização da transmissão dos fatos, reforço ao esquecimento e recepção acrítica (MARCONDES FILHO, 1989, p.51).

O autor observa que a televisão tem como recurso específico a utilização das imagens e, por isso, consegue difundir as informações com maior grau de credibilidade. O telespectador é capaz de

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“testemunhar com seus próprios olhos” o fato divulgado e, assim, descarta a possibilidade de manipulação da informação.

No jornalismo impresso o leitor pode comprar o jornal e tomar conhecimento da notícia em um tempo por ele mesmo pré-determinado. Já no telejornalismo, o telespectador deve se adaptar ao horário da programação. Isso faz com que seja necessário investir ainda mais na sedução do receptor, e o telejornal o faz a partir da produção de notícias ainda mais superficiais; os leads do jornal impresso se transformam em notícias inteiras na transmissão televisiva. A espetacularização dos fatos é, também, mais intensificada, e o telejornal adota um caráter de “shows da vida”.

Telejornais como “shows da vida” extraem dos fatos toda sua explosividade e os transformam em variedades e diversão. Assim, os meios de comunicação, principalmente os eletrônicos, ao relatarem uma ocorrência ou um movimento social reivindicatório, um fato, enfim, atribuem-lhe status de espetáculo, de show propagandístico, do grande circo de atrações que é vendido ao público como vida social (MARCONDES FILHO, 1989, p.51).

Ciro assume, ainda, a possibilidade de os telejornais mostrarem “fatos anticapitalistas” durante sua programação. Explica que na televisão é possível atender aos interesses dos capitalistas envolvidos no processo de produção da notícia tanto a longo como a curto prazo.

Todas as notícias, mesmo que sejam anticapitalistas, funcionam para vender e garantir o lucro, na lógica dos interesses a curto prazo. Isso porque o capitalista, além de saber que a notícia isolada (separada, portanto, de suas ligações mistificadoras apontadas antes: cenários, recursos técnicos) tem pouco efeito politizador, sabe que a longo prazo se está cuidando, na programação televisiva em particular e em toda a política cultural em geral, da preservação do mundo e das relações de produção e de propriedade presentes (MARCONDES FILHO, 1989, p.54).

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Portanto, para geração de lucro a curto prazo, bem como para ganhar a concorrência com os outros canais, os produtores admitem a possibilidade de divulgação de ocorrências que vão contra o sistema.

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2 A HISTÓRIA DA IMPRENSA: DE VIABILIZADORA DO FLUXO DE MERCADORIAS À GRANDE EMPRESA CAPITALISTA

A falta de convicção dos jornalistas, a prostituição de suas experiências e de suas convicções pessoais só é compreensível como ponto culminante de reificação capitalista. GEORGE LUKÁCS

2.1 A notícia e o trânsito de mercadorias

Ciro Marcondes Filho, no terceiro capítulo do livro analisado, fala da história da imprensa desde a Revolução Burguesa até a transformação da atividade jornalística em uma grande empresa capitalista.

Ele vê a gênese do fenômeno jornalístico como um processo intimamente relacionado ao desenvolvimento da economia de mercado e de suas estruturas morais. E diz ser o motivo do nascimento do jornalismo, a necessidade de acelerar o fluxo de mercadorias:

O jornal surge como o instrumento de que o capitalismo financeiro e comercial precisava para fazer que as mercadorias fluíssem mais rapidamente e as informações sobre exportações, importações e movimento do capital chegassem mais depressa e diretamente aos componentes do circuito comercial (MARCONDES FILHO, 1989, p.56).

Então, interessando a quem quer que fosse, o jornal surge para divulgar fatos. Assim, aquilo que segundo a tese fundamental do Ciro não era possível, isto é, o jornalismo como divulgação de fatos, não só era possível, como também real desde o nascimento do próprio jornalismo -- logo na

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sua gênese, anteriormente a seu uso para fins restritos aos interesses mais ou menos imediatos das classes dominantes. Vai por terra o argumento, em si débil, de que a natureza intrinsecamente “burguesa” do jornalismo se deve ao fato de esta prática ter nascido com a tarefa de contribuir com a reprodução do sistema. Aquele argumento que nos levaria ao absurdo de condenar tudo de positivo que o sistema capitalista nos permitiu desenvolver, por condenarmos o fato de tudo isso ter surgido com a finalidade de reproduzir o próprio sistema. A produção industrial, por exemplo, diminui o tempo de trabalho humano, e nasceu em meio ao capitalismo, mas poderia ser aproveitada em outro sistema econômico.

O autor cita que a impressão do primeiro jornal é realizada aproximadamente um século depois do surgimento dos tipos móveis, na época mercantilista, para atender alguns núcleos de poder político que se esforçavam para fechar o círculo informativo sobre os fatos da vida econômica e política. Mas esse jornalismo não era diário, esse só começa a aparecer no século XVII e iniciava na formação de um público, composto basicamente de representantes da burguesia, cujo interesse era a situação macroeconômica. O jornal, nesse momento, era uma iniciativa da burguesia e não da nobreza feudal. Por esse motivo, Marcondes ressalta a importância do jornalismo no período revolucionário: O jornal não era uma iniciativa da classe dominante, a nobreza feudal, na época em que apareceu. Surgiu e teve a lógica do seu desenvolvimento associada à própria expansão da burguesia como classe. Assim, antes da burguesia ocupar os postos decisivos de poder econômico e político, enquanto arquitetava as formas de galgar os patamares do poder, seu jornal era artesanal, ainda que fundidor de interesses econômicos em torno do meio de comunicação; posteriormente, nas lutas por sua afirmação política na sociedade, ou seja, na batalha pela conquista da chamada hegemonia do pensamento social, ela encorajava o “jornalismo literário”; por fim, uma vez estabelecido seu poder na sociedade vai-se desenvolvendo lentamente a imprensa nos moldes capitalistas, que consagra seu poder real e a liquidação de todas as oposições políticas, contra as quais ela lutou várias décadas para se afirmar (MARCONDES FILHO, 1989, p.57).

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Seria recomendável o autor situar sua versão da história, pois dá a entender que houve uma transição uniforme do feudalismo para o capitalismo, o que não é verdade. Mais importante: o autor não leva em conta aqui a oposição que surge contra a burguesia já dominante, contra a qual a burguesia não lutou para se afirmar, mas contra a qual tem que lutar para se manter. Essa oposição, já antiga, fazia uso intenso do jornalismo como instrumento de luta.

É inegável que o autor atribua ao jornalismo o papel de, no mínimo, acelerador da revolução e consolidação da classe burguesa. No entanto, Marcondes Filho alerta que seu pensamento não pretende dizer que existe algum tipo de relação de determinação entre o desenvolvimento do jornalismo e o desenvolvimento econômico. Diz que “uma coisa não resulta obrigatoriamente na outra; busca-se somente encontrar uma homologia entre os diferentes desenvolvimentos”. Assim, deixa clara a intimidade do jornalismo com o capitalismo, colocando os dois como “irmãos”, filhos de um mesmo momento, e não como pai e filho / filho e pai. O jornalismo é visto como um forte instrumento ideológico, como catalisador do processo histórico. Mas não é visto como um instrumento que não foi arquitetado estrategicamente:

[...} não se procura concluir [...] que a burguesia tivesse orientado o desenvolvimento e as transformações do jornalismo segundo suas exigências políticas e sociais. Isso não aconteceu nem com o jornalismo nem com os demais meios de comunicação. Pelo contrário: as descobertas de novos meios de comunicação, na medida em que puderam satisfazer os interesses da burguesia, receberam maciço investimento desta que, com fins lucrativos, passava a ver essa descoberta como fonte de ganhos (MARCONDES FILHO, 1989, p.56-57).

Assim, procura deixar claro que a burguesia não projetava seus meios, ela simplesmente se apropriava das descobertas com incentivos financeiros e as faziam suas, as faziam meio de ratificação ideológica.

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Não é que o jornalismo e o capitalismo compartilhem uma mesma lógica. O capitalismo imprime (embora não de modo mecânico nem de modo absoluto) sua lógica à produção social de riqueza – o que inclui o jornalismo, que é produção de riqueza (de valores de uso). O processo de produção social de riqueza passa a funcionar como processo de reprodução do sistema social. Mais uma vez, seguindo o “argumento” do autor, deveríamos concluir que a produção industrial, por exemplo, é homóloga ao capitalismo. Além disso: como foi dito, o capitalismo é um sistema social, de modo que a comparação do mesmo com uma forma de ação produtiva concreta (o jornalismo), necessariamente condicionada pelo sistema de que faz parte, é descabida. Dizer que estes dois objetos comungam uma determinada lógica é dar mostras de não ter compreendido nem um nem outro, muito menos as relações entre ambos.

2.2 A imprensa artesanal e a político-libertária

Ciro lembra de Enzensberger para comprovar a teoria de que a imprensa é, sem sombra de dúvidas, “filha da época burguesa”, como diria o autor citado.

Fala, ainda se referindo a

Enzensberger, que todos os grandes jornais, como o The Times e alguns da Europa, foram fundados entre 1780 e 1880. Desta forma, Ciro procura demonstrar o momento exato de eclosão da imprensa, quando ela se consolida, quando as notícias deixam de estar completamente vinculadas ao trânsito de mercadorias e se tornam, elas mesmas, mercadorias.

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O trânsito de notícias desenvolve-se não somente no contexto de trânsito de mercadorias; as próprias notícias transformam-se em elaboração noticiosa comercial está sujeita, assim, às mesmas leis do surgimento ela deve sua própria existência (HABERMAS apud FILHO, 1989, p.58).

necessidades de mercadorias. A mercado, a cujo MARCONDES

Essas notícias que se transformam em mercadorias são vendidas por quem? Pelo jornalista ao dono do jornal? Vendidas pelo dono do jornal? Se for o primeiro caso, trata-se de troca simples de mercadoria, algo que já aconteceu muito antes do capitalismo. Se se trata do segundo, ocorre o seguinte: o dono do jornal vende as notícias já incorporadas no jornal. Neste caso, pois, não é a notícia que é mercadoria, mas o próprio jornal. E este não é produto só do jornalista, mas de todos os que participam de sua confecção. Tanto é que, nos custos de produção arcados pelo dono do jornal, o gasto com a compra de notícias (ou da capacidade de produzi-las) é computado ao lado do gasto na compra de tudo o mais que está envolvido na confecção do jornal.

Condicionando a existência da notícia ao nascimento do mercado com as palavras de Habermas, Ciro vai além e considera que mesmo que passos a frente dos antigos meios de comunicação em larga escala, como folhas volantes, panfletos e correspondências em massa, a imprensa burguesa teve sua fase artesanal e é justamente nessa fase que se pode observar traços dos motivos de sua gênese. É, segundo o autor, exatamente nesse momento que começa a se perceber a notícia como algo com valor de troca. A imprensa, nesse momento, “não é forte instrumento na organização e orientação da vida econômica; antes, trata-se de um ofício individualizado, uma atividade modesta em que há uma discreta maximização dos lucros e um interesse puramente comercial” (Habermas apud Marcondes Filho, 1989, p.59). Mas, algo tem valor de troca se é produzido para a troca e, de fato, supre a necessidade de outro, que por esse algo trocaria uma parcela de seu trabalho, realizada ou não em um produto, ou uma quantia de dinheiro. E isso não é exclusivo do

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sistema capitalista, embora seja apenas em seu bojo (e não em qualquer outro sistema que o precedeu) que ocorra a predominância da forma mercadoria da riqueza.

O que caracteriza essa chamada primeira fase do jornalismo é, assim, a produção tipográfica dos avisos que antes eram manuscritos ou transmitidos verbalmente por meio de mensageiros a reis ou grandes comerciantes (COSTELLA, 1978, p. 76 et seqs). A função da imprensa nesse contexto é a de ser somente um intermediário em um processo no qual o decisivo são os dois outros pólos: o homem que vê, que toma conhecimento, e aquele a quem interesse esse conhecer. [...] A partir do estabelecimento dessa função, a informação passa a ser algo negociado. Essa diferença fundamental passa a ser função da imprensa: tornar comercializável um bem abstrato que no passado era sinônimo de poder em si (MARCONDES FILHO, 1989, 59).

A relação disso com o capitalismo: a venda de mercadorias, inclusive com vistas à obtenção de lucro (lucro de alienação: vender mais caro que comprou), antecede o sistema capitalista e é uma condição para o seu surgimento. O lucro característico do sistema capitalista provém da compra e utilização de força de trabalho para a produção de mais valor do que aquele nela contido. A transformação da produção e comercialização do jornal em empresa capitalista pressupõe uma diferença entre o que o proprietário paga ao total de seus funcionários e o que ele obtém acima desse valor (e acima do valor investido em geral) na venda daquilo que, conjuntamente, produzem.

Voltando ao conceito de informação controlada e informação publicável, Ciro atribui à impressa a idéia de ruptura com a “forma segregada de armazenar informações”. Diferentemente do sacerdote e do catedrático, o jornalista “descarrega” tudo o que tem.

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Para ele (o jornalista) a informação não é capital que poderá ainda render dividendos futuros, mas um bem que – como os alimentos – perece facilmente e que deve ser consumido integral e rapidamente. O jornalista simplesmente veicula a informação recebida em troca de dinheiro; os portadores das formas secularizadas de saber as detêm e negociam sua utilização. [...] A desmontagem do saber operada pelos jornalistas é predatória. Não se colocam pressupostos morais ou éticos. Tudo é vendável e passível de ser absorvido pelo público (MARCONDES FILHO, 1989, p.60).

Assim, Marcondes filho marca bem o momento durante o qual a informação alcança o estatuto claro de mercadoria. Logo depois, segundo o autor, vem a fase do jornalismo literário e político, a chamada segunda fase da imprensa, a imprensa de opinião, dos “portadores de opinião pública” (Habermas). Acontece então a institucionalização do jornalismo como atividade profissional e são criadas as redações como setor do jornal. Surgem revistas moralistas, jornais eruditos e o cotidiano dos fatos se mistura à opinião e à literatura, a imagem do jornalista se funde à imagem do escritor.

Percebe-se uma nova contradição na visão de Ciro: a atividade se profissionaliza e justo nesse momento perde, ou ao menos tem descaracterizada, sua natureza mercantil. E deixando de ter esse caráter estritamente mercantil, a atividade jornalística assume a outra função aludida pelo autor no capítulo anterior: uma espécie de instrumento ideológico.

Essa imprensa insere-se nos meios políticos europeus, nos cafés e salões burgueses e fornece material à burguesia para as suas discussões e seu entretenimento. É, portanto, um veículo interno da classe, no sentido de ser porta-voz de setores e grupos políticos e econômicos da sociedade que se debatem por melhores postos no aparelho de Estado e na sociedade civil. Poucos têm a ver com a grande imprensa de massa do século XX. Serve ainda pra satisfazer exclusivamente esses grupos de interesse (MARCONDES FILHO, 1989, p.61).

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Mas, se é interno à classe “burguesa”, como pode ser uma arma de combate ideológico. No máximo, pode servir para ratificar e reproduzir internamente à classe, seus ideais e valores. Mas não tem como propagá-los ao restante do tecido social. Se é assim, a função de “universalização” de valores particulares não tem como se cumprir. Segundo Marcondes Filho, o contexto histórico do jornalismo de opinião é marcado pela afirmação política do Estado burguês enfrentando movimentos nacionalistas, o liberalismo e o ideal socialista. A burguesia tratava de consolidar as bases da democracia num momento conturbado da história: a Revolução Industrial expôs as mazelas do sistema que se firmava e suscitou questionamentos que fomentaram a luta de classes e fez surgir movimentos trabalhistas e reivindicações e teorias anti-capitalistas.

“Consolidar as bases da democracia” talvez fosse o último interesse da “burguesia” em um momento em que o sistema social em que ela é dominante passa a mostrar com vigor as suas mazelas, pois tal consolidação daria poder político àqueles que sofrem tais mazelas e podem ter o propósito de superar o sistema em que elas ocorrem.

2.3 A imprensa de negócios

Para o autor, acontece uma segunda “revolução” no jornalismo com a inovação tecnológica:

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A maior revolução da história do jornalismo dá-se nessa fase. A inovação tecnológica transformará radicalmente os rumos e o caráter da imprensa política do século XVIII e XIX. Acompanhando a expansão industrial acelerada do início do século, a produção de bens em massa e conseqüente dilatação do mercado, a ampliação da exploração colonial e a afirmação política e econômica da nova classe dominante, a imprensa começa a transformar-se. Já é hora de se estender a “conquista tecnológica” para a produção de jornais em massa. [...] A transformação tecnológica irá exigir da empresa jornalística a capacidade financeira de auto-sustentação com pesados pagamentos periódicos, irá transformar uma atividade praticamente livre de pensar e de fazer política em uma operação que precisará vender e se autofinanciar (MARCONDES FILHO, 1989, p.63).

Aqui a “dilatação do mercado” aparece como mera conseqüência da expansão da produção de mercadorias e não um estímulo para ela. Cai-se na ilusão denunciada por Marx na economia política de que a oferta cria a demanda, com base na qual os representantes dessa ciência negam a possibilidade das crises de superprodução características do sistema capitalista.

Ciro chama a imprensa que começa a surgir nesse momento de uma “empresa capitalista” porque ela passa a ter todas as principais características de um grande negócio: necessita grande capital para investimento e funciona por meio da divisão das tarefas em etapas cumpridas por funcionários diferentes. Porém, Ciro esquece de dizer que a utilização de força de trabalho comprada para a produção de mais-valia é uma das “principais características” da empresa, evidenciando, novamente, um marxismo deturpado.

Para Ciro, o jornalismo deixa de ser uma manifestação do posicionamento político de um indivíduo e passa a ser porta-voz do proprietário do veículo. Também aqui há problemas, pois o proprietário não faz do seu jornal um instrumento apenas para expressão de suas idéias, mas também, e principalmente, de extração de mais-valia dos funcionários. Por isso, ele deve rechear seu jornal com algo em que o público tenha interesse e queira comprar. Com o alto investimento demandado para se criar uma redação e manter um periódico, “a oportunidade de criar um jornal

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vai sendo cada vez menos um resultado do movimento político e cada vez mais uma oportunidade dos que têm capital” (MARCONDES FILHO, 1989, p.64).

Ciro fala também de uma divisão da imprensa:

A partir da segunda metade do século XIX delineia-se também a divisão fundamental que ocorre dentro da imprensa e que Habermas ignorou em seu estudo sobre a formatação da esfera pública burguesa (Habermas, 1965). Trata-se da separação entre imprensa como empresa capitalista de um lado e a formatação e a consolidação da empresa partidária de outro. A imprensa puramente política (doutrinária, ideológica) dos partidos social-democratas, socialistas do século XIX caracterizou-se como o principal meio de discussão política e estratégica nos conflitos sociais do final do século. A imprensa burguesa, particularmente a partir de 1830, começara a definir-se como imprensa de negócios para o comércio de anúncios. É nessa mercantilização do jornalismo que se separam as tendências. Contudo, é fundamental que se ressalte, e essa impresa, como empresa capitalista, é a que mantém as características originais da atividade jornalística: busca da notícia, o “furo”, o caráter de atualidade, a aparência de neutralidade, em suma, o caráter “libertário e independente” (MARCONDES FILHO, 1989, p.65).

O autor relata a evidência histórica de que a imprensa pode servir a outros fins que não a acumulação de capital: essa imprensa que visa a outros fins, partidários, puramente ideológicos, não mantém as características originais da atividade jornalística. Nesse momento, Ciro faz mais uma confusão: quando dizia ser o jornalismo inviável por ter sua gênese burguesa, parecia esconder essas outras possibilidades que negam a impossibilidade de um jornalismo desvinculado do capital.

Assim, Ciro mostra acreditar que o que hoje chamamos de imprensa de esquerda, aquela preocupada em debater mais profundamente as questões políticas e que nega o jornalismo corporativista, não se enquadra muito bem como “imprensa” aos moldes do que ele acredita ser essa atividade. Mais um remendo nas confusas teias teóricas de Ciro: parte-se da premissa de que

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“todos os cisnes são brancos” e, se aparecer um de outra cor, “não é cisne”. Para ele, a idéia de imprensa estaria ligada, sobretudo, à idéia de superficialidade, de factualidade, de diário. Concepção que tem mais similaridade com a atividade periodística praticada na era da consolidação da burguesia como classe dominante.

Marcondes Filo ressalta também, que a imprensa capitalista segue em direção a um veículo de massa que procura ter o melhor aparato técnico para dar conta da preocupação de produção de uma mercadoria que mais agrade a seu público amplo. A importância da mercadoria cresce proporcionalmente ao aumento do público consumidor. Nessa passagem, novamente vem à tona o fato de que o dono do jornal vende jornais, e não notícias, já tratado anteriormente.

A notícia, como mercadoria, vai recebendo paulatinamente mais investimento para melhorar a sua aparência de valor de uso (HAUG, 1972): criam-se as manchetes, os destaques, as reportagens, trabalha-se e investe-se muito mais na capa, no logotipo, nas chamadas de primeira página. O jornal deve vender-se pela sua aparência. O que vai diferenciar um jornal dito “sensacionalista” de outro dito “sério” é somente o grau. Sensacionalismo é apenas o grau mais radical de mercantilização da informação: tudo o que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a informação interna não irá desenvolver melhor do que a manchete. Esta está carregada de apelos às carências psíquicas das pessoas e explorá-las de forma sádica, caluniadora e ridicularizadora. Assim como nos programas de TV modernos, o que se passou a vender era muito mais do que a mensagem denotada (MARCONDES FILHO, 1989, p.66-67).

Ciro chama essa terceira fase da história do jornalismo de “imprensa de negócios”. Para ele, a principal mudança que sustenta o surgimento dessa nova fase é “a inversão de importância e de preocupação quanto ao caráter de mercadoria do jornal” (MARCONDES FILHO, 1989, p.67). Nesse momento do jornalismo, que começa em 1830 e se firma em 1875, principalmente na Inglaterra, França e Estados Unidos, a manchete passa a valer mais do que o real teor da informação que pode ser encontrada no interior dos diários e as notícias dividem o espaço das páginas com anúncios publicitários. É nesse momento decisivo que são criados os grandes

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conglomerados da comunicação e a presença da publicidade se intensifica rapidamente como fator de sustentação financeira dos veículos: o dinheiro que gira em torno desse negócio se torna incalculável. Mais uma vez, trata-se da mercantilização do jornal e não da notícia. Então, a venda de espaço no jornal para a propaganda se torna prioridade e a notícia perde a centralidade no processo todo.

2.4 A concentração na imprensa

Marcondes Filho fala de novas transformações na imprensa: a intervenção do Estado, a partir dos anos de recessão, se tornou mais presente. Nos regimes fascistas o Estado impedia publicações. Apesar disso, a tendência da concentração jornalística não cessou. A tendência à concentração atinge naturalmente, em primeiro lugar, os pequenos jornais que têm na indústria publicitária muito pouco que oferecer aos leitores de anúncios e são redacionalmente muito pouco atraentes. A morte de jornais nos últimos vinte anos atingiu primeiramente os pequenos, com tiragem inferior a 60.000 exemplares, que não podem aumentar essa tiragem e que são postos fora do mercado pela grande concorrência. Um jornal com tiragem de 50.000 exemplares, sem monopólio local e sem outras grandes encomendas de impressão para a própria gráfica, mal pode sustentar-se economicamente. Com lucros só operam os grandes, que se tornam cada vez maiores. Do ponto de vista da economia de empresa, a concentração jornalística é explicável a partir das peculiaridades da empresa jornalística. A mercadoria jornal é vendida em dois mercados. Por um lado, as vendas vêm do negócio de anúncios (rendimentos da publicidade); por outro, da venda direta, ou seja, das assinaturas e da renda de vendas em bancas. O editor vende o leitor à indústria de publicidade e ao leitores a parte redacional como invólucro da propaganda (PRESSEKONZENTRATION apud MARCONDES FILHO, 1989, p. 70).

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O autor explica que o crescimento dos monopólios suscitou um fenômeno de homogeinazação ideológica: publicações discrepantes da ideologia dominante ficaram cada vez mais raras e a variedade de opiniões deu lugar a idéias uniformizadas.

2.5 Jornalismo na era eletrônica

Marcondes Filho diz, em 1989, terem se manifestado os primeiros indícios da “quarta fase do jornalismo”, a fase eletrônica. Ele se referia não aos sinais do nascimento da Internet, mas ao aprimoramento e melhor aproveitamento do sistema de rádio e televisão. Fala de comunicação textual à distancia, mas como um meio de enviar matérias à redação ou de enviar texto por meio dos canais televisivos, o chamado teletexto.

A quarta fase do desenvolvimento do jornalismo abre a questão do papel do jornal e forma diferente das anteriores. Se a maior revolução ocorrida no curso histórico do jornalismo como instrumento de propaganda de classe (quer da forma diretamente política de produzir notícias, que da forma “camuflada” de vender a ideologia, por meio da mensagem publicitária) foi desencadeada com a introdução de novos instrumentos e aparelhos de impressão – mudanças tecnológicas, portanto, que obrigaram a empresa jornalística a se alinhar junto às demais empresas em direção à forma monopolística de dimensionar o mercado e de excluir as pequenas empresas –, então a nova transformação, cujos sinais estamos começando a sentir, traz mudanças estruturais igualmente sérias. Não há condições de se fazer uma previsão de seu desenvolvimento a longo prazo, mas isso não impede que se faça a projeção e a avaliação do significado dessas inovações no presente e nos próximos anos (MARCONDES FILHO, 1989, p.75).

A internet, em 1989, momento de publicação da obra analisada, ainda não era usada comercialmente. Por isso, não foram feitas considerações acerca das modificações provocadas pela Internet no jornalismo.

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JORNALISMO E ESFERAS DE PODER: CONFLITOS E ARRANJOS

O jornalismo revela-se como uma eficiente prevenção contra crises sociais, no qual o público, por assim dizer, aliena-se de sua alienação. HORST HOLZER

2.6 Estado sob a economia liberal

Para discutir o envolvimento do jornalismo com o poder social, Ciro coloca como condição necessária observar a relação ideológica e política existente entre o Estado e as classes. O autor considera Estado e jornais instituições que funcionam separadamente, mas acredita que os controladores dessas duas organizações “não de distinguem tão claramente”.

Isso não significa que os detentores do poder político e do controle do Estado sejam também proprietários de jornais. Enquanto especialização ou mesmo incumbência na sociedade capitalista, esses agentes desempenham funções nitidamente distintas. Sua proximidade vem da origem de classe, da ideologia de uma forma geral e do trânsito em esferas comuns (MARCONDES FILHO, 1989, p.77).

Ainda na tentativa de explicar as relações Estado/ classes e Estado/ jornais, Marcondes Filho observa que a ideologia do Estado é disseminada entre as diferentes classes a partir de “unidades de reprodução simbólica (escola, justiça, prisões, meios de comunicação, agremiações etc)” e que essa mesma difusão de ideologia atua na formação da força de trabalho do sistema capitalista.

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A ideologia de Estado, compreende, assim, um pouco mais do que a sua estrutura elementar de governo. Nas suas ramificações para dentro da sociedade ele produz os elementos necessários para a reprodução das relações de produção (MARCONDES FILHO, 1989, p.78).

Há, portanto, uma relação muito íntima entre Estado e meios de comunicação. O Estado pretende manter sob controle a força de trabalho, “máquina” que sustenta o sistema capitalista, e utiliza para isso o poder de difusão de informações dos jornais.

O autor segue dizendo que para entender a lógica da produção e da distribuição das informações produzidas pelos meios de comunicação de massa é necessário compreender bem o conceito de hegemonia. E conceitua: “(...) relativa unidade que preside as instituições, que realizam a reprodução ideológica por excelência e que garantem a relativa estabilidade do sistema econômico.”

Essa hegemonia característica dos meios de comunicação coloca nas mãos das classes dominantes o poder de difusão de suas idéias que, na maioria das vezes, são também as idéias do Estado. A disseminação ideológica desse bloco de poder é feita de forma a gerar a adesão da população às idéias dominantes e não só uma mera passividade diante das informações.

Por fim Ciro estabelece a diferença entre as instituições estatais e as privadas. Ele acredita que diferentemente das instituições estatais, as empresas de comunicação, enquanto instituições privadas, não possuem nenhum compromisso de caráter democrático com os indivíduos e a um cidadão não é permitido cobrar da empresa qualquer prestação de contas.

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3.2 Liberalismo e ideologia

O liberalismo prega a liberdade política e acredita na dissociação entre política e economia. Defende a existência de igualdade política independente de interferências econômicas. Assim, coloca a idéia de que todos os indivíduos, independente da classe social, tenham o mesmo nível de participação política. É justamente nessa idéia de “equivalência geral” que a burguesia encontrava a melhor maneira de conter a ameaça agrária revoltada com as condições econômicas precárias. Marcondes Filho, ao contrário, acredita na indissociação entre a liberdade econômica e a liberdade política. Para ele, as liberdades econômica e política não podem ser vistas como fatores independentes. Conquistar a liberdade política presume-se conquistar também a liberdade econômica.

“liberdade econômica” e “liberdade política” --- pelo menos na época histórica do capitalismo --- não são nem inseparáveis nem indispensáveis uma a outra. De fato, deixadas em seu próprio curso, elas tendem a mover-se em direções profundamente antitéticas. Democracia política e econômica representam realmente uma ameaça para o poder econômico e político concentrado; os interesses do trabalhador médio simplesmente não estão de acordo com os da oligarquia média (MONTCALM apud MARCONDES FILHO, 1989, p. 85).

Ciro discute a luta pela liberdade de imprensa diferenciando a imprensa de oposição política real da imprensa burguesa. Diz que, diferentemente no que ocorre na imprensa oposicionista, na imprensa burguesa a luta pela liberdade de imprensa se dá devido aos objetivos econômicos da empresa jornalística.

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A censura à imprensa, a perseguição aos jornais, o controle de opinião representam, antes de tudo, uma ameaça à sobrevivência econômica da imprensa, à sobrevivência como empresa. Bem situados e ricos donos de jornais liberais quando saem às ruas para clamar por maior liberdade de imprensa só o fazem em função de seus interesses puramente como empresários e capitalistas. A sua atividade é que está ameaçada, não o bem geral, o direito social à informação e à formação democrática de opinião pública (MARCONDES FILHO, 1989, p.85).

O autor conclui que uma imprensa realmente oposicionista, que combata o monopólio da imprensa liberal, só seria possível se fosse desvinculada de qualquer grande grupo econômico e vinculada ao interesse da sociedade civil não representada pela “grande imprensa”. Dado que a sociedade civil é, no sistema capitalista, cindida em classes, contendo, pois, uma gama de interesses conflitantes, qual seria este "interesse da sociedade civil não representada"? Seria mais correto ele dizer "dentre os interesses conflitantes verificáveis na sociedade civil, aqueles não representados".

3.3 Imprensa liberal e sensacionalista

Marcondes Filho aborda o jornalismo sensacionalista como exercendo a função de aliviador das tensões sociais. Explica dizendo que as condições de trabalho do indivíduo no sistema capitalista são tão precárias que geram no trabalhador tensão e revolta. Esses sentimentos têm que ser amenizados de alguma forma, e a imprensa sensacionalista é a contrapartida pelas péssimas condições de vida do indivíduo.

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As notícias sensacionalistas ocupam o lugar do lazer e o indivíduo projeta seus anseios particulares nos programas televisivos e nas notícias, sejam elas trágicas ou pacíficas. Essa projeção acontece para o alívio das necessidades reprimidas do leitor ou telespectador. Nesse sentido, a mídia exerce o papel de desviar o público de sua realidade imediata.

A luta pela sobrevivência no capitalismo é a mais violenta de todas. O trabalhador tem de arrancar forças de onde não tem, para nela sobreviver. Esse desgaste, esse esforço supremo exige uma tranqüilizarão, uma pausa para recuperação. Aí entra a função do jornal como lazer. Ao trabalhador interessa muito mais o jornal que o descanse, que o entretenha, do que o jornal que o jogue de novo contra o mundo do trabalho, da produção, da política. A grande massa não lê os grandes jornais (liberais), os meios que a atingem são de outra natureza, são os que se prestam a dar pinceladas de informação devidamente temperadas com elementos atrativos e sensacionais. É uma imprensa que não se presta a informar, muito menos a formar. Presta-se básica e fundamentalmente a satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de formas sádicas, caluniadoras, ridicularizadoras das pessoas (MARCONDES FILHO, 1989, p.89).

Marcondes Filho, agora, parece acreditar que os “grandes jornais” se prestam a informar com algo mais que "pinceladas" de informação, que se prestam a formar os leitores. Em outro momento, ele ataca a imprensa liberal e todas as suas características de dominação, agora, ele introduz um novo tipo de imprensa (sensacionalista) e recorre justamente à imprensa liberal para torná-la um ponto de referência positivo. A imprensa liberal soa como uma imprensa que não é lida, mas que seria uma opção viável diante da imprensa sensacionalista. Mais uma vez o autor relativiza o peso de sua crítica para amenizar possíveis equívocos. Antes, toda imprensa era sensacionalista, variando apenas o grau. Agora a distinção não é mais de nível, mas de natureza. E se a outra imprensa, não sensacionalista, é informativa, e formativa, ela deveria, então, levar ao combate ao sistema.

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Ciro vai além e diz que a imprensa sensacionalista trabalha com emoções, reforça preconceitos e canaliza ódios coletivos. Ele acredita que o sensacionalismo desvia o ódio contido no indivíduo para outra coisa senão o motivo real de suas más situações de trabalho. Explica que a imprensa sensacionalista, “em matéria de exacerbação emocional”, se compara aos movimentos violentos das massas como linchamentos, depredações e saques por meio dos quais, ao invés de buscar combater o sistema, o trabalhador despeja sua insatisfação em um outro indivíduo próximo a ele. Por meio da orientação da agressividade popular é possível, portanto, exercer a defesa e manutenção do sistema.

As demais características da imprensa sensacionalista seguem, segundo o autor, o modelo de produção do modo liberal de informação com todas as suas técnicas de manipulação, mas utiliza o “sentimentalismo” e do “abandono das teorizações”. E quando se refere ao abandono das teorizações ele quer dizer que a intenção não é o estímulo ao pensamento e sim a distração total da vida real. Explica que não se busca a disseminação da consciência individual, mas sim sua supressão. Como teorização significa pensamento, raciocínio e reflexão, o sensacional abandona essa lógica e se esforça no sentido de buscar o superficial. O pensar no capitalismo só é bom quando se pensa no trabalho, na empresa, no aumento da produção.

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3.4 Conflitos de poderes: liberdade de imprensa e censura

Ciro retoma as idéias citadas anteriormente de dependência entre política e economia bem como a idéia de hegemonia e monopólio dos meios de comunicação para falar da não democratização dos meios de comunicação. Ele explica que as classes privilegiadas economicamente são as que detêm os meios de comunicação e disseminam sua ideologia e a política na qual acreditam. Os donos das empresas jornalísticas seguem o posicionamento político do Estado já que essas duas esferas são compostas por indivíduos da mesma classe e com compatibilidade de interesses. Assim, a liberdade política de disseminação de idéias e defesa dos ideais se concentra apenas nas mãos de quem detém liberdade econômica. Dessa forma, fica fácil observar que não há informação democrática.

Se o fato de não haver informação democrática se deve a que os meios de comunicação são dominados por membros da classe dominante, servindo-lhes de instrumento, o caráter "burguês" do jornalismo é extrínseco. Os meios de comunicação se constituem como um instrumento que é apropriado pela burguesia para que ela dissemine sua ideologia. A idéia de que o jornalismo é intrinsecamente burguês parece ficar de lado.

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3.5 Excurso

3.5.1 A experiência da imprensa alternativa (teses)

No último capítulo de seu livro, Ciro Marcondes Filho se propõe a redigir sobre sugestões de como proceder para fugir do jornalismo vinculado às causas políticas e submisso à reprodução do sistema. Apresenta algumas teses de como pode ser um outro jornal e caracteriza esse novo tipo de imprensa:

O característico dessa nova imprensa é a proposta de desvinculação das correntes políticas. A “linha” desses jornais, se é que se pode dar esse nome à sua orientação, é somente a de dar espaço e publicidade aos movimentos e aos grupos postos à margem dos processos políticos, econômicos e sociais. São, portanto, jornais-instrumento antes de serem jornais-ideologia. Sua proposta é a de serem apenas porta-vozes e não condução desses movimentos (MARCONDES FILHO, 1989, p.141).

Tese 1: Um jornal que se disponha a abrir espaço a todas as opiniões, que ao invés de monopolizar a informação sustente o debate e a discussão entre diferentes partidos. Essa primeira tese defende a importância de a imprensa tornar possível a divulgação de todas as idéias que precisam de publicidade e que são esmagadas pela imprensa burguesa monopolista. A partir desses princípios seria possível efetivar de forma democrática ampla divulgação dos diferentes movimentos entre as bases sociais.

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A idéia é a de o jornal não funcionar como um veículo reprodutor de posicionamentos ou como porta-voz de setores (como no caso do jornal burguês) que defendem suas posições e difundem pelo jornal plataformas particulares, mas de criar o espaço possível, um mero instrumento para uso de formas diversificadas de oposição, que realize, em suma, a abertura de espaços informativos generalizados, que a ideologia liberal tem como proposta, mas que não pode realizar em virtude do caráter da grande imprensa no capitalismo, subordinada aos imperativos econômicos de seus patrocinadores (MARCONDES FILHO, 1989, p.142).

Percebe-se, portanto, a idéia de pluralidade e de não “diluição” e “esmigalhamento” de opiniões e grupos sociais. O objetivo primeiro seria a “reunião de projetos isolados [para criação de] um meio comum de comunicação” (MARCONDES FILHO, 1989, p.141).

Tese 2:

Essa tese se preocupa em pensar como um jornal “não sintonizado com as formas empresariais de exploração de mercadoria” pode se sustentar economicamente para continuar a existir. Ciro aponta duas possíveis soluções.

A primeira seria a venda de assinaturas para um público específico e fidelizado ao jornal. Dessa forma a imprensa alternativa não dependeria das bancas de jornais e das distribuidoras, que nem sempre estão interessadas na venda de um veículo alternativo de comunicação.

A segunda seria a veiculação de pequenos anúncios que fossem acrescentar informações interessantes ao jornal. Não seria uma subordinação do jornal à publicidade, mas sim a criação de um espaço

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(...) contracultural em oposição à cultura mercantilizada dominante, onde livrarias, lojas de música, de chá, cafés, cinemas, teatros, e espetáculos musicais etc. ganham um espaço de divulgação e compõem um conjunto de ofertas ideologicamente mais ou menos sintonizadas (MARCONDES FILHO, 1989, p.144).

Alguns jornais poderiam temer o domínio de um grande anunciante, mas, para Marcondes Filho, esse tipo de temor seria infundado. Um grande anunciante não anuncia aleatoriamente em veículos, há uma seleção dos veículos ideologicamente identificáveis com o anúncio bem como a identificação do público alvo com a publicidade veiculada.

Tese 3:

A discussão aqui gira em torno de desmistificar a idéia de que o caráter do jornal gira em torno do modo industrial de produção de notícias. O autor acredita que é o caráter manipulador da imprensa burguesa que determina a técnica atual de produção jornalística, e não o inverso. Ou seja, é possível utilizar a técnica até agora desenvolvida para um possível jornalismo alternativo tanto que este possua um caráter diferenciado e não manipulador.

Ciro acredita ainda que uma possível transformação da comunicação somente seria realizável a partir das atuais instalações industriais já existentes, não fosse assim seria como um recuo histórico a modos de produção anteriores.

Esse romantismo [o de acreditar na possibilidade de recuo histórico para uma nova comunicação] nulifica todas as tentativas de transformar a comunicação, porque ignora a assimilação cultural que tiveram as massas receptoras dos meios. Esses meios são a sua linguagem e seu modo de estruturar a vida; ignorá-los seria romper bruscamente com um dado cultural, sem o qual a comunicação dificilmente teria o mesmo efeito (MARCONDES FILHO, 1989, p.146).

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Tese 4: A transformação do jornalismo convencional burguês em uma forma alternativa de divulgação de informações significa também repensar a “escala de valores” das notícias divulgadas. É importante reestruturar a forma de se fazer jornalismo e determinar novamente segundo qual lógica as notícias serão veiculadas e sob qual enfoque serão tratadas já que obedecerão a uma nova ordem de importância que não seguiria a lógica do consumo.

Tese 5:

“Para chegar-se a uma posição democrática dentro da produção jornalística há que se abrir mão de todo o dogmatismo e rigidez de posicionamento” (MARCONDES FILHO, 1989, p.147).

Essa quinta tese pretende demonstrar que é necessário inovar e quebrar padrões na tentativa de se pensar um novo jornalismo. Utilizar uma nova linguagem e não ter medo de ousar nas formas de construção de um veículo alternativo são duas boas maneiras de começar. É necessário, no entanto, estudar o público para saber até que ponto ele vai estar preparado para as inovações. A rejeição do indivíduo a um veículo totalmente estranho a ele é possível e deve ser pensada, já que sem público a imprensa não teria sentido.

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Tese 6:

Para tentar romper com a recepção passiva da informação uma sugestão seria tratar a notícia de forma subjetiva e contextualizada historicamente. Deixar de lado o tecnicismo puro e simples e pensar na informação como transmissora não só de fatos mas também de aflições sociais.

A história e a subjetividade individual implicam também transformar os relatos jornalísticos em transmissão humanizada das notícias, em que entrem impressões, opiniões, transcrições, observações não elaboradas dos protagonistas dos fatos, sem que isso seja manipulado de forma piegas. Significa, antes demais nada, respeitar o sujeito e restituir-lhe a autoridade sobre o relato do fato; significa desoficializar a informação e subtrair o privilégio dos “especialistas” na atividade jornalística (MARCONDES FILHO, Ciro, 1989, p.149).

Ciro assume essa sexta tese como sendo idealista, mas de possível contribuição no estímulo de novas práticas jornalísticas.

Tese 7:

A construção de mitos e de estereótipos na transmissão de notícias é um aspecto fundamental da imprensa convencional burguesa. Portanto, para fugir dessa lógica e buscar a produção de consciência e opinião crítica do receptor diante dos fatos divulgados é necessário quebrar os clichês da informação e introduzir em um possível jornalismo alternativo novas formas de pensar a notícia.

Ver a sociedade de forma não-estereotipada é o mesmo que afastar fetiches que encobrem a verdadeira natureza dos processos sociais das instituições e suas funções ligadas a interesses de classes. É transmitir os fatos sociais como produtos de homens e

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classes na luta pela imposição de seu poder e dominação, e não como obras personalizadas e fragmentadas. O clichê bloqueia o acesso do raciocínio à transmissão noticiosa. Ele transforma ato, pessoas, idéias em blocos fechados que, como as demais mercadorias, são postos à venda e consumidos acriticamente (MARCONDES FILHO, Ciro, 1989, p.151).

É necessário criar discursos variados e amplos que permitam ao leitor pensar sobre o assunto veiculado e usar seu discernimento para formar sua própria opinião sobre o fato e não só absorvêlo como verdade pronta. Deve-se acabar com a concepção de notícias fabricadas para serem apenas consumidas, digeridas pelo público.

Tese 8:

O jornalismo pode assumir um papel de incentivador dos desejos e aspirações das massas ao invés de reforçar seus medos e frustrações por meio da “dialética de atemorizaçãotranquilização” já explicada anteriormente. A esperança das massas de tornar suas vontades projetos reais pode resultar em realizações políticas eficazes na mudança da lógica do sistema se bem organizadas e bem lideradas.

Os fascismos europeus e o populismo latino-americano são exemplos de como as “massas”, o povo em geral, depositam nas mãos dos seus líderes carismáticos as esperanças de que não encontram satisfação na sociedade real. Esses líderes, assim como, de outra maneira, os ídolos da cultura massificada, absorvem esse potencial e o trabalham de forma reacionária (MARCONDES FILHO, Ciro, 1989, p.152).

“Os medos e as frustrações sociais resultam do estado de permanente menoridade em que é deixado o povo, aliás, o receptor diante das mensagens da comunicação” (MARCONDES FILHO, Ciro, 1989, p.152). Portanto, o público deve ser, ao contrário, encorajado a lutar pelos seus direitos dos mais básicos aos fundamentais. Enquanto não for desenvolvida essa

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“consciência dos direitos individuais” qualquer dominação será facilmente imposta sobre as massas e não haverá possibilidade de progresso dos prejudicados pelo sistema.

Tese 9:

Um outro jornalismo só exerceria influência sobre as massas se utilizasse a fantasia como recurso para a penetração no público. A grande imprensa trata essa fantasia de forma a afastar o indivíduo de seus objetivos reais e satisfaz somente de forma aparente os desejos do público por meio da venda de mercadorias abstratas. “(...) as mercadorias criadas industrialmente funcionam desencadeando e reforçando opressões, sadismos, perseguições, perversões, formas, enfim, domesticadas de imaginar o real” (MARCONDES FILHO, Ciro, 1989, p.154).

A proposta é, ao contrário, utilizar a fantasia segundo uma outra lógica. A lógica da libertação do indivíduo, da busca pela felicidade real.

(...) é possível a realização de uma outra fantasia. A fantasia, assim como a apropriação do subjetivo, do afetivo, do emocional de forma psicanaliticamente progressiva (de forma emancipadora) como instrumentos para a politização da subjetividade, da interioridade, da cultura, em suma, como ela se apresenta nos indivíduos, também possui, além da forma de exploração capitalista de sua potencialidade, uma outra forma de sua exploração, uma forma preocupada com a sua liberação. Na fantasia exprime-se impressões atuais, desejos passados e aspirações futuras (MARCONDES FILHO, Ciro, 1989, p.154).

Portanto, a possibilidade de enfrentar os meios de dominação ideológica de maneira eficiente se daria a partir dessa outra abordagem da fantasia.

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Tese 10:

Um jornalismo emancipador deve ligar as informações às práticas concretas do receptor. A informação transmitida pela grande imprensa apenas notifica o leitor dos acontecimentos mundiais, dá uma falsa ilusão de participação nas causas sociais, mas, na verdade, “as notícias não influem em sua vida e nem mexem com seu cotidiano, no sentido de exigir desse leitor uma ação em sua vida, induzido por elas (MARCONDES FILHO, 1989, p.155).

Conseguir uma mobilização do público por meio do jornalismo exige que este seja pensado de forma a se aproximar das necessidades pessoais do indivíduo. “Ligar as informações à prática concreta do receptor significa, assim, torná-lo agente da transformação e não simplesmente mais conhecedor” (MARCONDES FILHO, 1989, p.155).

Ciro, no entanto, assume essa possibilidade como sendo o objetivo menos atingível de todos. A questão é: como fazer para “romper com o consumo dos conteúdos” se esse rompimento significa também “romper com a forma capitalista de pensar do receptor”? (MARCONDES FILHO, 1989, p.156).

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CONCLUSÃO

Apesar de um reconhecível esforço para sistematizar uma nova visão acerca do que é o jornalismo, Ciro Marcondes Filho, em seu livro O capital da notícia: jornalismo como produção social da segunda natureza, cria um clima caótico de enunciados que se confundem e se contradizem. Mesmo com muitas idéias pertinentes, ao tentar explicitá-las, faz uso de um método que dá a idéia de estarmos lidando com uma “colcha de retalhos mal costurados”. É justamente pelo fato de abordar tantos assuntos e recorrer a tantas argumentações nem sempre correlacionadas, que o autor se perde no meio de seu próprio raciocínio e parece muitas vezes relativizar suas conclusões para amenizar possíveis postulações infundadas. Isso dificulta a leitura e análise de sua obra, bem como afeta a credibilidade de seus argumentos. A primeira dificuldade é encontrar a tese central de suas teorizações desincronizadas.

Apesar das dificuldades em se encontrar a tese central do livro, entendemos que ela seja a idéia da intimidade entre o jornalismo e o capitalismo, da homologia que ele acredita existir entre esses dois fenômenos, da relação indissociável, de interdependência máxima, grau que permite a ele dizer que “seria difícil pensar o capitalismo sem imprensa e impossível pensar uma imprensa sem capitalismo” (MARCONDES FILHO, 1989, p.12).

Pode-se dizer que já é convencionado entre os estudiosos da comunicação e da sociologia que o jornalismo, no modo de produção capitalista, se comporta como um instrumento da classe burguesa. É sabido também que existe, de fato, uma relação íntima entre as esferas do poder econômico e político e que o jornalismo é um grande braço difusor da ideologia da classe dominante. No entanto, o problema na teorização é que Ciro Marcondes Filho reifica a relação

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da burguesia com a mídia, como se para existir uma ruptura entre elas, fosse necessária a extinção das duas. Seu pensamento faz-nos supor que a possível morte do capitalismo levaria consigo a vida do jornalismo, que por várias questões, inclusive as de natureza lingüística, de inalcançabilidade da verdade, da objetividade, é apresentado como inviável.

Marcondes Filho dá argumentos para comprovar a intimidade da classe dominante capitalista com a mídia, como se esses argumentos fossem também comprovar a natureza capitalista do jornalismo, a qual ele acredita existir. Também fala da história do jornalismo, passando por todas as fases: acelerador do fluxo de mercadorias, jornalismo opinativo político e a grande empresa capitalista do jornalismo. Tudo isso pra mostrar que o nascimento do jornalismo se deu em meio ao surgimento do capitalismo, como se esse fator fosse determinante da natureza da prática jornalística.

Mesmo postulando ser o jornalismo intrinsecamente capitalista, demonstra, sem querer, vê-lo como um instrumento de linguagem passível de ser apropriado por um grupo qualquer em qualquer modelo de sociedade quando diz que “criar jornais é encontrar uma forma de elevar a uma alta potência o interesse que têm indivíduos e grupos em afirmar publicamente suas opiniões e informações” (MARCONDES FILHO, 1989, p.11).

Marcondes, ao falar em “indivíduos e grupos”, não especifica de qual grupo está falando e faz uma generalização que nos permite inferir que ele entende a estrutura do jornalismo como possível de ser apropriada por qualquer grupo para dar visibilidade às suas posições e valores. Faz-nos pensar que o jornalismo pode ser visto como uma “arma” passível de ser apropriada por qualquer grupo para travar uma luta.

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Além disso, no último capítulo de seu livro, o autor propõe alternativas de como proceder para desvincular o jornal da submissão à reprodução do sistema. Fica novamente difícil entender o sentindo de suas afirmações, já que num outro momento ele prevê o final do jornalismo, a impossibilidade de desvínculo, a gênese burguesa que condena o originado à morte.

Como diria Adelmo Genro Filho com as palavras de João Cabral: fica a idéia de que “no capitalismo, o jornalismo é atravessado pela ideologia burguesa como uma fruta é atravessada por uma espada” (GENRO FILHO, 1987, p.59). Idéia já convencionada, mas que deixa claro o equívoco de Ciro: parece que ele acredita que maçã é sinônimo de espada. Fala em homologia dos fenômenos e acredita poder deduzir a ontologia do fenômeno jornalístico simplesmente a partir de sua gênese. Acha que o fato do jornalismo ter nascido em meio à Revolução Burguesa para atender necessidades peremptórias dessa classe, naquele momento, é motivo para condenar a atividade jornalística, essa que não permanece a mesma. Como se algo que nascesse motivado pelas características do modo de produção capitalista tivesse que morrer com ele. As indústrias, por exemplo, poderiam ser usadas em uma hipotética sociedade comunista para reduzir o tempo que os humanos teriam que trabalhar. O objetivo absoluto da maximização dos lucros deixaria de existir levando consigo uma série de outras relações problemáticas, como, obviamente, a exploração do homem pelo homem. Mas, não seria necessário voltarmos às manufaturas. Como Adelmo Genro Filho explica, em O Segredo da Pirâmide:

“Porém, o modo de produção capitalista não existe apenas para satisfazer os interesses particularistas da burguesia, mas também como um momento da história universal. Uma dimensão significativa da sua existência é permanente e, outra, é perecível e será destruída se foram conquistados o socialismo e o comunismo”. (GENRO FILHO, 1987, p.59)

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Além dos problemas que giram em torno dessa tese, existe outra questão estrutural relevante: a confusão de pressupostos teóricos, a utilização de dois paradigmas de sistematização da realidade, inclusive, antagônicos. O autor usa o marxismo e o relativismo, este último para defender sua visão da linguagem – falar da negação da possibilidade da objetividade, pelos problemas intrínsecos de se obter um recorte fidedigno da realidade.

Ele não consegue

estabelecer um novo pensamento que supere os dois modelos anteriores criando um modelo melhor, mas, ao usar dois paradigmas, aumenta o clima de conflito já existente em seu livro.

Em um determinado ponto, parece que Ciro quer se desfazer do jornalismo: depois de tê-lo acusado de uma atividade impregnada irreversivelmente pelo capitalismo, ele fala que seria em vão desvincular a produção de notícias das imposições mercadológicas, pois, mesmo que fosse possível, em uma atividade que lida com a linguagem sempre haverá problemas de codificação.

Ao tentar transformar os fatos do mundo em textos inteligíveis é inevitável a “deformação” da realidade, aí reside o principal motivo para que Ciro, um marxista, negue a existência da verdade. Ao mostrar que o jornalismo não se traduz na verdade, o autor se mostra mais desanimado com a atividade que suscita sua reflexão. Mas, se esquece de que qualquer atividade que lida com o simbólico está condicionada à deformações da realidade e que esse problema não deve ser um motivo de deserções. Uma obra de arte também faz um recorte limitado da realidade, porém, o fato da inviabilidade de uma apreensão fiel da realidade ser impossível, não é motivo suficiente para abandoná-la.

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Apesar de querer dizer o contrário, Ciro Marcondes Filho, nos mostrou, com suas contradições, que o jornalismo é uma prática que sobrevive ao fim da era mercadológica porque possui potencialidades que extrapolam a lógica que o gerou.

Assumimos os acertos do autor e consideramos válidas e pertinentes muitas de suas observações. Sua explanação acerca da relação entre capitalismo e jornalismo, apesar de apocalíptica em vários momentos, carrega em si uma bagagem teórica importante, que nos permitiu analisar essa relação com maior profundidade. É importante deixar claro que apontamos falhas da obra “O Capital da Notícia” e fizemos críticas à Ciro Marcondes Filho durante todo nosso trabalho, mas não descartamos sua obra. Pelo contrário, percebemos esse livro como sendo muito importante à nossa produção de conhecimento. Reconhecemos sua relevância para a academia e valorizamos a capacidade do autor de tecer muitas idéias utilizadas até hoje na maioria dos artigos ou dissertações como uma significativa referência bibliográfica.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FARIA, Leônidas Dias de. A Determinação Sócio-Histórica das Formações Ideais nas Teorias da MaisValia de Karl Marx. Dissertação de Mestrado em Filosofia, defendida em 26/08/2003, UFMG, BH, MG GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide. Porto Alegre: tchê! Editora Ltda, 1987. MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. São Paulo: Conselho Editorial, 1989. MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Ensaio, 1996. WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.

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