As relações entre representações e práticas: o caminho esquecido

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As relações práticas:... Vol. XXIII,entre N. 1representações y N. 2 (2013)e pp. 87-105.

AS RELAÇÕES ENTRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS: O CAMINHO ESQUECIDO Rafael Pecly WOLTER Universidade Católica de Petrópolis/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brésil Celso Pereira de SÁ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brésil RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar os avanços no estudo das relações entre representações e práticas realizados pelo grupo do Midi. A primeira parte apresenta estudos, já clássicos, de J.-C. Abric sobre o gerenciamento das práticas pelas representações. Em seguida o artigo se centra, a partir de trabalhos de Guimelli e Flament, nas modificações representacionais que decorrem de alterações nas práticas. Por último, seguindo o argumento de Rouquette, a influência recíproca entre práticas e representações é rejeitada e as práticas são vistas sob um novo aspecto. Chega-se a conclusão de que, embora um longo caminho tenha sido percorrido por estes autores, as pistas de pesquisa foram gradativamente deixadas de lado até cair num quase esquecimento. Palavras chave: representações sociais, práticas, abordagem estrutural.

LAS RELACIONES ENTRE REPRESENTACIONES Y PRÁCTICAS: EL CAMINO OLVIDADO RESUMEN Este artículo tiene como objetivo presentar los avances en el estudio de las relaciones entre las representaciones y las prácticas llevadas a cabo por el grupo de Midi. La primera parte presenta los estudios, ya clásicos, de J.-C. Abric acerca de la gestión de las prácticas por parte de las representaciones. A continuación, el artículo se centra en el trabajo de Guimelli y Flament, sobre los

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WOLTER, R.P. y de SÁ, C.P. cambios de representación que surgen de los cambios que se producen en las prácticas. Por último, siguiendo el argumento de Rouquette, se aborda, analisa y rechaza la influencia recíproca entre las prácticas y las representaciones, así las prácticas son descritas bajo un nuevo aspecto. Se llega a la conclusión de que, a pesar del largo camino recorrido por estos autores, estos temas de investigación han sido poco a poco abandonados hasta casi caer en el olvido. Palabras clave: representaciones sociales, prácticas, abordaje estructural.

THE RELATIONSHIP BETWEEN REPRESENTATIONS AND PRACTICES: THE FORGOTTEN TRAIL ABSTRACT This paper aims to present advances in the study of relationships between representations and practices carried out by the group of Midi. The first part presents studies, now classic, of J.-C. Abric about the control of practices by the representations. Then the article focuses on the works of Guimelli and Flament about representational changes following changes in practice. Finally, following the argument Rouquette, the reciprocal influence between practices and representations is rejected and practices are viewed under a new aspect. The authors conclude that, although a long way has been traveled by these authors, the research tracks were gradually set aside until almost fall into oblivion. Keywords: Social representations, practices, structural approach.

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psicologia em geral, e a psicologia social em particular, sempre buscaram estudar as relações entre pensamento e ação. Podemos destacar, dentre outros, os trabalhos acerca da tomada de decisão, da resolução de problemas ou até mesmo a psicologia econômica (Kahneman & Tversky, 1979). Se na grande maioria dos trabalhos os autores buscaram demonstrar como o pensamento influi na ação, podemos também encontrar trabalhos demonstrando que o pensamento é o reflexo do que foi feito. Os trabalhos clássicos da dissonância cognitiva (Festinger & Carlsmitth, 1959) caminharam neste sentido até chegar ao ponto em que autores como Beauvois & Joule (1981) afirmam que o indivíduo só tem ilusão acerca de sua capacidade de tomada de decisão, no entanto sua margem de escolha é

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restrita e ele pensa “a posteriori”, ou melhor, racionaliza e encontra uma explicação acerca do que fez. Gostaríamos de relembrar, neste trabalho, alguns grandes avanços sobre as relações entre pensamento e práticas realizados pelo grupo do Midi1 a partir dos trabalhos de Abric, Guimelli, Flament & Rouquette. PRIMEIRA VISÃO: A REPRESENTAÇÃO COMO GERENCIADORA DE PRÁTICAS firmar que os autores que trabalham com a teoria das representações sociais (TRS) foram os pioneiros da ideia de que o pensamento é um guia para a ação não seria justo. Inúmeras áreas das Ciências Humanas e Sociais já fizeram esta afirmação. Estudos clássicos da Psicologia se interessaram por esta questão, linhas de pesquisa inteiras trataram do assunto, controvérsias ocorreram, como no caso dos estudos sobre os estereótipos e suas relações com a discriminação. Trabalhos como o de Lapiere (1934) questionavam as relações entre o preconceito contra os chineses e a discriminação de fato. Esta corrente de pesquisa culminou com teorias como da ação racional (Fishbein & Ajzen, 1975) ou do comportamento planejado (Ajzen, 1988). Não detalharemos estas pesquisas nem críticas a este tipo de visão, tal como formuladas por autores como Wagner (1993), e nos centraremos nos trabalhos realizados pelo grupo do Midi.

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Os trabalhos da psicologia há tempos se interessam pela tomada de decisão, esta última compreendida de um ponto de vista binário, onde diferentes estímulos engendravam diferentes respostas. No seu famoso texto de 2003, Moscovici2 afirma seu desacordo com a visão defensora de que quando o indivíduo sofre um estímulo que afeta sua representação, esta por sua vez indica a resposta adequada a se ter. Ou seja, ele rejeita a visão de que a representação seria uma mediadora situada entre o estímulo e a resposta. Para Moscovici, a representação não fica entre o estímulo e a resposta, ela é anterior a ambos. Jean-Claude Abric et col. (1967) estudaram experimentalmente esta questão ao utilizar o paradigma do prisioneiro. Neste paradigma o participante da pesquisa se encontra participando de um jogo onde ele pode cooperar com o outro jogador ou competir. Em ambos os casos há ganhos ou perdas possíveis em função da resposta de um segundo jogador.

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Tabela 1. Ganhos e perdas em função das escolhas do participante e do oponente no paradigma dos jogos. Oponente coopera

Oponente compete

Participante coopera

Ganho máximo

Perda máxima

Participante compete

Ganho moderado

Perda moderada

Abric e seus colaboradores afirmaram à metade dos participantes que o oponente é um colega estudante, para outra metade disse que era uma máquina. Em ambos os casos o adversário era o experimentador, toda vez que o participante tomava uma decisão, na jogada seguinte o experimentador fazia a mesma escolha que o participante fez (técnica chamada de “tip for tap”). Os autores fizeram a hipótese de que, como a ideia de máquina como parceiro sugere incontrolabilidade e impossibilidade de influência, haverá mais competição comparativamente ao parceiro humano, que é concebido como reativo. Esta hipótese é típica da visão em que a representação do estímulo e da resposta explica a escolha da estratégia utilizada pelo participante: com o adversário reativo é possível cooperar mais, com a máquina é melhor competir. Figura 1. Efeito da representação do adversário (colega ou máquina) sobre a resposta ao estímulo (comperativa ou competitiva).

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Os resultados ilustram perfeitamente como a representação do adversário, máquina incontrolável ou colega reativo, tem um efeito sobre a resposta escolhida pelos participantes. Coopera-se mais frente ao colega comparativamente às situações onde o adversário é uma máquina. Em suma, Abric e colaboradores demonstraram que os participantes levam para a situação experimental seu conhecimento acerca do mundo e este conhecimento é preponderante na compreensão do estímulo e da resposta adequada. Em outra versão de seu experimento Abric não manipula experimentalmente a representação do adversário, mas a compreensão do contexto: para metade dos participantes ele afirma que o estudo é sobre um jogo, para a outra metade diz que é sobre resolução de problemas. Como previsto pelos autores, os participantes cooperam mais quando creem estar em situação de resolução de problemas comparativamente a quando acham estar jogando. Estes trabalhos de Abric se inserem plenamente na já famosa definição de representações sociais, de Denise Jodelet (1989/2003), como “uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo um objetivo prático e concorrendo à construção de uma realidade comum a um conjunto social”. Jean-Claude Abric chegou ao ponto de afirmar que uma das grandes funções da representação social é de orientar e guiar os comportamentos e práticas sociais. Abric especifica mais acerca das condições necessárias para que a representação afete a ação. Primeiramente ele afirma que é necessário que a situação “tenha uma carga afetiva forte, e onde a referência –explícita ou não– à memória coletiva é necessária para manter ou justificar a identidade, a existência ou a prática dos grupos” (1994:231). Este primeiro caso é o que o autor denominou como práticas significantes e correspondem segundo Abric ao que Moscovici “analisa como ações representacionais, ou seja um conjunto de condutas regulares, sem contradição com as normas, realizadas em acordo com o grupo e que correspondem às crenças partilhadas porém não verbalizadas (...)” (1994:231). Esta visão de prática significante pode perfeitamente ser ilustrada pelo belíssimo livro de Denise Jodelet intitulado “Loucuras e representações sociais”, de 2003 (original publicado em 1989), onde ela

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evidencia que as mulheres que acolhiam doentes mentais em suas casas evitavam o contato com fluidos corporais, suor, sangue ou saliva, dos pacientes. A autora demonstrou que a noção de contágio da loucura se mantinha presente na comunidade estudada e guiava ações de prevenção contra o contato com os fluidos corporais dos pacientes. O segundo caso em que Jean-Claude Abric afirma que as práticas são determinadas pela representação correspondem às situações de práticas não restritivas (não constrangidas). São os casos em que a pessoa possui escolhas possíveis, ou seja, possui uma margem de manobra para passar ao ato sem que uma opção de ação lhe pareça incontornável. Nenhuma das escolhas é imposta por uma norma social, pelo poder de uma autoridade ou de uma instituição, nenhuma característica objetiva da situação impõe uma ação. Olhando por outro lado, pode ser uma situação onde diversas restrições ocorrem, mas autorizam, ou melhor toleram, diferentes ações. O estudo de Abric e colaboradores acerca do paradigma dos jogos, onde os sujeitos deviam escolher entre cooperar e competir (alguns resultados apresentados acima na figura 1), se inclui perfeitamente nesta condição de prática não constrangida. Abric (1971) chegou a testar experimentalmente o fator restritivo da situação e concluiu que, em situações onde o constrangimento à ação é elevado, a representação deixa de ser um fator causal na tomada de decisão. Estes resultados levaram Jean-Claude Abric à formulação da hipótese aqui apresentada de que quanto mais complexas e ambíguas são as situações que o ator confronta mais determinante é o papel das representações. Todos estes trabalhos possuem em pano de fundo, a intuição, ou melhor, a convicção de que, ao menos em algumas situações, o indivíduo age em adequação com seus pensamentos. Esta convicção de forma alguma exclui a possibilidade de que em outras situações o pensamento se adeque à representação e não o oposto. É o que veremos nesta segunda parte deste artigo.

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SEGUNDA VISÃO: A PRÁTICA COMO FATOR DE MUDANÇA REPRESENTACIONAL ideia de que a prática pode alterar a relação entre a pessoa e o objeto de prática não é nova. Os estudos acerca da mudança de atitudes a partir de comportamentos contra-atitudinais se inscrevem nesta linha de pensamento.

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Lima (2000) descreve de maneira concisa um exemplo que ilustra perfeitamente este ponto de vista acerca da influência do comportamento na relação indivíduo-objeto: “(...) Pallak, Cook e Sullivan (1980) utilizaram esta perspectiva num estudo quase-experimental no terreno para incentivarem o comportamento de poupança de energia eléctrica. Anunciaram nos jornais locais uma campanha de poupança de energia em duas localidades dos Estados Unidos, com características sociodemográficas e de consumo de energia semelhantes. Anunciava-se que os agregados familiares que poupassem mais energia durante o período de um mês teriam o seu nome publicado no jornal local. Numa das localidades, esta promessa foi cumprida, mas na outra não, colocando assim as pessoas numa situação de dissonância (“privei-me de ar condicionado, tive cuidado a desligar todas as luzes” e “não ganhei nada com isso”) que foi resolvida interiorizando a necessidade de poupar energia” (pp. 215-216). Existem vários outros estudos, no campo das atitudes, que ilustram este fenômeno de mudança a partir do comportamento (por exemplo, Beauvois e Joule, 1996; Festinger e Carlsmith, 1959; Tafani, 2001). Todos estes trabalhos possuem em comum dois aspectos: o primeiro é que há um constrangimento ao comportamento; o segundo ponto é que este constrangimento precede diacronicamente a mudança atitudinal ou representacional. Estes resultados corroboram o ponto de vista de Abric descrito anteriormente, pois estes diferentes estudos sobre a mudança a partir do comportamento restringem a possibilidade de ação dos participantes: estes são induzidos a agir de uma maneira que lhes é nova ou não habitual. O segundo ponto é relativo à causalidade implícita neste olhar: a mudança de pensamento ou de atitude ocorre após o

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comportamento. Em consequência a nova atitude ou pensamento decorre da mudança comportamental. Nos anos noventa uma série de autores se interessou por este tipo de relação entre práticas e representações, dentre eles, Christian Guimelli, que buscou estudar o efeito de mudanças externas sobre a representação. Por mudança externa deve-se compreender que são alterações extra-individuais e extra-representacionais que impõem mudanças de práticas. Uma nova lei pode, por exemplo, ser concebida como uma mudança externa aos indivíduos, grupos e suas respectivas representações. Um processo analógico possivelmente ocorreu com a representação da higiene (Castro, 2012): regras e leis impuseram uma série de medidas higiênicas preventivas a partir do final do século XIX, a posteriori e a partir destas mudanças as pessoas envolvidas se adequaram e modificaram seus comportamentos o que em médio prazo levou a mudanças representacionais para compatibilizá-las com estas novas práticas. Guimelli interessou-se pelas representações de profissionais de enfermagem, pois estes conviviam com dois campos de prática distintos em sua profissão: • “Um campo ‘tradicional’, inerente à prescrição médica, no qual o enfermeiro se situa como um executor dos atos prescritos pelo médico: é o ‘papel prescrito’. • Um campo relativo ao ‘próprio papel’ no qual ele possui uma real autonomia e aplica seu próprio saber. O próprio papel fica sob a responsabilidade única do enfermeiro e denomina as competências essencialmente relacionais. Ela centra o interventor na pessoa cuidada, enquanto que a abordagem médica o orienta em direção à doença” (1994a:181). Guimelli realizou um estudo com trinta enfermeiras e as separou em dois grupos (14 participantes no grupo de práticas tradicionais e dezesseis no de novas práticas) a partir da mediana do escore em um questionário acerca das práticas realizadas no seu trabalho.

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As participantes indicavam neste questionário a frequência com que realizavam doze tarefas em relação direta com o “novo papel”, após isto respondiam a questões ligadas ao modelo dos esquemas cognitivos de base (Guimelli e Rouquette, 1992). Os resultados mostram que as participantes que trabalham com novas práticas pensam o “novo papel” de enfermagem de maneira mais operacional (quem realiza a ação, que ação o ator realiza) e utilitária (quem utiliza o instrumento, em que objeto o instrumento é utilizado ou que objeto é utilizado pelo instrumento). Guimelli chega à conclusão de que o aumento da frequência das novas práticas mobiliza um campo representacional prático, notadamente ativando cognemas (no sentido de Codol, 1969) ligados à ação, o que ilustra bem uma transformação representacional a partir de novas práticas. Em outros termos, “o acesso às novas práticas modifica de forma massiva a estrutura da representação. No caso analisado, os resultados empíricos mostram que a operação de novas práticas ativa esquemas que as prescrevem e reforçam suas ponderações no sistema representacional” (Guimelli, 1994b:106). Para Flament (1994:50) as circunstâncias externas correspondem a “qualquer estado do mundo fora da representação social” e corresponde a toda forma de causalidade estranha à representação social. Christian Guimelli estudou empiricamente o caso do efeito de uma mudança externa sobre uma representação social ao estudar o efeito da mixomatose (doença que extinguiu, ou quase, os coelhos selvagens de várias regiões da França e Europa) sobre as práticas e representações de caçadores. A prática agiria, segundo Claude Flament (1994), como a interface entre as circunstâncias externas e os prescritores internos da representação. Como as prescrições orientam e determinam as práticas é natural que, caso um fator externo modifique algumas práticas, os prescritores se adequem à novidade. Para não deixar ambiguidades convém relembrar que prescrição tem o sentido de “totalidade das modalidades em que uma ação é suscetível de ser afetada: ‘devese fazer...; ‘pode-se fazer...’; ‘é desejável fazer...’; ‘não se pode fazer...’; ‘não se deve fazer...’ etc. O aspecto prescritivo de uma cognição é o

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laço fundamental entre a cognição e as condutas que se supõe lhe corresponder”(...) (Flament, 1994:38). Em suma, o aspecto prescritor da cognição é a ponte entre as condutas e as ideias correspondentes a ela. Os autores do grupo do Midi distinguem, como já é bem difundido no Brasil (Sá, 1996), as prescrições absolutas das condicionais. As prescrições absolutas são inegociáveis, por exemplo, dentro de um grupo ideal as pessoas devem ser amigas, caso isto não ocorra aquele grupo não será aceito como sendo ideal. Neste caso a amizade tem a função de prescritor absoluto, pois sem este cognema (amizade) não é possível reconhecer o objeto (grupo ideal). Em outras palavras, não é aceitável existir outra forma de relação entre membros de um grupo ideal que não seja amistosa. Por outro lado, um grupo ideal se caracteriza, geralmente, por ser formado por pessoas que possuem as mesmas opiniões. No entanto, diversos trabalhos (Moliner, 1989; Rouquette & Rateau, 1998) mostram que, mesmo sem ter as mesmas opiniões, um grupo é considerado ideal caso ele seja composto por pessoas amigas e iguais. Como o objeto (grupo ideal) continua sendo reconhecido como tal, embora os membros deste grupo não tenham as mesmas opiniões, é então possível considerar que este cognema (mesmas opiniões) é negociável, sendo por isto denominado de prescritor condicional. A distinção entre estes dois prescritores e a razão pela qual os absolutos compõem o sistema central da representação foi apresentada em 1996 por Sá, em consequência não iremos aprofundar a descrição das relações entre status do cognema, central ou periférico, e negociabilidade deste. Tabela 2. Esquema acerca da dinâmica da mudança representacional (Flament, 1994). Modificação das circunstâncias externas ↓ Modificação das práticas sociais ↓ Modificação dos prescritores condicionais ↓ Modificação dos prescritores absolutos

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Para Flament, a mudança das circunstâncias externas não afeta diretamente os prescritores absolutos, é necessário que haja modificações prévias das práticas sociais e dos prescritores condicionais. Na maior parte dos casos a simples alteração dos prescritores condicionais basta para que os prescritores absolutos se mantenham intocáveis após as modificações externas. Em outros casos, as pessoas protegem os prescritores absolutos utilizando “boas razões”. Este processo foi ilustrado por Flament (1994) partir da seguinte frase “nestas circunstâncias faço algo inabitual, mas tenho uma boa razão para isto.” No caso do estudo de Christian Guimelli acerca da caça, ao serem obrigados a caçar coelhos criados em cativeiro (os coelhos selvagens estavam em extinção devido a mixomatose), os caçadores usaram racionalizações e boas razões tal qual a frase que segue: “sem criar as presas em cativeiro não teremos mais como exercer nossa prática”. Em alguns casos a mudança dos prescritores condicionais e estas boas razões não são suficientes para proteger o prescritor absoluto, principalmente no caso de modificações irreversíveis de práticas ligadas a este prescritor (absoluto), quando será então necessário ir até o último nível de mudança: a dos elementos absolutos. Esta última mudança ocorre em casos extremos, pois na maior parte dos casos as modificações a nível representacional envolvem apenas as prescrições condicionais, menos essenciais à visão do objeto para o grupo. Independentemente do nível de mudança, veremos sempre, a médio prazo, uma adequação entre o pensamento e a conduta, o que significa que a inadequação é um estado momentâneo. Esta adequação se dá tanto a partir de racionalizações e boas razões, que explicam a inadequação temporária, quanto de mudanças dos prescritores condicionais e absolutos. Este último caso, de mudança das cognições absolutas pertencentes ao núcleo central, sempre ocorre após mudanças externas importantes e que se mantêm no tempo. Em última instância, como afirma Flament (1994), se esta mudança importante afetar as cognições absolutas e o restabelecimento do pensamento pós-mudança

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não for homogêneo na população, com indivíduos e subgrupos encontrando vias alternativas e vias não consensuais para restabelecer a adequação entre a conduta e o pensamento, pode-se considerar que o núcleo central da representação foi desmantelado e que aquele grupo não possui mais uma representação autônoma (onde as prescrições absolutas formam um sistema único, conforme trabalho de Flament em 1989). SOBRE A ASSIMETRIA DAS INFLUÊNCIAS ENTRE REPRESENTAÇÕES E A VARIEDADE DAS PRÁTICAS cabamos de nos interessar por dois tipos de relação entre as práticas e as representações. Primeiramente cuidamos dos estudos e conceituações das representações como gerenciadoras das práticas. Na segunda parte nos interessamos pelas mudanças representacionais a partir das práticas. Poderíamos, numa leitura superficial dos trabalhos aqui apresentados, concluir que as práticas e representações podem ou se influenciam mutuamente.

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Para Rouquette (2000), entretanto, como as duas formas de influência não são equivalentes, não é legitimo falar em reciprocidade das influências. Ele afirma que devemos tomar as representações como uma condição das práticas e as práticas como um agente de transformação das representações. Ambas as constatações, da representação como condição das práticas e esta última, a prática, como agente de transformação da primeira, levaram o autor a se questionar sobre o que é uma prática. Esta noção extremamente ambígua “abrange ao menos dois aspectos eventualmente confundidos: a realização de uma ação (conduta efetiva) e a frequência (ou, correlativamente, a familiaridade para o sujeito) dessa realização. Por exemplo, o fato de cumprir uma tarefa num dado momento, e o número de vezes que cumprimos até então uma tarefa idêntica ou semelhante; a passagem ao ato e a recorrência desse ato. Colocamos em oposição de um lado, a concretização à simples intenção, o gesto ao pensamento, e de outro o hábito, ou ao menos a banalidade relativa à raridade, talvez à novidade radical” (Rouquette, 2000:43-44).

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Rouquette distingue neste primeiro ponto a passagem ao ato, ou seja, a concretização da ação, da banalidade ou recorrência do ato. O autor também diferenciou duas vertentes de ação: a maneira de fazer e a consequência percebida desse fazer. Dois grupos podem ter muita experiência acerca do objeto, tanto com práticas efetivas e recorrência da ação, e no entanto estes dois grupos podem agir de forma diferente, ou seja, possuem maneiras distintas de agir. Estudos que se interessam por diferentes procedimentos (como no estudo de Guimelli, onde havia práticas tradicionais e novas) e desempenhos podem perfeitamente ser definidos como estudos que focam nas diferentes “maneiras de fazer” das populações estudadas. Os estudos que se interessam pela consequência percebida desse fazer, também denominada de prática como cálculo, concebem a ação a partir da estratégia e das antecipações que o sujeito faz. Em outras palavras, convindo que ao agir as pessoas possuem metas e intenções, esta dimensão concebe a prática como um “trabalho cognitivo de preparação e acompanhamento, depois de avaliação, da ação, até mesmo uma simulação desta” (Flament & Rouquette, 2003:36). Os trabalhos de Abric sobre o dilema do prisioneiro ilustram bem este ponto: os sujeitos previam reações do adversário, máquina ou colega, e adequavam suas respostas a estas antecipações a fim de ter um máximo de ganho. Em suma, Rouquette concluiu que a relação entre representação e prática e as suas respectivas influências devem levar em conta os quatro aspectos da prática: 1. 2. 3. 4.

A prática como passagem ao ato; A prática como recorrência; A prática como maneira de fazer; A prática como “cálculo”.

A consideração destes quatro aspectos nos ajuda a sair de um grande problema frequentemente encontrado, a polissemia da noção de prática. Poderíamos acrescentar –e a primeira metade deste artigo fornece uma bela ilustração– que trocamos regularmente de denominação, passando de ação a conduta para um pouco depois falar de

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prática ou comportamento. Neste sentido, nos parece que o trabalho de Michel-Louis Rouquette foi um grande avanço para a área, pois especificou e delimitou a noção de prática em quatro aspectos precisos e relativamente bem delimitados. Como é possível notar na tabela 3, cada aspecto traduz uma característica distinta da noção de prática e, embora estas características sejam próximas, de forma alguma podem ser consideradas idênticas. A operacionalização comparativa que Rouquette aí delineia para a pesquisa empírica de cada tipo de prática não apenas torna evidentes as diferenças entre eles, mas também descortina para o pesquisador das representações sociais possibilidades de investigação das relações entre estas e as práticas em contextos concretos específicos e diferenciados –dos pontos de vista geográfico-populacional, político-econômico e sócio-cultural– nos quais as duas noções mais fazem sentido e melhor podem contribuir para a psicologia social. CONCLUSÃO omo acabamos de ver, nos anos sessenta e nas três décadas seguintes, diversos autores do grupo do Midi se interessaram pelas relações entre práticas e representação. Cronologicamente, estes trabalhos se focaram na coerção das representações sobre as práticas, para depois se focar na transformação das representações a partir das práticas e, por fim, chegaram, ao final dos anos noventa e início dos anos 2000, a uma nova caracterização das práticas. Muitos destes trabalhos, infelizmente, ficaram sem continuação, tanto para maiores avanços teóricos quanto, na aplicação, para uma maior precisão conceitual acerca da prática estudada.

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No entanto, várias questões ficam em aberto, sobre os quatro aspectos das práticas, Rouquette afirmou que não lhe parece “certo que os estudos feitos até aqui, no domínio das representações sociais, tenham sempre distinguido o peso relativo desses quatro aspectos. É, entretanto, muito fácil convertêlos em termos operacionais: comparemos, por exemplo, um grupo sem nenhuma experiência de uma atividade particular, e outro grupo que terminou de agir pela primeira vez; depois grupos que tenham familiaridade mais ou menos

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grande com as condutas em questão; grupos agindo a propósito do mesmo objeto, de maneiras diferentes; e, por fim, grupos exibindo processos de ‘cálculo’ irredutíveis uns aos outros. Indubitavelmente em interação com as situações sociais correspondentes, e por conseguinte com a posição social dos atores, veríamos assim que certos aspectos das práticas são mais decisivos que outros, para a fabricação e transformação das representações do mundo. Tais trabalhos, que culminariam, inevitavelmente, em precisar os conceitos precedentes, propiciariam grandemente a passagem da noção intuitiva de prática a um status científico um pouco melhor lastreado” (Rouquette, 2000:45). Poderíamos acrescentar que seria importante saber que aspectos das práticas podem prioritariamente agir como agente de transformação da representação, dentro do esquema apresentado por Flament (cf. tabela 2). Por outro lado, poderíamos também nos questionar sobre os aspectos das práticas mais suscetíveis de serem afetados pela representação. Além disso, poderíamos inserir as práticas dentro de sua historicidade, pois, como salienta Rouquette (2000:41), “a análise reflexiva do papel da história continua a ser nódoa cega na teoria das representações”. Em suma os autores do grupo do Midi fizeram grandes avanços acerca do conhecimento das relações entre representações e práticas e Michel-Louis Rouquette nos apontou caminhos possíveis a seguir. No entanto, esta direção não parece ter tido continuidade em pesquisas recentes. Se estes caminhos –abertos por pioneiros como Jean-Claude Abric e Michel-Louis Rouquette, recentemente falecidos– serão desbravados ou não depende agora daqueles de nós que –na França, no México, no Brasil ou alhures– valorizamos a perspectiva conceitual, teórica e metodológica do grupo do Midi no campo das representações sociais e sejamos de fato capazes de dar conta da tarefa. Isto somente o tempo dirá, mas as importantes contribuições destes precursores fazem já parte da memória e da história da psicologia social.

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Tabela 3. Exemplo, forma de operacionalização e tipo de prática. Tipo de prática

Operacionalização

Prática como passagem ao ato

Consiste em comparar uma população que nunca implementou a ação à população que já implementou a ação.

Comparar soldados que experimentaram o fogo a soldados que nunca entraram em combate.

Prática como recorrência

Utiliza uma graduação da experiência que vai do “novato” ao “perito”. A graduação se faz a partir da duração da experiência (em tempo), quantidade de vezes que se deparou com a situação ou ainda quantidade de conhecimentos acerca da questão.

Comparar soldados veteranos, que lutaram em muitas batalhas a soldados que lutaram em poucas batalhas.

Prática como maneira de fazer

Neste caso é necessário distinguir qualitativamente a prática comparando um grupo que faz a prática à maneira X a outro grupo que realiza essa prática à maneira Y.

Comparar soldados veteranos que em batalha atiram no inimigo a soldados veteranos que nesta mesma situação apoiam moralmente outros soldados e não focam no inimigo.

Prática como cálculo

Comparar grupos ou pessoas que em relação à prática em questão possuem diferentes avaliações de consequências, intenções, planos de ação ou objetivos.

Comparar soldados que em combate valorizam mais o cumprimento da missão a soldados que valorizam mais a tomada de risco mínima.

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Exemplos

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NOTAS

1. Como os pesquisadores aqui citados, Abric, Flament, Guimelli e Rouquette realizaram seus trabalhos nas cidades de Aix-enProvence e Montpellier, Sá (1996) decidiu denominá-los de grupo do Midi (nome informal dado ao sul da França). 2. O texto original, em inglês, é de 1984.

REFERÊNCIAS

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Rafael Pecly WOLTER Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro onde atua como Coordenador-Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Conduz pesquisas acerca dos seguintes temas: pensamento social e formas de raciocínio em situação de mobilização coletiva; representações sociais; relações entre memória identidade e esquecimento. [email protected]

Celso Pereira de SÁ Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sua experiência e produção acadêmica se concentram nos campos da análise do comportamento social, das representações sociais e da memória social. Conduz pesquisas nos seguintes temas: controle e contracontrole sociais, socialização do conhecimento científico, religiões afro-brasileiras, representações sociais de políticas públicas e da exclusão social, memórias do descobrimento do Brasil e de regimes políticos brasileiros recentes (a Era Vargas, os Anos Dourados e o Regime Militar).  [email protected]

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