As representações da prostituição na literatura portuguesa do final do século XIX: Fatalismo ou realismo

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As representações da prostituição na literatura portuguesa da viragem século XIX para o XX: Fatalismo ou realismo? André Samora Pita* [email protected]

Resumo O que pretendemos explorar é a forma como a mulher prostituta fora caracterizada pela literatura portuguesa da viragem do século XIX para o XX. Como tal, recorremos à análise daquilo que parecem ser tropos comuns entre as obras que abordam as temáticas da prostituição: A prostituta com um coração de ouro (genuínas), as Femmes Fatales (teatrais), os padrões duplos e falsas dicotomias, o fatalismo e a redenção na morte. Logo, uma tentativa de verificar o pensamento não científico da época sobre esta classe subalterna de que tanto é “conhecido”, mas não representado. Palavras-chave: Prostituição; História da Prostituição; Literatura Portuguesa; Literatura Contemporânea. Abstract: What we intend to do here is to explore how women prostitutes are characterized by Portuguese literature in the turn of the nineteenth to the twentieth century. As such, we resort to the analysis of the main tropes on the literary works that address prostitution as its theme: The prostitute with a heart of gold (genuine), the Femme Fatales (theatricals), the double standards and false dichotomies, the fatalism and redemption through death. As such this is but an attempt to verify the non-scientific ideas on this subaltern class of which so much is “known” but not shown. Keywords: Prostitution; History of Prostitution; Portuguese Literature; Contemporary Literature. Introdução Neste artigo procuramos fazer uma análise das várias representações da mulher prostituta na literatura portuguesa de viragem de século. Contudo nesta análise apenas *

Mestrando em História Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;

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serão contempladas algumas obras e autores deste período, sendo o objetivo final verificar como a imagem da prostituição e da mulher prostituta seria contemplada. Assim, contemplamos as seguintes obras: O Fado (Bento Mântua, 1ª edição de 1915), Rosa Enjeitada (João da Câmara, 1ª edição 1901, consultada a 3ª edição de 1929), A Pérola (Marcelino Mesquita, 1ª edição 1885), A Bandeira (Lino de Macedo, 1ª edição 1897) e Tuberculose Social: As mulheres Perdidas (Alfredo Gallis, 1ª edição 1901, consultada a 2ª edição de 1931). De facto, a literatura portuguesa também não escapa ao tema da prostituição. Para além das obras escolhidas poderiam ainda ser analisadas outras como: Abel Botelho, Livro d’Alda e O Barão de Lavos; Alberto Pimentel, Princesa de Boivão e A Triste Canção do Sul; Rocha Martins, A Madre Paula e Flor da Murta; Andrade Corvo, Um Ano na Corte; Júlio Dantas, A Severa; Fialho de Almeida, Lisboa Galante, Pasquinadas, Contos e Cidade do Vício; Eça de Queirós, O Primo Basílio, A Relíquia e O Mandarim. Deve ainda ser referido a importância do fado para a análise deste tema, ainda que tal não vá ser explorado neste trabalho. Assim, não se devem esquecer obras como O Cancioneiro do Bairro Alto e História do Fado de Pinto de Carvalho. Ambos exploram o mundo do fado e sistematizam as características e circunstâncias da prostituição. O principal motivo de escolha destas obras em análise deve-se ao facto de, em todas elas, ser uma prostituta o seu personagem principal. Com isto é possível fazer uma melhor análise de como os autores interpretam as integrantes desta classe. Através delas conseguimos verificar de que modo estas mulheres são representadas no imaginário deste período e ao mesmo tempo como estas corroboram ou não as representações presentes nas teses da época. A análise destas obras apresenta alguns fatores comuns em todas elas. Esses tropos revelam, nas suas concordâncias, de que modo a sociedade interpretava estas mulheres e a sua condição. Interessante também pela forma como as meretrizes são introduzidas na história e a forma como contribuem para ela, visto que podem ser sinais essenciais para a análise da vida destas mulheres, às quais a sociedade portuguesa nega qualquer reconhecimento e os estudos não são significativos. Com isto, a análise será centrada em alguns tópicos específicos. Em primeiro lugar, as formas de ser das prostitutas, ou seja como é que os autores as descrevem. Em 2

seguida, as suas formas de estar, onde habitam e em que condições. Também o moralismo e as falsas dicotomias que surgem em torno das práticas das prostitutas e, por último, o fatalismo que é lançado pelos autores sobre a mulher prostituta. Para esta análise vamos igualmente utilizar alguns estudos realizados sobre o assunto que contemplam esta época. Nomeadamente A Prostituição e a Lisboa Boémia do Século XIX aos Inícios do século XX de José Machado País e Sexo, Ciência, Poder e Exclusão Social de Isabel Liberato. Também serão contemplados alguns estudos da época sobre a prostituição, como por exemplo os de Tovar de Lemos, Armando Gião e Ignácio Santos Cruz. Na análise de temas historiográficos torna-se útil refletir sobre a importância da literatura da época. As obras literárias são um documento histórico, um reflexo das vivências e mentalidades da sua época. Logo, como qualquer outra fonte, devem ser tidas em consideração para uma interpretação histórica. As fontes não são mais que documentos base para um investigador trabalhar, independentemente da sua subjetividade ou suporte. Neste caso em específico, as obras literárias tornam-se uma útil ferramenta de trabalho exatamente por contraírem os preconceitos e as morais da época sobre a prostituição, muito semelhantemente aos documentos científicos produzidos. A única diferença é a forma como abordam a mulher. Ou seja, enquanto um documento científico objectifica o seu material de estudo, as obras literárias expõe-no como um ser vivo, com emoções e motivações. Isto torna-se claro neste caso de estudo, especialmente quando contrapomos os dois tipos de fontes. Assim, o que se pretende expor são os traços que estas obras partilham e o seu contributo para a análise da apelidada “mais velha profissão do mundo” no virar do século XIX português.

Ser prostituta. Em todas as obras analisadas dá-se um importante relevo à forma como a mulher prostituta é “formada”. Por regra geral, o contexto social e económico das futuras prostitutas representadas nestas obras é humilde. No entanto, este fator pode ser considerado parte igual de reflexo social e propósito romântico.1 Ainda assim, podemos 1

Revez (2012, p. 93 a 95)

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dividir este traço geral em dois. Por um lado, são representadas prostitutas filhas de prostitutas que nasceram nessa condição e acabavam por cambalear pelos mesmo caminhos que as suas progenitoras. Por outro, são representadas mulheres humildes, porém ao contrário das anteriores que apenas querem pagar os pesados encargos da existência, estas desejavam uma ativa ascensão na escada social. Ou seja, as últimas seriam as que abraçavam esta vida pelo prazer, pelo dinheiro fácil ou simplesmente pelo deboche desta vida considerada clandestina. De facto, uma boa parte das prostitutas em exercício entre os anos de 1862 e 1901 vinham de camadas pobres da sociedade2, algo corroborado por Santos Cruz3, das que tinham exercido uma profissão anteriormente era como serviçais, costureiras e operárias fabris ou agrícolas.4 Sobre este fenómeno, de acordo com a época, os estudiosos justificavam-no das mais diversas formas, mas sempre com as mesmas quatro bases. De acordo com a visão moralista da época, as prostitutas seriam mulheres que não foram ensinadas a não pecar e/ou cuja figura parental seria ausente. Com base na legislação porque esta permitia a prostituição. Psicologicamente seriam mulheres com distúrbios ou desequilibradas mentalmente. Por último, biologicamente seriam resultado de anomalias corporais específicas que as separavam das restantes. Em maior detalhe, a questão do pecado e a associação a uma unidade familiar fraturada ou não existente advém da importância colocada na família enquanto compasso moral. No contexto vitoriano isto ficou popularizado como Manners and Morals.5 Uma dualidade de condições para o estabelecimento de uma vida em sociedade “correta”. Logo, uma não é nada sem a outra, pois só ambas permitiam uma autorregulação comportamental dos diversos indivíduos. Estas componentes estavam indissociáveis da dinâmica familiar e da reprodução dos papéis de género aceites. Assim, indivíduos com unidades familiares quebradas ou fora do consenso estariam sobre o escrutínio da proper society. Claro que isto não era uma lógica inquebrável. Era igualmente esperado que indivíduos sem esta estruturação fossem capazes de se integrar e agir nas condições da sociedade, mas também estavam conscientes que mesmo nos núcleos familiares mais

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Pais (1985, p. 80–81) Cruz; Pais (1984, p. 139) 4 Vale a pena mencionar os rendimentos destas profissões. As operárias fabris e agrícolas tinham um rendimento semanal entre os 120 e os 360 reis, as costureiras entre os 200 e os 300 reis e as serviçais entre os 500 e os 1250 reis. Para uma abordagem mais aprofundada destes dados ver Fonseca (1902). 5 Himmelfarb (1995, p. 21 e 22) 3

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disciplinados poderiam surgir indivíduos não cumprissem as regras. Aqui surgem questões de honra, algo que iremos aludir e analisar noutro capítulo. Dentro de um ponto de vista meramente legal, a prostituição era aceite e regulamentada (se bem que de forma muito ambígua). Por regra geral, esta aceitação não era muito questionada à época, em parte por se reconhecer a utilidade da prostituição.6 Contudo, em certas franjas da sociedade surgiam movimentos sistemáticos contra esta prática, ainda mais com aprovação estatal. Aqui destacamos o caso do Congresso Católico Internacional (1895), visto que fora um dos movimentos contra a tolerância da prostituição que mais destaque ganhou, mas também por dar corpo às criticas que já eram expressadas por outros membros da sociedade portuguesa.7 No campo da biologia e psicologia, o discurso justificativo/critico da prostituição alimenta-se sobretudo nas fundamentações de Lamarck, Rosseau, Darwin e Egas Moniz. Os primeiros dois procuram justificar os papéis femininos na composição biológica do corpo humano. O darwinismo acaba por exacerbar esses argumentos dando-lhes uma justificação mais empírica e de longo prazo, mas também contribui para que outros estudiosos leiam estas questões como uma superioridade de um género perante outro. Por último, e em especial, surgem psiquiatras e psicólogos como Egas Moniz que vão sedimentar a análise da mulher prostituta como desequilibradas psicologicamente, com base em pequenas amostras e casos específicos.8 A análise das obras literárias acaba por demonstrar este tipo de argumentos. Através dos exemplos de Rosa de D. João da Câmara e de Pérola de Marcelino Mesquita verificamos a constatação desta entrada para os caminhos “impuros”. D. João da Câmara descreve-nos uma típica prostituta das ruelas escuras e sujas de Lisboa, filha de um caso entre uma prostituta e o seu amante que ficara ao encargo de uma outra meretriz. Nunca deteve muitas posses e rapidamente se viu obrigada a vender o corpo para conseguir um teto onde dormir e para o copo de vinho e pedaço de pão de que se alimenta. Conformouse com a sua situação e nunca procurara sair dessa vida a não ser pela morte. Num outro campo temos o exemplo da Pérola de Marcelino Mesquita, filha de uma família burguesa

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Lemos (1908, p. 91) Guinote (1997, p. 176 a 178) 8 Moniz (1913) 7

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que se vê obrigada à prostituição após a morte do pai, com o objetivo de suportar a mãe e os luxos desta. Pérola é mesmo o único caso nesta amostra literária em que uma mulher se prostitui por um sentido de obrigação moral. Isto porque é a mãe que a sacrifica no seu lugar, algo que Pérola permite porque deseja o seu bem-estar, nunca a abandonando até à morte. No caso de Pérola, torna-se bastante claro que a prostituição rapidamente se tornou um caminho para voltar ao nível de vida que tivera antes da morte do pai, visto que esta apenas se entregava a homens da alta sociedade que lhe oferecessem vestidos, joias e todos os luxos de uma mulher do seu desejado posto. O detalhe dado à vida destas mulheres por parte dos autores, nomeadamente antes de sacrificarem a sua pureza, oferece aos leitores um bom meio de humanizar personagens que a sua época definiu simplesmente como vis e imorais, subvertendo essa tendência e caracterizando-as como típicas figuras românticas. Ou seja, através da análise de todo o percurso de vida da prostituta feita personagem principal, os autores criam uma personagem com quem o leitor possa simpatizar apesar da sua condição, que por vezes se torna o seu único “defeito”. Deste modo, começa-se a fundamentar o tropo da prostituta com um coração de ouro, várias vezes evocado nestas obras. Em si, esta expressão explana-se numa variante dentro das trabalhadoras do sexo, destacando-se como uma personagem inerentemente ou moralmente “boa” que se torna numa protagonista exatamente por isso. Este foco pode ser-lhe atribuído desde o início ou ser resultado das interações com outros personagens centrais. Ou seja, a prostituta por subverter aquilo que normalmente é esperado pelo leitor, torna-se algo admirável sobre o qual o leitor deve sentir um misto de pena e admiração, com o intento final de simpatizar com ela devido a esse estigma. Assim, apesar de no exterior se mostrarem como mulheres imorais, a narrativa descreve-nos alguém gentil e digno, mas que faz o que faz porque é necessário a si ou aos seus. O autor constrói-as como pobres materialmente, por vezes desesperadas, mulheres que experienciam as maiores catástrofes sociais, que possam ou sejam afetadas por algum vício característico da prostituição (tipicamente o alcoolismo).9 Literariamente, isto serve normalmente para “Prevista como era, reconheceu na mulher a Gorda, aquela que a tratara com caridade e respeito na célebre noite em que fora presa pelo Gorjetas e recolhida nos calabouços do governo civil. Tinham passado seis anos, e aquela desgraçada, lá andava na mesma vida, mais velha e descuidada da sua pessoa e com sinais evidentes de se entregar ao alcoolismo. Verdade era que também ela vinha dum prostibulo, de maneira que as suas situações eram moralmente iguais!” Gallis (1931, p. 245). 9

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mostrar que, apesar dos seus distúrbios ou qualquer outra maleita, continuavam a ser mulheres profundamente cativantes, mas também dignificadas. Esta estranha honra manifesta-se na forma como mostram resistência aos personagens principais masculinos. Nomeadamente através dos seus argumentos para os afastar, que consistem em reforçar como alguém com este tipo de vida não merece o amor de ninguém, ou melhor, consideram que as suas escolhas as deixaram danificadas ao ponto de não serem dignas de tal. Com esta descrição, o autor apresenta a prostituta através da sua humildade e consciência de que não passa de uma mulher cuja única função é satisfazer uma necessidade mecânica masculina. Este estereótipo é claro em Rosa de D. João da Câmara, Micas de Bento Mântua e em parte em Horácia de Alfredo Gallis. As primeiras duas tentam afastar-se rapidamente dos protagonistas masculinos porque não se consideram merecedoras do amor destes. No caso de Micas, esta teme que Manecas, o seu chulo, a volte a encontrar se fugir10 e ao mesmo tempo não deseja que alguém honesto veja a sua honra manchada por viver com alguém de vida imoral.11 A Rosa segue o mesmo caminho que Micas, mas numa situação ligeiramente mais complexa. Não só o protagonista masculino, João Reynaldo, está noivo de outra mulher, como ainda o seu chulo é mais violento e ambicioso que o de Micas. Assim, esta teme tanto pela sua vida como pela de Reynaldo, mas também não deseja que a noiva deste sofra por sua causa. Horácia só se começa a prostituir por necessidade e no momento em que encontra uma paixão abandona essa vida. No entanto esta toma alguns traços de prostituta teatral exatamente por querer abandonar a vida de prostituta o mais rapidamente possível, aproveitando a sua beleza e a sua virgindade para acumular dinheiro suficiente para sobreviver em boas condições. Contrastando com o coração de ouro de algumas destas personagens surge o seu exato oposto. Por vezes categorizadas como Femmes fatales, estas mulheres estão onde estão por ser um caminho rápido e prático para o luxo. Tais são os casos de Bandeira de Marcelino de Mesquita e de Ana e D. Maria em Alfredo Gallis. A primeira, é caracterizada e, por analogia, todas as suas semelhantes da seguinte forma:

“Mulheres como eu facilmente se encontram.” Mântua (1915, p. 34); “Ouve-me… Tu és um bom operário, amparo da tua mãe e da tua irmã… e eu, sou… uma má mulher… uma perdida… Vive com elas e para elas, sobretudo para tua irmã… Guarda-a bem… Guarda-a bem…” Mântua (1915, p. 34); 10 11

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“Este género de mulher em se lhe acenando com meia coroa não há respeito nem dedicação a homem que as contenha. Tu estás a ler por um breviário muito errado; vives ainda no reino lunático do romantismo. Lembra-te do que te digo: este género de mulheres em lhe cheirando a meia libra de ouro, enganam todos os homens do Universo. Atuam nelas dois factores: o interesse e o prazer de iludir aqueles por quem se julgam amadas”12 De igual modo, Ana e D. Maria assemelham-se a Bandeira. A única diferença é que estas já abandonaram a profissão para se dedicarem ao proxenetismo.13 Para ambas, explorar as prostitutas que lhes caiam nas mãos não passava de um negócio, mercadoria a ser leiloada a um seguidor de Citera.14 Estas não exibem qualquer preocupação ou lástima da sua profissão porque foi uma escolha consciente e desejada. Tornaram-se predadoras onde outras não passavam de presas, como tal demonstram características de negociante, procurando o melhor homem para lucrar, apenas se oferecendo aos que estão abaixo da sua categoria quando os tempos vão particularmente maus ou por capricho. Um intermédio entre estes dois tipos é a Pérola de Marcelino Mesquita. Por um lado, esta começa por ser uma prostituta que procura alimentar um certo espírito burguês e os seus luxos e os da sua mãe. Por outro rende-se rapidamente ao amor de João, passando este a alimentar esses luxos. Porém, este não é propriamente explorado por Pérola, mas sim pela mãe desta. Logo, ela não está claramente enquadrada em nenhuma destas categorias, visto que apresenta a moralidade e humildade de uma, mas as ambições da outra. Em suma, a caracterização das prostitutas nesta literatura vai suportar a divisão clássica dos estudiosos da época. Autores como Ignácio Santos Cruz15, Fernando

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Macedo (1897, p. 43–44) “A sagaz e inteligente proxeneta dispunha de magníficos conhecimentos em todas as melhores classes sociais (…) deputados, pares do reino, generais reformados e em ativo serviço, coronéis, majores, juízes, delegados, chefes de repartição, diretores gerais, comendadores vindos do Brasil, tudo isto passava de contínuo por aquela casa, tendo a D. Maria sorrisos e atenções especiais e variadas segundo o grau de hierarquia social que ocupavam, ou o que ainda mais pesava na sua balança, os bens de fortuna de que disponham. (…) Numa palavra: a D. Maria se não fosse uma refinadíssima alcaiota e pudesse mudar de sexo, dava com toda a certeza um excelente ministro da fazenda.” Gallis (1931, p. 218); 14 “A Ana continuava com o seu tráfico de escravatura branca, no que ganhava a vida muito razoavelmente, e a D. Maria, cada vez mais velha, lá ia arrastando o seu reumático, facultando com zelo e sabedoria a sua casa acreditada a todas aquelas que por necessidade ou ambição, resolviam atirar com o bonet da honestidade para detrás dos moinhos.” Gallis (1931, p. 218); 15 Cruz; Pais (1984); 13

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Schwalbach16, Armando Gião17 e Tovar de Lemos18 dividem as prostitutas em duas grandes categorias: as genuínas e as teatrais. As genuínas nas obras em análise enquadram-se sobretudo nas que têm um coração de ouro, sendo humildes e procurando pagar os custos de uma vida que as despreza. Contudo, existem também as teatrais que, de acordo com estes estudiosos, procuram satisfazer os seus caprichos materiais e libidinosos, tal como as femmes fatales acima descritas. O espaço de uma prostituta Os estudos dos autores supraditos relatam que um dos factores que diferenciava os vários tipos de prostitutas era a moradia onde exerciam a sua profissão. Fernando Schwalbach relata na crónica O Vício em Lisboa: Antigo e Moderno alguns dos principais tipos de locais conhecidos para a prática deste deboche e de outros. Primeiramente e mais modestas são as hospedarias. Estas normalmente ofereciam muito más condições de higiene e os quartos eram simples: uma cama de ferro, meia dúzia de móveis em mau estado e um pequeno lavatório. A compensação pelas más condições de estadia era o preço, que inevitavelmente era o mais baixo dos locais de vício. Este seria o espaço de Rosa Enjeitada de João da Câmara. A casa onde Rosa habita é partilhada com algumas colegas, formando uma solidariedade entre elas quando alguma está a passar por uma situação mais difícil. A única descrição do espaço em si surge no início do terceiro ato: “Porta de fronte dando para a escada. À esquerda uma porta, dando para um quarto interior. Da direita um oratório com uma imagem em vulto do Senhor dos Passos. Pouca mobília e pobríssima. Em frente da porta da esquerda uma mesa e uma cadeira.” Corroborando a personagem enquanto pobre que apenas procura sobreviver. Deve-se salientar também que esta é única personagem que nos é apresentada a pedir esmola, como tal a escolha da habitação acaba por suportar a sua condição social. Em seguida estavam as casas de passe. Muito mais cuidadas e tratadas, estas ofereciam condições que as hospedarias anteriormente mencionadas nunca poderiam alcançar. A receção seria feita por uma criada de marota disposição ou pela dona da casa, 16

Schwalbach; Ventura (2011); Gião (1891); 18 Lemos (1908). 17

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que geralmente estaria bem vestida. As mobílias eram mais luxuosas em comparação e proporcionavam mais estilo e decoração do que propriamente utilidade. O preço por sua vez era mais alto e, como tal, tanto a prostituta como o cliente teriam de ter mais algum poder económico. Esta descrição surge como o espaço da ação dado por Mântua em O Fado, cujo cenário é inspirado pela pintura de José Malhoa do mesmo nome. Na descrição da peça, este caracteriza o espaço como: “Uma cómoda, tendo sobre ela um toucador; uma mesa de pinho, um banco, cadeiras, candeeiro de óleo, ordinário de cozinha. Junto à porta para a rua, há uma cadeira baixa com assento de tábua. Nas paredes: oleografias de santos, retractos de toureiros, um leque e sobre este, cruzadas, duas bandarilhas. À direita da porta dando para o quarto de dormir, no qual se vê uma cama de ferro, com coberta de chita vermelha e na parede, junto à porta, um registo do Senhor dos Passos. Nas portas da rua e do quarto, há cortinas também de chita.” Logo, comprovando a caracterização clássica deste tipo de locais enquanto nem luxuosos ou paupérrimos. Posteriormente, os bordéis eram onde a marca da prostituição estava mais obviamente declarada. Não tendo outra função a não ser a satisfação dos desejos carnais, não esconde o facto de que tudo isso é um negócio. À entrada o cliente depara-se com um balcão onde é recebido e apresentado à nobre casa. As paredes e o chão apresentam-se afavelmente decorados de forma a convidar e confortar o cliente. Contudo, o preço era ainda mais exigente e já não era qualquer membro da noite lisboeta que podia cansar-se nestas paragens, a não ser quando a alcaiota decreta. O melhor exemplo para representar este caso seria o de Tuberculose Social: As mulheres perdidas de Alfredo Gallis. Porém, a descrição só se torna verdadeiramente clara na seguinte passagem: “Casadas, solteiras, e viúvas de conquista fácil, umas por ambição do luxo, outras por necessidade dos pesados encargos da existência, tinham desfilado durante anos em licenciosa e crapulosa romaria por aqueles corredores e alcovas, onde o cheiro forte do tabaco se misturava com os aromas penetrantes das essências que perfumavam as carnes e as roupas dessas aventurosas sacerdotisas de Citera.” Deve-se ainda reforçar que o bordel era um espaço de negócio e D. Maria clarifica essa ideia com o seguinte: 10

“Assim como assim, elas perdem quase todas a honra com uma cambada de pelintras que, ou as trocam por outras, ou lhes dão dois pontapés em dendo de barriga cheia. Ao menos que elas e nós tiremos algum proveito dessa perca, que muitas vezes abre às mulheres o caminho da felicidade.” Se as moradias do vício são variadas e de complexas qualidades, também as gentes que frequentavam estes espaços e até as próprias prostitutas eram variadas e de passados e presentes complexos. Voltando novamente ao exemplo do bordel de D. Maria, os seus frequentadores podiam ir de pares do reino, a cónegos, a homens da média burguesia lisboeta ou ao operário que tivesse a quantidade de moeda certa. Algumas pessoas imaginam a prostituição e a marginalidade como campos limitados a um determinado estrato social. Tal não se confirma nem nestas obras nem nos estudos da época. A vida noturna e marginal não negava ninguém e raros eram os que recusavam entrada nestes rituais. O que unia todos os estratos nesta amálgama de vícios era o desejo de os concretizar, para tornar isto uma realidade existiam os mais diversos e “requintados” espaços. Tal como é claro no bordel da D. Maria em que desde que a moeda fosse em quantia certa, tanto se lhe dava se fosse o par do reino como um pelintra qualquer. Aliás, até meados do século XX era aceite comumente a iniciação sexual masculina por intermédios de prostitutas. Esta prática era conhecida e vista como algo normal, por vezes necessária como parte dos rituais de passagem para a maioridade. Contudo, isso não implicava a aceitação social da prática da prostituição.19

O moralismo e as falsas dicotomias Nestas obras surge igualmente uma crítica social interessante e o reforçar dos estereótipos da classe. Todas as mulheres prostitutas representadas nestas obras reconhecem que as suas práticas são, aos olhos da sociedade, imorais (com a exceção de algumas personagens representadas em A Tuberculose Social: As Mulheres Perdidas), no entanto o raciocínio usado para justificar as suas escolhas é que é preferível vender o corpo a viver o tormento e a incerteza da pobreza.20

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Mattoso; Vaquinhas (2011, p. 262) “- Ser pobre é muito triste, observou Horácia acariciando entre os dedos as malhas de seda de uma das meias. - Triste, dizes tu, Horácia? Não há nada pior. É o inferno em vida. E por isso toda a mulher que, como agora te sucede, lhe aparece a fortuna pela proa não a deve rejeitar.” Gallis (1931, p. 131). 20

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Como já referimos anteriormente, a associação do feminino a uma natureza comportamental e a construção social dos modelos masculinos em oposição aos femininos são necessários para a compreensão das dinâmicas da prostituição, ainda mais num contexto histórico em que estes são tão explícitos. Identicamente, esta abordagem cruzada entre Literatura e História permite-nos realizar abordagens e reflexões sobre a definição de “comportamentos normais”, os quais foram estabelecidos pelas instituições e classes sociais dominantes.21 Aqui surgem questões sobre o conceito de moralidade, a definição de comportamentos considerados desviantes e a resistência dos grupos dominantes a esta “insubordinação”. De igual modo, surgem questões sobre a criação das teorias biopsicológicas que encaixam perfeitamente na moralização da sociedade. Ainda mais quando a prostituição (tanto masculina como feminina) eram percecionadas como resultado da conjunção da posição social e papel sexual dos seus intervenientes, cujas condutas e propósitos são ainda condicionados pela junção de factores de ordem económica, social, cultural, politica, religiosa e ideológica. Todos estes contribuíam para as relações entre os sexos em diversos aspetos e campos.22 Dada esta relação clara, não é de estranhar que os próprios autores destas obras literárias destaquem algumas destas questões. Ainda assim, a mais taxada é a conceção de uma moralidade diferenciada entre homens e mulheres. Em Marcelino Mesquita esta crítica surge por parte do protagonista masculino (João Rebello). Primeiramente, quando confrontado pelo pai sobre o ataque à honra familiar que manter uma relação publicamente com uma prostituta: “Frederico: Pois não passeia o senhor com a sua amazia nas praças e os teatros? Não a senta a seu lado, não vive indecentemente com ela, numa mancebia escandalosa? Quando passa na rua, não sabe, talvez, que o meu nome há-de entrar nos comentários à sua passagem e na crítica da sua vida devassa? Se é distinto, aqui, a não ter vergonha, se a devassidão é um ato fidalgo, se o desprezo das leis divinas e humanas constitui um título de glória, eu não conheço o filho que é assim gentil, fidalgo e superior. Não o tenho, renego-o. (…) Discutir o quê? O que quer o senhor discutir: a moralidade ou imoralidade da sua vida? Dúvida de que é um miserável?

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Silva (2001, p. 5 a 8) Silva (2001, p. 5)

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(…) João: Mas não o sou, perante a minha consciência. (…) Não meu pai. Esqueci as suas crenças, a educação de criança, as ideias bebidas com o leite. Perdi-as, sucessivamente, no convívio dum mundo diverso daquele em que vive, na leitura de livros é preciso descrer do divino, para acreditar em nós. Dai a diferença do pensar; o que ao senhor lhe parece um crime, é para mim, quando muito, uma falta; o que vê, receoso, como um sacrilégio, pesa no meu espirito, apenas, como um preconceito velho. Eu não manchei o seu nome; já homem, julguei poder dispor do meu. Livre, ofereci, a uma mulher livre, o meu braço e a minha estima. Frederico: Não pode fazê-lo. Nenhum homem de bem pode dar, em público o braço a uma mulher que não seja sua, à face de Deus. João: O casamento!? Uma convenção de moral suspeita, de que a humanidade herdou as misérias, as lutas e os crimes.”23 João acaba por evidenciar a incorreção de criticar o seu relacionamento tendo como base o nome de família, algo que sublinha ser irrelevante sendo ele próprio já um “homem formado”. Indo mais longe, aponta que o facto de estar numa relação de mancebia e ser denegrido por isso é resultado de preconceitos antigos, já sem razão de ser. De igual modo, aponta o casamento como algo tão arcaico como os preconceitos que Frederico quer fazer crer que assolam a sua honra. A crítica das falsas dicotomias continua: “Frederico: Eu não poderei ao menos convencer-te da baixeza miserável, da tua ligação! João: Não, meu pai. A mulher com quem tenho vivido tem tido amantes. Para que isto fosse, perante a minha razão, um crime, era preciso que as que ostentam pelo braço dos maridos a faculdade do convívio, os tivessem nunca, escondido no quarto nupcial. Para que me julgasse infamado dando o braço a essa mulher, era preciso provar-me que não há maridos que vendem as suas, que as prostituem para se elevar, escudados no laço da Igreja, acobertados no sendal transparente duma ignorância tão vil, que a língua humana ainda não inventou palavras para classificar. Ora, a esses homens a vossa sociedade conhece-os e considera-os E, 23

Mesquita (1885, p. 48–49)

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são as suas leis, as leis desta barregã, que evoca para me criminar! Eu tenho a coragem da franqueza: rejeito a lei, franca, abertamente; mostro-me a todo o mundo como sou. Quem faz caso dos cães libertinos que passam nas ruas? A vossa sociedade é muito alta e muito digna para olhar para mim.”24

Neste excerto aponta os problemas da moral da época. Morais que, de acordo com a personagem, só servem para beneficiar quem melhor as serve, sendo usadas não para garantir o bem de todos, mas sim para elevar alguns e discriminar os restantes. O raciocínio de João censura a conceção moralista dos papéis atribuídos à mulher, não só porque as limitam socialmente, mas também porque atribuem liberdades desiguais entre os sexos. Esta censura sobre as identidades sexuais, desenvolvidas durante o iluminismo e complementadas durante o liberalismo, requerem alguma atenção. Desde o século XVII que a identidade dos dois sexos foi sendo formada. Teóricos como Lamarck e Rousseau formaram conceções sobre a sexualidade que contribuíram para a fundamentação dos papéis sociais de ambos os sexos como opostos que se complementariam. Estes destacavam que no seu estado natural a sexualidade consistia simplesmente na satisfação de um desejo. No entanto, seria a negação da sexualidade por parte do feminino que havia permitido o desenvolvimento das civilizações.25 Biologicamente, isto manifestava-se através da especificidade da menstruação feminina, uma menstruação sem seguimento de desejo sexual como nas outras fêmeas, mas sim de dor. Nos aspetos psicológicos, através do seu pudor e sensibilidade naturais. Por último, as funções sociais estavam sedimentadas nas suas competências educadoras. Assim, o ser feminino tornara-se sinónimo de competências maternais e familiares, que por sua vez estavam associadas ao domínio do privado. Esta definição baseada no natural colocava o ser masculino como mestres da vida pública e cultural (em oposição à mulher-natureza), tal como os outros machos dedicar-se-iam sobretudo à proteção das fêmeas, seja através da defesa ou da subsistência. Para além da fundamentação dos papéis sociais dos sexos, formara-se a dicotomia do moral e imoral dentro dessas funções. Logo, a humildade, sentimentalidade e o pudor marcavam o ideal da moralidade feminina. Como contraponto, a ausência destas

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Mesquita (1885, p. 49) Liberato (2007, p. 55)

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qualidades seria considerada antinatural e imoral, tornando estas mulheres em marginais que deveriam ser “reformadas”.26 A mentalidade vitoriana da época, à qual não escapa Portugal, acaba por sedimentar esta lógica. Apesar de cada vez mais as mulheres se tornarem um pilar laboral da sociedade, isto não era desejado. O seu espaço devia ser o familiar, o privado, o da casa. Não o público ou laboral dos homens.27 O gradual abandono da esfera privada por parte das mulheres veio a acentuar as criticas de degeneração social ou as teorias decadentistas em voga no final do século XIX português. Claro que seria incorreto posicionar este novo percurso das mulheres como único pilar destas criticas, afinal o final de século fora muito proveitoso para criticas sociais,28 mas seria igualmente errado não o mencionar. No início do século XX surge uma tentativa de voltar a analisar estes papéis sociais, nomeadamente as suas consequências psicológicas. As análises de Sigmund Freud acabaram por revelar algo que este viria a cunhar como um complexo Madonna/Prostituta. Uma incapacidade de relacionar sexo (ação mecânica) com amor (ação espiritual ou mental). Ou seja, como Freud coloca a sua hipótese: onde os homens amam não há desejo, onde eles desejam não amam.29 Nestas obras o complexo é claro na maioria dos personagens do sexo masculino (excluindo a maioria dos protagonistas), mas não é irregular verificar personagens femininas a exercer o mesmo tipo de raciocínio30, inclusive prostitutas.31 A consequência deste complexo manifestar-se-ia através da impressão de uma idealização feminina impossível por parte da sociedade liberal. Simplificando, apenas as mulheres castas até ao casamento e que só praticam o ato sexual com o objetivo final da procriação é que poderiam alguma vez atingir a felicidade. Logicamente, todas as que rompiam para com este molde seriam consideradas “impuras” e fatalmente infelizes. Igualmente, isto acaba por negligenciar a mulher como ser sexual e com necessidades sexuais, justificando ao mesmo tempo os comportamentos ilícitos masculinos. Isto fica

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Walkowitz (1980, p. 90 a 112) Himmelfarb (1986, p. 4 a 6) 28 Aludimos aqui a questões como o Contrato dos Tabacos, a critica da religião, o Ultimatum Inglês, a discutível falência do parlamentarismo e monarquia constitucional portuguesa, a crescente popularidade do republicanismo, etc… 29 Freud (1912) 30 Visível no caso da D. Plácida em Rosa Enjeitada tal como D. Maria e outros personagens femininos em A Bandeira; 31 Visível em alguns diálogos entre as donas de prostíbulos, Ana e D. Maria em Tuberculose Social: As Mulheres Perdidas. 27

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claramente aparente no diálogo de João Rebello já citado anteriormente, nomeadamente quando aponta o casamento como forma de expiar esta dicotomia pelos homens. Logo, as mulheres ditas morais não devem ter impulsos sexuais, mas os homens estão livres para manter relações extraconjugais desde que sejam com mulheres impuras. No século XIX já existia uma narrativa de justificação para este complexo, relacionando-o diretamente com as relações sexuais monogâmicas.32 Vários estudiosos da prostituição portuguesa oitocentista33 afirmam que esta atividade é um mal necessário à ordem social e que ao mesmo tempo era a salvaguarda das famílias.34 Tendo em conta que a sexualidade familiar se fazia em função da reprodução e que o entretenimento do homem comum girava em torno de cafés e tabernas, a prostituição era vista como o único meio de viver a sexualidade masculina como um fim em si mesmo.35 Acrescido a isto surge a justificação atribuída mais tarde por Freud, que consistiria numa lógica de que a esposa seria demasiado “pura” para o marido a corromper sexualmente, a não ser para gerar descendentes. Assim, o ato sexual mesmo entre um casal que tenha contraído matrimónio seria interpretado como indulgenciar num ato pecaminoso e onde, em teoria, não existiria qualquer desejo masculino.36 Como tal, era geralmente esperado ou até mesmo desejado que o homem mantivesse relações sexuais paralelas às que teria com as suas madonnas como forma de as manter puras37, mas também como forma de expiar as suas frustrações sexuais. Este último ponto é abordado por alguns psicólogos e psiquiatras da época, sobretudo devido à necessidade de compreender a razão do “mercado” prostitucional ser tão atrativo e capaz de se adaptar aos desejos destes homens, indiferentemente da sua classe social.38 É importante voltar a salientar que quem carrega as conotações negativas desta dicotomia é sobretudo a mulher. Só com evolução da abordagem dos papéis sociais é que esta tendência começou a desaparecer lenta e gradualmente, porém nestas obras literárias tal é claro em todos os casos.

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Corbin (1990, p. 186 a 188) Veja por exemplo Armando Gião e Tovar de Lemos. 34 Pais (1985, p. 6) 35 Corbin (1990, p. 195 a 197) 36 Himmelfarb (1986, p. 8 e 9) 37 Freud (1912) 38 Corbin (1990, p. 206 a 211) 33

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O Fatalismo Também o fatalismo é claro nas obras que têm como assunto a prostituição. Em primeiro lugar, nenhuma obra que tenha a prostituta como uma das personagens centrais tem um “final feliz”. Pelo contrário, o destino destas mulheres é sempre conturbado, com picos de extrema felicidade seguidos de longos anos de tristeza. Para melhor ilustrar isto recorremos às obras mencionadas, fazendo uma análise do final de cada uma. Em A Bandeira, a personagem que lhe dá nome, Mariquitas Bandeira, começa o seu percurso como uma mulher cínica, prostituta teatral que apenas procura explorar cada homem que por ela se interessa com o objetivo de acumular a maior quantidade luxos. Eventualmente apaixona-se por Luiz e vive os melhores momentos da sua vida até este se cansar de satisfazer os seus caprichos. Quando este parte para o Brasil, ela segue-o na esperança de remendar o passado, mas depressa se perde na história de um vendedor de joias, que tal como ela, apenas a queria explorar. Acaba por adoecer a bordo e o seu novo amante leva-lhe tudo, ficando Bandeira mentalmente esgotada39 e durante a viagem pouco mais faria do que contemplar de olhos vazios o que a rodeia. Pouco depois de chegar ao Brasil morre sem sequer voltar a ver Luiz, que sem ela chegar a saber também já tinha morrido. Na obra de Alfredo Gallis, Horácia vive uma vida cheia de turbulência desde a morte da mãe. Após se tornar numa prostituta em Lisboa encontra o amor da sua vida e ambos vivem felizes durante algum tempo. Porém, este acaba por adoecer da mesma forma que matara a sua mãe. Com todo o sofrimento da morte do seu amante, Horácia vê-se com o fim das suas poupanças e volta ao caminho da prostituição. Beneficiando de uma beleza eterna, D. Maria rapidamente arranja um rico viúvo com qual ela possa manter relações. Mais uma vez, estes acabam por se apaixonar, ela engravida, casam e vivem no que parece ser a relação mais radiante das suas vidas. Porém, o destino favorece histórias dramáticas, e o Doutor com quem Horácia se casara descobre que esta fora o resultado de uma antiga paixão que tivera com a sua mãe. A partir desse momento, assolado com a descoberta de que mantivera relações incestuosas com a sua filha, começa a preparar o seu testamento. No fim acaba por cometer suicídio num ato de penitência pelos dois

“Estava mortalmente ferida. Nem o espirito nem o corpo funcionavam com a regularidade necessária” Macedo (1897, p. 494). 39

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crimes que cometera: ter abandonado a mãe de Horácia após a ter engravidado e ter mantido relações incestuosas com a sua filha. Em A Rosa Enjeitada, a personagem que lhe dá nome é imediatamente apresentada como alguém que já viu e sofreu. Com o desenrolar da história o destino continua a colocar mais pedras no seu caminho, quer na forma do chulo (Chico da Arruda) que é manipulador e abusivo ou em João Reynaldo por quem se apaixona sem saber que já está comprometido. O chulo de Rosa acaba por a incriminar de um crime que não cometeu, só sendo libertada no final. Após a sua libertação acaba por encontrar o casal, porém já está longe de ser a mesma. Praticamente cega e com a morte por perto, o único consolo que recebe é em ser bem recebida por estes antigos conhecidos. Como prostituta com coração de ouro, ignorou o seu amor e permitiu que fosse presa injustamente para evitar estragar o futuro deste casal. A obra de Bento Mântua é significativamente mais breve, mas ao mesmo tempo sucinta e clara. A prostituta (Micas) rapidamente se conforma com as cartas que a vida lhe atribuiu e não procura abandonar esse posto. Compreende os males da sua profissão, mas ao mesmo tempo já não se considera digna de prosseguir de mais nenhuma forma, mesmo que o seu companheiro lhe bata ou roube, mesmo quando o guitarrista lhe dá uma oportunidade de fugir. Tal como na obra mencionada anteriormente, a prostituta não deseja manchar o nome de um homem honesto, justificando-se que este merece uma mulher pura e digna, mas também porque este deve-se preocupar com a sua família e não com aquela “carne, que é revistada como a dos animais para a matança”. Outro resultado interessante desta análise é a tendência de existir uma “redempção na morte” ou pelo menos uma tentativa de tal. Isto torna-se particularmente claro em Alfredo Gallis e João da Câmara. No primeiro, através do seu sentido mais literal. O Doutor comete suicídio por ser o catalisador da triste história de Horácia, mas também é possível estender a comparação a Luiz que morre após se amancebar a esta. No caso de Rosa Enjeitada este tropo é ao mesmo tempo concretizado literalmente, mas incorre de uma ligeira subversão. De facto Rosa morre no final da obra, porém ela já tinha sido redimida. Aqui a redempção surge através da sua prisão por um crime que não cometera de forma a garantir a felicidade daquele que amava e não pela morte literal à qual é eventualmente sujeita.

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Como se tornou claro, nenhuma destas obras tem um final digno de um conto de fadas, mas mais importante é o seu significado. A ideia de que uma prostituta, ser imoral, estava “proibida” de ser feliz, é claro. Por muito que os seus motivos fossem justificados, estas não tinham lugar na sociedade a não ser como objetos de satisfação masculina. Acrescido a isto está o forte valor moralístico de algumas destas obras. Por muito que os autores quisessem que o leitor simpatizasse com as personagens, a mensagem que se tencionava passar era que a prostituição jamais deveria ser uma opção para as mulheres da época. No melhor dos casos a prostituta consegue algum consolo na morte, nos piores todos os envolvidos são punidos pelos seus “pecados”. Tal como explicitamos em outros capítulos, isto deve-se tanto ao facto destas mulheres serem consideradas danificadas (pela sua ausência de pureza), como ao impacto social desta profissão. Em contraponto, nestas obras são raros os casos em que os cúmplices masculinos são castigados por terem relações com prostitutas. Aliás, nenhum é explicitamente punido por contrair relações sexuais com estas, mas sim por outros actos moralmente dúbios ou contra a lei (abandono familiar, incesto, crimes contra honra familiar, assalto e/ou assassinato). Mais uma vez reforçando que era esperado que os homens tivessem relações sexuais ou amorosas com estas figuras de má reputa.

Conclusão A prostituição era, no século XIX, uma instituição marginalizada, ativa e com os seus próprios códigos. Mesmo sendo marginalizada, a prostituição não deixou de ter um papel importante na vida pública e privada, sendo o complemento essencial para a subsistência da monogamia. Com isto a prostituição apresenta-se ao mesmo tempo como um mal necessário para o funcionamento desejado da sociedade, ou mesmo como uma condição indispensável à salvaguarda da família.40 Tendo em conta que a sexualidade familiar se fazia em função da reprodução e que o entretenimento do homem comum girava em torno de cafés e tabernas, a prostituição era vista como o único meio de viver a sexualidade como um fim em si mesmo, mas com pesos diferentes perante os géneros. Se as prostitutas eram desprezadas aos olhos da sociedade, membros de todas as classes recorriam às meretrizes. Uns pela ligação ao fado e ao Bairro Alto, outros procurando prostitutas de rua e, os de classe mais elevada ou através da companhia às touradas das

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Lemos (1908, p. 91)

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cocotes41, parte integrante da prostituição, mas cujos hábitos em Portugal ainda são pouco conhecidos e estudados. Porém, o que todas estas obras têm em comum é a conceção defendida por José Machado Pais na obra já mencionada: “É que a prostituição, para além de constituir um fenómeno social (…) é, sem lugar a exageros, uma verdadeira instituição social – uma instituição complementar da ligação estável que monopoliza as relações sexuais «legítimas»: a monogamia”. A prostituição no século XIX português é resultado das fundamentações dos papéis sociais de ambos os sexos, mas também das regulamentações legais e sociais. A prostituição era, como em alguns outros países, uma prática legalizada, contudo isso não implicava que fosse aceite pela sociedade. Ainda assim, este era o meio de algumas mulheres “se fazerem à vida”, ora por escolha ou por necessidade. Nestas obras literárias vemos as prostitutas a desempenhar um papel que a sociedade portuguesa lhes havia negado: o de protagonista da sua história e da sua vida. Nelas somos apresentados aos pormenores íntimos das suas “verdadeiras” vivências. Ou seja, para além daquilo que a sociedade apelidada correta considera. Tirada a máscara da libido, da luxuria e da ganância vemos mulheres exatamente iguais às “puras”, sem qualquer diferença entre elas exceto a profissão. A desconstrução dos grandes tropismos evocados nas obras literárias sobre a temática da prostituição permite verificar todos os estigmas destas mulheres. A necessidade de exaltar algumas como detentoras de um “coração de ouro” enquanto outras seriam personificações dos pecados, revela não só a necessidade de justificar as dificuldades económicas vividas pelas mulheres da época, mas também para as demonstrar enquanto seres indesejáveis. A formalização de falsas dicotomias e padrões duplos aplicados ao género, mas também ao estatuto social explicitam o espartilhamento da sociedade de fim de século. A glorificação de virtudes impossíveis assentes em papéis sociais que já não eram realizáveis. A mulher deparava-se com a necessidade de trabalhar e contribuir para o seio familiar, contudo era desprezada por isso mesmo. Ao mesmo tempo, aquelas que se revelavam independentes da família ou com percursos alternativos eram censuradas como “más mulheres”. O facto de serem prostitutas, logo excluídas da proper society, apenas exacerbava esse desdém. 41

Como por exemplo nos ilustra Eça de Queiroz n’Os Maias.

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Também o fatalismo aparentemente inerente às suas histórias de vida é sustentado na decadente moralização do final do longo século XIX. A negação objetiva de um final feliz a qualquer uma das prostitutas é intencional. A única esperança destas mulheres seria mesmo terem uma morte feliz e mesmo assim essa felicidade pode ser questionada. Afinal, sendo os seus destinos assim traçados, ninguém deveria desejar pertencer à sua classe. Em suma, os pormenores sobre a atitude destas “mulheres caídas”, o ambiente que as rodeava e a atitude paternalista dos homens que as acompanhavam, complementam a ideia típica da prostituição portuguesa. Uma profissão onde as mulheres não só se tornavam objetos de personificação negada, mas também de consumo público. Deve-se ainda salientar que a prostituição é um tema pouco estudado, tanto pela falta de fontes, mas também talvez por se menosprezar o seu papel na História, esquecendo-se que os marginais de uma sociedade também a definem. Como tal, deve-se fazer um esforço para explorar e analisar as suas realidades, tanto dentro do meio académico como fora dele.

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S.

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zur

Psychologie

des

Liebeslebens.

Jahrbuch

für

psychoanalytische und psychopathologische: Forschungen, v. IV, p. 40–50, 1912. GIÃO, A. Contribuição para o estudo da prostituição em Lisboa. Lisboa: Typographia Christovão Augusto Rodrigues, 1891. LEMOS, A. T. DE. A prostituição: Estudo anthropologico da prostituta portugueza. Lisboa: Centro Typographico Colonial, 1908. MONIZ, A. E. A vida sexual, 3a ed. Lisboa: Livraria Ferreira, 1913. SCHWALBACH, F.; VENTURA, A. O vício em Lisboa seguido de Regulamento policial das meretrizes: antigo e moderno. 1a ed. Lisboa: Tinta-da-China, 2011.



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