As representações do crime na mídia e sua relação com discursos que criminalizam a pobreza

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RICARDO LOPES ESTEVES














AS REPRESENTAÇÕES DO CRIME NA MÍDIA E SUA RELAÇÃO COM DISCURSOS QUE
CRIMINALIZAM A POBREZA


















UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE DIREITO
GOIÂNIA – GO
2015

RICARDO LOPES ESTEVES














AS REPRESENTAÇÕES DO CRIME NA MÍDIA E SUA RELAÇÃO COM DISCURSOS QUE
CRIMINALIZAM A POBREZA





Monografia Jurídica apresentada como
exigência parcial para obtenção do
título de bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Goiás, sob
orientação do Professor Dr. Adegmar José
Ferreira.













GOIÂNIA
2015




























Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)
GTP/BC/UFG


RICARDO LOPES ESTEVES






AS REPRESENTAÇÕES DO CRIME NA MÍDIA E SUA RELAÇÃO COM DISCURSOS QUE
CRIMINALIZAM A POBREZA


Monografia jurídica defendida e aprovada em de junho de 2015, pela Banca
Examinadora constituída por:


___________________________________________________________ Nota:
__________
Professor Doutor Adegmar José Ferreira
Presidente


___________________________________________________________ Nota:
__________
Professor Doutor Fernando Antônio de Carvalho Dantas
Membro


___________________________________________________________ Nota:
___________
Professor Mestre Rangel Donizete Franco
Membro


Média:__________






GOIÂNIA
2015


SUMÁRIO



RESUMO......................................................................
...........................................................09


ABSTRACT....................................................................
.........................................................10

TABELA DE
SIGLAS......................................................................
......................................11

INTRODUÇÃO..................................................................
.....................................................12


I – A MÍDIA NO CONTEXTO DA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA...............................................................
..............................................14
1. Uma tensão entre Direitos Humanos, mídia e
criminalidade..............................................................
............................................................14
2. Mídia e opinião pública – conceitos
sinuosos...............................................................16
3. Os meios de comunicação como um quarto poder
estatal............................................19
4. A violência como
espetáculo.................................................................
........................26
II – A MÍDIA PUNITIVISTA NO CONTEXTO DO ESTADO
NEOLIBERAL..................................................................
......................................................32
2.1 Presos que dão
lucro......................................................................
...................................33
2.2 A mídia cidadã e seu
discurso...................................................................
.......................40
2.3 Quem é o inimigo? ....................................................
.....................................................45
2.4 Os reflexos do discurso midiático na elaboração de políticas
públicas............................50

III – UM NOVO PARADIGMA DE DIREITOS HUMANOS COMO ALTERNATIVA
POSSÍVEL....................................................................
...........................................................56

3.1 As diferentes perspectivas de Direitos
Humanos.............................................................56
3.2 Os Direitos Humanos pensados sob outra
ótica......................................................................
...................................................................61
3.3 Um imperativo categórico contra as
vitimizações............................................................66

CONSIDERAÇÕES FINAIS 68


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 70




















AGRADECIMENTOS



Agradeço primeiramente a Deus sem o qual nada é possível, agradeço
também à minha mãe e ao meu pai por todo o esforço e empenho na minha
formação, bem como por todo o apoio e incentivo que sempre me deram.
Obrigado por serem sempre o meu chão e luz, me apoiarem e ensinarem de
maneira ímpar. Amo-lhes infinitamente e graças a vocês eu cheguei até aqui.


Aos meus irmãos, Rafael e Camila, por serem meus grandes exemplos e
fontes de incentivo. Aos meus avós, tias, tios e madrinha, por toda a ajuda
e apoio incondicional que sempre me foi dado em todos os momentos em que
precisei.


Aos meus amigos que me acompanham desde o ensino médio bem como aos
amigos da faculdade, com os quais sempre dividi momentos como este, de
prestígio e alegria, agradeço por cada crítica e palavra de incentivo e
apoio.


Agradeço imensamente ao meu orientador, professor Adegmar José
Ferreira ao professor Fernando Antônio de Carvalho Dantas e ao também
professor Rangel Donizete Franco sempre atenciosos, pacientes e solícitos,
por terem me conferido a oportunidade de ter realizado esta monografia,
pois é motivo de muita honra e satisfação ter tido o auxílio de todos e
contar com essas ilustres presenças na apresentação deste trabalho.


Por fim, agradeço à minha namorada Ana Clara Gonçalves Pamplona
companheira mesmo nos momentos mais difíceis, agradeço especialmente
Wanderleya Nara Gonçalves Costa, exemplo não só de professora e
pesquisadora, como também de amiga e conselheira.


































Dedico este trabalho aos invisíveis de
nossa sociedade.




















Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas
Eu sou o cara
Cansado de correr
Na direção contrária
Sem pódio de chegada ou beijo de namorada
Eu sou mais um cara
Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para (...)
O Tempo Não Para
(Cazuza e Arnaldo Brandão)


RESUMO


Esta monografia apresenta um estudo acerca da relação entre mídia,
direitos humanos e criminalidade na sociedade contemporânea. O estudo busca
compreender em que medida os meios de comunicação influenciam nos discursos
acerca do crime e do criminoso bem como os efeitos desses discursos.
Partindo de uma conceituação dos termos mídia e opinião pública tenta-se
perceber em que sentido a própria ideia de imparcialidade e função social
dos meios de comunicação autorizam uma atuação por parte desses agentes que
em tese não necessitariam do controle estatal. Utilizando um método
qualitativo de pesquisa que prioriza a análise bibliográfica e documental
segundo uma perspectiva reflexiva/interpretativa, argumenta-se que, longe
de figurarem como agentes neutros, os meios de comunicação apresentam-se
como parte integrante de um mercado mais amplo, que atua em diferentes
áreas, tendo interesses na divulgação da informação. Assim sendo, essa
liberdade do comunicador social existe dentro de um enfoque limitado pelos
interesses dos agentes de mercado. A imparcialidade nessa conjuntura
aparece como mito, tanto do mercado como da mídia. Então, os casos
analisados indicam que o problema da criminalidade nesse contexto serve de
fundamentação para chancelar a suposta atuação cidadã da mídia que agindo
em duas frentes, por um lado perpetua o discurso da ineficiência estatal em
gerir os problemas da sociedade, e por outro dá força à iniciativa privada.
As análises evidenciam ainda que, aproveitando o enfoque midiático, os
agentes políticos utilizam-se do populismo voltado para a questão da
segurança pública, propondo leis mais rígidas, aproveitando o carisma de
vítimas para proporem leis que nem sempre apresentam técnica jurídica
adequada. Os mais pobres e negros são rotulados, tanto por um preconceito
institucional quanto por uma atuação estigmatizante por conta da mídia.
Percebe-se uma falência do sistema penal que não se resume estritamente à
área penal, mas que envolve todo um modelo de sociedade. Assim, coloca-se
como possibilidade alternativa a esse contínuo desrespeito à Dignidade
Humana, uma nova ética que possa se distinguir da lógica do mercado e ter
como valor fundamental a vida e dos direitos humanos.






PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Mídia. Criminalidade. Teoria do rotulamento.
Direitos Humanos.


ABSTRACT


This paper presents a study about the relationship of media, human
rights and crime in contemporary society. The study seeks to understand the
length of media influence on crime and criminal discourse as well as the
effect of these speeches. From a concept of media and public opinion tries
to understand in which sense the idea of fairness and media´s social
function authorizes a performance from those stakeholders, that don´t need
state control. Using a qualitative research method that prioritizes the
bibliographical and documentary analysis according to a reflective /
interpretive perspective, it is argued that, far from appearing as neutral
agents, the media, are presented as part of a wider market, which acts in
different areas, with interests in information disclosure. Accordingly,
this freedom of the social communicator exists within a narrow focus for
the interests of market participants. Impartiality at this juncture appears
as myth, both the market and the media. Then the analyzed cases indicates
that the problem of crime in this context serves to seal the supposed
rationale for citizen media performance that acting on two fronts, on the
one hand perpetuates the discourse of state inefficiency in managing the
problems of society, and on the other gives force the private sector. The
analyzes also show that, taking advantage of the media focus, politicians
uses populistic strategies to face the public safety issue, proposing
stricter laws, taking advantage of the charisma of victims to propose laws
that often don´t follow adequate legal technique. The poors and blacks ones
are labeled either by an institutional prejudice and by a media
stigmatizing acting. The failure of criminal justice system is not strictly
limited to the penal area, involving a whole model of society. Thus arises
as an alternative to this continuous disrespect of human dignity, a new
ethic that can distinguish itself from the market logic and have as
fundamentals values life and human rights.





KEYWORDS: Criminal Law. Media. Labelling Approach. Human Rights.














TABELA DE SIGLAS





BBC--------------------------------------------------------------- British
Broadcasting Corporation


DEPEN ----------------------------------------------------- Departamento
Penitenciário Nacional


ECA -------------------------------------Estatuto da Criança e do
Adolescente - Lei 8.069/1990


E.U.A----------------------------------------------------------------------
Estados Unidos da América


IBGE------------------------------------------------Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística


IBOPE--------------------------------------Instituto Brasileiro de Opinião
Pública e Estatística


ONG's-----------------------------------------------------------
Organizações Não Governamentais


PSDB------------------------------------------------------Partido da Social
Democracia Brasileira


R.U-------------------------------------------------------------------------
-------------------Reino Unido


SBT-------------------------------------------------------------------
Sistema Brasileiro de Televisão


TV--------------------------------------------------------------------------
-----------------------Televisão

INTRODUÇÃO


Relacionar mídia, criminalidade e direitos humanos transcende as
possibilidades de um trabalho monográfico, pois são três temas que em si
são complexos e abordam grande variedade de sentidos.


Pretende-se aqui abordar a forma como a mídia trata os
acontecimentos ligados ao crime e à criminalidade, com ênfase no que se
convencionou chamar cultura do medo ou tolerância zero, e tentar entender
em que medida uma nova perspectiva sobre direitos humanos poderia auxiliar
nessa questão.


A cultura do medo ou tolerância zero é uma ideologia que vai muito
além de nossas fronteiras, se resume na ideia de que existem sujeitos
perigosos que ameaçam o convívio social e por isso devem ser encarcerados.
Existem muitos estudos sobre esse fenômeno nos Estados Unidos, na Grã
Bretanha, no Brasil, no México, etc. que serão de grande valia ao longo
desse trabalho.

É difícil escolher apenas um método de pesquisa e de análise para o
desenvolvimento da pesquisa jurídica, em especial, quando se toma como foco
conceitos como os aqui utilizados, que estão relacionados a diferentes
áreas de conhecimento. Em vista disto, na pesquisa em curso, qualitativa e
eminentemente bibliográfica e documental, as análises ocorrem a partir de
uma aproximação aos métodos sociológico, histórico, analógico e
comparativo.

Fez-se necessária pesquisa bibliográfica e documental, pois não se
pode fundamentar bem um trabalho jurídico sem a apresentação das leis ou
decisões jurisprudenciais que regem o tema, além disto, ao longo do
trabalho, recorreu-se à análise de casos advindos tanto de fontes mediatas
quanto imediatas de pesquisa. A este respeito, cabe pontuar que, na área
jurídica existem:





Fontes mediatas de pesquisa: experiência; vivência;
engajamento laboral; observação; engajamento político;
aprendizado didático-escolar; inter-relacionamento
social...


Fontes imediatas de pesquisa, sendo estas divididas em:


Fontes imediatas de pesquisa de interesse jurídico:
filmes; canções; notícias de jornais; jornalismo
televisivo; reportagens; entrevistas; Internet (sites e
links); fonogramas; videofonogramas; ilustrações,
gravuras, fotos, pinturas, esculturas; experiências
laboratoriais; discursos políticos...


Fontes imediatas jurídico-formais de pesquisa: lei,
doutrina (artigos, anais de congressos, livros,
palestras...), jurisprudência (decisões dos tribunais,
súmulas, enunciados...), contrato, costume, equidade,
princípios e analogia. (BITTAR apud RIBEIRO e FERRER,
2012, p. 11 – grifo nosso)



Por sua vez, a análise do material coletado seguiu as fases:
exploratória, seletiva, analítica e reflexiva/interpretativa,
possibilitando a formulação de um juízo de valor a respeito das fontes
consideradas.


Como ponto de partida, o primeiro capítulo tem como foco a
localização do problema no espaço e no tempo, determinando o conceito de
mídia utilizado no presente trabalho, bem como uma breve história da
relação entre os meios de comunicação e os fatos tidos como criminosos.


No segundo capítulo a abordagem se volta para atual fase do
capitalismo global e sua incidência nas políticas criminais de diferentes
países, buscando compreender como se dá esse fenômeno e seus impactos
sociais.


O terceiro capítulo busca evidenciar qual a perspectiva acerca dos
direitos humanos que se pretende levar em consideração, como sendo possível
alternativa ao problema do encarceramento e das ideologias voltadas às
praticas insustentáveis de consumo e de convivência em sociedade.


Espera-se que a leitura desse trabalho seja prazerosa e que sirva
como fonte de pesquisa para outros estudos.








CAPÍTULO I





A MÍDIA NO CONTEXTO DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA





É essencial, de forma propedêutica, introduzir o problema
apresentado evidenciando a tensão entre os direitos humanos, a mídia e a
criminalidade para que assim se possa abrir caminho para a análise dos
discursos que criminalizam a pobreza nos meios de comunicação.


Apresentar os meios de comunicação e as nuances de conceitos
amplos, como mídia e opinião pública possibilita desconstruir a armadura
forjada ao longo dos séculos XX e XXI de que os meios de comunicação
representam tão somente a voz popular, a despeito de qualquer interesse
escuso.


Por fim, pensar o crime como espetáculo não deixa de ser o ponto de
partida para compreender uma realidade mutante. Embora não seja novidade, o
interesse da imprensa pela violência tende a não se restringir à simples
busca por audiência, fazendo parte de um contexto político e social
específico.






1. DIREITOS HUMANOS- MÍDIA- CRIMINALIDADE






Em uma sociedade marcada pela forte influência dos veículos de
comunicação de massa, entender como os discursos se propagam é de
fundamental importância. O discurso que é construído no dia a dia das
grandes cidades carrega consigo elementos que vão influenciar na forma como
os cidadãos se posicionam diante dos problemas sociais, direcionando
interesses, consciências e relações, ora dando mais ou menos relevância a
uma ou outra vertente do fato social.


Mas a maneira como determinada questão é tratada pelos meios de
comunicação de massa costuma carregar ideologias muitas vezes ocultadas por
um discurso do medo, que para Debora Piacesi (2012) se refere a um debate
que vem sendo travado por alguns estudiosos do tema quando relacionam o
crime e as percepções sociais acerca deste:






O debate acerca da exacerbação do medo nos discursos sobre
a realidade contemporânea, em especial, no que diz
respeito ao crime e os efeitos que essa percepção opera
nas interações sociais e democráticas já vem sendo travado
por distintas teorias como as do Fascismo social (Santos,
2001), da Cultura do medo (Glassner, 2003), do Estado
penal (Wacquant, 2001), da Cultura do controle (Garland,
2008) e do Pânico moral (Cohen, 2002). A partir da revisão
destas teorias, definimos o conceito operacional de
discursos do medo como sendo os discursos históricos,
políticos, midiáticos, culturais e sociais que exacerbam o
medo e o colocam como protagonista dos fenômenos sociais,
de forma a gerar alterações nas interações sociais e
democráticas. (PIACESI, 2012)


Os discursos contra o crime que colocam os defensores dos direitos
humanos quase como "advogados do diabo" estão diretamente relacionados com
a criminalização de determinadas camadas da sociedade, a chamada
criminalização da pobreza, havendo uma maior reprovação, por parte dos
agentes que propagam esses discursos, por tipos penais específicos em
detrimento de outros, como pontua Zaffaroni (2009) (ZAFFARONI, 2009, p.56
).


Essa defesa do Estado penal máximo desumaniza o criminoso,
retratando-o como sub-humano, alguém sem salvação à margem da sociedade
constituída, um perigo ao "cidadão de bem". Neste contexto, perpassa a
ideia de que o "bandido", "vagabundo", deve ser desumanizado, para ele não
deve haver direitos humanos, e quem defender a humanidade desses sujeitos
também estará contra a sociedade, contra os valores de vida em comunidade,
pois se coligam com o que de pior pode existir no imaginário social - o
criminoso.


Toda e qualquer relação desse criminoso com a vida de um ser humano
comum são esquecidas, sua família, seus afetos, os motivos que o fizeram
cometer determinado delito, etc. Essas relações, inclusive, só serão
resgatadas para um julgamento moral negativo do acusado, como é feito
magistralmente no romance "A Honra Perdida de Katharina Blum" de Henrich
Boll (1975), que narra o sofrimento de uma moça ao ser acusada por
assassinato, sendo condenada pela imprensa antes mesmo que o processo
tivesse chegado ao fim, atacando sua moral, honra e intimidade.


Observa-se que a mídia propaga um discurso e o vende como sendo a
"opinião do povo". Dessa opinião do povo surgem propostas (muitas vezes
inconstitucionais), de legalização da pena de morte, redução da maioridade
penal e outras propostas legislativas que vão surgindo ao sabor do momento,
como foi o caso da edição da lei de crimes hediondos, votada da noite para
o dia após o assassinato da filha da novelista Gloria Perez, em 1992.


Esse discurso midiático e seus efeitos sociais levam a uma grande
tensão entre os direitos humanos estabelecidos, as garantias
constitucionais, e uma pretensa "opinião popular" que, não raro, se pauta
na ideia de que vivemos em um verdadeiro caos, e que medidas extremas devam
ser tomadas para se restabelecer a ordem e a moralidade.


Antes de se referir à ideia de direitos humanos como algo abstrato
é necessário um posicionamento sobre a perspectiva que será abordada, sob
pena de se cair em generalizações que pouco auxiliam na concretização
desses direitos como sendo realmente universais.






2. – MÍDIA E OPINIÃO PÚBLICA – CONCEITOS SINUOSOS






Pensar os meios de comunicação a partir do direito não é uma tarefa
simples, a possibilidade de generalizações é grande, uma vez que a
comunicação social representa um campo do saber tão amplo quanto o campo
jurídico. Dessa maneira, pretende-se fazer um rápido esboço de alguns
conceitos tidos como necessários para uma melhor compreensão do trabalho
aqui proposto, com o intuito de voltar rapidamente à discussão para a
questão dos discursos midiáticos sobre o crime.


Falar em mídia é algo complicado, pelo menos se o conceito for
pensado sob a perspectiva das ciências da comunicação. Quando se fala " os
meios de comunicação" acaba-se por generalizar todo um seguimento da
sociedade que na maior parte das vezes se mostra heterogêneo, tanto em
relação às ideologias abordadas, quanto ao alcance social, modo de
transmissão, etc. Derivando a palavra mídia da ideia do que são os meios de
comunicação, costuma-se usar os termos como sinônimos.


Entretanto, optou-se por fazer uma distinção entre os dois
conceitos, uma vez que se pretende abordar um certo perfil dos meios de
comunicação e não outros. Meios de comunicação podem ser quaisquer meios
destinados à comunicação entre pessoas, podendo ser desde pequenos jornais
universitários, até telefones ou canais de TV. Contudo, existe uma grande
diferença entre a capacidade de difusão de informação de um jornal
universitário e de um canal de TV.


Assim, convencionou-se chamar os grandes conglomerados (sites,
canais de TV, jornais de grande circulação etc.) de mídia. A palavra pode
ser utilizada também para denotar o suporte físico necessário em produções
audiovisuais, tais como fitas, CDs, cartões de memória dentre outros
significados como demonstra o Dicionário Michaelis:


mídia
mí.dia
sf (ingl mass media) Propag 1 Veículo ou meio de
divulgação da ação publicitária. 2 Seção ou departamento
de uma agência de propaganda, que faz as recomendações,
estudos, distribuições de anúncios e contato com os
veículos (jornais, revistas, rádio, televisão etc.). 3
Numa agência de propaganda, pessoa encarregada da ligação
com os veículos e da compra de espaço (eventualmente de
tempo) para inserção ou transmissão de anúncios. 4 Inform
Qualquer material físico que pode ser usado para armazenar
dados. Os computadores podem utilizar uma variedade de
mídias, como discos, fitas ou CD-ROM. Sin: meio. M.
eletrônica: a televisão, quando considerada como veículo
de comunicação. M. impressa: os jornais e revistas, quando
considerados como veículos de comunicação. (MICHAELIS,
Dicionário Online) (grifou-se).






O dicionário não traz a ideia de meio de comunicação de massa, isso
é, aqueles com grande capacidade de difusão de informação e
concomitantemente de ideologia. Como demonstrado o termo vem de mass media
que para Guazina (2007):






Em um rápido apanhado histórico, veremos que a origem do
uso da palavra mídia está nas pesquisas norte-americanas
sobre mass media, herdeiras (em sentido cronológico) dos
estudos sobre voto,comportamento eleitoral, propaganda e
opinião pública nos períodos pré e pós-guerras, entre os
anos 1920 e os 1940, nos Estados Unidos (a origem mesma da
Communication Research) (WOLF, 2003). Estes estudos
oscilaram em seu objeto, dedicando-se a pesquisar
pontualmente às vezes os meios de comunicação de massa;
outras vezes, a cultura de massa ou sociedade de massa;
mas sempre constituiram-se em abordagens e teorias
centradas na Sociologia e na Ciência Política norte-
americanas, influenciadas pelas descobertas da Psicologia
behaviorista (GUAZINA, 2007, p.51).






É nesse sentido de meios de comunicação de massa que se utilizará a
palavra mídia, para que não haja a possibilidade de confusão entre o
fenômeno do apogeu de verdadeiras multinacionais da comunicação com as
diversas dimensões da comunicação social, que vão desde o meio acadêmico
até a luta política diária de pequenos jornais, rádios comunitárias etc.


Outro ponto fundamental é a ideia de opinião pública, confundindo-
se "a voz" dos meios de comunicação/mídia com a opinião das pessoas em
geral. O conceito de opinião pública é complexo, e se o termo é difícil
quanto mais a opinião geral de certa população em relação a um tema
específico.


Delson Ferreira, em seu manual de sociologia, cita José Rodrigues
dos Santos, em estudos baseados nas pesquisas de T.J. Scheff, evidenciando
como o conceito de opinião pública é sinuoso e pode dar a entender que a
opinião de uma minoria é a opinião da maioria e vice-versa. Ele afirma:


Em várias situações, muitos indivíduos não comunicam as
suas opiniões pessoais a outros, fazendo com que pensem
pertencer a uma minoria. Na verdade, a maioria pode
partilhar em silêncio o mesmo ponto de vista deixando que
uma poderosa minoria, com acesso aos meios de comunicação
de massas, imponha um falso consenso. Scheff definiu essa
situação como sendo produto da 'ignorância pluralista', um
conceito que outros batizaram de 'maioria silenciosa'. Os
estudos de Scheff provaram ser impossível apurar
empiricamente qual a opinião majoritária sobre um assunto,
mas abriram caminho a outros investigadores para analisar
o processo de formação dessa opinião (SANTOS apud
FERREIRA, 2003, p.222).






Citando Habermas em Ferreira (FERREIRA, 2003), tem-se que a mídia
constrói o ambiente da opinião, da aparência de consenso ao que é
veiculado:






O mundo criado pelos meios de comunicação de massa só na
aparência ainda é esfera pública, mas também a integridade
da esfera privada, que ela, por outro lado garante aos
seus consumidores, é ilusória. Ao invés da opinião
pública, o que se configura na esfera pública manipulada é
uma atmosfera pronta para a aclamação, é um clima de
opinião (HABERMAS apud FERREIRA, 2003, p.222).






Fica então complexo definir qual a real opinião da maioria em uma
democracia, a não ser com instrumentos de aferição como voto e pesquisas
feitas por institutos qualificados. Em alguns momentos quando um meio de
comunicação de massa comete um erro que acaba permitindo uma maior abertura
para opinião popular, fica claro que o discurso midiático nem sempre
representa a opinião do público, citaremos abaixo um exemplo que aconteceu
em um programa ao vivo.


No telejornal da Band (TV BANDEIRANTES) Cidade Alerta, 1 o
apresentador se diz contra a "baderna" nos protestos e faz a enquete ao
vivo: "Você é a favor desse tipo de protesto?", "que inclui depredação
pública", completa o apresentador. Perplexo com o resultado da enquete -
2940 aproximadamente "sim" e 1940 "não", José Luiz Datena reformula a
questão supondo que o público não tivesse entendido. Reformulada a enquete
fica: "Você é a favor de protesto com baderna?", e novamente o resultado é
"sim", com mais que o dobro de votos.[1]


A formulação da pergunta: "Você é a favor de protesto com baderna
?" demonstra a tentativa de direcionar as respostas e consequentemente a
opinião pública. Logo, afirmar que temas como a redução da maioridade
penal, pena de morte, lei de crimes hediondos, etc. sejam um consenso da
população é tratar a questão de forma superficial, já que é difícil aferir
a opinião da maioria. Muitas vezes, como dito anteriormente, uma minoria se
mostra como representante da opinião pública levando à falsa impressão de
consenso.


Os efeitos dessas generalizações do que seria a "opinião pública"
são nefastos para o meio jurídico como um todo e em especial para o direito
penal. Nesse ritmo de "seguir a manada" e ouvir a voz da mídia, muitas
injustiças são cometidas, seja do ponto de vista legislativo com a
aprovação de normas mal elaboradas, como foi o caso da lei de crimes
hediondos, seja do ponto de vista processual quando o processo penal se
torna midiatizado e os indivíduos sofrem as consequências, como ocorreu no
famoso caso da escola base[2] ou da mulher que embora não tenha sido
processada foi linchada após ter seu autorretrato associado a uma lenda
urbana[3].






3. – OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COMO UM QUARTO PODER ESTATAL





A construção figurativa da mídia enquanto quarto poder se mostra
excepcional do ponto de vista didático, por evidenciar a capacidade de
ingerência dos meios de comunicação em países ditos democráticos. Essa
expressão foi criada em referência aos tradicionais três poderes
(executivos, legislativo e judiciário) e dá a ideia de que os meios de
comunicação teriam a função de equilibrar o sistema de freios e contrapesos
dos três poderes com a divulgação de informações e vigilância no
cumprimento do interesse público pelo Estado, ideia que Guareschi (2007)
resume bem:


Por agir como critica aos poderes constituídos, como um
contra-poder, a imprensa passou a ser chamada de quarto
poder e a liberdade de imprensa como algo importante e
imprescindível para a garantia da democracia numa
sociedade (GUARESCHI, 2007, p.20).


Contudo, essa visão vem se modificando e, atualmente, a expressão
"quarto poder" é usada muito mais para se referir a um poder que se
sobrepôs aos demais, indo muito além da simples ideia de liberdade de
informação:






Os estudos preliminares a esta pesquisa permitiram notar
que nos dias de hoje, quando se fala em mídia como quarto
poder, não se está mais falando sobre seu papel de
fiscalizadora dos demais poderes, mas como articuladora da
agenda da sociedade. Quer dizer, o quarto poder,
considerado o mais adequado para controlar os demais em
nome da cidadania e da democracia, acabou por ser o mais
poderoso e o menos controlável, já que se vincula com as
forças de geração de demanda, a publicidade, modelando as
condutas e as consciências de acordo com o que a economia
de mercado determina (SODRÉ,1994). De representante do
público nas discussões políticas, o quarto poder exercido
pela imprensa se tornou inibidor do papel ativo do
público. (RIZZOTO, 2012, p.114)






Evidentemente, a liberdade de imprensa é imprescindível em qualquer
sociedade. Contudo, o que se discute é a que ponto o profissional da
comunicação é mesmo livre e em que medida as empresas de telecomunicação se
colocam em defesa do povo e não de grandes empresas.


Essa realidade dos grandes conglomerados dominando os meios de
comunicação não é exclusiva do Brasil, país em que pouquíssimas famílias
controlam grande parte dos jornais, revistas, canais abertos de TV etc.,
nos Estados Unidos da América (E.U.A) a realidade não é muito distinta como
demonstra (BATISTA, 2002) citando Pierre Bourdieu:






A acumulação de capital que os negócios das
telecomunicações propiciam transferiu as empresas de
informação para um lugar econômico central: Pierre
Bourdieu, em sua aula televisiva, tratou logo de lembrar
"que a NBC é propriedade da General Electric (o que
significa dizer que, caso ela se aventure a fazer
entrevistas com os vizinhos de uma usina nuclear, é
provável que... aliás, isso não passaria pela cabeça de
ninguém), que a CBS é propriedade da Westinghouse, que a
ABC é propriedade da Disney" (BOURDIEU apud BATISTA, 2002,
p.3)






Ou seja, a pretensa imparcialidade dos meios de comunicação
restringe-se no momento em que essas empresas fazem parte de conglomerados
com interesses diversos. O leitor ou telespectador informado tenta filtrar
as informações advindas desses meios, porém, essa não é a realidade da
grande maioria dos indivíduos ao ter acesso às informações. Batista (2002)
traz o exemplo norte-americano para a realidade brasileira:






Em termos brasileiros, seria imaginável uma reclamação
contra os serviços da Nextel veiculada pelo Jornal
Nacional, ou contra uma lista classificada da OESP na
primeira página do Estadão? O compromisso da imprensa –
cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em
grupos econômicos que exploram os bons negócios das
telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a
chave da compreensão dessa especial vinculação entre mídia
e sistema penal, incondicionalmente legitimante. (BATISTA,
2002, p.3 )






No Brasil a concentração da mídia, que já era enorme, aumentou
ainda mais na última década, como demonstra Cunha (2007):






Conforme dados da Federação Nacional de Jornalistas, nos
anos 1990, cerca de nove grupos de empresas familiares
controlavam a grande mídia no Brasil. As famílias eram
Abravanel (SBT), Bloch (Manchete), Civita (Editora Abril),
Frias (Folha de S. Paulo), Levy (Gazeta Mercantil),
Marinho (Organizações Globo), Mesquita (O Estado de
S.Paulo), Nascimento Brito (Jornal do Brasil) e Saad (Rede
Bandeirantes). Hoje, esse número está reduzido a cinco. As
famílias Bloch, Levy, Nascimento Brito e Mesquita já não
exercem mais o controle sobre seus antigos
veículos[4](CUNHA, 2007, p.277).






Essa concentração acaba sendo um entrave para a sociedade em geral,
uma vez que os grupos dominantes utilizam os meios de comunicação para
fazer pressão e defender seus interesses, sendo estes muitas vezes
contrários à própria ideia de Direitos Humanos, igualdade e justiça, como
no caso da lei de crimes hediondos, reflexo das campanhas midiáticas pelo
endurecimento da legislação penal.


Essa relação íntima entre poder político, mídia e elites locais
dificulta o debate em relação a diversos temas como os relacionados às
políticas públicas de segurança, não levando o debate para os profissionais
da área e chamando ao discurso estrelas de TV, jornalistas e famosos em
geral, como se o saber superficial desses indivíduos fosse mais que
suficiente para chancelar suas opiniões.


No programa de rádio "Pânico" da Jovem Pan, exibido no dia 15 de
abril de 2015, pode-se notar claramente essa chancela que a mídia dá aos
jornalistas, ao discutirem por uma hora e dez minutos aproximadamente, a
questão da redução da maioridade penal no Brasil, sem que em momento algum
um profissional da área ou estudioso do tema tivesse sido chamado ao
debate.[5]


A convidada, jornalista Raquel Scherazade do SBT, chegou inclusive
a desautorizar os profissionais da área dizendo que Promotores de Justiça,
defensores dos direitos humanos, deveriam "pegar os bandidinhos, abraçar,
pegar e levar pra casa" e que quando essas pessoas sofrem alguma violência
elas mudam seu posicionamento diante da questão do crime.


Percebe-se que a mídia dispõe de um arsenal que vai muito além da
capacidade da academia ou dos agentes do estado na difusão da informação.
Uma jornalista como Sherazade, que tem à sua disposição os horários nobres
da TV, defende posições fascistas como castração química, etc., utilizando-
se de uma argumentação sem o mínimo embasamento teórico, isto é, o que
autoriza suas opiniões é simplesmente o poder da mídia.


Ocorre que esse poder midiático não é estanque, ele vem inter-
relacionado. Essa rede de relações e influências não é gratuita, como
também não são gratuitas as opiniões da jornalista e a tentativa de
afastamento da academia, uma vez que a universidade como espaço de poder,
devido à sua capacidade de construção do saber, acaba muitas vezes por
desautorizar os discursos midiáticos, geralmente destituídos de qualquer
embasamento teórico científico.


Para Rizzoto (2012) esse caráter elitista da mídia, bem como sua
preocupação em influenciar as decisões políticas se mostra de forma clara,
não sendo, contudo, um caminho sem volta, existindo a possibilidade dos
indivíduos se organizarem e resistirem:






Percebe-se, então, que "a mídia, mesmo nas nações
integradas tecnologicamente ao final do segundo milênio,
permanece um baluarte das elites" (SILVA, 2000, p. 19), e
que, assim como ela, os demais grupos, organizações e
instituições do Estado visam ao exercício do poder, ou no
mínimo, "à hegemonia dentro do organismo social e
pretendem sempre, direta ou indiretamente, influenciar a
ação governamental e orientar o sentido das transformações
sociais" (BELTRÃO; QUIRINO, 1986, p. 90). Miguel (2002)
mostra, porém, que essa constatação não significa que a
sociedade deve se conformar com a situação, é certo que a
mídia sempre vai defender determinados segmentos da
sociedade, mas as mudanças passam pela pressão e
resistência dos grupos prejudicados por essa forma de
gestão da comunicação. (RIZZOTO,2012, p.114)






Outro aspecto fundamental para a elaboração do termo "o quarto
poder" está no alcance da mídia, isto é, na abrangência de sua área de
influência. Como afirmado anteriormente, a própria ideia de mídia já traz o
sentido de comunicação de massa, contudo, cabe ressaltar que o Brasil é um
dos países em que as pessoas assistem mais televisão.


O tempo que o brasileiro gasta diante da televisão, longe de
diminuir só tem aumentado, chegando em media a cinco horas por dia, esse
número é maior do que o gasto pelos norte-americanos, reconhecidos por
assistirem muita televisão. Em países como a Suécia, as pessoas costumam
assistir TV aproximadamente, duas horas por dia. Os dados são de Cecilia
von Feilitzen, coordenadora científica da International Clearinghouse on
Children, Youth and Media- instituição criada na Suécia em 1997 pela
Unesco[6](CUNHA,2007, p.278).


Na atualidade, o aparelho de TV é considerado praticamente um
acessório de primeira necessidade, talvez isso se dê pela falta de opções
de lazer nas grandes cidades, além da extenuante rotina de trabalho que faz
com que o indivíduo só queira sentar-se no sofá e não pensar em mais nada
quando chega em casa. Estas, porém, são meras hipóteses. Independentemente
do motivo, o fato é que ter uma televisão é algo de suma importância para a
maioria dos brasileiros. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), em pesquisa publicada no ano de 2007, constatou que 94,5 %
dos lares brasileiros possuem televisão, sendo o segundo aparelho doméstico
mais comum nas casas pesquisadas, perdendo apenas para o fogão (CARVALHO,
2009).


Sobre a relação entre analfabetismo e influência da televisão,
Orlando Carvalho analisando outros dados do IBGE demonstra que o
analfabetismo no Brasil chega a 10,2% e 30% se considerados os "analfabetos
funcionais" (IBGE, 2007 apud CARVALHO, 2009). O autor amparado em Eugênio
Bucci (BUCCI, 2000 apud CARVALHO,2009), coloca que a influência da
televisão tende a ser maior em regiões mais pobres, uma vez que em países
ricos a escola, a imprensa escrita e a família costumam fazer a mediação do
conteúdo exibido na TV, além de existirem leis mais rigorosas para
controlar os meios de comunicação.


Nessa realidade em que a televisão aparece como algo fundamental
nas casas das famílias brasileiras pode-se pensar essa relação com a mídia
em diferentes vertentes, aqui se escolheu uma abordagem sobre
criminalização da pobreza. Contudo, é necessário lembrar que na comunicação
como na vida, os discursos não se dão de forma apartada.


Nesse sentido, afirmar que a questão da criminalização da pobreza
na mídia se restringe aos jornais, sejam eles escritos ou televisivos, é
algo complicado em um contexto em que se torna cada dia mais difícil
separar a ficção da realidade. As telenovelas podem colocar em debate uma
pauta que geralmente só era trazida à tona em programas de cunho
jornalistico, ao mesmo tempo em que a realidade começa a ser vendida como
ficção, como ocorre em programas como o Polícia 24 horas exibido na TV
Bandeirantes[7].


Embora não se restrinja a um tipo específico de programação, a
espetaculização do problema da criminalidade é uma constante nos
telejornais, especialmente os locais. Antes tidos como pouco atrativos em
termos de telespectadores, dependendo do chamado "fluxo de audiência"- ou
seja, dos programas que viriam antes ou depois - para poder ter audiência,
os telejornais brasileiros passaram a ser mais vistos, tanto
proporcionalmente quanto em número absolutos :


Enquanto no Brasil – país no qual existem 39 milhões de
lares com televisão – a audiência chega a 29 milhões de
pessoas, nos EUA- país em que a televisão está presente em
109 milhões de lares- esse número não ultrapassa 18
milhões de pessoas (CUNHA, 2007, p.277).






Assim sendo, os telejornais, longe de estarem distantes de uma
relação com a dinâmica do lucro nos meios de comunicação, na verdade
passaram a ser um dos principais programas das emissoras. Nesse contexto,
as notícias sobre violência, que tem um viés atrativo muito forte, acabam
roubando a cena.


Ao mesmo tempo em que a "crise de segurança" ou os discursos do
medo são fundamentais para a sedimentação de algumas ideologias -
relacionadas em sua maioria com demonstrar a ineficiência do Estado, a
eficiência de ONG´s (organizações não governamentais) e empresas, bem como
a defesa do patrimônio individual e a crença de que a violência é
intrínseca apenas ao indivíduo e não ao sistema, como será discutido no
capítulo seguinte - esse jornalismo relacionado à criminalidade tem também
forte apelo popular.


Por um lado, os meios de comunicação chamam atenção para a questão
da criminalidade, por outro o telespectador começa a sentir necessidade de
notícias com esse viés, em uma espécie de acontecimento cíclico. Isso
porque as notícias sobre violência exercem atração sobre o ser humano, é o
que explica Cunha (2007) demonstrando a teoria do sociólogo francês Edgard
Morin que moldura essa atração em um imaginário coletivo, assumindo a
personalidade do mito thanatos[8]. Outra abordagem evidenciada é a da
socióloga Fátima Pacheco com base em artigo de Roberto Perrone:


"Já a socióloga Fátima Pacheco, autora de importante
pesquisa Fala Brasil da Propeg, afirma que a audiência
considerável de certos propragamas apelativos vem de uma
série de demandas individuais que eles atendem, como, por
exemplo, demandas de medo, de insegurança; a necessidade
de compensação das pessoas, mostrando outras situações
piores que as delas, ou semelhantes e que, portanto, as
inserem em um contexto mais amplo (PERRONE, 1998, p.04-
08)" (CUNHA ,2007, p.279).






Em um contexto de busca por audiência, desmonte do Estado de bem
estar social, aumento da população nas grandes cidades, concentração de
renda e consequente aumento da violência, os mass mídia abraçaram o
jornalismo policial propagando o Discurso do Medo.


É o que demonstra Flauzina (2006):


Desta feita, o empreendimento neoliberal gerência o medo
na criação de uma ambiência favorável para que a atuação
de um sistema penal ainda fortemente atrelado às práticas
de um direito penal de ordem privada possa cumprir uma
agenda política baseada na reprodução de assimetrias
estruturais e administração/eliminação dos segmentos em
desafeto com o poder. Dentro dessa empreitada a mídia
ocupa inegavelmente um papel de destaque, sendo
considerada por muitos como uma verdadeira agência
executiva do sistema penal sempre pronta a dar suporte as
suas principais investidas (FLAUZINA, 2006, p. 90).






Contudo, esse interesse pelo crime nos meios de comunicação não é
recente, os contos e romances policiais são um exemplo de como o crime
exerce fascinação no público. A diferença hoje é a forma como o problema da
violência e da segurança pública é tratado pelos meios de comunicação, em
uma realidade em que esses meios são verdadeiras empresas multinacionais,
exercendo influência sobre o Estado em uma perspectiva mercadológica
neoliberal.








1.4 - A VIOLÊNCIA COMO ESPETÁCULO





Nas últimas décadas os meios de comunicação no Brasil tiveram
grandes mudanças, a imprensa sensacionalista começou a ter um maior impacto
nos meios de comunicação no país. O jornal Daqui pertencente às
Organizações Jaime Câmara, por exemplo, foi criado há oito anos. O programa
Chumbo Grosso[9] da TV Bandeirantes, o mais antigo do gênero exibido em
Goiás, tem 15 anos e atualmente sofre concorrência de vários outros
programas com mesmo enfoque.


Porém o sensacionalismo é algo que acompanha o jornalismo desde os
primórdios, sendo uma constante o interesse do público pelo crime e por
matérias fantasiosas:






Ao se analisar a origem da imprensa em dois países
diferentes: França e Estados Unidos verifica-se que o
sensacionalismo está ali, na origem do processo. Na
França, por exemplo, entre 1560 e 1631, aparecem nos
primeiros jornais franceses – "Nouvelles Ordinaires" e
"Gazette de France". (ANGRIMANI, 1995, Apud MENDES 2011 p.
39)






No Brasil existem registros de gosto por uma literatura
"sarabarulhenta" desde o início do século XX. No Rio de Janeiro, as
notícias de crimes violentos, espetáculos grotescos de morte, as notícias
sensacionalistas contribuíam para que esses jornais tivessem grandes
tiragens. Em 1905, o Jornal do Brasil vendeu 60 mil exemplares em uma
cidade com 500 mil habitantes (MENDES, 2011, p.41).


Atualmente essa "modalidade" jornalística voltou com tudo em um
contexto em que os meios de comunicação aparecem como um verdadeiro poder
atrelado aos interesses do mercado. Nessa realidade, o jornalismo
sensacionalista toma corpo como a voz de determinadas ideologias,
encobrindo-se com a capa da cidadania e de uma pretensa simplicidade que
aproxima o público da mensagem transmitida.


A espetaculização da imprensa ocorre para manter o interesse do
público pela informação, transformada em mercadoria. O termo
sensacionalista surge então para adjetivar o exagero de uma publicação
permeada por imagens chocantes para chamar atenção desse público (MENDES,
2011, p.42).


Uma análise feita por (MENDES, 2011, p.19), do Jornal Daqui,
distribuído em Goiás e pertencente ao grupo Jaime Câmara – concessionário
da TV Globo no estado – mostra essa publicação como um jornal
sensacionalista.


A pesquisadora analisou as reportagens sobre violência e a forma
como os jovens são representados no jornal. O diário já possui a maior
tiragem de jornais impressos no estado de Goiás e se enquadra dentro da
categoria delimitada como sensacionalista (MENDES, 2011, p.37).


Enquadram-se nessa categoria os meios que veiculam notícias de
forma a produzir uma "encenação" desconectando o leitor do real, adquirindo
vida, como em um espetáculo, dando maior importância a uma notícia que,
caso fosse veiculada de outra forma, teria menor importância (MENDES, 2011,
p.37). Em outras palavras, é tornar a notícia uma "ficção real", saindo da
objetividade do ocorrido e partindo para a dramatização e ampliação do
fato. Angrimani, citado por Mendes (2011) define sensacionalismo:





(...)tornar sensacional um fato jornalístico que, em
outras circunstâncias editoriais, não mereceria esse
tratamento. Como o adjetivo indica, trata-se de
sensacionalizar aquilo que não é necessariamente
sensacional utilizando-se para isso de um tom escandaloso,
espalhafatoso. Sensacionalismo é a produção de noticiário
que extrapola o real, que superdimensiona o fato. Em casos
mais específicos, inexiste a relação com o fato e a
"notícia" é elaborada como mero exercício ficcional.
(ANGRIMANI, 1995 p. 16 Apud MENDES, 2011, p.38)






Existe ainda nesse tipo de publicação – e estendendo o conceito
para a televisão – uma inadequação entre o que se veicula a chamada e a
imagem. Ao acessar a notícia, o público vê que a manchete ou a chamada não
correspondem necessariamente ao conteúdo da informação.


Os jornais sensacionalistas caracterizam-se também pelo não
aprofundamento da informação, reduzindo o que se veicula, simplificando
extremamente os fatos, colocando a notícia na perspectiva do senso comum do
público que a vê, é a ideia do jornalista que "fala o que povo quer ouvir":






O jornal sensacionalista acaba realizando um processo de
singularização extremada dos fatos, reforçando as
categorias da lógica do senso comum que percebe a vida
social como um agregado de eventos independentes, na qual
utiliza a norma e o desvio como padrões éticos de
referência e assume a oposição ordem versus perturbação
como categorias de análise (AGUIAR, 2008, p.7 Apud MENDES,
2011, p.39).






Outro recurso fundamental que fez do jornalismo sensacionalista um
espetáculo de público e uma constante, em quase todos os canais abertos do
Brasil, foi a estratégia de Modos de endereçamento que visa atingir o
público utilizando-se de uma "estética de matriz cultural diferenciada",
traçando antes, o perfil do público que aquele jornal visa atingir
(MENDES,2011, p.39).


É como o jornal Daqui faz suas manchetes, sempre procurando
utilizar-se de uma linguagem popular, de fácil entendimento, e que ao mesmo
tempo denote a "simplicidade" do jornal para que os leitores se
identifiquem com o produto.






O aspecto que chama mais atenção no jornal Daqui, no
entanto, é a linguagem. Algumas expressões trazem consigo
uma marca de sensacionalismo e de aproximação com a
linguagem do público-alvo do jornal (OLIVEIRA, 2010,
p.21).






E ainda:






Por meio da linguagem simples, do dia-a-dia, o jornal
Daqui quer se aproximar do discurso do leitor, quer passar
para ele sua imagem de "jornal do povo", que pode ser lido
e entendido, que é feito pelo povo e para o povo
(OLIVEIRA, 2010 p.22).






O mesmo ocorre no telejornalismo, um exemplo é o programa Chumbo
Grosso veiculado pela TV Bandeirantes, na estreia de um novo apresentador
em setembro de 2013[10], pode-se notar com muita clareza esse apelo popular
do telejornal policial, a vinheta começa com uma música sertaneja
(extremamente popular em Goiás). Logo em seguida, uma voz off diz "Boa
tarde Marcão" e então o apresentador entra e em sua fala da boa tarde ao
"estadão de Goiás", cumprimenta as famílias goianas e fala em nome de Deus
pedindo que abençoe as pessoas necessitadas, durante todo o tempo falando
com voz muito alta - finaliza sua apresentação dizendo que o "chão vai
tremer e o bicho vai pegar".


Parte-se do pressuposto que o público-alvo tem pouca capacidade
intelectual, estando alheio às discussões políticas e a qualquer debate que
demande maior aprofundamento, apelando para a representação de um
estereótipo, tanto do apresentador quanto de quem assiste ao jornal. No
caso citado acima, Marcão é um homem de meia-idade que fala alto, de forma
grosseira e machista, mas que não deixa de lado a fé, a própria imagem do
homem goiano:


Estes veículos rotulam um perfil para seu público leitor -
caracterizado como alienado; passivo e desprovido de
interesse sobre os fatos políticos ou econômicos; sem
capacidade de refletir de forma aprofundada sobre os
acontecimentos; atraído por informações com uma
discursividade rasa, fundamentada no exagero e até mesmo
inverossímil (MENDES, 2011 p.42).






A estrutura do discurso existente nessa forma de jornalismo é
pautada pelo que se convencionou chamar de "memória metálica" em oposição à
ideia de "memória discursiva". A memória discursiva seria aquela
relacionada a uma construção sócio histórica permeada por diferentes
narrativas, nesse sentido teria um caráter mais reflexivo:






O conceito de memória discursiva na análise de discurso se
diferencia do sentido de memória como "arquivo", sendo
ligado às condições sócio-históricas e cognitivas de
produção de discursos, aos dados extra e pré-discursivos
das produções de sujeitos culturalmente situados. A
memória discursiva não é inata nem depositada de forma
cumulativa, mas faz parte de um saber coletivo.
(MENDES,2011, p. 48-49)






Assim sendo, o conceito de memória metálica seria de uma memória
mais linear, não inter-relacionada, em que o discurso se orienta em um
mesmo sentido não havendo assim os choques e as diferentes fontes presentes
na memória discursiva por sua própria característica de construção
coletiva, é o que demonstra Mendes (MENDES, 2011, p.50), amparada em
Orlandi.


De acordo com esse conceito, a autora demonstra que a mídia usa a
memória metálica na homogeneização dos efeitos da memória, isto é, produz
efeitos dos discursos baseando-se na repetição não permitindo uma
ressignificação da informação :






(...) para Benjamin (1994), nas notícias divulgadas pela
mídia, os fatos já chegam com explicações determinadas, o
que não dá margem para o sujeito elaborar a experiência,
reduzindo sua potência de interpretação. (MENDES, 2011,
p.51)






É o que evidencia (ORLANDI, 2007 apud MENDES 2011, p.51) ao colocar
a ligação do discurso neoliberal, que busca o esvaziamento do político para
uma reafirmação do caráter empresarial na sociedade, com o uso dessa
ferramenta discursiva que convencionou chamar de memória metálica:






A nossa posição é de que tanto a informação como a mídia
produzem realmente a multiplicação (diversificação) dos
meios, mas ao mesmo tempo, homogeneízam os efeitos. Daí
uma ideia de criatividade caracterizada pela deslimitada
produção (a enorme variação) do "mesmo". Não esqueçamos
que a mídia é um lugar de interpretação e que funciona
pelo "ibope", que se rege pelo predomínio da audiência. Ao
mesmo tempo em que a mídia produz esse esvaziamento, pela
estabilização dos percursos, por essa imobilização
(censura) pelo ibope, nela também o político não tem lugar
próprio. Há, atualmente, um silenciamento do discurso
político, que desliza para o discurso empresarial,
neoliberal, em que tudo é igual a tudo (o político, o
empresarial, o jurídico, etc.). Nesse sentido, se se pode
dizer que a mídia é lugar de interpretação, ela rege a
interpretação para imobilizá-la (ORLANDI, 2007,Apud
MENDES, 2011, p.51).






Esse sensacionalismo midiático se contrapõe aos jornais clássicos,
como o jornal O Popular também pertencente a Jaime Câmara, se por um lado o
jornal Daqui se veste de uma linguagem mais coloquial, o jornal O Popular
mantém sua "blindagem" como sendo um jornal sério e isento, embora
pertençam ambos à mesma empresa.


Assim os grandes grupos midiáticos alcançam diferentes segmentos
explorando formas distintas de tratar e selecionar a informação, exercendo
maior influência sobre a região geográfica em que atuam. Se por um lado o
Daqui não se mostra como a melhor referência quando o assunto necessita de
uma abordagem mais aprofundada, o já tradicional O Popular supre essa
carência.


Com uma estratégia de atuação em diferentes frentes, os grupos
midiáticos conseguem por um lado reforçar o mito da imparcialidade em
relação aos seus produtos mais elaborados, e por outro separar os conteúdos
entre um público mais elevado e um público menos exigente, porém com
conteúdo ideológico semelhante, uma vez que os interesses políticos e de
mercado da empresa são um só.






No jornal Daqui, percebe-se a intencionalidade do
enunciador em direcionar os enunciados a uma classe mais
baixa, com informações superficiais sobre os fatos e com
tendência a se interessar por assuntos populares, mais
conhecidos e sobre os quais não é preciso repensar muitos
aspectos. (OLIVEIRA, 2010, p.26)






Com isso cabe ressaltar que embora os jornais de cunho
sensacionalista sejam o principal foco deste trabalho, isolar a questão da
criminalização da pobreza como mero efeito colateral dessa forma de
imprensa seria inverossímil uma vez que o fenômeno não se restringe a esse
tipo de publicação.





















CAPÍTULO II





A MÍDIA PUNITIVISTA NO CONTEXTO DO ESTADO NEOLIBERAL





A ideia de prisão como resposta ao cometimento de delitos é algo
relativamente recente, como demonstra Michel Foucault em sua obra "Vigiar e
Punir". Foucault estuda o surgimento de algumas estruturas da sociedade
moderna, dentre elas a prisão, e o modo como essa "construção" antes de ser
física foi discursiva.


Foucault começa Vigiar e Punir narrando um suplício em praça
pública. Em seguida, o autor demonstra como surgiram os primeiros
internatos e as primeiras penitenciáarias, e a própria ideia de
ressocialização e de controle dos corpos e das mentes dos sujeitos. A
mudança da relação do poder estatal com aqueles que cometem crimes ocorre
ao mesmo tempo em que a concepção sobre o Estado se modifica.


De realidade incomum, a prisão passa a ser uma das principais
medidas de prevenção ao crime. Aos poucos os suplícios se tornam algo
bárbaro e criticável, é o que Norbert Elias em seu "Processo Civilizador"
chamaria de um aumento da sensibilidade do mundo "civilizado". Mas até que
ponto pode-se considerar as prisões de hoje como muito superiores aos
antigos suplícios?


Na atualidade, o aprisionamento ainda tem se mostrado como
principal resposta dos Estados às práticas delituosas. Mais de dois séculos
depois da difusão da ideia de prisão, do "Panoptico de Bentham", essa ideia
além de ser predominante ganhou uma dimensão maior a partir da década de
1970, contribuindo para o aumento exponencial da população carcerária no
mundo, muito embora esse modelo se mostre falido e desumano.


Analisando o número de presos em diferentes países, pode-se notar
que a taxa de prisionização cresceu no mundo em um mesmo período, com
pequenas variações de um Estado para outro. Uma política da "tolerância
zero" começou a se fortalecer no ocidente em meados da década de 1970. A
realidade brasileira não é muito diferente, presenciou-se um aumento da
população carcerária cinco vezes maior que o da população em geral.


Finalizando o capítulo, mais um questionamento sobre quem é esse
inimigo que ameaça a paz social. O sistema penal que teoricamente deveria
tratar a todos de forma igual parece selecionar alguns indivíduos e não
outros, penalizar mais alguns tipos penais enquanto algumas condutas são
tratadas de forma displicente. Em que medida pode-se falar em justiça em um
sistema penal seletivo, em uma sociedade seletiva?





1. – PRESOS QUE DÃO LUCRO





Para se ter uma compreensão do que ocorre no Brasil em relação às
políticas criminais, é necessário compreender que o país não é um caso
isolado quando se fala no desproporcional aumento da população carcerária
nas últimas décadas.


Como nos Estados Unidos da América (E.U.A) e no Reino Unido (R.U),
no Brasil a população carcerária cresce em um ritmo exponencialmente maior
do que a população em geral[11]. Longe de ser mera coincidência, ou de se
poder explicar os dados como simples "decadência dos costumes", o aumento
no número de encarceramentos nesses países está diretamente relacionado às
políticas criminais adotadas.


Consultado pela BBC Brasil em 2012, o ex-diretor do Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN) que chefiou o departamento por três anos
(janeiro de 2011- Maio 2014) Augusto Rossini, disse que:


(…) o crescimento acelerado no número de prisioneiros no
país é consequência tão somente do aumento da
criminalidade, mas também do endurecimento da legislação
penal, da melhoria do trabalho da polícia e da maior
rapidez da Justiça criminal. (...) (BBC Brasil, 2012)


A afirmação do ex-chefe do DEPEN reflete o tipo de política
criminal adotada pelo país nas últimas décadas, um aumento de mais de 380 %
no número de presos, número dez vezes maior que o da população total do
país que cresceu 28%[12](BBC Brasil, 2012).


Melhor exemplo dessas políticas de encarceramento, são os E.U.A,
que tem a maior população carcerária do mundo, com 600 mil presos a mais do
que a população carcerária da China, país com a maior população mundial,
cerca de quatro vezes maior que os Estados Unidos em número de habitantes.


Mas o que esses dados querem dizer? Quando o ex-chefe do DEPEN
(Departamento Penitenciário Nacional) fala em "endurecimento da legislação
penal" e em melhorias no trabalho da polícia e do judiciário, o que se pode
entender como melhorias? Até que ponto um aumento de mais de 300 % na
população carcerária representa melhora na segurança e progresso nas
políticas públicas voltadas para área criminal? É o que se pretende
discutir a seguir, pois acredita-se que o tema relaciona-se diretamente com
os discursos veiculados pela mídia e a consequente inobservância aos
direitos humanos.


O aprisionamento como forma de controle social é algo relativamente
recente na história, embora pareça comum nos dias atuais. A ideia de
prender aqueles que cometem crimes ou que de alguma forma transgridem as
normas da sociedade é algo construído, sendo apenas mais uma forma, dentre
outras, de coibir os transgressores das normas sociais.


Foucault (2008) defende que a prisão foi necessária para a
consolidação de uma forma específica de sociedade que tem no controle do
indivíduo a expressão do poder. Com a emergência da modernidade, aos poucos
algumas instituições foram se consolidando, na medida em que as cidades e o
Estado se tornavam mais complexos. O corpo do indivíduo passa a ser um
espaço de poder, um espaço a ser controlado, "domesticado", disciplinado
para o convívio em público:


Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais
que se possui, que não é o "privilégio" adquirido ou
conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto
de suas posições estratégicas (FOUCAULT, 2008, p.29).






Um poder que se forma em um conjunto de posições estratégicas, mais
subjetivo, incidindo sobre o comportamento dos indivíduos, sendo para isso
fundamental um novo modelo de organização social. As instituições começam a
tomar o local do privado, o hospital passa a ser o local de acomodação dos
doentes, assim como o sanatório o lugar daqueles considerados loucos,
saindo assim da esfera familiar e passando à esfera pública, bem como a
educação que começa a ser dever do Estado e não apenas uma opção, com a
prisão não ocorre de forma diferente, transformando-se em local de
exercício desse poder estatal.


Longe de ser apenas um local para punição daqueles que infringem a
lei, o aprisionamento se mostra como forma de enquadrar os sujeitos na
ordem dominante, seja por meio do exemplo para que os não presos não
cheguem a delinquir, seja como forma de "reeducar" os presos para que
voltem a conviver em sociedade. A função da pena ultrapassa o indivíduo e a
mera defesa do bem jurídico tutelado transformando-se em elemento
constitutivo de uma determinada forma de poder:


Analisar antes os "sistemas punitivos concretos", estudá-
los como fenômenos sociais que não podem ser explicados
unicamente pela armadura jurídica da sociedade nem por
suas opções éticas fundamentais, recolocá-los em seu
campo de funcionamento onde a sanção dos crimes não é o
único elemento (FOUCAULT, 2008, p.27).






Nessa perspectiva, o encarceramento não é necessariamente o
resultado de uma simples equação em que o resultado da prática de
determinado crime pelo agente resulta na prisão, esse intuito aprisionador
deve ser considerado mais como um capítulo da anatomia política do que uma
consequência das teorias jurídicas (FOUCAULT, 2008, p.31).


Foucault (2008) quebra o dogma da prisão como "estímulo resposta" -
tão comum no discurso midiático - e traz a tona a existência diversos
fatores que acompanham a criação do aparato repressivo do Estado na forma
do aprisionamento, tornando-se um espaço de poder que se modifica de acordo
com as nuances do poder e do discurso.


Outro ponto fundamental relacionado ao abandono dos suplícios em
praça pública como forma de punição é a adoção do encarceramento, é o
caráter vingativo da pena que passa a ser deixado para trás.


Essa abordagem mais técnica do Estado coloca o crime como algo
objetivo, cria-se o mito da imparcialidade, ao mesmo tempo em que se retira
da vista do público a figura do apenado. Quem decide pela vida do sujeito
já não é mais o juiz ou o rei, mas o próprio indivíduo que ao transgredir
normas explicitadas em um código decide ser preso.


De transgressor "inimigo do rei", o criminoso se transforma em um
"indivíduo que não deu certo", que precisará ser ressocializado devido à
sua incapacidade de conviver em sociedade. Compreender como o discurso
fundante do aprisionamento está relacionado ao funcionamento da sociedade
moderna permite ir além das estruturas objetivas do que se convencionou
chamar legalidade, e adentrar na perspectiva da prisão como espaço de
poder.


Não se pretende aqui entrar no caráter filosófico do que deve ou
não ser considerado crime e como punir os infratores, mas evidenciar que
escolhas são feitas em políticas de segurança pública, estando essas
decisões relacionadas a baixas ou altas taxas de encarceramento.


Assim, o resultado das penitenciárias lotadas e do aumento da
população carcerária em países como Brasil, Estados Unidos e Inglaterra não
pode ser explicado de maneira simplória pela melhoria no trabalho da
polícia e do judiciário e endurecimento da legislação penal, sendo essas
respostas mero efeito de uma ideologia de maior alcance.


David Garland (2008), analisando os sistemas penitenciários norte
americanos e britânicos a partir da década de 1970, aponta para uma mudança
gradativa na perspectiva do Estado sobre a aplicação das penas. Antes tida
no sentido evidenciado por Foucault (2008) de "ressocializar o indivíduo",
principalmente no período do que se convencionou chamar Estado de bem estar
social ou welfare state, a pena privativa de liberdade começa a se
caracterizar como retribuição, uma visão que remete ao direito penal do
inimigo:


Num restrito, porém significativo, número de instâncias,
temos notado o ressurgimento de medidas decididamente
"retribuitivas", tais como a pena de morte, o
acorrentamento coletivo de presos e penas corporais. Muito
embora os políticos britânicos tenham evitado os excessos
dos estados norte americanos , pode-se entrever os ecos
desse movimento no discurso adotado pelos ministros de
Estado da Grã-Bretanha, segundo o qual deveríamos
"condenar mais e compreender menos", bem como esforçar-nos
no sentido de assegurarmo-nos de que as condições
carcerárias sejam devidamente "austeras". Formas de
humilhação pública que por décadas foram tidas por
obsoletas e excessivamente indignas, são valorizadas hoje
em dia por seus proponentes políticos, precisamente por
causa do seu inequívoco caráter retribuitivo. (GARLAND,
2008, p.52)






Embora esteja falando dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, o
estudo de Garland (2008) não deixa de ser referência para o pensamento
criminológico brasileiro. Mesmo que distintas, as realidades econômicas e
sociais do Brasil se enquadram dentro desse movimento ocidental de
recrudescimento da legislação penal e incremento da ética do mercado:






O motivo fundamental que recomenda a leitura da presente
obra é que a análise da realidade britânica e, sobretudo,
norte-americana constitui, de certa forma e em certa
medida, a análise da realidade brasileira e latino-
americana. Quem almeja entender porque o Brasil possui
cada vez mais pessoas presas encontrará no exemplo dos
EUA, o país que proporcionalmente mais encarcera seres
humanos no planeta, similitudes perturbadoras (NASCIMENTO
in GARLAND, 2008, p.7).






O autor defende que nas últimas décadas do século XX houve
transformações econômicas, históricas e sociais que auxiliaram nessa
mudança de paradigma em relação à punição, não sendo o aumento do número de
presos explicado simplesmente como resposta à criminalidade. Esse período
analisado é denominado por Garland (2008) de modernidade tardia e
compreende uma sociedade globalizada marcada pela insegurança, riscos e
busca pelo controle social (SOUZA, 2003, p.161).


Essa modernidade tardia representa uma mudança de sentido, não só
na economia com adoção de medidas que visam reduzir o espaço de atuação do
Estado, mas também nas políticas públicas de segurança. Se no welfare state
a desigualdade social era tida como risco ao capitalismo (em uma abordagem
Keynesiana), sendo o delinquente reflexo da falta de atuação estatal, com o
retorno das ideologias liberais torna-se triunfante a ética do mercado, que
pugna pela liberdade do indivíduo, uma vez que nessa perspectiva a pobreza
não deixa de ser uma escolha representando a opção pelo não trabalho:






As criminologias da era do Estado de bem-estar tendiam a
assumir a perfectibilidade do homem, a ver o crime como um
signo de um processo incompleto de socialização e a
perceber no Estado o papel de assistir aqueles que foram
privados das condições econômicas, sociais e psicológicas
necessárias para o adequado ajustamento social e para uma
conduta respeitadora da lei. As teorias do controle
começaram a formar uma visão muito mais obscura a respeito
da condição humana. Elas assumem que os indivíduos são
fortemente atraídos para condutas auto–referidas,
anti–sociais e criminais a menos que sejam impedidos por
controles robustos e efetivos, bem como veem na autoridade
da família, da comunidade e do Estado estratégias de
imposição de restrições e de limites. Onde a velha
criminologia encaminhava–se mais na direção do bem–estar e
da assistência, a nova insiste no reforço dos controles e
na aplicação da disciplina" (GARLAND, 2008, p. 61).






O Estado começa a se proteger desses indivíduos que "fazem a
escolha pelo crime", o controle social se fortalece de maneira ampla. Mais
câmeras, incremento da segurança privada, e o surgimento de condomínios
fechados, vêm acompanhados do discurso do medo e dessa necessidade
constante de se proteger do outro.


As políticas criminais começam a ser destaque na mídia, o discurso
do medo toma fôlego, políticos populistas passam a adotar o problema da
criminalidade, antes mais restrito aos especialistas (GARLAND, 2008, p.58):







Longe de existirem diferenças entre posições políticas, o
que de fato se deu, nas décadas de 1980 e 1990, foi um
estreitamento do debate e uma surpreendente convergência
de propostas políticas da parte dos maiores partidos
políticos. Não foi apenas um partido que se afastou da
velha ortodoxia correcionalista: todos o fizeram. O centro
da gravidade político se deslocou, e um novo e rígido
consenso se formou em torno de medidas penais que sejam
percebidas pelo público como duras, hábeis e adequadas
(GARLAND, 2008, p. 58)






Em suma, o crime passa de preocupação atinente ao Estado a uma
questão observada por todos. Porém, não significando que essas discussões
levem a um debater profícuo, mas a uma simples ideologia reducionista
calcada na ética mercadológica. O mercado não só impõe sua ideologia como
começa a se tornar parte do aparato da repressão.


Nos últimos dois séculos, o Estado tem se colocado como agente
quase exclusivo na administração das questões penais. Ocorre que nas
últimas décadas a questão do crime começa ser tida como um problema de
todos, necessitando da sociedade civil auxiliar o Estado. É o que se pode
observar em alguns países que começam a adotar a ideia do patrulhamento
comunitário, invertendo a tendência de monopolização do controle do crime e
disseminando uma ideia de pulverização do controle do crime (GARLAND, 2008,
p. 64).


Essa tendência no Brasil ainda não se mostra tão forte, embora em
outras áreas de atuação estatal seja possível ver claramente a influência
da sociedade civil no gerenciamento de questões que antes eram atinentes
exclusivamente ao governo. É o caso do "Amigos da escola"[13], ONG que tem
como intuito auxiliar as escolas públicas, fazendo com que pais e
comunidade em geral possam interferir na escola. Embora os resultados se
mostrem positivos na maioria dos casos, esse tipo de atuação demonstra ao
fundo uma ideologia de redução do Estado e tomada gradativa das suas
atribuições pela sociedade civil.


Sobre a eficácia do projeto "Amigos da Escola" na rede pública de
ensino de Aracaju, SILVA (2009) conclui que:






Os resultados da pesquisa apontaram que o Projeto Amigos
da Escola das escolas da rede estadual de ensino inscritas
no site, em Aracaju, está inserido dentro da nova
configuração do Estado, com a emergência do Terceiro Setor
e transferência de parte de suas responsabilidades para a
sociedade civil. Para tanto, verificou se que se trata de
um Projeto de Marketing Político governamental que, de
fato, tem cumprido uma função político ideológico efetiva,
ao disseminar a cultura do voluntariado, marcada pela
"cultura do possibilitismo" (Montanõ, 2003), legitimando o
processo de desresponsabilização do Estado na garantia dos
direitos sociais, desmontando, conseqüentemente, a
cidadania. Com isso, constatou se que o Projeto Amigos da
Escola, não obstante os seus propósitos, no sentido de
mobilizar "a sociedade civil para o exercício da
responsabilidade social" na melhoria da educação, e contar
com ampla divulgação através da Rede Globo de Televisão,
sua principal idealizadora e promotora, na prática, sua
efetividade é seriamente comprometida.(SILVA,2009, p.8)






Tenta-se implantar cada vez mais no Brasil o modelo norte-americano
de privatização dos presídios, seguindo a ideologia neoliberal que se
consagra em outros setores. Todavia, a experiência tem demonstrado que essa
simbiose resulta em lucros altos para empresas e não necessariamente
melhoria na prestação dos serviços públicos.






Com 2,3 milhões de encarcerados, as cadeias americanas
viraram um grande negócio e dão enorme lucro a empresas
dos ramos de telefonia e saúde privada. A revista The
Nation publicou recentemente um levantamento do lucro
fácil nos presídios de Tio Sam. Uma ligação telefônica de
uma cadeia custa 1,13 dólar por minuto, até 30 vezes mais
do lado de fora. Apenas uma operadora, a GTL, fatura 500
milhões de dólares anuais com a exploração das chamadas
feitas por presidiários.


A privatização das prisões nos EUA não eliminou as
denúncias de maus-tratos e torturas. Segundo os defensores
de direitos humanos, a fórmula adotada (o governo paga por
vaga existente em cada cadeia, esteja ela ocupada ou não)
teria levado ao aumento galopante no número de
encarcerados e à aplicação de penas mais duras. Dessa
forma, o poder público justificaria o modelo de pagamento
adotado. "A prisão tornou-se um depósito de pobres",
afirmou ao The New York Times o sociólogo Bruce Western,
da Universidade Harvard. (Carta Capital, janeiro de 2014)






Paralelamente à progressiva intervenção da iniciativa privada nos
sistemas penais, como a privatização de penitenciárias, que já é uma
realidade em 21 presídios brasileiros[14], a indústria da segurança
representa um setor em constante crescimento que engloba desde equipamentos
eletrônicos até o patrulhamento de bairros. Essa simbiose entre público e
privado, antes tida como absurda em relação ao sistema penal, começa a ser
cada dia mais comum com o agravante de que o lucro nesse caso representa
não só a redução do Estado como o aumento da violência, do pânico social e
consequentemente do número de presos.


Como demonstrado no caso do "Amigos da Escola", capitaneado pela
Rede Globo, a mídia não está alheia a esses processo de mudança no
pensamento criminológico contemporâneo, sendo parte fundamental na
elaboração dos discursos que se convencionou chamar Discurso do Medo,
estimulando por outro lado a adoção de políticas criminais voltadas para
uma maior reprovação e penalização do indivíduo.


Nos tópicos seguintes se discutirá em que medida a redução da
atuação do Estado e estímulo dos meios de comunicação à iniciativa privada
relaciona-se com o crescente aparato da repressão e consequente
estigmatização de determinados seguimentos, ao mesmo tempo em que outros
setores e indivíduos são tidos como representantes de uma ética a ser
seguida.





2. – A MÍDIA CIDADÃ E SEU DISCURSO






Acerca deste tópico cumpre ressaltar previamente que um
acontecimento já não tão recente será uma referência constante. A morte do
jornalista Tim Lopes, funcionário da TV Globo, em junho de 2002, propiciou
uma série de debates sobre jornalismo investigativo, função social dos
meios de comunicação e criminalização da pobreza.


Um artigo e uma dissertação de mestrado sobre o ocorrido foram
fundamentais para pensar a questão do sensacionalismo na TV, bem como a
relação de um discurso específico sobre o papel social da mídia com
ideologias de mercado. Pela relevância dos textos e qualidade das análises
feitas, fez-se uma opção por recorrer ao falecimento de Tim Lopes,
temporalmente distante porém, permeado por dilemas atuais:






O assassinato do repórter Tim Lopes, no início de junho de
2002, foi desses casos trágicos capazes de subitamente pôr
em xeque alguns dos fundamentos que orientam a atuação da
grande imprensa brasileira: de um lado, os limites e os
métodos da profissão, envolvendo especialmente o uso da
câmera oculta, e de outro o tratamento comumente
dispensado às pautas voltadas para o que se poderia chamar
genericamente de "marginalidade social" (MORETZSOHN, 2003,
p.1).






Esse acontecimento causou comoção entre os jornalistas e o público.
A ideia da mídia como heroína na busca pela verdade e pelo direito à
informação foi sedimentada no presente caso. O jornalista virou referência
virando símbolo da luta contra o crime organizado nas favelas.


Considerável número das análises do caso feitas à época viram em
Tim a vítima de uma sociedade violenta que, destemido, não recuou diante de
ameaças e adversidades. Outras análises periféricas chamaram a atenção para
as condições de trabalho dos jornalistas no país, na busca sem limites pela
informação e na relevância da notícia que se buscava obter. Instaurou-se um
debate sobre métodos jornalísticos e sobre o próprio papel do jornalismo
nos meios de comunicação, incluindo a forma de atuação dos profissionais da
área.


Difícil foi fazer a definição sobre quais métodos um jornalista
investigativo deve usar, e até que ponto seu trabalho deve ir sem colocar
em risco sua integridade. Além das dificuldades inerentes ao próprio risco
de se trabalhar como jornalista investigativo - função essencial a toda
sociedade - o problema se volta para a questão da mídia na sociedade
contemporânea, dos limites entre entretenimento e jornalismo:






No entanto, discutir os limites do jornalismo é algo
crucial não só para quem exerce a profissão como para quem
entende a questão da comunicação como decisiva para
qualquer projeto de intervenção social. Mesmo porque, não
é difícil verificar como os postulados clássicos da
imprensa como serviço público se estendem à atividade da
mídia de maneira geral, e esta não é uma influência menor:
definir os limites do jornalismo significa precisar o
alcance dessa "prestação de serviço", o que pode
interferir positivamente nas várias outras manifestações
da mídia (MORETZSOHN, 2003, p.2).






Esse inter-relacionamento entre entretenimento e jornalismo não é
recente e nem raro na televisão brasileira. Mesmo que positivo em muitos
pontos, por acarretar uma nova forma de se conceber a informação e o
esclarecimento do público na missão constante do profissional da área, essa
simbiose pode representar um distanciamento do real na medida em que busca
mudar a realidade. Em outras palavras, se por um lado o jornalista não pode
se afastar dos fatos noticiando acontecimentos fantasiosos, por outro, a
ficção atua justamente na criação de um mundo imaginário em que tudo é
possível, inclusive uma representação da realidade que pode ser distorcida.



Como exemplo dessa "simbiose" criada pela mídia pode-se citar a
Rede Globo, que tendo o controle sobre diversos programas, indo do Jornal
Nacional a séries e telenovelas, faz uma interligação entre seus diversos
produtos. Dessa maneira, não é incomum um cantor sertanejo do mundo real
aparecer em uma novela cantando sua nova música ou os personagens de um
novela gravarem uma cena no carnaval do Rio do Janeiro aparecendo ao vivo.


O problema se dá quando o jornalismo se afasta totalmente de sua
pretensa imparcialidade, ao mesmo tempo em que essas bandeiras políticas
são chanceladas por outros programas de televisão, como no exemplo que
segue:






A Globo, aliás, dedicou um bloco inteiro de uma edição de
maio do Jornal Nacional para demonstrar o comprometimento
social de sua dramaturgia. Para quem consegue ver, é claro
o entrelaçamento entre realidade e ficção que se
estabelece, seja em aspectos da própria trama (a presença
do senador Eduardo Suplicy no enterro do senador Caxias,
personagem de Carlos Vereza, o angustiado – et pour cause
– defensor da reforma agrária em "O Rei do Gado"; a
inserção de depoimentos "da vida real" de ex-viciados
cortando as cenas conflituosas protagonizadas pelos atores
que representavam o papel de viciados em "O Clone"), seja,
mais claramente ainda, no caso exemplar em que o
noticiário da morte de uma atriz foi incorporado pela
novela em que em que ela atuava, enquanto, inversamente, o
Jornal Nacional incorporava as cenas da novela para
romancear as informações sobre o crime, num continuum em
que se embaralhavam o real e o ficcional, mas de extrema
eficácia para o resultado (este, muito real) que se
pretendia: o assassinato de Daniela Perez, filha da autora
da novela, foi elemento decisivo para a aprovação de uma
ampliação da Lei de Crimes Hediondos. (MORETZSOHN, 2003,
p.2) (Grifou-se)






Tim Lopes estava investigando uma denúncia de uso de drogas e sexo
explicito nos bailes funk do Rio de Janeiro. No dia em que ia fazer a
filmagem com uma microcâmera escondida sumiu e nunca mais foi visto, depois
de algum tempo apurou-se que o jornalista tinha sido assassinado a mando do
traficante Elias Maluco.


O articulista Fritz Urtezi descontruiu essa imagem da mídia
meramente cidadã para demonstrar simples interesse por aumentar o IBOPE
(Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) da programação:






Tim Lopes foi vítima da imprudência quase criminosa das
chefias de jornalismo da TV. Por que se arriscou? Para
mostrar imagens de algo sabido, em nome do voyeurismo.
Cenas de sexo de adolescentes e consumo de drogas em
bailes funk. Isso vale a vida de um repórter? A Globo
insiste em confundir jornalismo com reality show. O Jornal
Nacional noticia a campanha da novela das oito e o Big
Brother como se fossem notícias. A novela faz –
supostamente – campanha contra as drogas (e é elogiada por
isso), quando na verdade usa causa nobre para promover o
voyeurismo mais escrachado e técnicas jornalísticas para
alavancar o ibope de sua dramaturgia.(URTEZI Apud
MORETZSOHN, 2003, p.17)






Com essa pretensão de se mostrar cidadã, a mídia por um lado
estigmatiza o jovem de periferia e tenta sempre mostrar o outro como o
"diferente", o "perigoso" e a zona em que esse outro vive como "zona de
guerra", sem democracia, espaço hostil para cidadãos como Tim. O que Urtezi
colocou em outro artigo foi o interesse da emissora em cobrir o uso
explicito de drogas na periferia sem nem ao menos se preocupar com esse
mesmo hábito em "festas da zona sul". Embora um pouco panfletário, Urtezi
evidencia esse pretenso jornalismo investigo como nada mais que voyeurismo.


Poucos dias após o desaparecimento do jornalista diversos corpos
foram encontrados na região em que o repórter havia desaparecido, ou seja,
caso a morte de Tim não tivesse ocorrido, muitos desses corpos poderiam
nunca ter sido encontrados pelo poder público. Aqui pode-se refletir sobre
os limites dessa cidadania dos meios de comunicação, em que medida a morte
de jovens desconhecidos é importante? Será que esse tipo de denuncia era
levada a cabo pela emissora, ou será que no momento a preocupação maior era
com o frisson dos bailes funk?






Essa distinção de tratamento fica mais evidente na
cobertura das buscas pelo corpo de Tim, que vão fazendo
brotar as atrocidades de que os pobres, criminosos ou não,
são vítimas cotidianas: primeiro um corpo carbonizado,
depois a descoberta de um cemitério clandestino e várias
arcadas dentárias. Apenas cinco dias depois das buscas O
Globo (15 de junho, p. 13) abre uma página para alardear
os possíveis "200 corpos" do "cemitério de Elias Maluco".
(MORETZSOHN, 2003, p.20)






O importante, no entanto, é refletir sobre a morte gratuita de um
profissional de televisão e o uso de seu falecimento para reiterar uma
ideologia em que os meios de comunicação existem para consolidar a
cidadania, enquanto o que se percebe é um processo de estigmatização das
classes mais pobres e a consequente definição do que deve ser ou não feito
para mudar essa realidade.


Quando não vistos como violentos pela mídia, os jovens (em sua
maioria negros), são mostrados em projetos sociais de ONGs, por um lado
reforça-se a ideologia da iniciativa privada como capaz de transformar
realidades, por outro se delimita o espaço de atuação desses jovens
geralmente relacionando-os com atividades musicais ou esportivas. Quando a
escola entra no debate aparece sob a imagem do "Amigos da escola" ou do
signo da violência e do descaso, sendo raros na televisão uma abordagem
sobre cotas e demais políticas públicas com maior grau de efetividade.






São fartos os exemplos de cobertura que enfocam os pobres
como perigosos. Por isso, vale a pena enfatizar o lado do
"olhar benevolente", mesmo porque ele costuma ser louvado
como contribuição positiva (ou "pró-ativa", no jargão da
moda): ali estão pobres honestos, ordeiros e
trabalhadores, empenhados em melhorar de vida pelo próprio
esforço, ainda que seus horizontes sejam sempre limitados
às ocupações subalternas que lhes foram historicamente
reservadas, fora das quais só há salvação no talento para
a música ou o esporte; então aparecem em ensaios de
teatro, dança, capoeira, futebol, rodas de chorinho e
samba, ou em oficinas para trabalhos manuais variados, às
vezes valorizados pelo que podem proporcionar de
"criatividade" – e vemos gente sorridente usando sucata
para fazer artesanato ou confeccionar instrumentos
musicais para projetos que "afastam o jovem do tráfico" (
MORETZSOHN,2003, p.10).






Nessa passagem analisada por Moretzsohn (2003) isso parece claro:






"O objetivo é formar bons cidadãos", diz o responsável por
um desses projetos ao apresentador. No palco, jovens
pobres do interior de São Paulo, estáticos como se
posassem para uma foto, rígidos como se estivessem (e
estavam) fora de lugar. Serginho Groisman "entrevista" um
a um (como é seu nome? que instrumento é esse?), e cada um
vai respondendo e mostrando tonéis, latões de tinta que se
transformaram em instrumentos de percussão. O apresentador
se deslumbra: tudo sucata, que beleza... Finalmente, chega
ao último entrevistado, um músico jovem e bem vestido, um
dos instrutores dos meninos. Ele também diz seu nome,
mostra seu instrumento ("isso é uma guitarra") e logo
ressalta, entre risos: "e não é sucata". (MORETZSOHN,
2003, p.10)






Esse bom cidadão é aquele que precisa aprender a ser duas vezes
melhor, tem que aprender a pegar o lixo do outro e transformar em um
instrumento de percussão, tem que ser apesar de nunca ter sido, e se
mostrar sorridente diante da oportunidade, mesmo que ele não consiga
entender o porquê de não ter condições de comprar um instrumento musical
novo. Seu lugar é na percussão, assim como era o dos seus ancestrais nos
quilombos, no fundo o lugar do negro continua sendo o mesmo, aquele que não
incomoda, o do tambor, do berimbau, do futebol.





2.3 – QUEM É O INIMIGO?





Pensar sobre quem é esse inimigo, quem é esse "outro" de quem a
mídia tanto fala e que incomoda a paz e o sossego do cidadão de bem, usando
a violência como forma "fácil" de ganhar a vida, é fundamental para que se
possa fazer um retrato desses indivíduos e compreender as bases do discurso
punitivista que tem a prisão como única saída possível para o problema do
crime.


As escolas da defesa social, os positivistas e os clássicos colocam
o crime como atitude individual intrínseca ao criminoso desconsiderando o
processo social de criminalização e formação da identidade criminosa, não
colocando essa rotulação como construída e elaborada socialmente (COELHO,
MENDONÇA, 2008, p. 4).


Essa perspectiva do crime como mero ato do criminoso e não como
reflexo da sociedade foi fundamental para o Direito Penal moderno, baseado
na ideia de que cada indivíduo deve responder pelos seus atos
indiferentemente da sua posição social etc. sendo importante a vontade como
elemento para julgar o grau de culpabilidade daquele que comete o delito,
baseando-se no ponto de partida de que todos são cidadãos e tem ciência de
seus direitos e deveres partindo-se então de uma perspectiva
contratualista, essa é uma visão da escola clássica:


O homem é tomado em um plano ideal, de pretensa igualdade,
que não considera as diferenças ideológicas, éticas e
políticas que estão sempre presentes, mas apenas se
preocupa com o fato ocorrido e não com o autor. O
pensamento clássico compartilha as ideias contratualistas
e aceita o pacto social como o fundamento do poder
político e do jus puniendi do Estado. Nesse contexto, o
crime é visto como uma ameaça ao pacto, uma perturbação da
ordem social. (COELHO, MENDONÇA, 2008, p.11)






Não se pretende aqui adentrar profundamente nas escolas
criminológicas, mas tão somente colocar o ponto de partida do discurso do
crime como simples ato de vontade do indivíduo, independentemente de sua
realidade social.


A perspectiva clássica, embora romântica, não adentra em outras
nuances do pensamento criminológico, dentre eles a seletividade do sistema
penal que pune mais determinados crimes do que outros, além, é claro, da
desigualdade social que dificulta a construção de uma realidade em que
todos são cidadãos em condições de tomar suas decisões de forma livre e não
viciada.


A teoria do etiquetamento, ou Labelling Approach[15] tenta superar
alguns paradigmas da teoria positivista e da teoria clássica vendo o crime
como uma realidade construída socialmente. Assim sendo a sociedade tende a
considerar determinadas condutas como mais ou menos graves, além de
etiquetar determinados sujeitos como mais ou menos propensos a praticar o
delito.


Nessa perspectiva, embora muitos tipos penais existam no código, o
sistema penal (policia, ministério público, judiciário) dá mais atenção a
certas condutas do que a outras, em uma relação com a representatividade
social daquele que comete o delito e com o tipo específico cometido.


É o que resume Cerqueira (2014).






Assim, podemos inferir que, somados a estes embasamentos
teóricos a análise de situações da realidade, o sistema
penal não foi criado com a finalidade de abarcar todos os
delinquentes e seus consequentes delitos, pois a
seletividade nele existente é que irá garantir sua
permanência e manutenção. Ademais, concluímos que, a
própria sistemática penal possui uma edificação
completamente intencional na medida em que as relações de
poder advindas do paradigma social o estruturam,
ocasionando, assim, uma lógica de impunidade para orientá-
lo.(CERQUEIRA,2014, p.7)






A juventude negra, nessa perspectiva, torna-se principal vítima do
sistema penal, uma vez que representa um seguimento social vulnerável e
rotulável com maior facilidade, tendo em consideração o preconceito racial
presente na sociedade. Além desses jovens, em sua maioria, terem condições
materiais de existência que facilitem o acesso ao crime - principalmente
aqueles relacionados ao patrimônio - há também toda uma estrutura que
criminaliza esses indivíduos.


Mendes (2011) confirma a análise de Cerqueira (2014) e conclui que
os jovens de periferia aparecem mais como vítimas do que simplesmente
autores dos crimes, refutando essa imagem binária construída pela mídia que
opõe jovens de periferia e "cidadãos de bem", como se as maiores vítimas de
uma sociedade violenta fossem justamente aqueles com maior poder
aquisitivo:


Ao mesmo tempo em que a mídia sensacionalista criminaliza
os jovens pobres através do mito da periculosidade, a
realidade mostra dados que atestam o contrário do que é
divulgado pelos veículos de comunicação. Conforme apontado
no início deste capítulo pela pesquisa "Mapas da
Violência", coordenada por Waiselfisz (2011), os jovens
pobres, negros e moradores das periferias comparecem muito
mais como vítimas da violência do que como autores de
crimes. Estes jovens estão sendo exterminados fisicamente
e simbolicamente todos os dias e sua morte se torna comum
e rotineira aos olhos da sociedade. (MENDES, 2011, p.133)






Os órgãos de repressão do Estado materializam o preconceito racial
existente na estrutura da sociedade abordando com mais frequência e
tratando com maior violência os jovens negros, que dentro desse sistema de
representatividade racista tornou-se o estereótipo daquele que comete
crimes.


O racismo institucional é velado por meio de mecanismos e
estratégias presentes nas instituições públicas,
explícitos ou não, que dificultam a presença do negro
nestes espaços ou a presença do Estado onde há maior
concentração da população negra. O acesso é dificultado
não por normas e regras escritas e visíveis, mas por
obstáculos formais, presentes nas relações sociais que se
reproduzem nos espaços institucionais e públicos e/ou na
formação dos agentes do Estado.(SANTOS, 2012 Apud
CERQUEIRA, 2014 p.13-14)






Analisando o Mapa da violência 2013 fornecido pelo Ministério da
Justiça, Cerqueira (2014) demonstra discrepância entre o número de mortes
de jovens brancos e jovens negros:


De pronto, é possível visualizarmos que no ano de 2002, no
que diz respeito ao número de vítimas brancas, este decaiu
de 18.867 para 13.895 vítimas o que, em porcentagem,
representa significativamente um decréscimo de 26,4%.
Todavia, o mesmo indicativo não prospera para o número de
vítimas negras que, já no ano de 2002 possuem
quantitativamente 26.952 vítimas. Já no ano de 2011, a
estatística é alarmante, nos anunciando 35.207 vítimas
negras, quase o triplo da vitimização branca.(CERQUEIRA,
2014, p.9)






Esse racismo institucional é reforçado pelos meios de comunicação,
que ao mesmo tempo reforçam a ideologia segundo a qual o problema da
criminalidade relaciona-se tão somente a escolha do indivíduo (como no
paradigma da criminologia clássica) e reproduzem a imagem do jovem negro
como elemento perigoso, ameaçador e diferente.


A mídia dá amparo ao processo de repressão estatal. As críticas
quando são feitas pedem por maior repressão e uma legislação mais dura.
Essa abordagem pode ser percebida em diversos programas do gênero
jornalismo policial, mas não somente.


Algumas dessas atrações televisivas funcionam muitas vezes com a
cooperação da polícia. O Polícia 24 horas se caracteriza essencialmente por
acompanhar o dia a dia da PM paulistana. Não é diferente com os jornais
voltados para a área criminal, como o Chumbo Grosso veiculado em Goiás,
percebe-se que a relação entre a polícia e o meio de comunicação é muito
próxima, não sendo incomum o apresentador elogiar constantemente o trabalho
da PM e mesmo ligar diretamente para os oficiais para que esses possam se
pronunciar sobre algum fato delituoso.


Nos jornais policiais os entrevistadores acompanham a apreensão dos
supostos criminosos e filmam seus rostos, mesmo quando os acusados teimam
em tentar preservar sua imagem, pouco importa a confirmação do acontecido
como sendo ou não um fato delituoso, ou se há alguma excludente de
ilicitude etc.


Na mesma direção atua o Jornal Daqui, confirmando a voz da polícia
na "repressão ao crime":


Pode-se perceber, ainda, que o Daqui utiliza como
principal fonte as informações repassadas pela polícia,
efetivando, assim, uma postura unilateral na construção de
seus enunciados, ao mesmo tempo em que promove o
silenciamento da população das periferias e,
consequentemente, da juventude que ali reside. A
consequência deste alto grau de dependência de informações
policiais é a construção de estereótipos sobre a juventude
empobrecida, que é caracterizada como problema e como
autora da violência. (MENDES, 2011, p.132)






Essa abordagem muda quando os crimes em questão são cometidos por
jovens da classe média ou se o fato típico se relaciona com os crimes do
colarinho branco. Reforçando o racismo existente cria-se um lugar comum no
subconsciente da população definindo qual lugar o negro deve ocupar dentro
da sociedade, além de delimitar qual comportamento deve ser considerado bom
ou ruim partindo de indivíduo que seja negro.






Este flagrante da atuação policial com os jovens negros,
cada vez mais crescente devido à sedimentação da idéia em
que associa a juventude negra com a criminalidade, somente
proporciona um aumento da truculência da prática policial
diante desse segmento. Por conseguinte, em decorrência de
tal comportamento, temos a figura do racismo incorporada
nas instituições de controle, conhecido como racismo
institucional. (CERQUEIRA, 2014, p.12)






A mídia, juntamente com instituições sociais dominantes (Estado,
Igreja etc.), perpetua uma ação cruel, cria-se de um lado um perfil que
abaixa a autoestima da pessoa negra e do outro um molde comportamental
adequado para que essa pessoa consiga suplantar esse preconceito. Em outras
palavras, o sujeito torna-se parcialmente aceito dentro de um grupo
dominante desde que se submeta a determinado padrão de comportamento e
aceite a imposição da cultura dominante em detrimento da sua própria.


Analisando a representação que o Jornal Daqui do estado de Goiás
faz dos jovens que mora dores de periferia Mendes (2011) conclui que o
jornal reforça essa perspectiva criminalizadora da pobreza:






A partir das análises feitas, pode-se perceber que o
discurso do Daqui sobre a juventude atua a partir da
perspectiva de uma memória que estabelece uma comunicação
que estagna e que repete sentidos já ditos, o que não gera
reflexão e reforça a criminalização dos jovens. Ao
construir uma rede de enunciados sobre os jovens moradores
das periferias, percebe-se que o jornal reforça sua
representação enquanto principais agentes da violência.
Esta cobertura dá espaço somente aos assuntos negativos
relacionados à criminalidade e à violência, sendo que
temáticas como a cultura, o esporte, a realidade cotidiana
destes jovens, entre outras, quase nunca são abordadas
pelo diário. (MENDES,2011, p.132)






Percebe-se nesse contexto uma realidade em que o sistema penal atua
em concordância com determinadas ideologias predominantes. Longe de ser
imparcial e objetivo essa atuação governamental frente ao problema da
violência responde a certo discurso, muitas vezes refletido nos meios de
comunicação.


Em uma análise apressada poder-se-ia dizer que a mídia influencia
diretamente na tomada de políticas públicas em segurança pública. Contudo,
estaria se desconsiderando que os próprios meios de comunicação sofrem
influência de outras formas de poder, em um sistema que se retro alimenta.


Porém, se não se pode afirmar categoricamente que os principais
grupos de repressão a pressionar os órgãos estatais são os meios de
comunicação, não seria demasiado evidenciar a grande influência da mídia na
tomada de decisões por parte dos agentes do governo, é o que se tenta
debater no tópico seguinte.








2.4 – OS REFLEXOS DO DISCURSO MIDIÁTICO NA ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS





O impacto midiático na elaboração de leis penais e políticas
públicas relacionadas ao combate e prevenção ao crime, tem se mostrado
bastante profícuo em instaurar o que Garland (2008) chama de "Cultura do
Controle".


Cada dia mais a repressão ao crime se torna assunto recorrente na
televisão, havendo desde coberturas estagnantes de crimes que chocam a
população, como o caso Isabela Nardoni[16], até programas policiais que são
verdadeiros reality shows. É o caso do Polícia 24 horas (já citado nesse
trabalho), ao mesmo tempo em que há uma sensacionalização da vítima, tendo
sua vida exposta e dramatizada como forma de sensibilizar o público.


Assim, além de explorar o fato delituoso como forma de ganhar
audiência a mídia explora o discurso do medo e exercita seu pretenso
trabalho de cidadania cobrando mudanças na legislação e no trabalho do
judiciário, não raro elogiam o trabalho da Polícia Militar, mas atacam as
leis e o poder judiciário, instaurando o senso comum de que " A polícia
prende e o juiz solta".






A emergência do medo do crime como um tema cultural
proeminente é confirmada pela pesquisa de opinião pública,
que revela uma presunção de existência consolidada em boa
parte do público norte-americano e britânico, no sentido
de que as taxas de criminalidade estão piorando,
independentemente dos níveis atuais, e no sentido de que
há pouca confiança pública na capacidade da justiça
criminal de fazer algo a respeito. A percepçao de um
público amedrontado e revoltado teve grande impacto o tipo
e no conteúdo das políticas, nos anos recentes (GARLAND,
2008, p.54).






Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera
coincidência. Esse discurso penalizante e retributivo começa a ter efeitos
na legislação e atuação dos servidores públicos ligados ao sistema penal, é
o que demonstra Garland (2008) :






Nas últimas décadas, têm se verificado mudanças
importantes nos objetivos, prioridades e ideologias de
trabalho das principais agências da justiça criminal. A
polícia, agora, se considera não só uma força de combate
ao crime mas principalmente um serviço público reativo,
que intenta reduzir o medo, a desordem e a incivilidade,
bem como atender as expectativas da comunidade quanto às
prioridades relacionadas a manutenção da lei. Autoridades
prisionais consideram que sua tarefa principal é guardar
com segurança os criminosos, e não pretendem mais levar a
cabo medidas reabilitadoras para a maioria dos internos.
Agências de fiscalização do livramento condicional e da
liberdade vigiada não mais enfatizam o ethos do trabalho
social que antes informava sua atividade; em vez disto,
apresentam-se como forma barata e comunitária de punição,
voltada ao monitoramento de criminosos e ao gerenciamento
de riscos. O ato de sentenciar mudou, particularmente nos
EUA, deixando de ser arte discricionária de individualizar
a punição para se tornar uma mecânica distribuição de
penalidades. (GARLAND, 2008, p.65)






Com a decaída do discurso da reabilitação emerge uma nova forma de
compreender o crime e o criminoso, agora como totalmente responsáveis por
seus atos, refratários aos mecanismos de inibição, sujeitos que precisam
ser controlados , encarcerados, seres humanos que não mais podem ser
reabilitados, mas que precisam ser combatidos de forma eficaz. Essa visão
sobre o crime ensejou uma teorização do controle, espécie de criminologia
da vida cotidiana, que se desenrola em ideias como a escolha racional,
crime como oportunidade e prevenção situacional do crime, tornando-se
espaço fértil para os políticos utilizarem discursos populistas (GARLAND,
2008, p.61).


Nesse espectro da cultura do controle o populismo toma o crime como
bandeira partidária capaz de atrair a opinião pública. Quem tem voz
predominante na política criminal não é mais o profissional da área, mas a
"população" amparada pelo discurso midiático que coloca as vítimas e os
atormentados no centro da situação, passando a opinião pública de freio
ocasional das iniciativas políticas para fonte privilegiada na elaboração
de leis etc. o senso comum, a experiência individual passam a ter grande
relevância enquanto o saber criminológico é paulatinamente rebaixado.
(GARLAND, 2008, p.58)


Assim como no Brasil, nos Estados-Unidos e na Grã-Bretanha, a
vítima começa a tomar espaço dentro do discurso criminológico, tornando-se
comuns as leis batizadas com o nome dessas pessoas. Diferentemente do
período anterior que o autor chama de previdenciarismo penal, em que
aqueles que sofriam a agressão tinham seus interesses absorvidos pelo poder
público, sem que isso significasse necessariamente uma atuação que
cerceasse os direitos do ofensor (GARLAND, 2008, p. 54-55).


A vítima era tida como reflexo de um problema social abrangente que
dizia respeito mais ao tipo de sociedade em que se vivia do que a figura do
ofensor, sendo este tido muitas vezes como resultado da falha estatal em
incluir os indivíduos, para que não cometam crimes.


Vários exemplos podem ser citados de leis batizadas com o nome de
vítimas, a Lei Maria da Penha[17] (Lei 11.340/06) é um marco desse processo
de maior atenção ao ofendido na criminologia brasileira. Maria da Penha se
tornou conhecida por ter perdido parte dos movimentos em decorrência de
violência doméstica praticada por seu marido, a lei surgiu então para punir
com maior rigor aquele que comete violência doméstica, bem como dar maiores
garantias de proteção por parte do judiciário àquelas que sofrem agressão,
criando delegacias especializadas etc.


Embora seja marca de avanço legislativo por buscar proteger uma
minoria que até então era deixada de lado, a lei 11.340/06, se mostra como
exemplo nacional do retorno da vítima para o centro da política criminal.
Além da lei Maria da Penha, outras leis também foram "batizadas" com o nome
de vítimas, como a recente "Menino Bernardo" ou "Lei da Palmada" que altera
o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) tornando-se esse "batismo" uma
tendência recente:


O nome da lei segue uma tendência recente – e que
evidencia a pouca nitidez das fronteiras entre mídia e
Direito – de tornar textos legislativos conhecidos do
público homenageando vítimas de crimes supostamente
evitáveis por previsão legal, como o caso das Leis Maria
da Penha, Joana Maranhão e Carolina Dieckmann[18]. Este
paralelo com recentes leis penais ilustra como a produção
legislativa pode criar certo tipo de publicidade das
instituições responsáveis pelas leis – o que nem sempre
tem o bem comum como objetivo principal. (ZAPATER, 2015,
p.1)






Tendência que se confirma nos EUA, país no qual:


Políticos concedem entrevistas coletivas para anunciar
leis relativas às sentenças condenatórias, e são
acompanhados no palco pelas famílias de vítimas: lei
Megan, lei Jenna, lei Brady. Na Grã-Bretanha, as vitimas
de crimes aparecem como palestrantes convidados nas
conferências dos partidos políticos, e estabeleceu-se um
"Estatuto da Vítima", com amplo apoio dos maiores
partidos." (GARLAND, 2008, p.55)


Essa utilização da vítima pelos partidos, como ficou claro no caso
do "Menino Bernardo" assassinado pelo pai e pela madrasta[19], coaduna-se
com o populismo político, que tem utilizado o problema da criminalidade
como bandeira partidária.


Expressão clara desse populismo que se utiliza do discurso do medo,
foram as últimas eleições para Deputado Estadual e Federal em Goiás, o
candidato a Deputado Federal Delgado Waldir do PSDB (Partido da Social
Democracia Brasileira) teve uma das maiores votações proporcionais do
país[20] sendo o mais votado do estado, o slogan da campanha era "45 do
calibre e zero, zero da algema para o bandido"[21] em referência ao número
de sua candidatura: 4500.


Nessa pressa por aprovar instrumentos legislativos oriundos de
clamores populares, leis tecnicamente mal redigidas e com alto teor
repressivo são aprovadas às pressas como a lei de crimes hediondos (Lei
8.072/1990).


Acerca desta lei (FRANCO apud ZAFFARONI, 2009) faz sua crítica ao
clamor midiático envolvendo sua elaboração:


O clima político-ideológico, que havia influído
poderosamente sobre o posicionamento do legislador
constituinte, encontrou consistente reforço nos atos
criminosos dirigidos contra segmentos privilegiados da
sociedade brasileira. Menos de dois anos após a
Constituição Federal de 1988, o legislador ordinário,
pressionado por uma orquestrada atuação dos meios de
comunicação social, formulava a lei 8.072/90. Um
sentimento de pânico e de insegurança - muito mais produto
de comunicação do que de realidade - tinha tomado conta do
meio social e acarretava como consequências imediatas a
dramatização da violência e sua politização ( FRANCO apud
ZAFFARONI, 2009, p. 16).






Zaffaroni (2009) explicita que logo a inutilidade da lei foi
evidenciada, sua aplicação mostrou-se frustrante, outros tipos foram
"adicionados" à lei, como o homicídio, o latrocínio etc. procurando atender
aos reclames da população.


A lei comporta desde crimes como homicídio (que não constava no
texto original) até falsificação de remédios, sendo como em uma colcha de
retalhos em que se adicionam partes de acordo com os clamores populares.


Assim, Zaffaroni (2009) arremata com uma crítica ao legislador
brasileiro:






Faz-se, no Brasil dos tempos presentes, o discurso do
Direito Penal de intervenção mínima, mas não há nenhuma
correspondência entre esse discurso e a realidade
legislativa. Ao invés da renuncia formal ao controle penal
para a solução de alguns conflitos sociais ou da adoção de
um processo mitigador de penas, com a criação de
alternativas à pena privativa de liberdade , ou mesmo da
busca, no campo processual, de expedientes idôneos a
sustar o processo de forma a equacionar o conflito de
maneira não punitiva, parte-se para um destemperado
processo de criminalização no qual a primeira e única
resposta estatal, em face do surgimento de um conflito
social, é o emprego da via penal. Descriminalização,
despenalização e diversificação são conceitos fora da
moda, em desuso. A palavra de ordem, agora, é
criminalizar, ainda que a feição punitiva tenha uma
finalidade puramente simbólica. (ZAFFARONI, 2009, p.17)






Embora a primeira edição da obra de Zaffaroni (2009) seja de 1997,
sua observação sobre o processo legislativo brasileiro se mostra muito
atual, em tempos de aprovação da lei 13.104/2015 que adiciona que cria uma
nova forma de homicídio qualificado no código penal, chamado de
feminicídeo[22], e da votação pela redução da maioridade penal no
legislativo, percebe-se um direcionamento estatal na adoção de medidas
penalizadoras como forma de resposta à sociedade para a questão da
insegurança.


Pensar a questão do crime e da insegurança na sociedade moderna, se
mostra como a necessidade de refletir, antes de qualquer coisa, sobre
escolhas ideológicas a serem adotadas. São caminhos distintos, por um lado
a perspectiva da repressão baseada na autodeterminação do sujeito que se
relaciona com as ideologias do mercado, por outro a noção de que aquele que
comete o delito é também vítima. Uma perspectiva aposta suas fichas na
defesa. É a crença de que invariavelmente existirão criminosos, a outra
acredita na inclusão como melhor forma de afastar o sujeito do crime.


Acredita-se então que seria preciso à adoção de um paradigma
filosófico de direitos humanos que possa enxergar o sujeito além de sua
capacidade de produção de riqueza, uma ética da vida e do vivo, uma
alternativa que se exporá a seguir.
















CAPÍTULO III





UM NOVO PARADIGMA DE DIREITOS HUMANOS COMO ALTERNATIVA POSSÍVEL





Nesse capítulo, pretende-se explorar a ideia de direitos humanos
como alternativa possível aos discursos de precarização da dignidade
humana, tais como aqueles que advogam pela pena de morte, pela não
problematização da desigualdade, dentre outros. A efetivação desses
direitos e consequentemente a busca pelo respeito e concretização da
dignidade humana em todas as suas dimensões, precisa ser tida como preceito
fundamental de toda sociedade. Isso é, os direitos humanos precisam ir além
da normatização e alcançar a concretização em tempo integral – uma utopia
pela qual é preciso lutar.


A implementação de práticas sociais voltadas para efetivação desses
direitos passa pela construção discursiva democrática e educação para
direitos humanos. Assim, os meios de comunicação são de primeira
importância para pensar práticas menos danosas e mais inclusivas.


Pensando a questão da criminalidade partindo de uma perspectiva
integradora de direitos humanos, as respostas vêm com mais facilidade uma
vez que a gênese do assunto está, na maior parte das vezes, relacionada ao
desrespeito a esses direitos ao agente que delinque.


Enquanto esse trabalho foi escrito, o congresso brasileiro discutia
a redução da maioridade penal, exemplo de como o problema da criminalidade
vem sendo tratado no Brasil. Fica claro que boa parte da sociedade está
carente de outra visão dos acontecimentos sociais, um modelo de mídia mais
inclusiva seria fundamental para poder levar o debate à população de forma
democrática e interrelacional.





3.1 – AS DIFERENTES PERSPECTIVAS DE DIREITOS HUMANOS





Entre as referências do que são os direitos humanos a mais lembrada
é a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, por
ser fruto de uma revolução que mudou os paradigmas do pensamento ocidental,
instaurando princípios que passaram a orientar as constituições dos mais
diversos países de acordo com o que se conveniou chamar de modernidade.


É comum dividir didaticamente a história da luta por direitos em
gerações, essa teoria apresentada por Thomas H; Marshall vem sendo
reelaborada por diversos autores, havendo atualmente quem fale em 4° e 5°
gerações de direitos humanos:


O conceito de cidadania, enquanto direito a ter direitos,
foi abordado de variadas perspectivas. Entre elas, tomou-
se clássica, como referência, a concepção de Thomas H;
Marshall, que, em 1949, propôs a primeira teoria
sociológica de cidadania ao desenvolver os direitos e
obrigações inerentes à condição de cidadão. Centrado na
realidade britânica da época, em especial no conflito
frontal entre capitalismo e igualdade, Marshall
estabeleceu uma tipologia dos direitos de cidadania.
Seriam os direitos civis, conquistados no século XVIII, os
direitos políticos, alcançados no século XIX - ambos
chamados direitos de primeira geração - e os direitos
sociais, conquistados no século XX chamados direitos de
segunda geração (Marshall 1967, Vieira. 1997).


Posteriormente, autores diversos analisaram suas
realidades nacionais valendo-se desta concepção, à qual
acrescentaram nuances teóricas, come se vê: em Reinhard
Bendix (1964),que enfocou a ampliação da cidadania às
classes trabalhadoras, por meio dos direitos de
associação, educação e voto, bem como em Turner
(1986),que, voltando sua atenção para a teoria do
conflito, considera os movimentos sociais como força
dinâmica necessária ao desenvolvimento dos direitos de
cidadania. (FERREIRA, 2005, p.2).






Ocorre que essa lógica generacionista implica em alguns
posicionamentos ideológicos incompatíveis com uma perspectiva emancipadora
do que são os direitos humanos levando, por exemplo, à ideia de que os
direitos podem ser pensados de forma estanque, separados, como se um
sujeito pudesse ter liberdade mesmo passando fome. David Sánchez Rúbio
(2011) afirma existirem duas posições distintas acerca das gerações de
direitos humanos, uma mais conservadora voltada ao jusnaturalismo e a outra
mais progressista que critica a visão geracional de direitos humanos.


Sánchez Rúbio (2011), citando Gallardo Martínez; y Donelly :


La posición más conservadora suele cuestionar la
existencia de varios tipos secuenciales de derechos
humanos porque defiende que únicamente hay un contenido
básico o bloque mínimo de derechos, independientes de los
processos históricos y sus condiciones sociales de
produccíon. La defienden quienes parten de una perspectiva
iusnaturalista clássica y también ciertas posiciones
liberales individualistas. Colocan a los derechos
individuales, o de primera generación como los únicos
derechos universales y válidos, siendo los verdaderamente
originarios. Por ello consideran que hay una
incompatibilidad natural y racional entre los derechos de
liberdad o individuales y el resto de pseudo-derechos que
se classifican como segunda y tercera generación. Incluso
estos puede ser percebidos como una amenaza para los
primeros (GALLARDO MARTINEZ, DONELLY Apud SÁNCHEZ RUBIO,
2011, p.79).






Outro ponto a ser criticado é a ilusão de progresso, de que as
gerações vêem umas após as outras se complementando. Em sua obra "A
afirmação histórica dos direitos humanos" Fábio Konder Comparato (2001)
traz uma análise de diferentes momentos históricos que contribuíram para a
elaboração da ideia do que seriam os direitos humanos, evidenciando que
desde tempos remotos como a Petição de Direitos em 1628 na Inglaterra
passando pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão na
França revolucionária até os dias atuais. Esses direitos considerados
indispensáveis foram sendo construídos em um processo cultural constante e
não necessariamente evolutivo como a ideia que o termo geração passa:


Es más, resulta que si se habla o utiliza el término
"generación" o "generaciones", dicho concepto implica un
único processo evolutivo, una continuidad que se refuerza
y que va provocando cierta mejora, una innovación o avance
en las fases o generaciones posteriores con respecto a las
fases anteriores. Resulta claro, que esto no sucede con
los derechos económicos, sociales y culturales o con el
derecho medioambiental o con el derecho de los pueblos
indígenas si los comparamos con el grado de desarollo de
los derechos liberales. (SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.84)






As declarações de direitos humanos têm conteúdos distintos, podendo
representar inclusive retrocessos. Comparato (2001) critica a Convenção
europeia dos direitos humanos de 1950, dizendo que esta limita-se aos
direitos individuais clássicos e representa sob esse aspecto, um recuo em
relação à Declaração Universal dos direitos humanos, isso para evidenciar
que são várias as perspectivas e ideologias que podem orientar as
discussões sobre o tema.


Os chamados direitos de primeira geração acabam por preponderar
sobre os demais, acarretando na prática maior preocupação estatal com os
bens jurídicos que seriam tutelados por esses direitos. Como é o caso da
propriedade que, vista sobre o prisma da primeira geração, implica no
direito de defesa da propriedade particular pelo estado, sendo que ao mesmo
tempo esse direito poderia ser visto como o direito à propriedade, ou
direito à função social da propriedade estando inserido nos chamados
direitos de segunda ou terceira geração, que acabam sendo considerados de
segunda ou terceira importância, e não como parte de um todo indivisível.


Sánchez Rúbio (2011) ressalta a maior eficácia jurídica dada aos
direitos de primeira geração:


Resulta curioso percibir de qué manera los derechos
individuales y políticos propios de la primera generación,
fruto de la lucha burguesa frente a las limitaciones del
orden feudal y asociados al principio de libertad, tienen
un grado de reflexión teórica, de eficacia jurídica y de
sistemas de garantias muy superiores al resto, que tienen
más dificultad a la hora de ser protegidos - los derechos
económicos, sociales e culturales de segunda generación
asociados al principio de igualdad; y los de tercera
generación propios del impacto de las nuevas tecnologías y
asociados al principio de solidaridad (SÁNCHEZ RUBIO,
2011, p.84).






Em outro trecho destaca ainda a capacidade que a burguesia teve de
se fazer hegemônica ao passo que outros grupos não tiveram a mesma sorte:


Sí es cierto que la burguesía concibío y creo con sus
prácticas y teorías, desde el principio, la primera
generación de derechos humanos, pero no es del todo verdad
que, posteriormente, se fueran originando las seguintes
generaciones de manera mecánica, lineal, progressiva y
sucesiva. (...) Más bien, la capacidad de hacerse
hegemónica de este colectivo, provocó, al
institucionalizar sus reivindicaciones, que otros grupos
humanos no pudieran en ese mismo período y, en períodos
posteriores, hacer una lucha con resultados
institucionales y estructurales equivalentes a los que
logro la burguesía. (SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.85)






E se há exemplos desse caráter não necessariamente evolutivo dos
documentos que tratam dos direitos humanos, na prática essa questão se
mostra ainda mais evidente, uma vez que não é incomum esses direitos serem
flexibilizados quando se alega motivo de estado, terrorismo, etc.
Lembrando que o conceito de terrorismo e motivo de estado também variam no
espaço e no tempo. Na década de 1970 eram considerados terroristas aqueles
sujeitos que lutavam pela democratização de seus países. Na Paris ocupada
pelo nazismo, o motivo de estado foi alegado para condenar opositores do
regime sem o devido processo legal.


Assim, por querermos uma vida segura se justificaria uma morte
certa:


En virtud de un ideal de perfección por lograr la
seguridad completa y absoluta que nunca será real, se
obtiene el rechazo casi perfecto de los derechos de las
personas. Se rompe el contacto humano y, con ello, la
solidaridad y los vínculos sociales. Además quien es
sospechoso o es considerado peligroso o un elemento de
distorsión, se le excluye e, incluso si hace falta, se
aniquila fríamente. Por querer una vida segura se
justifica una muerte cierta. (SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.76)
(Grifos do autor).






Essa relativização e flexibilização dos direitos humanos, de
exceção acaba por se tornar a regra, como muito bem ilustra Sánchez Rúbio
(2011) . Longe de serem universais, são direitos para quem "veste a roupa"
do ocidente (homem, branco, heterossexual, possuidor de bens etc.), ao
passo que aquele sujeito que não goza dessas características e não veste
essa roupa (mulher, negra, indígena, homossexual etc.) fica invisibilizado,
a mercê da sorte.


Longe de ter seus direitos reconhecidos, os mais pobres passam a
ser vistos como perigosos, como ameaças à ordem econômica e social. Esse
medo muito bem trabalhado pela mídia possibilita a criação de falsos
consensos, que não raro estão ligados à ideia de flexibilização dos
direitos humanos para determinadas camadas da sociedade.


Uma crônica da revista Carta Capital retrata bem esse tipo de
ideologia ao utilizar um personagem fictício:


Almeidinha era o sujeito inventado pelos amigos de
faculdade para personalizar tudo o que não queríamos nos
transformar ao longo dos anos. A projeção era a de um
cidadão médio: resmungão em casa, satisfeito com o emprego
na "firma" e à espera da aposentadoria para poder tomar
banho, colocar pijama às quatro da tarde, assistir ao
Datena e reclamar da janta preparada pela esposa. (...) O
Almeidinha gosta também de se posicionar sobre os assuntos
que causam comoção. Para ele, a atual onda de violência em
São Paulo só acontece porque os pobres, para ele
potenciais criminosos (seja assassino ou ladrão de
galinha) têm direitos demais. O Almeidinha tem um lema:
"direitos humanos para Humanos Direitos". Aliás, é ouvir
essa expressão, que ele não sabe definir muito bem, e o
Almeidinha boa praça e inofensivo da vizinhança se
transforma. "Lógica da criminalidade", "superlotação de
presídios", "sindicato do crime", "enfrentamento", "uso
excessivo da força", para ele, é conversa de intelectual
.[23](Carta Capital, 2012)






Embora fictício o personagem Almeidinha diz muito sobre o tema
tratado aqui. A repercussão de alguns discursos na mídia encontra eco na
sociedade, possibilitando que visões retrógradas e preconceituosas sobre
direitos humanos sejam tidas como verdadeiras, chancelando uma atuação
repressiva do Estado às camadas mais pobres da sociedade, uma sensação de
impotência toma conta do indivíduo:


El caso es que para enfrentar esa impotencia no solo se
buscan culpables concretos a los que se les sanciona y
castiga (p.e inmigrantes pertencientes a una religión o
una cultura distinta), sino que todos somos potencialmente
peligrosos y sospechosos de quebrar nuestra tranquilidad y
de eliminar nuestras vidas. Por ello, en nombre de la
seguridad, blindar las cosas con el material más eficaz.
Lo que al final logramos es que acabamos con el disfrute
de la vida y aniquilamos a la propria condición humana.
Por querer la seguridad perfecta, estamos dispuestos a
renunciar y no reconecer tanto nuestros propios derechos
como los derechos de los demás (SÁNCHEZ RUBIO, 2011,
p.76).






Mesmo parecendo distantes, a visão que Almeidinha tem dos direitos
humanos não está totalmente apartada da ideia geracional clássica.
Almeidinha dá prevalência aos direitos chamados de primeira geração
(prestação negativa por parte do Estado), acredita que quem não se encontra
na mesma posição que ele não é "direito" e por isso não pode ter direitos
humanos. Uma visão limitadora que restringe a humanidade do indivíduo a
certo tipo de sociedade, certo tipo de perspectiva, e principalmente, certa
forma de ver a história.


Dessa maneira, compreender a história como processo evolutivo se
torna um entrave na busca por um pensamento autocrítico capaz de avaliar
progressos e retrocessos, uma vez que tende a desconsiderar experiências do
passado, reputado-as de ultrapassadas ou retrógradas ao passo que
supervaloriza o presente sem colocar em questão o que é dado como certo,
nesse sentido repensar os direitos humanos é antes de qualquer coisa
combater preconceitos.


Assim, conclui Sánchez Rúbio (2011):


De ahí que se haga urgente y necesario historizar los
derechos humanos desde las luchas, los contextos y las
condiciones particulares de cada grupo y forma de vida,
sin estar condicionados por la visíon generacional que
solo atiende a reflejos normativos e institucionales
vestidos por un sastre que manifesta una expresión del
cuerpo humano pero que no es necesariamente la única ni la
que sirve para avanzar en producción de humanidad.
(SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.96)






Com intuito de questionar as afrontas aos direitos humanos
perpetuadas pelo Estado e chanceladas pela mídia, coloca-se uma proposta
que se acredita ampliada.






3.2 – OS DIREITOS HUMANOS PENSADOS SOBRE OUTRA ÓTICA





Pensar outra perspectiva de direitos humanos é uma tarefa árdua,
tendo em consideração todo imaginário burguês e ocidental inerente à
formação do pesquisador. Não se trata de renunciar a todos os postulados do
que se convencionou chamar modernidade, nem de abandonar a própria cultura
em busca de alguma forma de redenção. Longe de criticar aqueles que não se
sentem bem em sua sociedade e vão atrás de algo diferente, o que se
pretende é evidenciar a necessidade do caráter intercultural e não
preconceituoso dos direitos humanos.


A ideia burguesa e ocidental do que são direitos humanos contribuiu
imensamente para o postulado de que existe um mínimo ético que deve ser
respeitado sempre que se tratar de um ser humano. A concepção de que pelo
simples fato de um sujeito ter nascido com vida, o que já o torna merecedor
de uma existência digna, formando o conceito de pessoa humana, é
fundamental para concepção do que são direitos humanos.


Contudo, essa perspectiva burguesa contribuiu para a elaboração de
outros postulados, inclusive o do que são comportamentos humanos, em outras
palavras, de quem deve ser considerado mais ou menos humano segundo seus
atos, sua cultura, cor e orientação sexual. Existem direitos mais e menos
tutelados, e até mesmo não tutelados, como se a cultura ocidental fosse uma
espécie de óculos capaz de enxergar ou não o sujeito e suas necessidades de
acordo com sua cultura, daí o efeito duplo de encanto e desencanto:


Como toda produccíon humana, se parte de la idea que
derechos humanos pueden ser tanto una instancia de lucha
libertadora por una dignidad que emancipa, como un
instrumento de dominación que legitima distintas formas de
exclusión e inferiorización humana, de ahí su doble efecto
encantador y de desencanto.(SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.6)






Ampliar essa ideia do que são direitos humanos, democracia,
participação, liberdade é uma necessidade preeminente para a concretização
de uma sociedade mais justa e fraterna, essa necessidade passa por repensar
alguns pressupostos:


Nuestro imaginario es tan estrecho sobre ambas ideas, que
acaba desempoderando y extendiendo una cultura de
irresponsabilidad en la ciudadanía, entendiendo que
democracia es sinónimo de representación y derechos
humanos solo alude a norma jurídicas, instituciones,
teorías y garantías judiciales. Se intenta ampliar estas
miradas estrechas intentando articular un concepto de
democracia y de derechos humanos más complejo, relacional,
activo, participativo y sociohistorico. (SÁNCHEZ RUBIO,
2011, p.13)






Sánchez Rúbio (2011) define então uma série de desafios e
responsabilidades que o imaginário jurídico deve assumir e incorporar para
superar essa perspectiva que acaba por reduzir o direito e a democracia. O
autor separa os desafios em quatro grandes áreas, são elas:


1. Asumir un pensamiento complejo, relacional e
interdisciplinario.


2.Adoptaruna racionalidad y una ética de la vida y de lo
vivo (entendida como una ética reproductiva y de
resistencia que sea sensible al sufrimento humano y con
conciencia ambiental).


3.Utilizar un paradigma pluralista del derecho.


4.Incorporar la pluriversalidad y la interculturalidad del
mundo a los estudios jurídicos. (SÁNCHEZ RUBIO, 2011,
p.16)






O foco desse estudo será no primeiro e segundo ponto, pois acredita-
se que utilizar um paradigma pluralista do direito e incorporar a
pluralidade e a interculturalidade do mundo aos estudos jurídicos são
decorrências de um pensamento jurídico que se pretenda complexo, inter
disciplinário e orientado por uma ética que coloque o valor da vida e da
dignidade humana (possibilidade não apenas de viver mas viver com qualidade
integrando-se ao meio ambiente e a sociedade) como valores que orientam o
direito.


O primeiro ponto parte da crítica ao que Rúbio chama de
"fraccionamento de saberes", que nada mais é do que divisão do saber em
campos distintos, como se fosse possível separar a vida em áreas distintas.


Não pode o jurista prescindir do biólogo, assim como este não pode
prescindir do químico, do médico ou do engenheiro. Essa busca por uma
realidade enciclopédica que divide e faz uma taxonomia do conhecimento,
acaba refletindo na forma de pensar a ciência e consequentemente a vida,
isentando-se de responsabilidades e fechando-se às realidades distintas.


Cria-se a falsa ilusão de que cada um cumprirá com sua parte na
sociedade, como em um sistema de engrenagens. Essa herança do positivismo
isola o indivíduo e dificulta pensar a parte a partir todo, criando
microcosmos de poder e interpretação.


Um exemplo simples é a incapacidade de alguns profissionais da área
jurídica de conceber as leis dentro de um sistema pautado por princípios
como é a constituição. Por mais que uma interpretação legal possa parecer
notadamente inconstitucional ou incoerente com o princípio supremo da
dignidade da pessoa humana, essa interpretação continua vigente por muito
tempo até que se possa constatar o óbvio, isto é, quando se constata.


Constata-se na prática uma redução do direito:


Reduce el derecho al derecho estatal, ignorando otras
expresiones jurídicas no estatales (pluralismo jurídico) y
creyendo que el derecho solo es norma o institución,
siendo una pesada herencia del positivismo decimonónico.
Fruto de ello se termina absolutizando la ley del Estado y
se burocratiza su estructura; reduce también el saber
jurídico a pura lógica-analítica y normativa ignorando las
conexiones entre lo jurídico, lo ético y lo político, no
solo desde un punto de vista externo al derecho, sino
también en su interior. (SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.18)






Se dentro do meio jurídico há certa dificuldade para a
concretização de uma reflexão complexa, relacional e interdisciplinar,
quando pensamos na relação do direito com outras áreas isso se torna quase
um devaneio. Deixando de lado a racionalidade sociológica (capacidade de
enxergar uma sociedade dinâmica), e vendo o direito partir da
judicialização, ou seja, reduz a existência do direito ao seu
reconhecimento pelo aparelho estatal, é o que Sanchez Rúbio chama de
dimensão pós-violatória dos direitos humanos:


Separa sin capacidad de autocrítica el ámbito de lo
público y de lo privado, con las consecuencias negativas
que, en el lugar de las garantías, poseen los derechos
humanos bajo el predominio combinado de las
racionalidades instrumental y mercantil, por un lado, y la
patriarcal o machista, por otro. Separa tambíen lo
jurídico de lo político, de las relaciones de poder y de
lo ético, silenciando las estructuras relacionales
asimétricas y desiguales entre los seres humanos. Separa
la práctica y la teoría en materia de derechos humanos y
la dimensión pre-violatoria de la post-violatoria de los
mismos, solo preocupándose y dándole única importancia a
esta última, es decir, a aquella que indica que derechos
humanos se reivindincan por vía judicial, una vez que son
violados (SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.18).






Uma ética da vida e do vivo somente será possível com uma
perspectiva pluralista do direito. A natureza, assim como os problemas
encontrados na sociedade não existem de forma independente, separadas,
autônomas, mas se correlacionam à constante tentativa de atacar a doença
sem pensar nas causas, deixando de levar em consideração os demais fatores,
e acaba por agravar a enfermidade.


Na prática o mundo jurídico continua atuando de forma
positivista, mesmo sendo um senso comum acadêmico a crítica ao formalismo e
ao positivismo jurídico. Isso porque o jurista não consegue fugir da lógica
formal perpetrada pela sociedade de que é possível separar a parte do todo,
tornando-se alheio ao mundo sem que isso se torne um problema.


Como reflexo dessa situação, deixa de ser absurda a ideia de que
o jurista pode se eximir da responsabilidade social, atuando dentro de
estruturas abstratizantes e kafkianas sem que isso seja visto como um
problema.


Assim, é perfeitamente possível que alguém escreva um tratado
sobre direito tributário sem se posicionar em momento algum sobre o fato
do artigo 153 da Constituição de 1988 (que trata do imposto sobre as
grandes fortunas), nunca ter sido regulamentado, ou pior, a situação do
cidadão que é preso e que mal entende o que está acontecendo, deixando seu
direito de defesa nas mãos do Estado ou de um profissional que ele não
conhece mas que vai ser responsável por sua liberdade.


O que ocorre é uma redução do campo político a determinados
tipos de relações:


Aparte de eximir la ciencia (jurídica) de responsabilidad
social, se reduce el campo político a determinado tipo de
relaciones (mundo de la ciudadanía y de la gobernanza),
silenciando el hecho de que en toda actuación e
intervención humana aparace siempre un componente político
y determinadas expresiones de ejercicio del poder. Al
final, estos reduccionismos terminam por eliminar y por
quitarnos la capacidad que todo ser humano tiene de
construir y recrear mundos axiológicos diversos en lo
sexual, lo libidinal, en lo económico, en lo jurídico, en
lo étnico en lo cultural. (SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.20)






Nada mais lúcido do que o livro o processo de Franz Kafka para
ilustrar a realidade daqueles que caem nas mãos do Estado. Para o cidadão
que mal sabe ler e escrever, entrar em um tribunal deve ser uma experiência
como a de Hans Staden[24] quando foi capturado pelos Tupinambás e mal tinha
ideia do que ia acontecer.


A pergunta comum do réu, ao fim da audiência sobre o que foi
decidido, deveria ser absurda, mas tal é o grau de abstração do
profissional do direito que é possível discutir horas sobre o contraditório
e a ampla defesa no processo sem pensar em momento algum na realidade do
réu, que não entendendo nada de processo e do linguajar jurídico nunca
conseguirá ter acesso ao contraditório e a ampla defesa, pois é preciso
primeiro entender para depois argumentar.


O problema se dá porque o direito acaba sendo pensado a partir
da abstração e não do ser humano, da realidade concreta do indivíduo, das
condições de vida. A abstração torna o jurista cego à realidade, como
alguém que vigia para uma aranha não passar por debaixo da porta, mas deixa
um elefante entrar pela janela.


Joaquim Herrera Flores, partindo da ideia de dignidade humana,
utiliza o critério de riqueza humana como a possibilidade que toda pessoa
deve ter de agir frente às relações que se encontra (SÁNCHEZ RÚBIO, 2011,
p.25). Significa dizer que não tem sua dignidade respeitada o indivíduo que
não pode responder por si, que não tem possibilidade de defesa aqueles que
não entendem o que está acontecendo, como no exemplo do réu dado acima.


Sobre uma ética da vida e do vivo Sanchez Rúbio traz também o
princípio de agência humana defendido por Helio Gallardo e próximo da ideia
de Herrera flores:


Retomando el logro de la modernidad sobre la capacidad de
individuación del homo sapiens, el compromisso y la
sensibilidad con lo humano se traduce en una disposición y
un impulso a luchar por crear las condiciones que permitan
a todo ser humano de dotar de carácter (libidinal, sexual,
cultural, social, política, económica, étnicamente) a sus
proprias producciones en entornos que no controla en su
totalidad.(SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.26)






O compromisso do direito de se tornar mais afetivo e solidário
não deve ser opção de atuação do operador do direito, mas sim
responsabilidade inerente à sua atuação. Deve fazer parte do próprio
conceito do que é direito, ser atento à vida, à dignidade do ser humano,
ser afetivo e solidário, é se comprometer com as necessidades e diferentes
representações da existência humana, compreender que essa atuação é
fundamental para a coexistência em sociedade e não simples ato de caridade.





3.3 – UM IMPERATIVO CATEGÓRICO CONTRA AS VITIMIZAÇÕES








Partindo de Karl Marx, Franz Hinkelammert traz o imperativo
categórico crítico de que toda relação humana em que um ser humano é
humilhado, rechaçado, subjugado deve ser superada, denunciando qualquer
situação em que isso ocorra, implicando em uma opção concreta por aqueles
que são vitimizados:


Implica una opción por quienes son producidos como
víctimas (victimizados) por medio de lógicas y dinámicas
de dominación, exclusión y marginación, dando cuenta tanto
analíticamente de las causas y condicionantes que las
producen como contribuyendo, colaborando y participando en
la generación de dinámicas, prácticas y processos que las
enfrenten. El ámbito de la reflexión acompañará las
propias luchas liberadoras con sus sujetos populares que
intentan desvictimizarse y ganar autoestima.(SÁNCHEZ
RUBIO, 2011, p.27)






Trata-se de uma mudança de paradigma na forma como as pessoas
se relacionam e relacionam-se com a natureza:


Las dinámicas de emancipació se estabelecen a través de
relaciones e las que los seres humanos se tratan unos a
otros como sujetos, recíprocamente y en un clima
horizontal, solidario, de acompañamiento y de respeto.
Estas lógicas permiten al ser humano vivir y le
posibilitan la capacidad de dotar de sentido a la realidad
y de hacer y dehacer mundos. Posibilita la agencia y la
riqueza humanas.(SÁNCHEZ RUBIO, 2011, p.27)(Grifou-se)






Para concluir, enxergar os direitos humanos de forma ampla e inter-
relacional é condição fundamental para uma abordagem reflexiva do problema
do crime e do "criminoso" na sociedade de massas do século XXI. Acredita-se
que longe de ser uma questão meramente jurídica ou simplesmente de
políticas sociais, o problema da criminalidade vai mais além, perpassando
ideologias e formas de ver o outro já desgastadas e incapazes de propor
respostas eficazes para uma convivência que tenha como fundamento o
respeito e atenção ao próximo.


Longe de querer achar respostas, acredita-se que a pergunta errada
esteja sendo feita, qual perspectiva de direitos humanos seguir? Será que a
roupagem ocidental serve a todos? O formalismo jurídico é suficiente para
garantir o devido processo legal e a dignidade humana? São perguntas que
devem ser feitas em uma eterna busca pela construção e desconstrução de um
pensamento jurídico que se pretenda legítimo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS





O presente trabalho parte de duas realidades, tentando analisar os
reflexos do sensacionalismo televisivo nos discursos de criminalização da
pobreza e enfatizando o interesse midiático pela violência, contudo, são
analises sinuosas por facilmente induzir o pesquisador em erro.


A utilização de fatos tidos como criminosos pelos meios de
comunicação como demonstrado não é algo recente, o crime parece instigar o
público desde os primórdios da imprensa. Assim poder-se-ia alegar que a
pesquisa em questão não traz nada novo à comunidade acadêmica, sendo
simplesmente uma tentativa de enquadrar uma realidade tradicional a um
problema contemporâneo, em uma relação de causa e efeito.


Por outro lado, afirmar que os meios de comunicação são os
responsáveis pelos discursos criminalizantes seria tão afoito quanto pensar
que a existência do sensacionalismo na imprensa é uma novidade.


Contudo, acredita-se que o sensacionalismo contemporâneo dos meios
de comunicação serve sim a determinadas ideologias, retomando um ideário
criminológico ultrapassado para autorizar certa atuação por parte do Estado
que criminaliza cada dia mais os pobres.


Tomou-se o cuidado de contextualizar ao máximo os meios de
comunicação, estendendo esse conceito para o de mídia e utilizando-os como
sinônimo para que se pudesse deixar claro que os meios em questão não são
os mesmos de cem anos atrás.


Feitas as ressalvas e tomando cuidado para não cair em afirmações
que os dedos teimam em querer digitar, mas os dados não permitem, percebeu-
se ao longo da pesquisa uma intrincada relação entre os meios de
comunicação de massa e ideologia de mercado.


À medida que o discurso neoliberal do Estado-mínimo se consolidava
ao redor do mundo, aumentavam os números de presos em uma proporção
assustadora, não sendo a realidade brasileira diferenciada.


Com a emergência do ideário neoliberal um discurso que deslegitima
o chamado Estado de bem estar social começa a tomar força, esse discurso
influência as mais variadas áreas das políticas públicas, chegando também
no pensamento criminológico.


O previdenciarismo penal passa a ser criticado e a ideologia
liberal da livre iniciativa e livre determinação passa a imperar no sistema
penal, o indivíduo que comete delitos agora, mais do que nunca, se torna o
inimigo público.


David Garland (2008) expõe essa passagem do Estado de bem estar
social para a ideologia neoliberal, mostrando como primeiramente cria-se um
senso comum de que o governo é ineficaz em reduzir as taxas de
criminalidade com políticas inclusivas, sendo a marginalidade algo
intrínseco ao sujeito que comete delitos. Depois se afirma a necessidade
de maior controle, uma vez que não se pode evitar o crime por meio de
políticas inclusivas e se torna necessário um maior controle por parte das
agências estatais.


Nesse contexto, a mídia chancela a ideologia da "tolerância zero"
perpetuando o discurso do medo. Garland (2008) estudou a realidade
britânica e norte-americana, com isso, boa parte do estudo aqui apresentado
procurou verificar em que medida as afirmações do autor podem se aplicar ao
Brasil.


Essa pesquisa é só o começo de um trabalho mais amplo, mas pôde-se
perceber que as afirmações de Garland (2008) tendem a se adequar em muitos
pontos à realidade nacional. Mendes (2011) evidenciou que o contexto
brasileiro tem pontos em comum com o estudo de Garland (2008) uma vez que o
país vem passando por processo semelhante pelo qual passou os E.U. A e a
Grã-Bretanha.


Por fim, embora muitas pesquisas tratem do assunto, percebeu-se
ainda uma carência de dados relacionados ao tema. O constante desrespeito
aos direitos humanos perpetuado pelos meios de comunicação necessita de
monitoramento mais preciso por parte dos pesquisadores, a impressão ao
finalizar este trabalho é que afirmações mais veementes de uma realidade
gritante poderiam ser feitas.


A cada dia a legislação torna-se mais repressiva e o preconceito
institucional ascende sem que se faça uma análise crítica do contexto de
aumento da desigualdade social. Mais seres humanos são presos, mais
injustiças são cometidas, o ódio toma conta dos meios de comunicação. A
impressão é que se está em um processo regressivo que memora ocorrências da
idade média. Os estudos de Foucault (2008) sobre prisões rígidas e
organizadas em que se tentava "reabilitar" o sujeito, mesmo que utilizando
de estratégias questionáveis, parece hoje uma utopia, alguns corpos se
controlam, a outros se pretende simplesmente aniquilar.



REFERÊNCIAS





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[1] Notícia disponível em https://br.noticias.yahoo.com/enquete-faz-datena-
mudar-de-ideia-sobre-protestos-de-s%C3%A3o-paulo-235236524.html acessado em
27/04/2015

[2] Um casal dono de uma escola no estado de São Paulo foi acusado em 1994
de abusar sexualmente de alunos, após investigações descobriu-se que as
acusações eram falsas, contudo, a imagem dos donos da escola já tinha sido
denegrida publicamente. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_Base acessado em 06/06/2015.
[3] Uma mulher foi linchada e morta na cidade de Guarujá- SP em 2014 por
ter tido sua imagem associada a um autorretrato de uma suposta
sequestradora de crianças. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Linchamento_de_Fabiane_Maria_de_Jesus acessado
em 06/06/2015.
[4] Os dados estão disponíveis em
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