As ressignificações da paisagem cultural em Lençóis (BA)

July 12, 2017 | Autor: Liziane Mangili | Categoria: Cultural Heritage, Heritage Conservation, Cultural Landscape, Ecoturismo
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AS RESSIGNIFICAÇÕES DA PAISAGEM CULTURAL EM LENÇÓIS(BA)

MANGILI, LIZIANE P. (1) 1. Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Arial, fonte 10, normal) Caixa Postal 752 – CEP. 13.201-970 – Jundiaí/SP [email protected]

RESUMO Esse trabalho retrata a relação entre homem e paisagem, principalmente através dos significados a ela atribuídos, em Lençóis/BA. Lençóis é uma cidade estabelecida na Chapada Diamantina na metade do século XIX, em virtude da exploração do garimpo de diamantes, que viveu um intenso apogeu seguido de um rápido declínio culminando em sua decadência física e econômica cem anos mais tarde. Na década de 1970, um grupo de moradores, influenciado por agentes externos, propôs seu tombamento como patrimônio nacional, conseguindo sua inscrição no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do IPHAN, em 1973, como Conjunto Arquitetônico e Paisagístico. Lençóis foi também o centro de articulação de movimentos ambientalistas que levaram à criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, em 1985. Ambas as propostas de preservação surgiram da comunidade e faziam uma leitura da paisagem com todos seus elementos culturais; no entanto, os respectivos meios de proteção consolidaram a preservação, respectivamente, apenas da paisagem urbana e da paisagem natural. Isso fez com que a paisagem cultural fosse dissociada em urbana e natural, e o turismo de cunho histórico cultural buscado pela comunidade fosse convertido em turismo ecológico. O presente texto procura mostrar como se deu a alteração de significados atribuídos a essas paisagens ao longo do tempo. Utilizamos como fontes o processo de tombamento IPHAN, entrevistas e a moradores da cidade, matérias publicadas em periódicos e material publicitário da Chapada Diamantina. Todo esse processo nos faz repensar as formas tradicionais de proteção, mostrando a necessidade de novas alternativas de preservação que tenham como base a contemplação de maior gama de valores atribuídos ao patrimônio, bem como a representatividade do maior número de envolvidos.

Palavras-chave: Lençóis (BA); Chapada Diamantina; paisagem cultural; turismo cultural; ecoturismo.

Lençóis, de Capital do Diamante para portal de entrada da Chapada Diamantina A Chapada Diamantina, na Bahia, é amplamente divulgada hoje como um paraíso ecoturístico. Basta fazer uma pesquisa em sites de busca que aparecerão inúmeras imagens de poços, rios, cachoeiras, grutas e lindas formações geológicas. Dentre elas, aparecerão também fotos da cidade de Lençóis. Da mesma maneira, se a busca for feita pelas palavras “Lençóis – Bahia”, as mesmas imagens de formações geológicas, grutas e cachoeiras aparecerão, mesmo que estas maravilhas não estejam localizadas neste município. Lençóis é comercializada e se representa, hoje, como sinônimo da Chapada Diamantina. Ela detém para si o título de “portal de entrada” da Chapada. Pese a que seja a cidade da região com melhor infraestrutura turística, contando com a melhor rede de serviços – hotéis e pousadas de diversas classes, bares, restaurantes com gastronomia regional e de vários países – e um aeroporto regional, essa correspondência da parte com o todo (Lençóis com Chapada Diamantina) é uma construção que se deu através de um longo processo e pelo empenho de muitos agentes. Tal processo iniciou-se pelo desejo de substituição da economia decadente da extração de diamantes para uma economia baseada no turismo, após um século de decadência econômica, física e de despovoamento da cidade. O primeiro passo importante nesse sentido foi o pedido de tombamento de Lençóis ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por membros da comunidade, em 1971. Acreditava-se que o tombamento, a consagração como monumento nacional, atrairia o turismo – e investimentos – para a cidade. O segundo passo foi a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, em 1985, abrangendo os municípios de Lençóis, Mucugê, Andaraí, Palmeiras (estes da região diamantífera, denominada Lavras Diamantinas), Ibicoara e Itaetê. Esses dois meios de proteção – o tombamento do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico de Lençóis, que consagrou a paisagem urbana, e a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, que coroou a proteção da paisagem natural – tinham, em suas concepções, uma acepção de paisagem cultural que se perdeu após suas oficializações, ou seja, após o reconhecimento pelos respectivos órgãos dessas paisagens como patrimônio. Somado a isso, os programas do Governo do Estado, de desenvolvimento turístico, empenharam-se em desenvolver, nessa região da Bahia, o turismo de natureza e aventura, o ecoturismo, e passaram a vender uma imagem de “natureza intocada”, desvinculada da cultura que produziu essa paisagem, a cultura garimpeira. Tudo isso culminou na mudança de valores associados tanto a um quanto a outro tipo de paisagem, e em um processo de simbiose entre 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

o que são o Parque Nacional da Chapada Diamantina e a cidade de Lençóis, visto que, historicamente, este era o município do qual partiram todas as ações de preservação visando atrair o turismo. O presente texto procura mostrar como se deu a alteração de significados atribuídos a essas paisagens ao longo do tempo e a dissociação da paisagem cultural em paisagem urbana e paisagem natural. Utilizamos como fontes o processo de tombamento IPHAN, entrevistas e a moradores da cidade, matérias publicadas em periódicos e material publicitário da Chapada Diamantina. O trabalho é parte da pesquisa de doutorado intitulada Gestão Patrimonial e Valores Culturais: a prática da preservação em Lençóis/BA, em desenvolvimento junto ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. A pesquisa conta com apoio da FAPESP (processo 2012/24632-3).

A natureza domesticada da paisagem do garimpo O termo “Chapada Diamantina” serve para denominar tanto uma formação geológica quanto uma região econômica. Como formação geológica, faz parte da Cadeia do Espinhaço em seu prolongamento pelo estado da Bahia, e abrange uma área de aproximadamente 38.000km². Como Região Econômica do Estado da Bahia (estabelecida pelo Centro de Estatística e Informação), corresponde a um território composto por 33 municípios, e ocupa uma área de 41.756km². O povoamento dessa região teve um importante incremento no século XVIII, em função do ciclo econômico do diamante. A ocorrência da pedra se dava principalmente na Serra do Sincorá, na porção leste da Chapada Diamantina, território que corresponde aos municípios de Lençóis, Mucugê, Andaraí e Palmeiras. A esta região denominou-se Lavras Diamantinas. Os municípios vizinhos estavam associados às lavras por relações de abastecimento, sendo os principais produtores de alimentos para o grande contingente populacional da região. Apesar da descoberta de diamantes ter-se dado em Santa Isabel do Paraguaçu, a cidade que se destacou como principal centro produtivo e econômico da região foi Lençóis. Em menos de meio século de existência (em 1856 foi desmembrado de Santa Isabel do Paraguaçu e em 1864 elevada à categoria de cidade), passou a contar, somente em sua sede, com 22.230 habitantes (Tabela 01). 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

urbana rural total

1872

1892

10.503

14.152

24.913

1900 22.230

1920

7.789

1950

1970

1980

1990

2000

4.932 4.964

2.227 2.874

7.261 2.302

1.348 3.410

5.639 5.251

9.896

5.101

9.563

4.758

10.890

2010

10.368

Tabela 01: Evolução da população de Lençóis 1872-2010. Fonte: Tabela organizada pela autora a partir de PEREIRA (1910, p.11); ARAÚJO, NEVES, SENNA (2001, p.137); SANTOS (2006, p. 67); IBGE (1957, p.4); IBGE (2010)

Mas, com a mesma velocidade com que cresceu, Lençóis decaiu: cinquenta anos mais tarde, a população do núcleo urbano se reduziria a menos de um quarto, chegando à décima parte em 1970. Conforme defendem MACIEL, SENNA e GUANAES (2012, p.73), O garimpo geralmente é uma corrida e, por este motivo, inicia-se na forma e ambiência que, em outras formações, pudesse ser chamado de apogeu. Dado a esse fenômeno, as cidades que possuem a marca histórica de Lençóis apresentam, apenas, a história de uma decadência, na qual surgem transformações adaptativas.

Para a atividade garimpeira, a natureza era a guardiã do diamante e fonte das riquezas naturais, devendo ser explorada ao máximo. Era também obstáculo a ser vencido, meio a ser manipulado, domesticado. A extração de diamantes requeria a limpeza do terreno, muitas vezes feita através de queimadas, a quebra das rochas, a construção de regos, o desvio e represamento das águas. Requeria a extração de pedras – o cascalho – das grutas, seu amontoado – o paiol – para posterior lavagem, no próprio leito do rio ou com a água desviada. Além disso, fornecia também o alimento, através da caça. Como na agricultura, o ritmo do garimpo era ditado pelas chuvas ou falta delas. Era nos rios e nas serras que o garimpeiro extraía seus diamantes, mas era na cidade que a sociabilidade acontecia. Conforme descrever Herberto SALES (1955, p. 59), O garimpeiro é um tipo eminentemente citadino. Ao contrário do trabalhador da zona rural dos mesmos municípios lavristas, freqüenta ele bilhares, cinema, cabarés, pratica esportes, como o futebol, integrando os times locais. Gosta de vestir-se bem, ou melhor, de ostentar luxo, sempre que o possa. O vestuário, aliás, é uma das maiores preocupações do garimpeiro bamburrado.

Na cidade também se dava o comércio dos diamantes e o abastecimento de víveres do garimpeiro para seu sustento na serra. Dessa maneira eram indissociáveis serra (natureza) e núcleo urbano. Paisagem natural e urbana estavam entrelaçadas, formando uma única paisagem cultural. A atividade dos garimpeiros alterou substancialmente a paisagem da Serra do Sincorá e foi responsável por moldar a natureza que viria a servir para o turismo mais tarde. Todos os 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

caminhos e trilhas que hoje servem ao Parque foram abertos e construídos pelos garimpeiros. A maior parte das cachoeiras e rios não está, hoje, em seu estado natural: são paisagens produzidas e rearranjadas por quebra ou dinamitação das rochas. Vários poços, hoje usados para banho dos visitantes, foram fabricados pelo garimpo. Das grutas existentes na região, algumas delas também foram abertas por essa atividade. Os garimpeiros tinham total conhecimento da paisagem com a qual trabalhavam. Os valores associados à natureza relacionavam-se, portanto, ao uso que dela se fazia.

Novas atividades, novos significados: a natureza como atração Após décadas de decadência econômica – a extração de diamantes teve seu apogeu entre os anos de 1845 e 1871, quando iniciou uma queda contínua – algumas alternativas à atividade diamantífera começam a ser buscadas. A primeira delas, a partir da década de 1940, foi a agropecuária, que vinha ao encontro da marcha para oeste empreendida pelo governo no Estado Novo. Essa atividade não foi, no entanto, suficiente para recuperar a economia local das Lavras. Além de apresentar grande parte de solos rasos, arenosos e rochosos, impróprios para a agricultura, a região tinha uma estrutura fundiária de pequenas propriedades e agricultura basicamente de subsistência, sem produção significativa. Ligada ao fracasso da atividade, no entanto, está a crença de que o garimpeiro, acostumado à riqueza imediata, não se adaptou a uma atividade que exige tempo: o cultivo da terra. A segunda alternativa à atividade do garimpo foi o turismo, vislumbrado por uns e desacreditado por outros. “Lençóis não tem praia, como vamos chamar o pessoal de fora se aqui não tem praia! Chamar eles para ver sobrado caindo, cachoeira no mato e macaco no galho das árvores!” (depoimento citado por BRITO, 2005, p. 118). Essa era a resposta de alguns moradores ao serem chamados para compor o Conselho Municipal de Turismo, criado em 1961. Sua lei de criação, no entanto, permite perceber que a atribuição de valores à paisagem estava mudando, e ficam explícitas nas competências do Conselho: Parágrafo único – Compete ao referido órgão municipal: Instalar, organizar, dirigir uma exposição permanente, à guisa de um pequeno Museu, com fotografias, livros, documentos, amostras e objetos sobre História, riquezas, produção e lugares pitorescos do Município; 2. Estudar e promover a reconstituição e conservar os edifícios e lugares históricos, bem como o aproveitamento e acesso aos recantos aprazíveis de Lençóis;

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3. Organizar e promover exposições, festas folclóricas, cívicas e religiosas, concursos sobre investigações históricas ou sobre divulgação e aproveitamento das riquezas e produção locais e ainda patrocinar campanhas financeiras para a realização de seus planos; 4. Incrementar por todos os meios o turismo neste Município; 5. Orientar e dirigir as Juntas Distritais do CMTL; 6. Promover por todos os meios a divulgação de tudo que diz respeito à história, vida, paisagem e riquezas do Município. (ANAIS..., 1973, p. 289-290, grifo nosso).

Nota-se que tanto a natureza, que começava a ser vista como “pitoresca” e “aprazível”, quanto a arquitetura (“edifícios e lugares históricos”), não são elencadas como os carros chefes dos atrativos do município, e eram apenas mais um item de valor turístico, juntamente com a “história”, as festas folclóricas, cívicas e religiosas, e com a produção e riqueza do município. Ou seja, todos os elementos daquela cultura estavam ali presentes. Mesmo com o Conselho criado, o município não tinha recursos suficientes para promover o turismo, além da resistência dos lençoenses e outras condicionantes que dificultavam sua implantação: a estrada que liga Lençóis à atual BR242 na época nem existia. No final da década de 1960, uma proposta que associava valores de contemplação e lazer à natureza foi feita por um membro externo à comunidade, o voluntário da organização Peace Corps, David Blackburn. David, jovem sociólogo norte americano da Califórnia, desenvolveu um trabalho de organização comunitária voltado para a preservação ambiental, pesquisou a flora, a fauna e realizou caminhadas pelos atuais atrativos da Chapada Diamantina com o objetivo de implantar um parque nacional. (BRITO, 2005, p. 120)

Era através do outro, do estrangeiro, que novos valores começavam a ser mostrados e incutidos à comunidade local. Embora a proposta de Blackburn não tenha sido compreendida, era a primeira vez a natureza deixava de ser vista como adversária para ser espaço de fruição e contemplação.

O tombamento pelo IPHAN e a consagração da paisagem urbana Em 1969 Lençóis recebeu o segundo voluntário do Peace Corps, Steve Horman. Carismático, Horman desenvolveu um importante trabalho de desenvolvimento comunitário, mobilizando e organizando pessoas através do Movimento de Criatividade Comunitária (MCC). Dentre as diversas ações desenvolvidas pelo MCC, como a limpeza de ruas, a restauração e 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

recolocação dos lampiões nas fachadas e a reabertura do posto de Puericultura, esteve a mais importante para a mudança dos rumos da economia do município: a proposta de tombamento de Lençóis. O que os lençoenses viam como “sobrados caindo” constituía para Seteve Horman um rico acervo arquitetônico, e tê-lo como Patrimônio Nacional poderia atrair o interesse turístico. Alguns jovens do MCC ficaram encarregados de desenvolver uma pesquisa histórica e socioeconômica e produziram um material com o qual pleitearam o tombamento. Submeteram o material ao IPHAN com o pedido de tombamento, apresentaram-no no II Encontro de Governadores para a Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Natural do Brasil (Salvador, 1971) e na I Reunião Oficial de Tursimo (Brasília, 1972). Com grande insistência e desenvoltura, conseguiram atingir seu objetivo: Lençóis foi registrada no Livro do Tombo Arqueológico, Paisagístico e Etnográfico em 17 de dezembro de 1973, como Conjunto Arquitetônico e Paisagístico. Era a primeira vez que uma proposta de tombamento de um conjunto era feita por leigos e não por técnicos, e também inédito que o dossiê de instrução do processo viesse, em grande parte, desses leigos: foi o material produzido pelos jovens do MCC (que chamaremos de dossiê). Elaborado sem o conhecimento técnico, o dossiê, assim como o processo de tombamento na íntegra, são importantes documentos que permitem identificar os valores que estavam sendo atribuídos ao que se então propunha como patrimônio, conjunto no qual a paisagem tinha valor fundamental e estava profundamente associada àquela sociedade. O dossiê destacava elementos da paisagem urbana, da paisagem natural, acontecimentos históricos, escritores lençoenses e a atividade econômica do garimpo. Destacava também festas tradicionais e o jarê, uma espécie de candomblé típico das Lavras Diamantinas. Aquela cultura, em sua totalidade, era enaltecida, com todos seus componentes num só plano, lado a lado: os coronéis e os garimpeiros, os sobrados “no mais puro estilo colonial” e “os bairros modestos de ruas compridas, de casas de taipa branquinhas de cal”, o “calçamento rústico” e “as paisagens miríticas [sic] e eternamente sugestivas”. A natureza, a paisagem natural, estava ainda associada ao garimpo: uma paisagem espetacular da serra onde hoje, como há cem anos passados, garimpeiros trabalham precariamente procurando sua fortuna nos rios e cachoeiras que correm de grandes alturas, sem princípio e sem fim. (Áudio elaborado pelo MCC para apresentação no II Encontro de Governadores, 1971)

Grande parte do “acervo cultural e riquezas naturais”, destacada no dossiê pelos proponentes ao tombamento, não foram reconhecidos pelos técnicos do IPHAN. Todas as referências dos 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

técnicos fazem alusão à arquitetura; sendo a “arquitetura maior” destacada em relação à “menor”, e a paisagem natural, quando mencionada, era apenas como moldura do conjunto arquitetônico: Uma cidade fantástica, sob todos os ângulos. (...) mas sobretudo pela própria cidade, que conjuga harmoniosamente os remanescentes setecentistas com a predominância arquitetônica do séc. XIX, de particular interesse pela casario ritmado de praças e ruas evidenciando o domínio dos vasados, em sobrados e casas térreas com exemplares de grande leveza e elegância, as vergas em arco de pleno centro ou repetidamente de ogivas, retas em menor número, telhados à vista ou disfarçados por platibandas, o calçamento especial de pedra em feição própria, tudo formando um conjunto de unidade cadenciada e limpeza arquitetônica (...) (Informação n. 295, de Lygia Martins Costa. Processo de tombamento, folhas 23 e 24). Impressiona Lençóis por sua beleza inusitada, tanto no todo como no particular, do caráter quase irreal da praça Honório de Matos ao detalhe animalista de um buzinote ou perfil sóbrio de um lampião; de ruas acolhedoras embora menos dignas de nota, como trecho da Avenida Rui Barbosa do fim do século passado, a sobrados de pureza clássica da entrada dos Oitocentos, nos quais os vãos se agrupam em linha ondulada, o andar em vidraças peculiarmente trabalhadas com remate de pronunciado e elegante beiral. (Informação n. 295, de Lygia Martins Costa. Processo de

tombamento, folhas 23 e 24). Das cidades antigas que conhecemos, pelo que nos lembramos, Lençóis é a que possui maior percentagem de vãos com essas características [ogivais], o que lhe confere posição singular, demonstrando “atualidade” com os modismos da época. (LEAL, 1978, p. 137).

A alusão à paisagem natural ocorre apenas pelo arquiteto Fernando Machado Leal, contratado para fazer o levantamento histórico e fotográfico que instruiu o processo de tombamento. Leal, o único técnico que de fato visitou a cidade, entendeu a requisição dos proponentes e a importância da preservação paisagem natural, sugerindo que fosse “ouvido técnico ligado ao I.B.D.F. [Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal], com vista ao tombamento de elementos naturais, relativos à preservação da paisagem que envolve a cidade” (LEAL, 1978, p. 141). Apesar de Lençóis ter sido tombado como Conjunto Arquitetônico e Paisagístico, a posterior atuação do IPHAN na cidade privilegiou o conjunto edificado em suas ações, consagrando a preservação da paisagem urbana.

E a paisagem natural? A criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina Lençóis começou a ganhar projeção na mídia após o tombamento, mas pouca coisa mudou na cidade. Os investimentos esperados pela população para restauração do casario, e o movimento turístico, não ocorreram. A cidade continuava com aspecto de abandonada, com 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

inúmeros imóveis em ruínas quando o terceiro voluntário do Peace Corps chegou, em 1973. O biólogo americano Roy Funch encontrou “Lençóis e Mucugê mergulhadas numa pobreza absoluta com muita gente migrando, só ficando crianças e velhos” (entrevista realizada em 26/12/2002 por BRITO, 2005, p. 129). Funch percorreu as serras com os garimpeiros e viu na região o mesmo potencial que seu conterrâneo David Blackburry havia visto alguns anos antes, propondo a criação de um parque nacional. O parque proposto por Funch correspondia à região das Lavras Diamantinas (municípios de Lençóis, Palmeiras, Andaraí e Mucugê), reconhecendo sua importância histórica e ambiental. Funch entendia a região como um espaço socioeconômico; sua proposta buscava conciliar a preservação da natureza a uma nova atividade econômica, o turismo. Ela se voltava para a “proteção dos recursos naturais da região diante da ação dilapidadora em curso e também para dar vazão a um tipo de turismo que pressupõe a realização de caminhadas e, ao mesmo temo, o respeito à natureza” (BRITO, 2005, p. 129). A leitura feita posteriormente por técnicos do Instituto de Florestas ampliou consideravelmente a área do parque, englobando, além dos municípios das Lavras Diamantinas, os municípios de Ibicoara e Itaetê. O Parque Nacional da Chapada Diamantina foi criado em 1985, após mobilização de grupos ambientalistas e de forças políticas regionais e estaduais. A criação de uma unidade de conservação, a uma só vez “reafirmava a necessidade de proteger a flora, a fauna e os demais atrativos naturais” (BRITO, 2005, p. 129), elementos já elencados na proposta de tombamento do IPHAN, e consolidava a atribuição de novos valores à natureza. Paralelamente, outros fatores contribuíram tanto para atrair pessoas interessadas no turismo de natureza, quanto para mudar seus significados junto à população. Após a criação do Parque, a divulgação de suas belezas naturais em jornais de grande circulação, na mídia especializada e pela televisão fez com que aos poucos fosse acorrendo a Lençóis um turista cujo principal objetivo era o turismo de aventura e de natureza. Dois exemplos são a reportagem sobre a Cachoeira da Fumaça pela rede Globo, em 1987, e a filmagem de cenas da novela Pedra Sobre Pedra, em 1992, que provocaram uma verdadeira “corrida” de turistas para Lençóis logo após as exibições. Embora as atrações divulgadas não estivessem no município de Lençóis – como é o caso da Cachoeira da Fumaça e do cenário da abertura de Pedra sobre Pedra, que mostra o Vale do Cercado com os morros do Camelo e do Pai Inácio, todos no município vizinho de Palmeiras – essas atrações foram sempre veiculadas como sendo de Lençóis, ou da Chapada Diamantina, que acabariam por se tornar sinônimos. Para BRITO (2005, p. 129), “o 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

transbordamento do turismo do centro histórico de Lençóis para suas cercanias, extrapolando até mesmo os seus limites territoriais ao veicular e explorar como seus os atrativos pertencentes aos outros municípios”, deve-se à sobreposição do “tombamento” ambiental ao tombamento patrimonial e arquitetônico.

De paisagem produzida pelo garimpo à natureza intocada Duas ações do governo estadual, embora de maneira contraditória, contribuíram para que a representação da paisagem da Chapada Diamantina, e de Lençóis em particular, fosse alterada e desvinculada da paisagem cultural das Lavras Diamantinas. Após a elaboração da proposta do Parque por Roy Funch, mas antes de sua criação definitiva, o Governo do Estado promoveu a implantação do garimpo mecanizado nas Lavras Diamantinas, nos municípios de Lençóis, Mucugê e Andaraí. Esse fato foi recebido com bastante entusiasmo pela população, pela geração de empregos que promoveu e por reacender o sonho dos garimpeiros. No entanto, esse tipo de garimpo era sumamente destrutivo da natureza e incompatível com a atividade turística que começava a surgir na cidade. A consciência ambiental ia crescendo na região, e a destruição que o garimpo mecanizado gerava contribuía ainda mais para isso. Em 1996, após sucessivas proibições temporárias, a atividade foi definitivamente banida e nos municípios do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Dois anos depois, o garimpo de serra também foi proibido. Essas ações causaram um forte impacto social nas Lavras Diamantinas: mais de mil desempregados. Os trabalhadores migrados de outras regiões voltaram a suas cidades de origem, mas muitos nativos de Lençóis ficaram ser ter ocupação. Alguns foram empregados na construção civil que, em função do turismo, apresentava um ligeiro incremento, e outros começaram a trabalhar como guias turísticos. Mas uma das piores consequências dessas ações foi a mudança do imaginário sobre o garimpeiro, que passou a ser taxado de criminoso. Cada vez mais o garimpo passava a ser associado à destruição da natureza, e a força de novos agentes ambientalistas na cidade contribuiu para colocar no mesmo nível de representação a destruição provocada pelo garimpo mecanizado (altamente destrutivo) e pelo garimpo manual de serra (de pouco impacto ambiental). Concomitantemente, na década de 1990, o governo do estado implantava o Programa de Desenvolvimento Turístico da Bahia – PRODETUR (BA), que mais tarde se integraria ao 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste – PRODETUR-NE. Através desse programa, com investimentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), foram construídos o aeroporto Horácio de Matos e a Pousada de Lençóis, ambos nesse município. Esses investimentos foram fundamentais para incrementar o turismo em Lençóis e pouco depois atrair uma série de investimentos turísticos privados. O objetivo do governo do Estado com o PRODETUR (BA) era “contribuir para a consolidação e o desenvolvimento do turismo como atividade prioritária no Estado da Bahia e proporcionar aumento de renda, de emprego e da qualidade de vida da sua população” (BAHIA, 1997, p.55, citado por BRITO, 2005, p. 140). A região da Chapada Diamantina era um dos sete polos de desenvolvimento turístico, a única localizada no interior do estado, e não no litoral como as demais, e com a especificidade de ser uma região vocacionada para o desenvolvimento do ecoturismo. Essa vocação seria enfatizada, tanto nos documentos governamentais quanto no material de divulgação turística, através da representação da Chapada Diamantina como composta por “atributos naturais infinitos” formando “um conjunto inesgotável para a contemplação”, onde a “natureza, praticamente intocada, é a grande atração” (BAHIA, 1993). Com todos esses incomparáveis atributos, a Chapada Diamantina é “um verdadeiro santuário ecológico”, cuja imponência e a beleza das paisagens “provocam um encantamento contemplativo em todos aqueles que a visitam”. Depois de ressaltar a quase virgindade do lugar (‘praticamente intocada’) assegura o prazer da viagem quando garante: “descobrir a Chapada é travar o mais íntimo contato com a natureza” (Bahia, 1991, p.55). (BRITO, 2005, p. 141).

Essa representação da Chapada Diamantina desvincula a paisagem natural da paisagem cultural, ao excluir a história socioeconômica da região, e corrobora uma inverdade: a da “natureza intocada”, uma vez que toda a Serra do Sincorá (região que corresponde ao Parque Nacional da Chapada Diamantina) teve sua paisagem ocupada e modificada pela atividade garimpeira.

A vontade dos proponentes versus as ações institucionais e a ressignificação da paisagem Vimos que a relação da sociedade lavrista com a natureza, embora fosse de exploração, foi a responsável pela produção da paisagem da Serra do Sincorá, região que mais tarde seria transformada em Parque Nacional da Chapada Diamantina.

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Com a decadência da produção de diamantes e consequentemente, da economia, membros da comunidade de Lençóis, incentivados por agentes externos, reconheceram o potencial da paisagem cultural como atrativo turístico e assim, de uma nova atividade econômica para o município. Propuseram, então, a transformação de Lençóis em Patrimônio Nacional, considerando todos os elementos culturais como de interesse para preservação. O Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional acatou a proposta e Lençóis foi tombada como Conjunto Arquitetônico e Paisagístico; no entanto, a oficialização de Lençóis como patrimônio contemplou apenas valores arquitetônicos associados à paisagem urbana. Diante disso, novos meios de proteção e novos títulos, visando a atração do turismo, foram buscados pela população, mais uma vez através do olhar do estrangeiro, e assim foi proposta a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina. A proposta de criação do Parque considerava também todos os elementos da paisagem cultural, tanto é que sua delimitação correspondia à região das Lavras Diamantinas, e não de toda a região econômica e geográfica denominada Chapada Diamantina. No entanto, os técnicos o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal acabaram por regulamentar, como área de parque, uma região maior, visando exclusivamente a proteção da flora, da fauna e do ecossistema, ou seja, da paisagem natural, mas não mais a paisagem das Lavras Diamantinas, e sim de uma porção da Chapada Diamantina. O governo do estado, através de programas de desenvolvimento do turismo, investiu numa publicidade de venda do produto ecoturismo, e não do turismo histórico cultural proposto pela comunidade, tanto através do tombamento pelo IPHAN quanto pela criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Aos poucos, a chegada de turistas e de ambientalistas na região, aliada à publicidade crescente da Chapada Diamantina como paraíso ecoturístico, faz com que cada vez mais a paisagem cultural fosse dissociada. As Lavras Diamantinas, como paisagem socioeconômica, deixam de existir, e a Chapada Diamantina, como paisagem natural, passa a ser a grande atração. Essa nova representação cria um novo imaginário que será amplamente difundido: a da natureza intocada, desvencilhando ainda mais a cultura garimpeira como produtora dessa paisagem. As Lavras Diamantinas passam a ser a Chapada Diamantina, e Lençóis, a Capital do Diamante, torna-se a Capital Brasileira do Ecoturismo. Todo esse processo nos faz repensar as formas tradicionais de proteção, mostrando a necessidade de novas alternativas de preservação que tenham como base a contemplação

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de maior gama de valores atribuídos ao patrimônio, bem como a representatividade do maior número de envolvidos.

Referências Bibliográficas ANAIS DO II Encontro de Governadores para preservação do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural do Brasil, realizado em Salvador, de 25 a 29 de outubro de 1971. Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 26. Rio de Janeiro: IPHAN, 1976. ARAÚJO, Delmar Alves de; NEVES, Erivaldo Fagundes; SENNA, Ronaldo de Salles. Anotações sobre “Memoria historica e descriptiva do municipio de Lençoes (Lavras – Diamantinas)" In Bambúrrios e quimeras (olhares sobre Lençóis: narrativa de garimpos e interpretações da cultura). Feira de Santana: UEFS, 2002. Áudio e fotos da apresentação para o II Encontro de Governadores, elaborada pelo grupo MCC. Arquivo WAV. Lençóis, 1971. Narração de Heraldo Barbosa Filho. BAHIA. Novas fronteiras do turismo. Salvador: Fundação Centro de Projetos e Estudos e Empresa de Turismo da Bahia, 1991. (Versão Preliminar n.5) BAHIA. CODETUR (BA). Programa de Desenvolvimento Turístico da Bahia: oportunidades de investimentos. Salvador, 1993. BAHIA. SECTUR. Estratégia turística e plano de ação. Salvador: Mimeo. Revisada em novembro de 1997. BRITO, Francisco Emanuel Matos. Os ecos contraditórios do turismo na Chapada Diamantina. Salvador: EDUFBA, 2005. IBGE. Lençóis, Bahia. Em comemoração ao 1º. Centenário. Coleção de monografias, n⁰ 129. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico IBGE, 1957. IBGE. Cidades. Lençóis. Censo 2010. Disponível em: http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=291930&search=bahia|lencoi s capturado em 12 mar. 2013. LEAL, Fernando Machado. A Antiga Comercial Vila dos Lençóis. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 18, 1978, p. 115-159. MACIEL, Alda; SENNA, Ronaldo; GUANAES, Senilde. Lençóis, um altar de granito. Fragmentos de paisagens. Feira de Santana: UEFS, 2012. PEREIRA, Gonçalo de Atahyde. Memoria histórica e descriptiva do município dos Lençoes (Lavras – Diamantinas) in ARAÚJO, Delmar Alves de; NEVES, Erivaldo Fagundes; SENNA, Ronaldo de Salles. Bambúrrios e quimeras (olhares sobre Lençóis: narrativa de garimpos e interpretações da cultura). Feira de Santana: UEFS, 2002. [reprodução da obra de 1910], p. 39-128. Processo de Tombamento nº 847-T-71 – Conjunto Histórico e Paisagístico de Lençóis/BA. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

SANTOS, Líliam Margarida de Andrade. Do diamante ao turismo: o espaço produzido na cidade de Lençóis. Dissertação [mestrado em geografia], UFBA. Salvador, 2006. Sales, Herberto. Garimpos da Bahia. Documentário da Vida Rural, n. 8, Ministério da Agricultura: Serviço de Informação Agrícola: Rio de Janeiro, 1955.

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