AS RETÓRICAS DA SUSTENTABILIDADE NA AMÉRICA LATINA: CONFLITOS SEMÂNTICOS E POLÍTICOS NO CONTEXTO DE

June 1, 2017 | Autor: Dimas Floriani | Categoria: Discourse Analysis, Sustainable Development
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AS RETÓRICAS DA SUSTENTABILIDADE NA AMÉRICA LATINA: CONFLITOS SEMÂNTICOS E POLÍTICOS NO CONTEXTO DE ‘MODERNIDADES MÚLTIPLAS’. Dimas Floriani

Las metáforas son nuestra manera de perdernos en las apariencias o de quedarnos inmóviles en el mar de las apariencias (ROBERTO BOLAÑO, 2666, p. 322-23)

Apresentação: Inicialmente, na 1ª. seção sobre formações discursivas da sustentabilidade, modernidade e produção de conhecimentos em conflito, serão apresentadas quatro dimensões teóricas para pensar a dinâmica histórica da produção intelectual, cultural, discursiva e política da sustentabilidade na América Latina, no contexto de modernidades múltiplas e diversidade de conhecimentos e de práticas sobre natureza e cultura. Assim, como primeira dimensão, são abordados os mecanismos dessas formações discursivas da sustentabilidade; em seguida, o que são sistemas societais heterogêneos e se as teorias da modernidade dão conta de interpretar esses diferentes sistemas de sociedade; como terceira dimensão teórica, busca-se apresentar a categoria de análise designada por ‘modernidades múltiplas’ interpelando-se sobre sua capacidade de explicar ou pelo menos de problematizar os conflitos políticos e culturais que atravessam as sociedades em suas relações internacionalmente assimétricas e com forte herança colonial. Daí a ênfase nos estudos pós-coloniais ou da descolonização, desde a perspectiva das chamadas epistemologias do sul. Essas epistemologias, abordadas como quarta dimensão teórica, buscam restabelecer as conexões entre conhecimentos científicos e não-científicos, constituindo-se em formas híbridas, assentadas no diálogo entre ciência e cultura. Adicionalmente, nas demais subseções, pretende-se problematizar o confronto que se estabelece entre diferentes discursos oriundos de retóricas socialmente instituídas ou em processos de embate com visões contrastantes. Para tanto, na 2ª. seção relativa à análise de discursos de atores em confronto, é apresentado um breve estudo concreto sobre retóricas da sustentabilidade, no contexto da Rio+20, realizada em junho de 2012, circunstância na qual se enfrentaram discursos em disputa, cujos sentidos indicam diferentes consequências para a intervenção socioambiental.

1. FORMAÇÕES

DISCURSIVAS

DA

SUSTENTABILIDADE,

MODERNIDADE E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS EM CONFLITO 1.1. Sobre as formações discursivas da ‘sustentabilidade’

Observa-se no processo dessa formação discursiva a existência de duas situações ao mesmo tempo diferenciadas, ora contraditórias ora complementares; por um lado, de enunciados e proposições sobre “sustentabilidade” formuladas pelos Estados-Nação e Agências Internacionais, e por outro pelas Organizações e Movimentos Sociais Nacionais e Transnacionais. Em ambas as situações não há ocorrência de um discurso único, nem homogêneo, pois trata-se de

organizações discursivas que têm origens diferentes e cenários

semânticos e políticos igualmente diferenciados, seja no bloco das organizações e movimentos sociais subalternos1 como no das instituições hegemônicas, promotoras de eventos geopolíticos internacionais, como é o caso da Rio +20, sobre a qual pretende aterse o presente capítulo, ao buscar ilustrar o conflito entre ambas retóricas de sustentabilidade, aqui designadas como retóricas hegemônicas versus retóricas de contestação. Note-se, contudo, que em ambos desses casos, ocorrem mecanismos de intertextualidades2 ou seja, os sentidos que são atribuídos à sustentabilidade vão sendo elaborados e reelaborados por complexos sistemas interpretativos, apoiados nas práticas desenvolvidas pelos diversos agentes (estatais, programas e políticas públicas nacionais, agências,

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tratados e projetos internacionais financiados, pesquisas acadêmicas,

Busca-se, na segunda parte deste capítulo, definir mais claramente o que se entende por uma posição política subalterna de categorias sociais, em oposição à categoria de atores não integrados (ao sistema social dominante). 2 “As concepções de texto e de prática discursiva desenvolvidas na Análise Crítica do Discurso estão conectadas ao conceito de intertextualidade, o qual aponta para o modo como os textos podem transformar textos anteriores e reestruturar convenções existentes (FAIRCLOUGH, 2001, p. 135). O surgimento deste termo é atribuído à Kristeva, autora que se fundamenta no princípio dialógico da linguagem preconizado por Bakhtin. A intertextualidade manifesta está relacionada à recorrência explicita a outros textos (FAIRCLOUGH, 1995, p. 135); a intertextualidade constitutiva ou interdiscursividade está relacionada à complexa configuração interdependente de formações discursivas (FAIRCLOUGH, 1995, p. 95) e remete ao modo como valores e crenças são atualizados em outro discurso” (TAMANINI-ADAMES e DOS SANTOS LOVATO, 2012).

intervenção profissional, social e política de organizações não-governamentais e de movimentos sociais). Em qualquer dessas situações em que se estruturam os discursos de sustentabilidade ocorrem Sistemas Retóricos que implicam a reunião de Elementos Discursivos (textos, documentos extraoficiais e oficiais, reuniões, comunicados e matérias da mídia) e Elementos Semânticos (referência a autores e concepções teóricas, científicas e acadêmicas, palavras de ordem, declarações de organizações sociais com visões opostas aos organismos oficiais), derivados de um processo de enfrentamento e de disputas de sentidos ao longo das circunstâncias que definem a própria historicidade da elaboração da Formação Discursiva em torno do grande arco semântico da sustentabilidade, resultante de uma Pragmática do Discurso. Resumidamente, pode-se dizer que os discursos de sustentabilidade pertencem a Sistemas Retóricos compostos por Elementos Discursivos e Elementos Semânticos (Gramática de Conceitos) que tendem a conformar-se em uma ou mais Formação Discursiva ao longo de sua historicidade conflituosa (disputas de sentidos, de imposição de pontos de vista e de projetos políticos e de práticas materiais) que se processam por uma Pragmática do Discurso por diversos e diferentes atores atuantes em rede e em múltiplas escalas espaciais. Dessa forma, vistos hierarquicamente, pode-se entender que os Sistemas Retóricos são regulados pela Gramática de Conceitos (discursos + sentidos) que resultam pragmaticamente em Formações Discursivas por conta de um conjunto de dispositivos sociais (políticos, econômicos, culturais, tecnológicos, comunicacionais, científicos) agenciados por diferentes atores que atuam em rede. A separação desses elementos obedece apenas a um recurso didático, mas na realidade esses diferentes planos se superpõem e transcorrem de forma contínua. Contudo, cada agente é capaz de situar-se em diferentes campos discursivos segundo sua capacidade de identificar-se com seu próprio Sistema Retórico, resultante do processo pragmático (práticas sociais, políticas e semânticas), atravessado por conflitos e por disputas não apenas de sentido sobre o mundo ( valores, sistemas de avaliação política dos eventos e das situações nos quais se inserem os diferentes atores, visões filosóficas e estratégicas em relação a objetivos visados) mas de empoderamento e de legitimação de suas ações de apropriação material e de coerência com o sistema simbólico que busca traduzir significados para si e para os demais sobre essas mesmas ações.

Cabe ainda destacar dois elementos adicionais, não triviais que operam articuladamente, espécie de magma que permite fazer o papel de tradução dos processos discursivos, a propósito da discussão sobre ‘sustentabilidade’, neste caso: o primeiro deles é o lugar em que se produz a visibilização das disputas, ou seja, a cena ou o cenário em que se desenrolam, enquanto arena política, momento da consagração ou da instituição e unção e reconhecimento público desses discursos (CONFERENCIA DA ONU SOBRE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, RIO +20 e CÚPULA DOS POVOS POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL). O segundo, tem a ver com os intercessores3, espécie de intérpretes dos significados implícitos e especializados das tramas discursivas, tecedores da gramática dos conceitos, mediadores do discurso do outro. Os intercessores são militantes da ação apostolar, autoridades intelectuais ou militantes publicamente reconhecidos por reforçar e ressaltar os pontos essenciais das retóricas, sem os quais os discursos se banalizariam e perderiam sua força primordial, dotando-os de atualizações e reinterpretações contextualizadas. Contudo, os usos discursivos podem servir também para dissimular, escamotear, tergiversar, modificar ou adaptar significados extraídos de determinados contextos sociais, políticos, religiosos, valorativos, morais, etc. e transfigurá-los ou transportá-los em forma de tradução semântica, aplicáveis a outros contextos. Trata-se de mecanismos de acomodação ou de adaptação quando um sujeito individual ou coletivo (agremiações e grupos sociais que compartilham determinadas concepções comuns) opera ao dotar e destinar uma configuração semântica a determinados objetivos favoráveis a suas fabulações ou justificativas. Dois exemplos servem para ilustrar esses usos discursivos dissimuladores. Em seu livro La Sombra del Dictador, Heraldo Muñoz (2010, p.52) nos apresenta um interessante uso dissimulador de discurso, pelo General Pinochet, quando tratou de mostrar que sua ira anti-comunista formava parte de seu credo desde sempre, mesmo quando ele se abstinha, em circunstâncias históricas passadas, de emitir tais juízos contra políticos de esquerda no Chile: “O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas ou até animais, como em Castañeda. [...] A fabricação de intercessores no interior de uma comunidade aparece bem no cineasta canadense Pierre Perrault: eu consegui me dar intercessores, e é assim que posso dizer o que eu tenho a dizer. Perrault pensa que, se falar sozinho, mesmo inventando ficções, forçosamente terá um discurso de intelectual, não poderá escapar ao “discurso do senhor ou do colonizador”, um discurso preestabelecido. O que é preciso é pegar alguém que esteja “fabulando” em “flagrante delito de fabular”. Então se forma, a dois ou em vários, um discurso de minoria...” (DELEUZE, 1992, p. 160-1). 3

Pinochet afirmó que su experiencia en Pisagua le había inspirado y que fue allí donde se engendró su desconfianza permanente hacia los comunistas y donde recibió una educación imborrable sobre los peligros de la izquierda. En su libro Pinochet sostuvo que en el campo de prisioneros experimentó una epifanía personal. Fue allí donde finalmente comprendió lo peligrosos que eran los comunistas.(…) Los testimonios de antiguos prisioneros de Pisagua cuentan una historia muy distinta. Recordaban a Pinochet con afecto, como un oficial de buen carácter, con el que resultaba fácil hablar y que manifestaba tener convicciones democráticas.(…). Por supuesto, es muy improbable que Pinochet cometiera la indiscrición de criticar al Partido Comunista en público, incluso entre sus amigos. Es mucho más probable que el rechazo al debate político y, más importante, la prudencia proverbial que le había llevado a mantener un perfil bajo y a mantenerse en silencio, le llevaran a guardarse para sí todas sus objeciones al comunismo, si es que tenía alguna. Hay muchísimas evidencias de la extrema cautela de Pinochet.

O segundo exemplo tem a ver com as tentativas de torsão ou inversão de sentido na ordem do discurso, com o propósito de subtrair sua consistência lógica quando esta é desfavorável no contexto de sua aplicação. Um caso ilustrativo a esse respeito é o argumento utilizado por políticos de direita no Chile sobre a representatividade dos votos no segundo turno da votação para Presidente da República que obteve em 15 de dezembro de 2013 a candidata da Nova Maioria, a socialista Michelle Bachelet. O argumento apresentado para subtrair legitimidade do processo eleitoral foi que apenas 47% dos eleitores manifestaram seus votos no segundo turno, o que caracterizaria um sério problema de representatividade. No contexto anterior quando ganhou o candidato da direita, inclusive com menor número de votantes, não foi apresentado nenhum argumento desse tipo4.

1.2.Sistemas societais heterogêneos e teorias da modernidade Esse amplo mecanismo de produção e reprodução de significados sobre a realidade em geral e em diferentes escalas articula-se com diversos sistemas de

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Ainda em relação às retóricas de conteúdo político, é possível encontrar outras formas de interpretação de eventos e dos diversos usos semânticos. Uma delas possui o efeito de produzir “dissonâncias cognitivas”, ou seja, interpretações conflitantes sobre um mesmo fenômeno e em alguns casos, inclusive, induzindo a falsas conclusões. Um caso emblemático, neste sentido, foi a forma de como a mídia peruana e chilena foi “preparando” a opinião pública de seus países sobre o que ficou conhecido como o “Fallo de la Haya” (Deliberação da Corte Internacional de Haia sobre os Tratados de Fronteira entre ambos países, que teve lugar em 27 de janeiro de 2014). Todos os atores envolvidos (nacionais e locais de ambos países) declararam-se insatisfeitos com a resolução da Corte Internacional e ao mesmo tempo manifestavam um certo triunfalismo de não haver perdido nada. Por sua vez, pela manhã do dia 27 de janeiro, em que foi pronunciada a sentença, os pescadores do lado chileno (Arica) saíram a protestar por considerar que a linha limite de 80 milhas tolhia o direito deles de pescar mais adiante, quando na realidade a pesca artesanal ocorre dentro desse limite de até 80 milhas. Ao contrário, a prejudicada seria a pesca industrial chilena que, em princípio, exerce sua atividade além do limite de 80 milhas. Consultar os jornais chilenos El Mercurio e La Tercera nas datas próximas, anteriores e posteriores, ao evento do dia 27 de janeiro de 2014, bem como a imprensa peruana (El Comercio e La República), bem como a Revista Caretas.

organização societais, referidos por diversos autores, de acordo com suas próprias concepções teóricas ao explicar o funcionamento das sociedades contemporâneas. No caso de Habermas (1987, p. 224), este busca a conexão empírica que Weber presume entre os diferentes fenômenos do racionalismo ocidental, a partir de quatro dispositivos sistêmicos: 1) esferas culturais de valor (ciência e técnica, arte e literatura, direito e moral), como componentes da cultura; 2) sistemas culturais de ação, em que se elaboram sistematicamente as tradições sob os diferentes aspectos de validez: organização do trabalho científico (universidades e academias), organização do cultivo de arte (com a institucionalização da produção, distribuição e recepção da arte, e da instância mediadora que representa a crítica de arte), o sistema jurídico (com a formação de especialistas em direito, a ciência jurídica e a publicidade jurídica) e, finalmente, a comunidade religiosa; 3) os sistemas centrais de ação que fixam a estrutura da sociedade: a economia capitalista, o Estado moderno e a família nuclear; 4) sistema da personalidade, as disposições para a ação e as orientações valorativas típicas que acompanham o comportamento metódico na vida e a sua alternativa subjetivista (FLORIANI, 2013, p.108).

Sociedades consideradas historicamente periféricas, como as latino-americanas e africanas, isto é de formação social híbrida (coexistência de sistemas econômicos mercantis integrados, com outras formas de produção não tipicamente capitalistas, com gestão coletiva sobre os usos dos bens comuns), embora fortemente marcadas pela sua ocidentalização, combinam racionalidades híbridas que exigem especial atenção explicativa quando se analisam os quatro dispositivos sistêmicos apresentados por Habermas5. Evidentemente que suas dinâmicas hegemônicas são ditadas pela economia capitalista e pelo Estado moderno, mas quando considerados os outros três dispositivos sistêmicos (esferas culturais de valor, sistemas culturais de ação e sistema da personalidade) trata-se de racionalidades de outra ordem e que devem ser consideradas. Nos anos 1970, o politólogo francês Alain Rouquieu (1978) atribuiu o título de uma obra sua sobre a história da América Latina como sendo O Extremo Ocidente. Por outro lado, a referência à categoria de racionalidades híbridas para contrastar-se à racionalidade ocidental moderna tem sua inspiração nos teóricos latino-americanos que reconstituem suas análises com referenciais muito fortes na história passada e atual dos povos autóctones (RIBEIRO, 2007; LEFF, 2008; QUIJANO, 2000; ESCOBAR,1997; BARRERA BASSOLS, 2008; VIVEIROS DE CASTRO, 2002; DE SOUSA SANTOS, 2010; MALDONADO, 2005; além de um expressivo número de outros autores). Estudos 5

Abre-se aqui um amplo espaço para uma literatura mais autóctone, isto é, de autores latino-americanos ou alternativos que, apesar de não renunciarem às suas matrizes intelectuais europeias e anglo-saxônicas, introduzem novidades nos estudos das sociedades regionais autóctones, no contexto de análises marcadas não apenas por uma visão dependentista, terceiro-mundista, embora não necessariamente filiadas ao pensamento nórdico ou etnocêntrico que sempre considerou aquelas análises como exóticas ou excepcionais.

culturalistas, políticos, antropológicos e socioambientais sobre povos indígenas e outras populações tradicionais vieram a ganhar proeminência em América Latina, coincidindo com a emergência de governos populares nos 10 primeiros anos do século XXI em países andinos, mas não exclusivamente. A formação social das sociedades periféricas, em relação ao sistema central do qual irradiam os mecanismos de expansão dos mercados capitalistas, pode ser interpretada de múltiplas formas analíticas, desde as concepções clássicas do marxismo, às teorias da dependência e do Sistema-Mundo e mais recentemente por diversas escolas de pensamento sobre a globalização. Umas mais, outras menos, cada uma dessas teorias expressam o movimento e os embates políticos, geopolíticos gestados em diversos momentos de conformação desses processos de consolidação-expansão de modelo de modernidade capitalista em diferentes fases 6. Mais recentemente, as diferentes teorias da globalização remetem-se principalmente ao contexto do fim das sociedades fortemente marcadas pelo estatismo socialista e a um pronunciado encantamento ideológico com uma sociedade planetária única, ditada pelas leis do mercado soberano e tendo como contrapartida as diversas versões neoliberais de um Estado Mínimo e de um Mercado Único, capazes de aplainar as assimetrias existentes na atual fase de mundialização desse processo. Não se trata aqui de ser contra ou a favor do fenômeno histórico da globalização, embora a contenda tenha sido assim apresentada por seus defensores ou críticos. Mas e sobretudo, contra certas versões teóricas apresentadas para explica-la ou implicitamente justifica-la, como é o caso de algumas concepções sociológicas etnocêntricas que buscam ontologizar esse processo sob o nome de “consequências da modernidade” e outras adjetivações encantatórias do fenômeno, colocando-o metaforicamente dentro ou fora do Carro de Jagrená (Suba! Embora você não saiba exatamente para onde está indo, mas pelo menos você não ficará de fora e para trás!). Esta posição de Giddens (1991) pode ser associada com o antigo paradigma das escolas etapistas do desenvolvimento, como as de W.W. Rostow, com suas diferentes etapas de crescimento econômico. Aqui o que vale é que há um centro propulsor do desenvolvimento, ditado pelas sociedades 6

Foge ao objetivo do presente capítulo aprofundar o debate sobre os efeitos da modernização capitalista em contextos de sociedades periféricas. Para sair do debate em torno a dicotomias interpretativas clássicas (modernidade x tradição) seria interessante levar em conta outros enfoques teóricos que interpretam em uma mesma unidade analítica os efeitos da modernização capitalista sobre as estruturas de sociedades que se adaptam mas que também resistem a adotar padrões exteriores às suas culturas (DOMINGUES, 2007; SORJ e MATTEUCCI, 2008).

industrializadas centrais, cujo modelo deve ser seguido e replicado pelas demais sociedades periféricas, como uma espécie de imaginário do desenvolvimento que deve ser seguido e copiado por todos. Por outro lado, para que não se acuse esta crítica de ideologização às avessas, simplificando e aplicando a crítica a todos os autores que tratam desse tema, estudos como os de Saskia Sassen (2010), David Harvey (1992), Zigmunt Bauman (2001), Octávio Ianni, Renato Ortiz (1992), Daniel Mato (2001) e Nestor García Canclini (1991, 1999) entre outros mais, trazem reflexões e contribuições importantes para a interpretação dos fenômenos da globalização em seus diferentes aspectos (culturais, espaciais e humanos, principalmente). Contudo, para efeito de apresentar os processos de mundialização e seus efeitos sobre sociedades que construíram sua inserção no contexto da modernidade capitalista, é preferível mencioná-los como pertencentes às constelações das ‘Modernidades Múltiplas’, conferindo-lhes um status com capacidade de produção de autonomias relativas, e considerando assim suas especificidades históricas e culturais, ao invés de tratar essas sociedades como iguais às demais restantes, fazendo parte de um processo único de homogeneização mundial, quando na realidade sabe-se que esse mundo não funciona assim. Cabe ainda nesta seção uma pequena digressão sobre o debate, embora inconclusivo, a respeito dos aspectos culturais de uma modernidade que se instala em sociedades multiétnicas, interculturais e plurinacionais. O antigo debate sobre modernidade em oposição à tradição tende a simplificar e a obscurecer o significado dessas oposições, utilizando-se de um reducionismo economicista ou de estilos de vida urbano-industrial para considerar a predominância de um sistema (da modernidade) sobre os demais (não industriais e não urbanos). Em termos mais simples, alguns autores principalmente Eric Hobsbawm e Anthony Giddens consideram que as tradições são sempre reinventadas, de tal maneira que por definição transparecem nelas uma espécie de resiliência desde as dinâmicas de diálogo com outras formas culturais. Se este princípio é válido desde o que se considera como tradição, o mesmo se pode dizer desde a não-tradição ou daquilo que pode ser considerado como “moderno”, pois este se apropria de processos culturais já existentes. Estabelece-se uma dialética entre diferentes sistemas de organização social, que se condicionam reciprocamente e se articulam em diferentes escalas espaciais e temporais. Contudo, essa reciprocidade não significa que as relações de poder entre esses sistemas

sociais sejam simétricas e que não ocorra imposição de mecanismos políticos, econômicos, culturais e tecnológicos dos sistemas organizados de mercado capitalista sobre os demais menos organizados ou desorganizados. Mesmo assim, é possível identificar resistências e respostas diferentes por parte de populações pertencentes a sistemas sociais periféricos que desenvolvem estratégias próprias e coerentes com os recursos culturais e políticos, de acordo à capacidade de resposta que cada um desses sistemas alcançou a organizar. Édouard Glissant (1997), escritor e ensaísta literário da Martinica (1928-2011), oferece uma reflexão e contribuição importante para se pensar a cultura da diferença desde a ideia de fissura, ou greta, da qual emerge a criatividade dos povos, contra a mimese da cultura do outro, geralmente imposta: o autor parte da idéia de identidade múltipla ou identidade de raíz, aberta ao mundo e colocada em contato com outras culturas7. 1.3.‘Modernidades Múltiplas’: os conflitos da diferença e da diversidade culturais e políticos Mesmo se a designação de ‘Modernidades Múltiplas’ pecar por algum relativismo, daí o uso provisório que é possível fazer dela, é desde esta categoria que se pode reconstituir as especificidades sócio-políticas e culturais de cada uma das sociedades periféricas. O interessante dessa contribuição é que se pode restituir a ela um sentido polissêmico, não apenas desde um olhar de teóricos do centro ou de epistemologias logocêntricas (de um universal genérico), mas igualmente desde epistemologias da diversidade e da multiplicidade cultural ou de diálogos interculturais, consideradas aqui como epistemologias culturais, em oposição às epistemologias logocêntricas.

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Agradeço esta indicação feita pela Profa. Camila Bari, argentino-chilena, pesquisadora no Westminster College (USA), em sua palestra de 02/12/2013, no CEDER- ULAGOS em Osorno, Chile, com o título de Indígenas e inmigrantes en la novela histórica. Diversos autores (QUIJANO, ESCOBAR, GARCÍA CANCLINI, GLISSANT, BAHBA, HOUNTONDJI, HALL...) têm dispensado uma reflexão teórica sobre temas culturais , tais como os estudos pós-coloniais ou epistemologias do sul, desde o surgimento, nos anos 1990, do debate em torno da ‘globalização’ e dos estudos sobre novos sujeitos. Esses estudos incluíam os mais variados sujeitos subalternos, imersos e incorporados à etnicidade, sexualidade e gênero, envolvidos com a questão das identidades, além de outros sujeitos políticos e à tomada de consciência e posição de subalternidade periférica, no espaço de construção de alternatividades, tais como os opositores da globalização, os movimentos de emancipação (zapatistas) e o indigenismo andino que reivindica sua condição de povos originários, além dos movimentos dos sem terra no campo, dos agroecológicos e dos sem teto das cidades, etc.

As epistemologias culturais são as que provêm de um contexto de formação social periférica em relação às epistemologias eurocêntricas e fortemente marcadas pelo uso de racionalidades, ancoradas no conhecimento sistematizado, registrado e traduzido pela racionalidade instrumental ou técnica, cuja expressão maior na modernidade se dá pela ciência e pela técnica. Contudo, como se verá em seguida, ocidentalização e modernidade nem sempre coincidem, embora ocidentalização e modernidade acabem aparecendo como uma realidade única e intercambiável. Assim, o termo ‘Modernidades Múltiplas’ para Eisenstadt (2000) possui duas implicações. A primeira em que modernidade e ocidentalização não são idênticas; os padrões ocidentais de modernidade não constituem as únicas modernidades “autênticas”, mesmo se fossem historicamente precedentes e se continuassem sendo uma referência central para outras visões de modernidade. A segunda implica o reconhecimento de que essas modernidades não são “estáticas”, pois se encontram em permanente mutação. Neste sentido, para este mesmo autor, segundo Whimster (2009:282), a história da modernidade é a história da constituição e reconstituição de uma multiplicidade de programas culturais. Essas reconstruções contínuas de múltiplos padrões institucionais e ideológicos são conduzidas por atores sociais particulares, em íntima conexão com ativistas sociais, políticos e intelectuais e também por movimentos sociais que perseguem diferentes programas de modernidade, mantendo pontos de vista muito diferentes sobre o que faz uma sociedade ser moderna. Dessa maneira, se produz no interior dessas ‘modernidades múltiplas’ novos significados emergentes. Desde aqui, gera-se um nó semântico que articula outras possibilidades de empoderamento social, com um novo caráter epistemológico, político e cultural, fruto de uma singularização dos processos históricos e societais, impregnados de projetos plurais extensivos a incontáveis experiências e em certo sentido comuns, produtores de significados outros, exigindo portanto outras hermenêuticas para serem entendidos. Não é a partir de um grande lugar único e comum que a globalização produz efeitos dessa ordem. A globalização, pensada a partir de seu rolo compressor tecnológico, econômico e geopolítico mascara esses processos de singularização, de emergência, de ressurgência e de resistência, pois se pretende homogeneizadora dos processos de modernidade. “Existe um modelo retórico que procura nos fazer acreditar que toda resistência seja, no fundo, uma recusa do progresso. Acho importante recolocar de maneira clara o que significa ‘progresso’ no interior desse contexto. O progresso procuraria dar conta de certas exigências fundamentais de bem-estar. O progresso científico não é simplesmente um processo de dominação da natureza, mas também um processo de

otimização do bem-estar humano. Mas esse dito ‘progresso’ promete uma maior qualidade de vida para as populações e acaba produzindo o inverso. Para que essa inversão não ocorra, é necessária uma reconstituição brutal dos modelos de relação com a natureza” (SAFATLE, Entrevista à Revista POLI, 2012, p. 19).

É assim o que ocorre com a questão ambiental que juntamente com outras manifestações políticas, sociais e culturais articulam atores, movimentos coletivos, identidades ressignificadas, com a ressurgência indígena e camponesa na América Latina, com os novos coletivos urbanos, como os movimentos por moradia popular, grupos de protestos, movimentos que reivindicam sua condição de pertencimento étnico, como os afrodescendentes, os remanescentes dos processos coloniais e escravistas como os quilombolas, as novas organizações agroecológicas, associações de consumo saudável, bicicleteiros urbanos, pichadores e grafiteiros, grupos de dança e música das periferias urbanas (funk, hip-hop,etc.), organizações feministas, organizações sexistas, a questão de gênero que transcende a questão da sexualidade, todas expressões dessas modernidades múltiplas8. Até mesmo as organizações transgressoras (organizadas em forma de máfias ou redes internacionais do narcotráfico, traficantes e consumidores, redes de pornografia na internet, tolerância legal ao consumo de cigarros, álcool, medicamentos químicos), juntamente com novas práticas lícitas vinculadas ao mundo do consumo (ou ao que se pode designar como fetiche consumista pós-moderno, como o hábito internalizado ou compulsivo de compra de gadgets eletrônicos)

são expressão sociocultural dessas

modernidades múltiplas. Essas emergências e ressurgências (algumas provenientes de leituras ressignificadas de processos implícitos às estruturas e permanências históricas) coexistem por sua vez com outros fenômenos de diferentes tipos de expressão dos sistemas de organização hegemônicos e transnacionais (mídia, indústria cultural, turismo, organizações religiosas e clubes de futebol, com os respectivos filiados em igrejas e em times esportivos, etc.). Da mesma maneira que as racionalidades dominantes não são unívocas, isto é, podem ser lidas, entendidas e sentidas de diversas maneiras, as racionalidades subalternas 8

O ensaísta Vladimir Safatle (Entrevista à Revista POLI, 2012, p.21) alude à morte da democracia, quando esta é incapaz de reinventar-se. É possível imaginar que um possível renascimento da democracia esteja ocorrendo novamente em escala planetária, desde as ruas, especialmente de 2008 em diante. Contudo, o signo da política como irrupção do novo traz misturados o “puro” e o “impuro”. Se a nova arena política é um momento de “purificação” da velha política, provoca formas de violência que se inscrevem tanto em registro do antigo fascismo como do libertarismo, confundindo a “opinião pública”, como os eventos recentes de fevereiro de 2014 que provocaram a morte do cinegrafista da TV Bandeirante no Rio de Janeiro.

também são polissêmicas e contraditórias; entendidas dessa forma, subtraem-se alguns componentes de “demonização” às primeiras e de “essencialização” às segundas. No caso do ressurgimento dos valores etnoculturais indígenas, esses elementos podem ser captados através de textos literários e políticos, assim sintetizados por Sergio Mansilla Torres (2012, p. 18) ao apresentar o livro Reducciones do poeta mapuche-huilliche chileno Jaime Luis Huenún: Tal polifonia torna a Reducciones en un vasto y persistente relato de resistencia. Mas también de capitulaciones, de derrotas, de nomadías a la tierra hollada de la que crecen palabras igualmente holladas, llenas de remiendos.(…) Todo esto configura una textualidad que registra pulsiones que se encaminan tanto a lo que podríamos llamar de desetnización como a la reetnización de los sujetos, movimientos que a la vez se oponen y se complementan de maneras asimétricas en tanto responden a cambiantes estrategias de sobrevivencia subalterna que implica tanto capitulaciones como insubordinaciones identitarias según momento y lugar.

Para que sejam geradas racionalidades híbridas e neste caso da produção de identidades mestiças, é necessária a reunião ou acumulação de forças simbólicas, ainda no dizer de Sergio Mansilla Torres (2012, p.19), corporificadas em textos e discursos capazes de gerar alguma vantagem no cenário de uma modernidade nacional e global, negadora até pouco tempo da imagem do indígena ou indígena-mestiço subalterno. Dependendo do lugar em que se avaliem as diversas expressões de ‘modernidades múltiplas’, algumas delas podem assumir aspectos positivos ou proativos, e outras negativos, com expressões de violência social não organizada e entrópica (destrutivas), com figuração ou organização não política (ou subpolítica) no sentido contrário das muitas expressões indicadas e que possuem características de associações políticas. Mas é do jogo dessas reciprocidades (positivas e nativas) que emergem novas racionalidades híbridas em que é possível observar que uma nova política também é possível, pela condição de reinventar-se a partir de sua própria tradição.

1.4. O cipoal semântico desde diferentes lugares de produção de conhecimentos

No marco do pensamento socioambiental geram-se diferentes matrizes epistemológicas, de acordo a uma grande divisão social que acompanha o trabalho da produção do conhecimento no contexto das ‘modernidades múltiplas’. Não se trata apenas da produção do conhecimento científico, mas de uma pluralidade de conhecimentos sociais e culturais. Essa divisão social do conhecimento encontra na modernidade as

formas mais institucionalizadas de sua produção, por meio de agências de pesquisa e universidades, das quais emergem as diferentes concepções sobre o que é ciência e como cada uma das áreas e das disciplinas científicas disputam hegemonias e controle sobre os recursos públicos e privados, aplicados em pesquisa básica e desenvolvimento tecnológico. Pode-se pensar que as sociedades modernas geram estruturas cognitivas tanto no interior das instituições sociais (estatais e privadas) como fora delas, em espaços não institucionalizados. No interior da organização do trabalho científico é possível observar uma segmentação de diversos tipos de divisão técnica do trabalho científico, gerando formas diferenciadas. Pode-se dizer que entre o conhecimento institucionalizado da ciência (ciência normal no sentido kuhniano) e o conhecimento pouco ou não institucionalizado (ciência pós-normal ou nômade que transpõe limites paradigmáticos estabelecidos)9 ocorrem tensões e conflitos, mas também possibilidades de diálogo e de complementaridades. O capítulo das epistemologias mereceria aprofundamento, o que não é possível neste espaço, resumindo-se apenas a uma apresentação sumária: por um lado, epistemologias científicas e logocêntricas como legado do Ocidente que observam, interpretam e intervêm no mundo pela razão e pela técnica desde o sistema científicotecnológico; por outro, epistemologias da cultura não ocidentais, provenientes do Extremo Ocidente, do Extremo Oriente, da África e do Oriente Médio. No que tange às epistemologias culturais latino-americanas dos povos originários como no caso dos quíchuas, suas orientações em direção ao sistema de práticas sociais, políticas e econômicas dependem de um sistema integrado de saberes em relação à cultura (origem, pertencimento, identidade, território, cotidiano e língua), em relação ao saber cuidar do meio (wakaychina), da governança ou do saber cuidar de todos (tantanakuy), mas também do enfrentamento e da réplica (chinpapurana), conforme nos comunica o quíchua otavalenho do Equador, Ariruma Kowii Maldonado (2005). Na linha ainda de exploração das potencialidades das epistemologias culturais periféricas, como formas ou expressões representacionais do mundo (cosmovisões), os aimarás do altiplano boliviano, por exemplo, entendem e explicam o tempo de outra maneira dos ocidentais: quando falam do passado é do futuro que estão se referindo e de

Por ciência “nômade” pode-se entender o hibridismo do diálogo de saberes e a crítica política e cultural dos usos da ciência, transitando em diversos territórios do conhecimento (científicos e não-científicos). 9

maneira inversa quando se referem ao futuro. Da mesma maneira, como lidam com as contradições em termos de organização lógica do pensamento 10. Como estrutura ou organização da formação discursiva científica, em termos de uma história da ciência de hoje, tem-se lugar assim à possibilidade de produção de uma ciência pública11, objeto de debate político sobre seu alcance e aplicação social. No campo das ciências acadêmicas, há uma ciência corporativa ou endógena, voltada em grande medida para os agentes que a produzem, como é o caso da pesquisa universitária; uma ciência privada ou de mercado (domínio das tecnociências) orientada pelo e para o mercado; os relatórios técnicos produzidos por agências governamentais. No outro extremo da produção de estruturas cognitivas estão os saberes culturais (os etnosaberes, as práticas e os sistemas híbridos dos conhecimentos tradicionais). As etnociências emergem dos espaços intermediários entre conhecimentos científicos e não científicos; corresponderiam analogicamente aos espaços ou ao deslocamento provocado pelas ciências de fronteira (interdisciplinaridade e transdisciplinaridade) no domínio do conhecimento científico. O domínio das ciências instituído rege-se pela organização do trabalho disciplinar, cujas disciplinas pertencem a uma hierarquia formalizada do campo científico (ciências da natureza, da vida e da sociedade); em regime de transição estão aqueles domínios contestados da ciência que, embora minoritários, rebelam-se contra as fronteiras estabelecidas por um sistema federativo, espécie de estados nacionais da ciência; nessas

10

Ao se produzir aproximações e distanciamentos simultâneos entre diferentes modelos de sociedades contemporâneas (modernidades múltiplas), seria interessante considerar as diferentes noções de tempo para avaliar os significados implícitos nas ideias de ‘progresso’, ou seja, referências às diferentes temporalidades (passado, presente e futuro). Por um lado, à luz de epistemologias que se subordinam a uma visão moderna de ciência, quando analisam fenômenos físicos e naturais, em termos reversíveis ou irreversíveis; por outro lado, visões culturais (míticas ou religiosas) de sociedades não subordinadas aos tempos mecânicos modernos. De acordo a essas diferentes representações de tempo, é possível também imaginar como as sociedades reproduzem suas visões de passado, presente e futuro. Segundo alguns ensaístas (BOUYSSE CASSAGNE, 1987; VAN DER BERG e SCHIFFERS, 1992) , os aymaras do altiplano boliviano localizam o futuro no passado e o passado no futuro. As diversas representações do tempo para o Ocidente são também complexas, se buscamos na física contemporânea (da relatividade e quântica) seu entendimento, diferente da visão de tempo reversível da física newtoniana. Em termos culturais contemporâneos das sociedades urbano-industriais, o futuro é uma expectativa que se projeta em termos virtuais, sob diversas óticas, assentadas em valores tecnológicos, econômicos e políticos, ou em padrões esperados dos sistemas de consumo, etc. A ‘ciência pública’ tem como objetivo discutir, avaliar e questionar a pertinência e os resultados que a ciência produz ou ostenta em relação aos seus usos sociais. A ciência pública reivindica para si uma condição política (STENGERS, 2002; ZIMAN, 1996 ). 11

áreas de fronteira estabelecem-se as novas formas de produção e de associação multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. O campo dos debates e dos embates sobre concepções do socioambientalismo e dos conflitos sociais oriundos de problemas de apropriação, uso e exploração dos recursos naturais e dos impactos gerados no ambiente (natural e social) tem como pano de fundo o confronto entre a ciência normal e os demais saberes e práticas sobre a natureza. Da mesma forma, a produção discursiva sobre sustentabilidade emerge desse quadro de oposição-complementaridade entre os domínios da ciência (seus fundamentos epistemológicos, suas escolas de pensamento das quais são criados os conceitos e métodos) e os domínios dos demais saberes não científicos (religiosos, culturais, estéticos, políticos, etnoconhecimentos...). É variado o elenco das escolas de pensamento ou das teorias que se desenvolvem para pensar a relação sociedade-natureza: positivismo, funcionalismo, modernização ecológica, construtivismo, teorias sistêmicas (holismo e co-evolução), marxismo ecológico, teorias pós-coloniais e pós-modernas, etnociências, etc.. As teorias da complexidade são o substrato epistemológico de algumas dessas escolas de pensamento e pode-se dizer que se estreita a cooperação e o diálogo não só entre disciplinas, mas entre áreas de conhecimento (ciências naturais com ciências humanas e sociais). Esse quadro também se encontra presente nos discursos e nas práticas dos agentes (estatais, paraestatais, privados, coletivos, individuais) que promoveram as chamadas retóricas da sustentabilidade e que são objeto de análise deste capítulo, a partir da próxima seção . Jean Piaget (1967) em alguns de seus consagrados estudos sobre epistemologia propõe uma tipologia a respeito de como e desde onde emergem questões relevantes na história da ciência: desde a própria ciência (epistemologias científicas), mas também para além dela (epistemologias metacientíficas e paracientíficas). O debate ambientalista não deriva exclusivamente do interior das ciências disciplinares, mas da filosofia (concepções de natureza), da política (conflitos sobre os usos da natureza e os processos de degradação do meio com impactos sobre as condições e situações de vida das populações humanas e dos ecossistemas), da literatura, do cinema e da mídia.

2. DISCURSOS DOS ESTADOS-NAÇÕES, DAS AGÊNCIAS INTERNACIONAIS (ONU)

E

DOS

ATORES

NÃO

INTEGRADOS:

HEGEMONISMOS

E

CONTESTAÇÕES

De início, pretende-se fazer uma rápida distinção entre as noções de atores não integrados e grupos ou categorias sociais subalternas. Prefere-se o termo de atores não integrados (ao sistema dominante) e não o de atores subalternos, uma vez que a diversidade desses coletivos que se reuniram na Cúpula dos Povos, paralelamente aos encontros oficiais dos estados nacionais e das agências internacionais, nem sempre correspondem à subalternidade como conceito político. Consideram-se subalternos grupos e categorias sociais que pertencem historicamente a um sistema de subtração ou de destituição de sua condição original (expropriação dos territórios, privação da liberdade, integração forçada ao Estado Nacional, como é o caso das populações indígenas, das demais populações tradicionais, dos sem terra e dos afrodescendentes). Embora muitas dessas populações estivessem representadas na Cúpula dos Povos da

Rio+20,

encontravam-se

presentes

ONGs

nacionais

e

internacionais

profissionalizadas, representantes de alguns partidos políticos, sindicatos de trabalhadores, servidores públicos, pesquisadores, intelectuais, militantes ambientalistas, estudantes, etc. Porém, a Cúpula reivindicava seu papel de opositor às propostas do discurso oficial do documento NOSSO FUTURO COMUM. Daí que do ponto de vista da produção discursiva é adequado considerar que o documento da Cúpula dos Povos constitui-se e apresenta-se como formulador de uma retórica da contestação. Como representantes dessas organizações sociais populares e na condição de seus porta-vozes ou intercessores no grande evento mundial da Cúpula dos Povos, deve-se pensar que os mesmos tornam-se uma espécie de vanguarda desse coletivo; isto não significa que suas bases estivessem presentes ao evento, geralmente formadas por pessoas comuns que têm suas rotinas diárias, no esforço também de sobreviver de maneira simples e em muitos casos de forma sofrida. Ou seja, são posições discursivas apresentadas de maneira radical e militante, cuja doutrina ou discurso crítico depende de motivações e engajamentos político-ideológicos com a causa, mais do que um discurso que perpassa o dia-a-dia das pessoas comuns desses movimentos. A intenção é de contrapor dois tipos de formulações discursivas, produzidas no contexto do grande evento internacional da CONFERÊNCIA DA ONU SOBRE

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, RIO+20 e da CÚPULA DOS POVOS POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL, ocorridos simultaneamente em junho de 2012 na cidade do Rio de Janeiro. Por um lado, uma discursividade que se inscreve nas grandes estratégias políticas e geopolíticas globais dos Estados-Nação, dos agentes econômicos e políticos multisetoriais e transnacionais, cujo eixo articulador é o sistema de mercado, com suas lógicas financeiras e mercantis, com os desafios do crescimento econômico, impregnado agora pela semântica da sustentabilidade e da economia verde. Desde outra perspectiva oposta, a produção de uma retórica da contestação, enunciada por atores, saberes e visões de mundo fundamentalmente contrapostas às matrizes de pensamento e de ação da Conferência da ONU. Esta ordem discursiva reivindica para si a condição de representante da Cúpula dos Povos. As circunstâncias do evento com alguns de seus cenários, foram assim descritas pela Revista Poli (2012, p. 4 ): Enquanto no Riocentro (193) delegações do mundo todo se digladiavam em torno de pautas como o fim do lobby para a produção de combustíveis fósseis (rejeitada), no Aterro do Flamengo, onde se realizou a Cúpula dos Povos a partir do dia 15, ninguém parecia ter a menor dúvida quanto aos riscos representados pelas indústrias extrativas – mesmo porque muitas das comunidades presentes sentem na pele os prejuízos da exploração de gás, petróleo e carvão. (...)Desenhada para dar visibilidade às lutas e soluções das populações, a Cúpula recebeu aproximadamente 350 mil participantes de todas as partes do planeta. A diversidade era imensa: indígenas, quilombolas, afetados por usinas hidrelétricas e nucleares, por empreendimentos industriais ligados ao agronegócio, militantes feministas, prómobilidade urbana, ecossocialistas, cientistas compunham parte do público atraído pela programação variada, que acolheu 800 atividades autogestionadas propostas por centenas de entidades.12

A fim de ingressar no domínio discursivo dos textos produzidos por ambas instâncias formuladoras de suas respectivas propostas, é importante observar os seguintes procedimentos: em primeiro lugar, identificar as articulações internas dos textos (a gramática dos conceitos), a hierarquização e organização temática, com as lógicas conceituais e argumentativas; em segundo lugar, o imaginário (sistemas ideativos e valorativos sobre o que cada um dos lados pretende como ideal de sociedade e quais os problemas que devem ser identificados e visados); por fim, como se dá o processo de contraposição ou de contestação argumentativa por parte da Cúpula em relação ao 12

O Grupo de Articulação (GA) Internacional do Comitê Facilitador para a Sociedade Civil na Rio+20 (CFSC) da Cúpula dos Povos é formado por 35 redes, organizações e movimentos sociais de 13 diferentes países. Seus representantes trabalham junto ao GA Nacional (com 40 redes representadas) na coordenação metodológica e política da Cúpula dos Povos. (DOCUMENTOS FINAIS DA CÚPULA DOS POVOS NA RIO + 20 POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL, p.37).

documento NOSSO FUTURO COMUM da ONU que representa a visão hegemônica das instituições estatais e de outras agências internacionais corporativas (retóricas hegemônicas). 2.1. Os discursos oficiais sobre ‘desenvolvimento sustentável’

O texto final (NOSSO FUTURO COMUM) do documento oficial da ONU está estruturado em seis grandes seções e contém 283 parágrafos numerados: (I. Nossa Visão Comum; II. Renovação do Compromisso Político; III. Economia Verde no contexto do desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza; IV. Marco Institucional para o Desenvolvimento Sustentável; V. Marco para a ação e acompanhamento; VI. Meios de Execução). Na seção I sobre a Visão Comum dos agentes institucionais, aparecem os seguintes pontos: Promover o crescimento económico sustentado e inclusivo, o desenvolvimento social e a proteção do meio ambiente (são) essenciais para o desenvolvimento sustentável, incluído o crescimento econômico sustentado e inclusivo, o desenvolvimento social, a proteção do meio ambiente e a erradicação da pobreza e a fome (para nosso planeta e para as gerações presentes e futuras). Em consequência, se reconhece a necessidade de incorporar mais ainda o desenvolvimento sustentável em todos os níveis... Reafirma-se ainda a importância da liberdade, da paz e da segurança, o respeito de todos os direitos humanos (...). Reconhecese a democracia, a boa governança e o estado de direito nos planos nacional e internacional. Na seção II da Renovação do Compromisso Político, recorda-se a Declaração de Estocolmo da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Humano, aprovada em Estocolmo em 16 de junho de 1972. Reconhece-se que os avanços desde 1992 tem sido desiguais, inclusive no que se refere ao desenvolvimento sustentável e à erradicação da pobreza. Manifesta-se preocupação pelo fato de que uma em cada cinco pessoas do planeta, ou seja, mais de um bilhão de pessoas siga vivendo na extrema pobreza e que uma em cada sete, ou 14%, esteja desnutrida. Reconhece-se que a mudança climática é uma crise intersetorial e persitente; que muitas pessoas, especialmente os pobres, dependem diretamente dos ecossistemas para sua subsistência, seu bem estar econômico, social e físico e seu patrimônio cultural. Reconhece-se ainda que o planeta Terra e seus

ecossistemas, com sua diversidade natural e cultural, são nosso lar e que a “Mãe Terra” é uma expressão comum em muitos países e regiões. Daí que se exige a adoção de enfoques globais e integrados do desenvolvimento sustentável que conduza a humanidade a viver em harmonia com a natureza. (...) Reafirma-se o papel fundamental dos órgãos legislativos e do governo em todos os níveis para promover o desenvolvimento sustentável. A participação ampla do público e o acesso à informação e os procedimentos judiciais e administrativos são essenciais para a promoção do desenvolvimento sustentável. As mulheres e a participação ativa dos setores público e privado são decisivas, bem como a importância de relatórios sobre sustentabilidade empresarial, as sociedades que investem na bolsa e as grandes empresas. Atores como as comunidades científicas e tecnológicas, a participação dos povos indígenas, os jovens, trabalhadores e sindicatos, os agricultores, pequenos agricultores, pastores, silvicultores, ONGs, a ONU, todos fundamentais para a promoção da agenda de desenvolvimento sustentável. A seção III sobre a economia no contexto do desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza é um dos instrumentos mais importantes para alcançar essa meta, devendo-se observar que se busque correspondência com o direito internacional; com a soberania nacional de cada país sobre seus recursos naturais; com a promoção do crescimento econômico sustentado e inclusivo; com as necessidades dos países em desenvolvimento; fortalecer a cooperação internacional, com o aporte de recursos financeiros e a transferência de tecnologia aos países em desenvolvimento, buscando-se reduzir a brecha tecnológica e reduzir a dependência tecnológica dos países em desenvolvimento. Deve-se visar ainda a melhoria do bem estar dos povos indígenas e de suas comunidades, das mulheres, crianças, jovens, das pessoas incapacitadas, dos pequenos agricultores e dos agricultores de subsistência, pescadores, pequenas e médias empresas. As seções IV, V e VI referem-se ao marco institucional, ao marco para a ação e acompanhamento e aos meios de execução. Propugna-se pelo fortalecimento dos mecanismos (políticos e institucionais) intergovernamentais, pelo papel (econômico) das instituições financeiras, bem como as atividades operacionais das Nações Unidas. São apontadas 26 esferas temáticas e as questões intersetoriais como prioritárias para o desenvolvimento de um programa sustentável, que vão desde a erradicação da

pobreza, passando pela água, saneamento, energia, turismo sustentável, saúde, emprego, bosques, biodiversidade, mineração, igualdade entre gêneros e o empoderamento das mulheres, etc. 2.2. Outros discursos sobre ‘desenvolvimento sustentável’

Na sequência, apresenta-se a gramática dos conceitos do texto final da CÚPULA DOS POVOS POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL. A Declaração Final é resultado dos debates ocorridos no interior de 5 Plenárias, com os seguintes temas: 1. Direitos, Justiça Social e Ambiental; 2. Em defesa dos Bens Comuns e contra a mercantilização; 3. Soberania Alimentar; 4. Energia e indústrias extrativas; 5. Trabalho: por uma outra economia e novos paradigmas de sociedade. O conjunto dos DOCUMENTOS FINAIS DA CÚPULA DOS POVOS NA RIO+20 POR JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL contém 4 capítulos: o de no. 1. Declaração Final, espécie de Manifesto em favor do Povos e contra o atual modelo capitalista de desenvolvimento social, econômico, tecnológico e ambiental. O capítulo 2 traz a Síntese das 5 Plenárias; o capítulo 3 tem como título O Que Está em Jogo na Rio+20, elaborado em 2 de maio de 2012, um mês e meio antes da realização do evento; o capítulo 4 é um chamado à participação e à criatividade: Venha Reinventar o Mundo! Elaborado um ano antes do encontro, é uma chamada ao primeiro seminário de 2 de julho de 2011, preparatório da Cúpula dos Povos. A organização interna do capítulo 2, o mais extenso dos documentos, apresenta sinteticamente, para cada um dos 5 temas das Plenárias, a seguinte estrutura: 1. Causas Estruturais; 2. Soluções; 3. Agenda de Lutas. Apresentam-se na sequência esses 3 componentes da estrutura para cada uma das 5 Plenárias:

A primeira Plenária (Direitos, Justiça Social e Ambiental) lista 12 pontos como causas estruturais da atual injustiça social e ambiental: o sistema capitalista; o antropocentrismo; acumulação financeira; mercantilização da natureza; lógica do patriarcado; racismo; exploração do norte sobre o sul; exclusão das práticas e saberes tradicionais; consumo neoliberal; investimentos dos bancos nacionais em base à exploração capitalista da terra; concentração da terra; privatização do espaço público. São 11 as Soluções (e reivindicações) encaminhadas pela primeira Plenária: direito ao acesso à igualdade sem discriminações; economias cooperativas;

participação comunitária na definição de políticas públicas; garantia acessível aos serviços básicos; investimentos em infraestrutura sustentável; acesso à mobilidade sustentável; soberania cultural e pessoal; fim da militarização dos países do norte; finalidade social dos usos da terra, com reforma agrária; comunicação internacional para difusão sobre direitos de uso da água e dos recursos naturais. Na seção Agenda de Lutas da Primeira Plenária destacam-se 6 pontos: campanha antimilitarização; contra a base naval na Bahia; solidariedade com o povo hondurenho; vetar a lei de floresta no Brasil; campanha igualdade de gênero nas organizações; reconhecer o dia 28 de junho como Dia Internacional de direito à água.

A Segunda Plenária (Em Defesa do Bens Comuns e Contra a Mercantilização) apresenta no item Causas Estruturais da crise ambiental e social atual, pelo modelo agrourbano-industrial de produção e consumo, baseado na queima dos combustíveis fósseis e na centralização do poder nas mãos de poucos, bem como a mercantilização dos bens comuns; trata-se de um sistema social racista e patriarcal que promove a constante violação dos direitos humanos; a proposta da Economia Verde viria a aprofundar a assimetria de poder econômico e político entre os países e regiões juntamente com a globalização neoliberal imposta pelo FMI-BM-OMC, ampliando as bases de financeirização dos bens comuns; o endividamento público e privado está no centro do sistema capitalista e os países do Norte têm uma dívida ecológica, social e histórica impagável com o Sul. Grandes projetos de infraestrutura como as grandes hidrelétricas, a matriz energética e o atual modelo de produção e consumo são incompatíveis com o cuidado com a vida. O modelo energético baseado na economia verde da biomassa repete os erros históricos do atual modelo energético dos combustíveis fósseis. A flexibilização da legislação ambiental, o latifúndio, a monocultura e o agronegócio são os grandes vetores desse processo. O Direito Comercial Internacional permite às Corporações Transnacionais direitos extraordinários e é preciso desmistificar o papel da tecnologia e a apropriação dos bens comuns pelas patentes. Na base disso está a colonização da comunicação e cultura, sob forma do pensamento único. No item Solução da segunda Plenária é apresentado um elenco de direitos socioambientais que devem ser garantidos e preservados: o primeiro grande bloco de direitos é aquele atrelado ao direito à terra e ao território com consultas prévias e utilização dos instrumentos jurídicos como o da Convenção 169 da OIT; o bloco seguinte de direitos tem a ver com o direito à cidade (gestão democrática dos espaços públicos,

direito à moradia, e uma economia alternativa e sustentável no espaço urbano); o direito à água, à cultura, à comunicação, ao não endividamento, a uma Economia Ecológica e dos Comuns. A Agenda de Luta da segunda Plenária contempla 25 pontos, pautados pelos verbos impedir (a mercantilização dos bens comuns), combater (as propostas de legislação promotoras da financeirização dos bens comuns), defender (direito à comunicação e as florestas nativas), mudar (o paradigma de desenvolvimento), fortalecer e ampliar a luta, mobilizar (contra a criminalização dos movimentos sociais), devolver (as terras apropriadas aos povos indígenas), proibir (a geoengenharia e a biopirataria) , integrar (as agendas urbanas e rurais), apoiar (a campanha contra a privatização da saúde, do saneamento e da água).

A Terceira Plenária (Soberania Alimentar) apresenta 29 pontos como Causas Estruturais, todos decorrentes da contradição do sistema capitalista segundo o texto: o sistema agroalimentar é controlado por um reduzido número de corporações multinacionais; concentração da cadeia agroalimentar; mercantilização da natureza e de todas as formas de vida; expansão dos monocultivos, concentração da terra e destruição da biodiversidade; contaminação do ambiente pelos agrotóxicos e agroquímicos; especulação nos territórios costeiros; injeção de recursos públicos no agronegócio; agronegócio com balanço negativo de energia e causador das mudanças climáticas, responsável pela emissão de 50% de gases de efeito estufa; governos não apoiam a agricultura familiar; desigualdade social em suas diversas formas; falta de oportunidades no campo e ênfase na educação urbana; divisão sexual do trabalho em detrimento da mulher; uso de mão-de-obra infanto-juvenil, pelo agronegócio; violência no campo contra camponeses; a produção do agronegócio e sua dependência aos transgênicos, agrotóxicos e aos fertilizantes químicos; a ofensiva neoliberal e a consequente diminuição do Estado e dos direitos; especulação nas bolsas financeiras com alimentos; uso da água dos rios e lagos gera conflitos; obras de engenharia em grandes represas, plataformas de petróleo prejudicam os povos. São apresentados 14 pontos como falsas soluções decorrentes do discurso e propaganda da sustentabilidade das grandes corporações, desde a implementação da economia

verde,

crédito

de

carbono,

transgênicos,

plantações

florestais,

agrocombustíveis, produção de energia em grande escala, até políticas compensatórias, acordos de livre comércio, etc.

As 27 Soluções por parte do coletivo que elaborou o documento da Terceira Plenária: continuar a luta pela reforma agrária; construir uma nova economia; soberania dos povos; distribuição da riqueza; a agroecologia como projeto político; cooperativas e associações de produtores; valorização da alimentação tradicional; direito à migração e imigração; leis de proteção às sementes nativas e crioulas; homologação e registro das terras indígenas, quilombolas e demais populações tradicionais; pesquisa, ensino e extensão universitária comprometidos com as necessidades do povo; compras públicas de alimentos sem agrotóxicos; FAO e governos deveriam defender a produção agroecológica; banimento dos transgênicos e territórios livres deles; rechaçar os tratados de livre comércio bem como banir

os mercados de futuros sobre alimentos e os

agrocombustíveis. A Agenda de Luta é composta por 21 Campanhas, 7 das quais contra o sistema de produção dominante e as demais proativas, de reforço aos projetos em andamento.

A Quarta Plenária (Energia e Indústrias Extrativas)

apresenta 6 Causas

Estruturais da crise: tentativa de superação da crise pela intensificação do modelo energético-extrativo; mercantilização de todos os bens comuns pela economia verde; como contrapartida à resistência ao modelo, observa-se uma repressão contra os movimentos sociais, populações tradicionais e povos indígenas; pela debilidade dos Estados Nacionais promove-se a privatização e transnacionalização dos bens públicos. As Soluções propostas pela Quarta Plenária partem do princípio de que os bens comuns são um direito de todos os povos; propõem uma tecnologia socialmente apropriada; democratização do acesso aos recursos energéticos; erradicação dos megaprojetos energéticos; a dívida ambiental deve ser assumida pelos países altamente industrializados; formação de uma aliança estratégica anti-capitalista global entre os povos; discutir um novo modelo de consumo; matriz energética e dos bens comuns centrada na vida. A Agenda de Lutas da Quarta Plenária compreende articulações, mobilizações e campanhas. Campanhas contra a megamineração e megaprojetos de impacto; campanha para eliminação da dívida externa; frear os abusos das corporações transnacionais; campanha de defesa da energia como um bem público.

A Quinta Plenária (Trabalho: Por uma outra Economia e Novos Paradigmas de Sociedade) apresenta o seguinte diagnóstico sobre as Causas Estruturais do atual

momento: O capitalismo busca reconstruir-se, entrando em uma fase mais aguda de mercantilização e financeirização dos bens comuns da natureza; as empresas transnacionais apoderaram-se de nossas vidas e do planeta; alguns governos desenvolvem estratégias de militarização; os direitos dos povos e da Mãe Terra vem sendo continuamente violentados; a governança e as políticas das instituições multilaterais serviram aos interesses corporativos; este modelo precariza o trabalho, geral o trabalho escravo e infantil; as estratégias de apropriação de terras para o agronegócio impedem a reforma agrária; este modelo ignora uma compreensão mais ampla do trabalho, a autogestão, as economias solidária, feminista e camponesa entre outras; o neoliberalismo permitiu a construção de mercados especulativos; este sistema ultrapassou os limites da natureza. As Soluções para a Quinta Plenária estão baseadas na igualdade entre homens e mulheres, na economia feminista; propõe-se o Bem Viver para a valorização dos conhecimentos tradicionais e o reconhecimento dos direitos da Mãe Terra; a produção camponesa e agroecológica com a reforma agrária; a democracia horizontal com Estados Plurinacionais;

iniciativas

comunitárias

e

de

trabalho

autogestionado,

com

reconhecimento pelo Estado da economia solidária; reconhecimento por parte das Convenções 102 e 202 da OIT, sobre Seguridade Social e os Pisos Nacionais de Proteção Social. A Agenda de Lutas da Quinta Plenária propõe campanha pela lei da Economia Solidária no Brasil; fortalecimento do movimento por justiça climática, contra falsas soluções; luta pela defesa do direito à educação pública e universal; dia contra a mineração, gás e petróleo (10 de novembro); luta pela garantia dos direitos plenos das trabalhadoras domésticas, inclusive as migrantes.

2.3. Sobre contestações argumentativas dos discursos não-oficiais

Pretende-se neste item apresentar duas ordens de Contestações Argumentativas sustentadas pelo discurso contido no texto da CÚPULA DOS POVOS: a primeira delas usa o recurso do discurso político para contestar os argumentos do oponente contidos no documento NOSSO FUTURO COMUM; a segunda, usa o recurso do discurso científico. A estratégia discursiva utilizada, em ambas as ordens de contestação, utiliza-se da rejeição argumentativa frente ao discurso do outro:

Como recurso do discurso político aparece a crítica à Economia Verde junto com a economização da ONU e a financeirização da natureza; estes três elementos constituem o núcleo duro da crítica feita ao hegemonismo social do sistema de produção e de funcionamento das sociedades produtivistas de mercado. Ainda como crítica à inconsistência das práticas utilizadas pelas agências oficiais de desenvolvimento, o documento indica a necessidade de multiplicar substantivamente o número de projetos para o Desenvolvimento Sustentável, dado seu atual lugar marginal e os investimentos irrisórios dos fundos destinados a esses projetos por parte dos países que ditam as regras do jogo do mercado internacional. O principal ataque endereçado às práticas de reprodução do sistema hegemônico do capitalismo globalizado é dirigido às multinacionais que violam os princípios da reprodução da vida (transgenia e usos de agrotóxicos) e aos megaprojetos de impactos por parte de corporações econômicas, como a construção de hidrelétricas que comprometem a sobrevivência e os modos de vida de populações indígenas e tradicionais e aos ecossistemas, incluindo os investimentos públicos em projetos de extração de combustíveis fósseis. Finalmente, em termos de propostas alternativas, a chave da questão reside em estratégias produtivas comprometidas com a agricultura familiar agroecológica, a única via possível de garantir a reprodução social de amplas camadas de produtores e da qualidade dos alimentos produzidos de forma saudável, com resultados benéficos para a saúde, os solos e a biodiversidade dos ecossistemas. A segunda ordem de Contestação Argumentativa lança mão do uso do próprio discurso científico para contestar e contrapor-se aos argumentos opostos: Derrubar mitos do agronegócio é o foco da segunda parte do dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) sobre agrotóxicos. Lançado na Cúpula dos Povos, o estudo 'Agrotóxicos, Saúde e Sustentabilidade' desconstrói o discurso de que o agronegócio traz riqueza para o país, gerando empregos e renda nos locais onde é implantado e mostra as vantagens da agricultura familiar agroecológica. Enquanto o agronegócio gera 1,7 empregos a cada 100 hectares, a agricultura familiar emprega 15,3 na mesma dimensão, concentrando 74,4% do total de empregos gerados no campo. As famílias também são mais eficazes: 70% de todos os alimentos que vão para a mesa dos brasileiros são produzidos pela agricultura familiar, apesar desta ocupar apenas 24,3% das áreas cultivadas. Mesmo assim, o governo federal investe mais no agronegócio. Dos

R$ 120 bilhões de recursos do Ministério da Agricultura, somente R$ 16 bi foram para a agricultura familiar.

2.4. Os imaginários discursivos das retóricas em confronto Nesta seção busca-se identificar os imaginários discursivos13 de ambas retóricas. Nas duas formas opostas de enunciar os problemas e desafios, se apresentam diferentes imaginários; por um lado, com forte enraizamento na cultura das instituições internacionais hegemônicas, especialmente da ONU, que busca facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico, progresso social e direitos humanos para a realização da paz mundial. É uma formação discursiva constituída simultaneamente de uma aparente homogeneidade, mas que invisibiliza os fragmentos, espécie de mosaico em que o sentido é orientado para referenciais que possuem evidências neutralizadas pela indústria cultural, principalmente pelo cinema, a publicidade turística e o estilo de vida de consumo – países ricos, onde diferentes formas de violência social, criminal, práticas opressivas contra migrantes, negros, indígenas, mulheres, crianças, etc. são relativizadas, incorporadas como normais pela espetacularização da mídia; isso dificilmente acontece em países periféricos, intrinsecamente desiguais do ponto de vista econômico e dos direitos individuais, onde o registro do imaginário aparece representado pela mídia internacional pelo estigma colonial (países com fome, miséria, favelização, caos administrativo, analfabetismo, corrupção endêmica, etc.). Neste sentido, é difícil opor-se à glamourização de um discurso politicamente correto enunciado pelas agências internacionais, em nome do progresso, do bem estar, da liberdade e de outros valores cotidianamente repetidos e apresentados como dominantes. O imaginário do desenvolvimento (sustentável) desta instituição (ONU), se projeta ao futuro, em forma de Objetivos do Milênio, cujo programa leva em conta oito O conceito é usado habitualmente como sinônimo de ‘mentalidade’, ‘cosmovisão’, ‘consciência coletiva’ ou ‘ideologia’. Porém, na obra de Cornelius Castoriadis (1982) adquire um significado mais preciso. Segundo este autor, o imaginário possui dois planos de significação diferentes mas dependentes: o primário, que parece não ter vínculos de materialidade alguma (Deus, Pátria, Família, Estado...); o secundário que depende do primeiro e que o reproduz: por exemplo, o significado de cidadania pertence à ideia primária de Estado. Contudo, os imaginários discursivos dependem também do tipo de disputas que as diferentes retóricas sobre um mesmo tema conseguem imprimir, ao derivar daí novos significados. Por exemplo, a ideia de desenvolvimento remete a diferentes imaginários que só ganham outros significados quando desencadeiam a formação de novas constelações de sentidos. Devo alguns desses esclarecimentos sobre o ‘imaginário’ em Castoriadis aos comentários do pesquisador chileno do CEDER (ULA), Prof. Nélson Vergara (2009), com o qual compartilhamos pesquisas em comum. 13

maneiras de mudar o mundo até 2015, como o simples enunciar do discurso fosse suficiente para alcançar essas metas: 1) Acabar com a fome e a miséria no mundo; 2) Educação básica de qualidade para todos; 3) Igualdade entre os sexos e valorização da mulher; 4) Reduzir a mortalidade infantil; 5) Melhorar a saúde das mulheres grávidas; 6) Combater a AIDS, a malária e outras doenças; 7) Qualidade de vida e respeito ao meio ambiente; 8) Todo o mundo trabalhando pelo desenvolvimento. Nesses imaginários discursivos da ONU há uma ausência de mediações entre o discurso enunciado e as práticas facilitadoras para alcançar os objetivos propostos. Neste sentido, pode-se dizer que há um déficit de pragmática discursiva (elemento importante que garante autenticidade entre o que se diz e o que se faz ou se pretende fazer). Deixamse os encaminhamentos das soluções no domínio da boa vontade dos governantes e demais agências ou simplesmente à inércia burocrática, carecendo de mecanismos de autocrítica sobre fracassos anteriores ou de correção concreta dos rumos nas ações programáticas (agenda) , sem valores financeiros (orçamento) e constituição de equipes para a execução desses projetos (cronograma e resultados calculados). Desde outro lugar se apresenta o imaginário de Desenvolvimento por Justiça Social e Ambiental do discurso da Cúpula dos Povos, como retórica da contestação, formada pelos movimentos sociais, ONGs, grupos e categorias sociais diversos da sociedade civil, cuja formação discursiva aparece nas 5 Plenárias da seção anterior, em três formas de enunciados (Causas Estruturais, Soluções e Agenda de Lutas). Na Declaração Final que é uma apresentação dos Documentos Oficiais da Cúpula dos Povos, é possível identificar alguns pontos que podem ser considerados como uma espécie de ‘configuração do imaginário’ dessa formação discursiva e que tende a se projetar também ao futuro. Essa configuração atende ao princípio da crítica e do contraditório ao discurso de uma alteridade opositora e seu princípio ativo depende da agenda de luta em que se reavivam permanentemente o sistema de crítica e de crenças em tipos de sociedades que podem ser diferentes às atuais, caso consigam implementar as soluções propostas, por meio de uma agenda de lutas também anunciadas: 1) A saída está na história, costumes, conhecimentos e práticas dos sistemas produtivos dos povos; 2) Defesa dos espaços públicos nas cidades, com gestão participativa popular, economia cooperativa e solidária, soberania alimentar e mudança da matriz energética; 3) A defesa dos bens comuns deve garantir as cosmovisões dos povos; 4) Liberdade de organização e direito de contratos coletivos de trabalho decente, segurança e proteção social, com políticas públicas; 5) Feminismo como instrumento de

construção da igualdade, com autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade; 6) Distribuição da riqueza, de renda, combate ao racismo e ao etnocídio; 7) Garantia às economias locais e direito às terras e territórios, bem como o direito à cidade, à água, educação, cultura e democratização dos meios de comunicação; 8) Os povos querem determinar os destinos dos bens comuns e energéticos, baseados em energias renováveis e descentralizadas, destinadas à população e não às corporações, além de assumir o controle democrático de sua produção.

Para concluir, ambos discursos, agora em trincheiras semânticas opostas, fazem suas respectivas convocatórias de engajamentos a fim de demonstrar algum grau de aderência entre teoria (discurso) e prática (ações propositivas). Desde uma dessas trincheiras, o lugar instituído como hegemônico, mobilizador dos Estados-Nação e Agências Internacionais Multilaterais, sob a égide da ONU, a convocação é bem mais contida, com a palavra de ordem que consta nos Objetivos do Milênio: Todos trabalhando pelo desenvolvimento. Já na trincheira da Cúpula dos Povos, ouve-se o retumbar da convocatória, em forma de manifesto, pela mística dos engajamentos: Venha reinventar o mundo!

3. ALGUMAS SÍNTESES E LIÇÕES DESDE OS ENFRENTAMENTOS RETÓRICOS

E

DAS

DISPUTAS

HERMENÊUTICAS

SOBRE

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Buscou-se apresentar, de início, uma matriz teórica, em diversas vertentes e dimensões (cognitivas, retóricas, políticas, ideológicas, científicas, etc.) sobre diferentes formações discursivas da sustentabilidade, modernidade e dispositivos de conhecimentos em conflito sobre cultura e natureza. Uma das razões dessa apresentação foi a de lançar as bases conceituais para o entendimento crítico de algumas categorias de análise para que ajudassem a lançar luzes sobre os mecanismos da produção de sentidos, latentes e manifestos, no debate que envolve atores e estruturas de poder em torno da questão socioambiental e das disputas de sentido e de orientação para a intervenção social geradas a partir desses diferentes referenciais. Dessa maneira, foram alinhavados alguns temas que pudessem ao mesmo tempo explicitar os fundamentos lógicos e críticos do debate em questão. Notou-se que no

processo de formação discursiva sobre sustentabilidade, os enunciados expressos pelos diferentes atores em confronto – Estados-Nação e Agencias Multilaterais Internacionais versus Movimentos Sociais Nacionais e Transnacionais – não são únicos nem homogêneos, dada a heterogeneidade das origens e cenários semânticos e políticos. Esses diferentes fatores condicionam e definem as múltiplas formas assumidas pelos valores e crenças expressos em textos, palavras de ordem, posicionamentos públicos e intervenções políticas. Dessa maneira, os sistemas retóricos se alimentam de uma pragmática do discurso vinculados a um conjunto de dispositivos sociais e conectados em rede. No entanto, mesmo que os diferentes atores em confronto transitem por diferentes campos discursivos, o que define sua coerência, em última instância, é seu referencial de “fidelidade” a um sistema retórico central, que se diferencia de outro, pelas mesmas razões presentes em ambos , ou seja, uma defesa de certos valores centrais assentados em concepções de natureza, de sociedade, de futuro, de expectativas de vida, de defesa ou ataque ao modelo de desenvolvimento social vigente, do diagnóstico feito pelo sistema científico-tecnológico sobre a crise socioambiental, etc. Por sua vez, duas ocorrências contribuem para que o confronto entre visões e concepções de sustentabilidade se configurem nitidamente como espaços de disputas: um cenário em que se desenrola publicamente esse confronto (no caso, em duas cenas diferentes, a Conferência da ONU e a Cúpula dos Povos no evento da Rio + 20 de julho de 2012) e a figura dos intercessores, intelectuais orgânicos da “causa”, agenciadores dessas diversas concepções e práticas. O presente texto mostra também que as formações discursivas dependem de complexos processos, usos, adaptações, reconversões dos discursos, conforme contextos sociais, políticos, religiosos, morais e que sevem para dissimular, escamotear, torcer ou inverter sentidos na ordem do discurso. Esses dispositivos acrescentam uma maior complexidade para o reconhecimento dos verdadeiros significados contidos em determinadas retóricas. Quando analisadas sob a ótica de racionalidades híbridas, as sociedades constituídas historicamente por contextos e situações coloniais devem ser consideradas de maneira singular, tomando-se certas precauções para evitar interpretações universais e homogêneas, como é o caso de algumas das teorias da globalização. Embora cuidados analíticos devam ser levados em conta para o estudo das sociedades centrais e periféricas (esses termos estão ausentes nas abordagens da globalização), para evitar generalizações

e essencializações para um lado ou para outro desses estudos culturais, são necessárias estratégias diferenciadas tanto para valorizar estudos culturais pós-coloniais e de epistemologias do sul, como para revisar certas concepções de globalização que reproduzem as antigas teorias do etapismo evolutivo. É possível que a busca por explicações menos dicotômicas e universalizantes sobre fenômenos de constituição cultural e política, diferentes daquelas oriundas das epistemologias logocêntricas da modernidade ocidental, possam ser estabelecidas desde a categoria de ‘modernidades múltiplas’. Por mais provisória e relativista, essa categoria permite partir de outros referenciais e fenômenos políticos e culturais emergentes, tais como os de ressignificação da condição de sustentabilidade de sujeitos sociais que reassumiriam assim um novo protagonismo político, após longo período de acumulação de forças simbólicas, ao reassumirem suas identidades, no caso de diversas populações autóctones e tradicionais latino-americanas. Os sistemas cognitivos de origem científica, oriundos das epistemologias logocêntricas, constituem sistemas de pensamento que acabam por confrontar-se com outras matrizes de saberes locais. Desse conflito podem originar-se novas epistemologias híbridas que mereceriam maior atenção, bem como o próprio funcionamento das práticas e da estrutura do sistema científico, incapaz muitas vezes de reconhecer a si mesmo, de como funciona e de como se reproduz. Na segunda seção do capítulo, partiu-se da oposição entre a produção discursiva e as retóricas da sustentabilidade por parte de atores hegemônicos e de atores não integrados, sendo que deste último grupo fazem parte igualmente as categorias sociais subalternas; foram identificadas como subalternas aquelas populações expropriadas ou destituídas de seus territórios e ameaçadas em suas identidades. Para identificar os sistemas discursivos e os usos retóricos sobre sustentabilidade desses atores, partiu-se de dois textos oficiais e tornados públicos: ‘Nosso Futuro Comum’ e ‘Documentos Finais da Cúpula dos Povos na Rio+20 Por Justiça Social e Ambiental’. Após identificar as articulações internas dos textos, a hierarquização e organização temática e os sistemas valorativos de cada um dos domínios discursivos, constatou-se que os usos de sustentabilidade são uma espécie de passe partout para ambas retóricas, o que não significa ausência de antagonismos de posição em que se constataram dissonâncias entre escalas hierarquizadas para cada uma delas, como é o caso da importância dada ao crescimento econômico, por parte da retórica hegemônica, embora

acompanhado de “sustentado e inclusivo”, termos ausentes e criticados pela retórica oposta. Observando-se os pontos da agenda da retórica da contestação, o que sobressai é o questionamento ao modelo dominante de desenvolvimento, onde não se priorizam as dimensões de justiça social e ambiental, a defesa dos bens comuns relegados pela mercantilização, onde os usos extrativos abusivos dos minerais e da produção energética ocorrem em detrimento da reprodução material e cultural das populações locais, descuidando-se e desprotegendo estratégias de produção e de soberania alimentar e ainda de outras formas de alternativas de economia social. Como lição final para avaliar a produção discursiva e os seus usos retóricos, constata-se que o caminho entre uma (produção) e outro (uso) dessas retóricas é longo e tortuoso, dependente de fatores muito mais profundos do que os próprios discursos considerados em si mesmos e que se firmam e se instituem historicamente, tais como os imaginários discursivos que se nutrem de outros fatores latentes, além das formações discursivas propriamente ditas e que foram tentativamente explicitados aqui, ao longo deste capítulo.

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