As sanções e o xadrez russo

June 29, 2017 | Autor: F. Chagas-Bastos | Categoria: International Relations, Russian Foreign Policy, Russia, World Politics
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QUINTA-FEIRA, 07.08.2014

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS* As sanções e o xadrez russo

O

surrealismo bateu à porta das relações internacionais. O governo Putin, pressionado e criticado por ter incitado a crise política na Ucrânia, anunciou sanções comerciais da Rússia contra o Ocidente, levantando barreiras à importação de alimentos de Estados Unidos, Canadá, Austrália e Europa. A resposta russa, que faz parecer que o rabo balança o cachorro, é mais um movimento no xadrez que Putin joga com o mundo, em sua estratégia de promover a “Grande Rússia” e recuperar o moral internacional de seu país depois da implosão da União Soviética. Tem funcionado. Aos olhos ocidentais, a medida pode parecer algo completamente deslocado da realidade ou, como disse o ministro da Agricultura alemão, uma “pressão política inapropriada”. No entanto, as linhas mestras de Putin são coerentes e, até então, dão folgada margem de manobra para a política realista que decidiu para o seu país. Quando evoca sanções comerciais, o presidente russo desvia

a atenção da crise ucraniana e das ações mais ásperas no plano regional imediato, aliviando a pressão internacional sobre seu governo. Do ponto de vista estratégico, as medidas russas são puramente retórica. Uma cortina de fumaça. O perfil da balança comercial do país, de acordo com o Observatório de Complexidade Econômica mantido pelo MIT aponta que em 2012 os dez itens mais importados pela Rússia foram: carros, medicamentos, partes automotivas, computadores, caminhões leves, equipamentos de radiodifusão, veículos pesados para construção, telefones, tratores e aeronaves (helicópteros, aviões). O primeiro item do grupo “alimentos” aparece apenas na 16ª posição (carnes bovinas congeladas). Mais, dos principais vendedores à Rússia, apenas a Alemanha tem proeminência (14% das importações russas), atrás da China, com 15% - os EUA aparecem em 6º lugar, com 4,1%. Apesar do estardalhaço feito por analistas do New York Times e da Forbes, as sanções russas afetarão pouco ambos os mercados. Também é oportunista dizer que avançar de maneira acelerada nas negociações com os países latino-americano sobre os acordos para o fornecimento de alimentos é conjuntural. Tratativas deste tipo, envolvendo normas fitossanitárias, demandam tempo (são detalhistas), e não caberiam num arroubo da chancelaria russa. Em verdade, são parte do movimento de ampliação do espectro de parceiros comerciais do país e, portanto, estruturais.

QUINTA-FEIRA, 07.08.2014

A Rússia reafirma sua imagem de potência no século 21 quando sela com a China acordos energéticos de grande envergadura. Não só: o faz também ao sair em busca de novos fornecedores de alimentos e matérias-primas em outros pontos do mundo - em alguma medida, contrabalança a presença chinesa na América Latina e, possivelmente mais tarde, na África. Mostra ao Ocidente (EUA + Europa) e à China que não está encurralada na Eurásia, pressionada pelo muro de contenção estabelecido pela Aliança do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e pelo gigante oriental. Isto é, levantar barreiras contra o Ocidente só foi possível porque, do ponto de vista da política externa russa, se enxergou que já existiam garantias suficientes de que: i) os setores afetados pelas sanções ao Ocidente não são essenciais e poderiam receber suprimentos de outras fontes; ii) as negociações com os latino-americanos (fruto da cúpula dos BRICS) já estavam avançadas a ponto de suportarem a promoção de mudanças efetivas no fornecimento de alimentos, e iii) era reduzido o risco de se abrir uma nova frente de ação diplomático-militar, provocando um embate com a OTAN. No meio de todo o emaranhado político, é interessante

- quase divertido - notar que os movimentos russos conseguiram dar novo fôlego a uma OTAN já vazia. Criada como escudo militar ocidental, até a crise ucraniana, a aliança não tinha mais utilidade sob a ótica da contenção, sua inspiração original. Anos de pesquisa tentando apreender o novo sentido de sua existência foram “resolvidos” por Putin. O Ocidente acusa Putin de mentir sobre suas intenções e ações. John J. Mearsheimer, professor da Universidade de Chicago, escreveu há poucos anos um livro que tem como principal categoria de análise a mentira dos líderes políticos (Por que os líderes mentem, 2012). Talvez já distante no tempo, algum historiador resolva estudar por que Putin disse a verdade durante sua jornada em direção a uma “Rússia Grande”... Uma resposta poderia ser: para atender aos interesses russos é válido desestabilizar todo o sistema - ainda mais se ele foi criado pelos Estados Unidos sob as ruínas da União Soviética. Tempos interessantes.

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS É PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS (UFGD) E DOUTORANDO EM INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

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