As Sociedades no Comércio Internacional (Problemas Escolhidos de Processo Civil Europeu, Conflitos de Leis e Arbitragem Internacional) [full text]

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AS SOCIEDADES NO COMÉRCIO INTERNACIONAL (PROBLEMAS ESCOLHIDOS DE PROCESSO CIVIL EUROPEU, CONFLITOS DE LEIS E ARBITRAGEM INTERNACIONAL)* RUI DIAS Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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Este texto é um desenvolvimento dos apontamentos elaborados com vista à preparação das aulas leccionadas no Módulo de Direito do Comércio Internacional do Curso de Pós-Gradução em Direito das Empresas organizado pelo IDET (2007/2008). As matérias abordadas constituíram, em grande parte, novidade no programa do Curso. A vastidão de assuntos que nesta área da ciência jurídica se poderiam tratar levou a que optássemos por escolher apenas alguns, em face do tempo disponível, de modo a que servissem de ilustração a alguns dos desafios que hoje se colocam, na teoria e na prática, ao direito internacional privado das sociedades. Em certos passos do ponto 3., retomámos algumas linhas escritas na Parte II da dissertação de mestrado Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas – Uma Análise de Direito Material e Direito de Conflitos, Almedina, Coimbra, 2007, após revisão e adaptação a um contexto com mais preocupações de ordem pedagógica. A par de algumas referências a textos estrangeiros, são indicadas várias obras em língua portuguesa onde podem facilmente encontrar-se dados mais desenvolvidos, úteis a quem pretenda prosseguir o trilho de algumas das pistas de reflexão que fomos deixando. Trata-se, evidentemente, de um trabalho que aqui começamos e não damos por terminado, sendo por isso muito bem-vindos todos os comentários que nos ajudem nessa evolução ([email protected]). Ao Presidente da Direcção do IDET, o Senhor Professor Doutor Coutinho de Abreu, gostaríamos de deixar uma palavra de gratidão por tão honroso convite. Aproveitamos ainda a oportunidade para agradecer ao Senhor Professor Erik Jayme (Heidelberg), pela mão de quem iniciámos a aprendizagem dos rudimentos do direito internacional privado, bem como ao Max-Planck-Institut de Hamburgo, na pessoa de um dos seus Directores, o Senhor Professor Klaus J. Hopt, e de Jan Peter Schmidt e Elke Halsen-Raffel, porquanto foi aí possível a recolha de uma boa parte dos elementos bibliográficos utilizados na elaboração deste texto. Por fim, gostaríamos de agradecer ao Senhor Dr. José Tavares de Sousa os comentários feitos a uma versão preliminar deste texto. *

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SUMÁRIO: 1. Introdução. Indicação de sequência. 2. Competência internacional dos tribunais portugueses em matéria societária à luz do Regulamento Bruxelas I. 2.1. Sua importância. Âmbito de aplicação do Regulamento. 2.2. Regra geral: competência do foro do domicílio do réu. 2.3. Competência exclusiva: art. 22.º, n.º 2 Bruxelas I. 2.3.1. A norma e o seu fundamento. 2.3.2. Âmbito de aplicação. 2.3.3. Noção de “sede” relevante. 2.4. Competências especiais e pactos de jurisdição. 3. Lei aplicável às sociedades. 3.1. Aspectos gerais. 3.1.1. O art. 3.º do Código das Sociedades Comerciais. 3.1.2. Âmbito de aplicação da lei pessoal. Limites à sua aplicação. 3.1.3. Transferência internacional de sede social; fusão internacional de sociedades. 3.1.4. Liberdade de estabelecimento das sociedades intra-comunitárias: consequências para a determinação do estatuto pessoal. 3.1.4.1. Os artigos 43.º e 48.º TCE, o acórdão Daily Mail e a trilogia Centros-Überseering-Inspire Art. 3.1.4.2. De Daily Mail a Cartesio: mudança de paradigma? 3.1.5. Actuação de sociedades estrangeiras em Portugal: o art. 4.º do CSC. 3.1.6. Perspectivas de futuro: a proposta alemã de reforma do direito internacional privado das sociedades. 3.2. As relações intersocietárias no comércio internacional (alguns problemas). 3.2.1. Autolimitação espacial do regime das sociedades coligadas: o art. 481.º, n.º 2, do CSC. 3.2.1.1. A nova alínea d: aplicação do regime dos grupos às sociedades-mãe estrangeiras? 3.2.2. Sentido e alcance do art. 481.º, n.º 2, do CSC: a autolimitação espacial e as normas sobre sociedades coligadas fora do Título VI do CSC. 3.2.2.1. Em especial: o art. 413.º, n.º 2, a), do CSC. 3.2.2.2. Em especial: o art. 414.º-A, n.º 1, c), do CSC. 4. Arbitragem internacional em matéria societária. 4.1. Generalidades. 4.2. Arbitrabilidade de litígios societários. 4.2.1. Aplicação da lex fori. 4.2.2. Critério da arbitrabilidade; ausência de resposta unívoca. 4.2.3. Em especial: as acções de impugnação de deliberações sociais. 4.2.4. Em especial: as acções de responsabilidade.

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ABSTRACT: This article tackles some questions of International Company Law under the Portuguese legal system, especially concerning European procedural law, conflict of laws and international commercial arbitration. In what concerns European procedural law, attention is paid to the jurisdiction rules laid down in the Brussels I Regulation, regarding its scope of application, the fundamental general rule and the exclusive jurisdiction rule applicable to companies (art. 22, nr. 2 of the Regulation). As far as the conflict-of-law rules are concerned, attention is given to the determination of the law governing the company (lex societatis) under Portuguese law – which traditionally follows a mitigated form of the real seat theory –, within the context of the current developments related to the right of establishment under EU law (from Daily Mail to Cartesio, passing by Centros, Überseering and Inspire Art case-law of the ECJ) and the proposals for the approval of Community-wide unified conflict-of-law rules regarding the company’s personal status. Still, with respect to conflict-of-law problems, some specific questions are analysed, namely in what measure did the recent 2006 Portuguese Company Law Reform affect the private international law regime of groups of companies in Portuguese Company Law, for it is dubious (and herein denied) whether such substantive rules now apply to foreign (non-European) parent companies of Portuguese subsidiaries. Moreover, some interesting questions arise in the field of the applicability, by means of the conflict-of-law instrument of substitution, of several company law substantive rules to legal realities shaped by foreign law, such as, for instance, the needs (herein also denied) for an intensified supervisory legal regime for Portuguese subsidiaries of foreign parent companies, whenever such parent companies already meet equivalent requirements. Finally, attention is given to the assessment of the arbitrability of company law disputes, under the pertinent Portuguese statutory rules on international commercial arbitration, with a special look at the possibility of settlement by arbitrators of disputes in which the validity of general meeting resolutions is challenged or the liability of directors is claimed.

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São essas as palavras. Mas o que são as palavras? São uma espécie de lei, mas não se sabe, na verdade, ao que ela se aplica, essa lei. AGUSTINA BESSA-LUÍS, Fanny Owen

1. Introdução. Indicação de sequência As sociedades posicionam-se cada vez mais em diversos espaços económicos, o que naturalmente tem reflexos ao nível jurídico. A sua actuação em diferentes lugares, a que correspondam diversos ordenamentos jurídicos, levanta o problema típico de direito internacional privado: o da determinação do regime jurídico a que estão sujeitos os factos jurídicos que dizem respeito a essas entidades, em face da pluralidade de leis com que entram em contacto. Na verdade, as questões que mais frequentemente se colocam são resultado das relações contratuais estabelecidas entre uma sociedade e as suas contrapartes, quando cada uma delas se localiza num espaço diferente, assim surgindo problemas de conflitos de jurisdições e de conflitos de leis. P. ex., se a sociedade comercial A, constituída de acordo com o direito português e sedeada em Coimbra, celebra um contrato de fornecimento de determinados bens a uma sociedade B, sedeada em Moçambique, poderá ser questionado: por um lado, se um tribunal português, demandado por uma das partes em consequência do alegado incumprimento contratual da sua contraparte, é internacionalmente competente para dirimir o litígio; por outro lado, tendo esse tribunal competência internacional para julgar a causa, qual é a lei que ele aplicará ao decidir. O problema, conforme descrito, é um problema de direito internacional privado1 das _______________________________________

No sentido de que neste ramo da ciência jurídica se incluem as regras e princípios que solucionam os conflitos de jurisdições (ao nível da competência internacional dos tribunais e do reconhecimento de actos públicos 1

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obrigações contratuais, para o qual encontramos resposta, na grande maioria dos casos, no Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (designado “Bruxelas I”), por um lado; e na Convenção de Roma, de 19 de Junho de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (ou no Regulamento comunitário chamado “Roma I”2, que será aplicável aos contratos celebrados após 17 de Dezembro de 2009), por outro. Contudo, o objecto deste estudo não é esse: vamos antes abordar os problemas que surgem da natureza internacional de uma sociedade in re ipsa – na expressão de FERRER CORREIA3. Pense-se, por exemplo, na circunstância de um conjunto de sócios, provenientes de diversos países, decidir constituir e fixar a sede da sociedade em que pretendem investir num determinado Estado, em virtude da flexibilidade das suas leis societárias; ou, mais comummente, de uma sociedade constituída e sedeada num país estrangeiro constituir em Portugal uma sua filial ou “subsidiária” integral; ou ainda, na circunstância de as acções da sociedade em causa estarem admitidas à negociação num mercado regulamentado sujeito a uma lei estrangeira. Em todos estes casos, como em muitos outros, existem elementos essenciais da sociedade, enquanto contrato ou (sobretudo) enquanto organização, que a ligam a mais do que uma ordem jurídica, podendo pois _______________________________________

estrangeiros) e os conflitos de leis, ANTÓNIO DE ARRUDA FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, Coimbra, 2002 (reimpr.), pp. 69-70. 2 Trata-se do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008. 3 FERRER CORREIA, Lições..., cit., p. 423. Cfr. tb. RUI MANUEL MOURA RAMOS, O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e a Teoria Geral do Direito Internacional Privado. Desenvolvimentos Recentes, in “Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional – II”, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 69, n. 75.

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emergir a questão de saber a que lei a sociedade (ou um particular aspecto do seu regime jurídico) se encontra subordinada. No passado, o assunto não merecia uma especial atenção. Porém, é com cada vez maior frequência que na prática jurídica se colocam questões relacionadas com a constituição de sociedades no estrangeiro por sociedades portuguesas e vice versa, a aquisição e alienação das suas participações sociais, o exercício do correspondente direito de voto, a transferência internacional de sede, a fusão internacional de sociedades, etc. E o tema merece agora uma acrescida atenção ao verificarmos como, no espaço europeu, a coexistência da liberdade de estabelecimento, de que beneficiam também as “sociedades” em sentido amplo (nos termos dos artigos 43.º e 48.º do Tratado de Roma), com a ausência de harmonização do direito das sociedades em diversos e importantes aspectos, geram dúvidas quanto à conformidade de certas medidas tomadas por sociedades que se encontram em contacto com mais do que um ordenamento jurídico nacional, ao nível da escolha do local onde inicialmente se estabelecem ou de uma sua ulterior reestruturação, o que potencia uma concorrência entre legislações a que uns são mais favoráveis que outros4. Não sendo possível, como é evidente, fazer neste contexto um estudo geral do direito internacional privado das sociedades português, vamos aproveitar o ensejo para abordar alguns problemas escolhidos. No plano dos conflitos de jurisdições, veremos de que modo se determina a competência internacional dos tribunais portugueses em certas matérias societárias (2.). No que diz respeito aos conflitos de leis, abordaremos o problema geral da determinação da lei aplicável à sociedade – ou, por outras palavras, do seu estatuto pessoal – (3.1.), com vista a de seguida _______________________________________

V. por todos KLAUS J. HOPT, Comparative Company Law, in Mathias Reimann, Reinhard Zimmermann, “The Oxford Handbook of Comparative Law”, Oxford University Press, Oxford, New York, 2006, p. 1189. 4

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partirmos para a análise conflitual de algumas questões societárias em especial (3.2.). Por último, debruçar-nos-emos brevemente sobre a possibilidade de resolução de determinados litígios societários por via da arbitragem voluntária, assunto de crescente relevância prática e com contornos dogmáticos de grande interesse (4.). 2. Competência internacional dos tribunais portugueses em matéria societária à luz do Regulamento Bruxelas I 2.1. Sua importância. Âmbito de aplicação do Regulamento Surgido um conflito, ao nível das relações jurídicas que se geram em torno da sociedade, o primeiro problema que se coloca é o de saber qual é o tribunal a que um interessado (p. ex. a própria sociedade, um sócio, um administrador enquanto tal mas em seu nome próprio) pode recorrer. Se em relações puramente internas há que determinar qual o tribunal competente em razão da matéria e do território, já nas relações que contêm elementos de estraneidade em face do nosso ordenamento jurídico haverá que aferir, antes de recorrer com êxito a um tribunal português para a obtenção de uma decisão, se pertence a este (ou melhor, ao conjunto dos tribunais portugueses), ou antes p. ex. aos tribunais espanhóis, franceses ou suíços, a competência internacional para a resolução do litígio. Este passo reveste-se de grande importância, desde logo, por três razões: a competência internacional dos tribunais portugueses (i) determina a aplicação da lei processual portuguesa, porquanto os tribunais conduzem o rito processual segundo o seu próprio direito nacional5; (ii) inviabiliza a eventual aplicação _______________________________________ 5 JOÃO BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1995 (reimpr.), p. 17.

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do regime da excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal por violação de regras de competência internacional6 [arts. 494.º, a), 101.º e 102.º, n.º 1, do CPC]; e (iii) desencadeia a aplicação das regras de conflitos portuguesas ao nível da determinação da lei aplicável à relação material controver-tida, dado que os tribunais aplicam as regras do seu próprio direito internacional privado para esse efeito. Pois bem, para este problema de competência internacional encontramos resposta em diversas fontes: destacam-se aqui as regras internas constantes do Código de Processo Civil (CPC) – sobretudo os arts. 65.º, 65.º-A e 99.º do CPC –; as regras que advêm da vinculação do Estado português às Convenções de Bruxelas de 1968 e de Lugano de 1988 relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial; e as regras contidas no Regulamento Bruxelas I7. Atento o amplo âmbito de aplicação deste último instrumento, é nele que vamos focar a nossa atenção. Recorde-se que ele é aplicável, no que diz respeito às suas regras de competência internacional: – em matéria civil e comercial, posto que não excluída por nenhuma das alíneas do n.º 2 do seu art. 1.º, numa formulação que, interpretada autonomamente em face das _______________________________________

“Salvo quando haja mera violação dum pacto privativo de jurisdição” (art. 101.º), que configura um caso de incompetência relativa: cfr. art. 108.º, ambos do CPC. 7 Sobre a nova Convenção de Lugano, assinada nessa cidade em 30.10.2007, v. JOUE L 339, de 21.12.2007 (quanto à competência exclusiva da Comunidade Europeia para a sua celebração, cfr. tb. o Parecer 1/03 do Tribunal de Justiça, de 7 de Fevereiro de 2006). Acerca da posição da Dinamarca em face de Bruxelas I, cfr. o seu art. 1.º, n.º 3 com o ulterior Acordo deste Reino com a Comunidade Europeia, publicado em JOUE L 299, de 16.11.2005, pp. 62 ss., no seguimento do qual o Regulamento entrou em vigor em relação a esse Estado a partir de 1 de Julho de 2007. 6

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ordens jurídicas nacionais, é tida como abrangendo a generalidade dos direitos patrimoniais8; – quando o domicílio do réu se situa no território de um Estado-membro – estando os estrangeiros aí domiciliados equiparados aos respectivos nacionais (arts. 2.º, 3.º e 4.º), a não ser quanto às regras sobre competências exclusivas (art. 22.º) e pactos de jurisdição (art. 23.º), que podem vir a ser aplicadas mesmo quando o réu não esteja aí domiciliado (v. art. 4.º, n.º 1)9; – a acções intentadas a partir de 1 de Março de 2002 (arts. 66.º, n.º 1, e 76.º Bruxelas I). 2.2. Regra geral: competência do foro do domicílio do réu Verificado que nos encontramos dentro do âmbito de aplicação das regras de competência internacional de Bruxelas I, é de atentar inicialmente na sua regra fundamental: a pessoa domiciliada no território de um Estado Membro deve ser demandada, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado (art. 2.º, n.º 1). Mas, no caso de ser a sociedade a parte demandada, qual é, neste contexto, o seu domicílio? Responde o art. 60.º, n.º 1: “Para efeitos da aplicação do presente regulamento, uma sociedade ou outra pessoa colectiva ou associação de pessoas singulares e colectivas tem domicílio no lugar em que tiver: a) A sua sede social; _______________________________________

DÁRIO MOURA VICENTE, Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) n.º 44/2001, in “Direito Internacional Privado – Ensaios – Vol. I”, Almedina, Coimbra, 2002, p. 301. 9 Art. 4.º, n.º 1, Bruxelas I: “Se o requerido não tiver domicílio no território de um Estado-Membro, a competência será regulada em cada Estado-Membro pela lei desse Estado-Membro, sem prejuízo da aplicação do disposto nos artigos 22.º e 23.º”. 8

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b) A sua administração central; ou c) O seu estabelecimento principal”10.

Por sede social, na al. a) da disposição transcrita, deve entender-se a sede estatutária, isto é, o lugar como tal indicado nos estatutos da sociedade11, usualmente numa das suas primeiras cláusulas. Isto porque a sede real ou efectiva, enquanto lugar onde os órgãos de alta direcção tomam e exteriorizam as suas decisões, coincidirá tendencialmente com a noção de administração central, contemplada na al. b). Já o estabelecimento principal da al. c) deve ser entendido como o lugar a partir do qual a sociedade estabelece os seus contactos negociais com o exterior, o que pode corresponder ao lugar da produção ou da prestação dos serviços que constituem o objecto social12. Repare-se como a possível não coincidência destes três factores de conexão, que se apresentam como alternativos, faz com que a regra aparentemente una do art. 2.º, n.º 1, possa atribuir competência internacional concorrente, no limite, a tribunais de três Estados diferentes13. _______________________________________ 10 No n.º 2, tendo em conta a realidade do Reino Unido e da Irlanda, em que a noção de sede social não tem a mesma implantação que noutros países, a mesma é substituída por “‘registered office’ ou, se este não existir, ‘place of incorporation’ (lugar de constituição) ou, se este não existir, o lugar sob cuja lei ocorreu a ‘formation’ (formação)”. 11 V. p. ex. MOURA VICENTE, Liberdade de estabelecimento, lei pessoal e reconhecimento das sociedades comerciais, in “Direito Internacional Privado – Ensaios – II”, Almedina, Coimbra, 2005, p. 95. 12 STEFAN L EIBLE , Internationale Zuständigkeit bei Klagen gegen ausländische Gesellschaften mit deutschem Verwaltungssitz, in Heribert Hirte, Thomas Bücker (Hrsg.), “Grenzüberschreitende Gesellschaften – Ein Praxishandbuch”, Carl Heymanns Verlag, Köln, Berlin, München, 2006, p. 412. 13 Um eventual problema de litispendência internacional deverá ser resolvido nos termos dos arts. 27.º a 30.º do Regulamento Bruxelas I.

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2.3. Competência exclusiva: art. 22.º, n.º 2 Bruxelas I 2.3.1. A norma e o seu fundamento Cumpre agora dar uma especial atenção à regra de competência exclusiva que diz respeito às sociedades, prevista no art. 22.º, n.º 2, do Regulamento Bruxelas I14: Têm competência exclusiva, qualquer que seja o domicílio: (…) 2. Em matéria de validade, de nulidade ou de dissolução das sociedades ou outras pessoas colectivas que tenham a sua sede no território de um Estado-Membro, ou de validade ou nulidade das decisões dos seus órgãos, os tribunais desse Estado-Membro. Para determinar essa sede, o tribunal aplicará as regras do seu direito internacional privado. (…)

Desde já importa sublinhar que, para a aplicação do art. 22.º, n.º 2, a um litígio internacional, não é imperativa a existência de domicílio do réu no território de um Estado-membro, ao contrário do que vimos a propósito da aplicação do art. 2.º, n.º 1: decisivo é o critério de conexão inscrito na norma, qualquer que seja o domicílio das partes (cfr. o proémio do art. 22.º, bem como o art. 4.º, n.º 1, parte final). São identificadas várias razões na base da criação de uma competência exclusiva nesta matéria. Com efeito, a exclusividade proporciona uma concentração da competência (Zuständigkeitskonzentration) no Estado da sede, o que favorece vários fins: – reforça-se a certeza jurídica, pois reduz-se o risco de decisões judiciais contraditórias; _______________________________________

No direito autónomo português, que não vamos aqui analisar, cfr. o art. 65.º-A, c), do CPC. 14

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– tutelam-se interesses do comércio jurídico, porquanto podem estar em causa, não apenas os interesses das partes no processo, mas também os de terceiros que se relacionam com a sociedade; – garante-se o cumprimento das formalidades de registo e publicidade a que estão sujeitas as sociedades no Estado da sua sede, bem como de regras imperativas dessa lei; – favorece-se na prática, na maioria dos casos, a regra geral de competência do domicílio do réu (actor sequitur forum rei); e – potencia-se o paralelismo ou coincidência entre o tribunal competente e a lei aplicável, pois sendo frequentemente reconhecida como competente nestas matérias a lei da sede da sociedade, serão deste modo também os tribunais desse Estado os competentes, que poderão assim aplicar a respectiva lei interna15. Surgem-nos dois problemas fundamentais relacionados com a interpretação desta norma: um é o da delimitação do seu âmbito de aplicação (quais as matérias abrangidas pela competência exclusiva?); outro é o da noção de sede relevante, nos termos previstos na última frase do preceito.

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V. o Relatório JENARD sobre a Convenção de Bruxelas, publicado no JO C 59, de 05.03.1979, p. 35; LUÍS DE LIMA PINHEIRO, in Ulrich Magnus, Peter Mankowski (eds.), Brussels I Regulation, Sellier, München, 2007, pp. 356-357; PETER MANKOWSKI, in Thomas Rauscher (Hrsg.), Europäisches Zivilprozeßrecht – Kommentar, 2. Aufl., , cit., p. 366; LEIBLE, Internationale Zuständigkeit..., cit., p. 414; e ainda MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA e DÁRIO MOURA VICENTE, Comentário à Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial e textos complementares, Lex, Lisboa, 1994, p. 116. 15

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2.3.2. Âmbito de aplicação Quanto ao seu âmbito de aplicação, recordemos os termos do art. 22.º, n.º 2: “matéria de validade, de nulidade ou de dissolução das sociedades ou outras pessoas colectivas”; “validade ou nulidade das decisões dos seus órgãos”. Embora se costume privilegiar uma interpretação autónoma, em face das legislações nacionais dos Estados-membros, dos conceitos que fazem parte de semelhantes instrumentos de harmonização ou de unificação jurídica ao nível comunitário, a verdade é que só após confronto com as actiones formuladas nas leis processuais nacionais se poderá surpreender o seu real âmbito. Assim, no que toca às sociedades reguladas pelo direito português, dir-se-á que estão em causa as acções de declaração de nulidade e de anulação do contrato de sociedade (cfr. os arts. 36.º-52.º do CSC), mas já não um processo de insolvência, que enquanto tal está sujeito às regras de competência internacional do Regulamento (CE) n.º 1346/200016. O art. 22.º, n.º 2, refere-se também à “dissolução” das sociedades. Este conceito há-de ser interpretado de modo amplo, incluindo também a liquidação17. Está portanto sob esta competência exclusiva a acção de impugnação judicial de decisões do conservador do registo comercial em sede de procedimento administrativo de dissolução (cfr. arts. 2.º, n.º 1 e 12.º do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e _______________________________________

Relativo aos processos de insolvência, por último alterado pelo Regulamento (CE) n.º 603/2005. Para uma referência aos winding up proceedings do direito inglês, que poderão, consoante as suas características, estar ou não incluídos, veja-se com detalhe MICHAEL S CHILLIG , Die ausschließliche internationale Zuständigkeit für gesellschaftsrechtliche Streitigkeiten, in IPRax, 2005, pp. 213-215. 17 LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado — Volume III – Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Almedina, Coimbra, 2002, p. 126. 16

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de Liquidação de Entidades Comerciais, aprovado na reforma de 200618) ou de liquidação (cfr. art. 25.º, n.º 2, do mesmo diploma). Igualmente, as acções de declaração de nulidade e de anulação de deliberações dos sócios (cfr. esp. os arts. 57.º ss. do CSC) estão abrangidas por esta competência exclusiva. Mas também o estão as acções que sejam intentadas com vista à impugnação de outras deliberações de órgãos sociais, como é o caso do conselho de administração, pressupondo que se admita a sua impugnação judicial directa19. Essa interpretação da norma tem pleno apoio na letra da lei (“decisões dos seus órgãos”, sem qualquer indício de limitação à assembleia geral) e justifica-se pela conveniência em conferir, dentro do possível, uma certa unidade ao foro eleito pelo n.º 2 do art. 22.º para as acções em que seja atacada a validade de deliberações sociais num sentido amplo. E dizemos “dentro do possível” porque na verdade não se fixou aqui uma competência una para todos os aspectos associativos ou institucionais da vida societária. Bem pelo contrário, o carácter parcelar do n.º 2 do art. 22.º torna-se evidente quando nos lembramos, em particular, das acções de responsabilidade civil societária intentadas contra membros dos órgãos de administração ou de fiscalização da sociedade, ou também em matéria de exclusão judicial de sócio, de nomeação ou destituição de membros dos órgãos sociais, de inquérito judicial, etc.20 _______________________________________

V. art. 1.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março. Assim, e com as pertinentes referências num e noutro sentido, JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Governação das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 133-140. 20 De lege lata, poderá ser duvidoso se cabe ainda no art. 22.º, n.º 2, a acção tendente à convocação judicial de assembleia geral, tal como prevista no art. 375.º, n.º 6, do CSC. Cfr. MANKOWSKI, in Europäisches Zivilprozeßrecht.., cit., p. 369; LEIBLE, Internationale Zuständigkeit..., cit., p. 416. Com uma visão mais ampla desta competência exclusiva, distanciando-se da opinião dominante de que fizemos eco em texto, cfr. MASSIMO V. BENEDETTELLI, 18

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Além do mais, não significa esta competência exclusiva, de modo algum, que os tribunais de outros Estados não sejam em nenhum caso chamados a pronunciar-se sobre as matérias societárias elencadas no art. 22.º, n.º 2. É que apenas as acções que sobre elas versem a título principal estão abrangidas. Esta orientação colhe apoio no art. 25.º do Regulamento21. Assim, por exemplo, num processo em que um administrador de uma sociedade com “sede”, nos termos do art. 22.º, n.º 2, em Portugal, mas ele próprio domiciliado nos Países Baixos, seja demandado naquele país por responsabilidade civil societária perante esta sociedade, o tribunal neerlandês deverá declarar-se internacionalmente competente ao abrigo da competência geral do foro do domicílio do réu (art. 2.º, n.º 1), pois não se trata de matéria sujeita à competência exclusiva do art. 22.º, n.º 2; mas isso não impedirá que, sendo a lex societatis a portuguesa22, e relevando porventura a questão da validade, anulabilidade ou nulidade de uma deliberação ao abrigo da qual ele tenha actuado (cfr. art. 72.º, n.º 5, do CSC23), aquele tribunal estrangeiro se pronuncie sobre tal problema à luz da lei pessoal portuguesa. _______________________________________

Criteri di Giurisdizione in Materia Societaria e Diritto Comunitario, in RDIPP, 2002, pp. 915-921. Cfr. a menção do problema por MARIA ÂNGELA COELHO BENTO SOARES, O acórdão Inspire Art Ltd.: novo incentivo à mobilidade das sociedades na União Europeia, in “Temas de Integração”, n.º 17, 2004, p. 146, n. 53. 21 Onde se prevê: “O juiz de um Estado-membro, perante o qual tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado-Membro por força do artigo 22.º, declarar-se-á oficiosamente incompetente” (sublinhámos). V. ainda Relatório JENARD, cit., p. 34; BENEDETTELLI, Conflicts of Jurisdiction and Conflicts of Law in Company Law Matters Within the EU ‘Market for Corporate Models’: Brussels I and Rome I after Centros, in EBLR, 2005, p. 78. 22 Sobre o âmbito da lex societatis, pode ver-se RUI DIAS, Responsabilidade por Exercício de Influência..., cit., pp. 167 ss. 23 Que prescreve: “A responsabilidade dos gerentes ou administradores para com a sociedade não tem lugar quando o acto ou omissão assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável”.

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2.3.3. Noção de “sede” relevante Outro problema é o de interpretar a parte final do art. 22.º, n.º 2, onde, depois de se reconhecer a competência internacional do tribunal do Estado da sede, nos é dito: “Para determinar essa sede, o tribunal aplicará as regras do seu direito internacional privado”. É deste modo que o legislador comunitário, apartando-se do critério do “domicílio” do ente colectivo que definiu no art. 60.º, faz uma referência às regras de conflitos de cada Estado, para efeitos de determinação do conceito de “sede”. Pode ocorrer que, simultaneamente, tribunais de dois Estados se considerem dotados de competência exclusiva para a resolução do mesmo litígio: basta recordar que as noções de “sede” não são necessariamente coincidentes nos diversos Estados-membros (p. ex., vale em diversos países europeus a sede real, ao passo que Portugal conjuga esse critério com o da sede estatutária – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CSC). Para resolver esses casos está talhado o art. 29.º Bruxelas I: terá prioridade o tribunal “a que a acção tenha sido submetida em primeiro lugar”. Que dizer, porém, daqueles Estados que, em vez da teoria da sede, em qualquer das suas variantes mais ou menos puras, adoptam a teoria da constituição (ou da incorporação, no anglicismo que vem de incorporation) para efeitos de determinação do estatuto pessoal das sociedades – isto é, que consideram competente a lei cujas formalidades de constituição foram respeitadas, não considerando relevante para o efeito o conceito de sede? Fará sentido que valha uma regra de forum legis, segundo a qual a determinação do direito aplicável – no caso, a referida lei da constituição – coenvolveria a competência dos tribunais locais do Estado segundo cuja lei a sociedade está organizada24, _______________________________________

BENEDETTELLI, em Criteri di Giurisdizione..., cit., pp. 910 ss., e tb. Diritto Internationale Privato delle Società e Ordinamento Comunitario, in Paolo Picone (a cura di), “Diritto Internazionale Privato e Diritto Comunitario”, Cedam, Padova, 2004, pp. 242 ss., embora aparentemente não defenda um 24

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havendo pois que interpretar o art. 22.º, n.º 2, Bruxelas I, como referindo-se ao Estado da incorporação sempre que as suas regras de conflitos reconheçam o respectivo direito material como lex societatis? A questão foi sendo colocada sobretudo no seguimento do ac. Centros do Tribunal de Justiça, que firmou o solo sobre que se ancorou a possibilidade, à luz da liberdade de estabelecimento de direito comunitário, de uma sociedade ser constituída de acordo com a lei de um Estado, escolhida em virtude do menor rigor dos seus preceitos societários (p. ex. Inglaterra), mas exercer toda a sua actividade e ser administrada a partir de um outro Estado (p. ex. Portugal). Vem colhendo apoio a ideia de uma resposta afirmativa à questão colocada25, em face do relevo que a jurisprudência do TJCE atribui, na realidade, à lei da constituição; o que, a aceitar-se, significaria no exemplo que a acção de impugnação de deliberação social houvesse que ser necessariamente intentada em Inglaterra, e recusada pelos tribunais portugueses. Cremos porém que, no _______________________________________

puro forum legis mas sim a competência internacional dos tribunais do Estado da incorporação da sociedade (pp. 243 e 912, respectivamente), ilustra com caso semelhante ao do ac. Centros (v. infra) e justifica com a conveniência em não reconhecer competência a Estado diferente do da lex societatis, pelo que aquela qualificação da sua doutrina parece apropriada (assim MANKOWSKI, in Europäiches Zivilprozeßrecht..., cit., p. 367, n. 215). V. igualmente LIMA PINHEIRO, in Brussels I Regulation, cit., p. 356. Em sentido próximo daquele Autor, MIGUEL VIRGÓS SORIANO e FRANCISCO J. GARCIMARTÍN ALFÉREZ, Derecho procesal civil internacional. Litigación internacional, 2.ª ed., Thomson Civitas, Madrid, 2007, pp. 267, defendem que a liberdade de estabelecimento comunitária, ao obrigar o Estado-membro da sede real a reconhecer a sociedade constituída segundo a lei de um outro Estado-membro, onde tenha também a sua sede estatutária, impede os tribunais daquele primeiro Estado-membro de invocarem o art. 22.º Bruxelas I para impor a sua competência internacional exclusiva. Considerando a primeira opinião citada de “legitimidade duvidosa”, MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, O Acórdão Inspire Art..., cit., p. 146. 25 V. por todos LEIBLE, Internationale Zuständigkeit..., cit., p. 415, com referências na n. 29.

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actual estádio do direito internacional privado (comunitário) das sociedades, que vem evoluindo à sombra da jurisprudência comunitária mas sem que um câmbio obrigatório para a teoria da constituição seja de todo em todo imposto, há-de aceitar-se que assista ao autor a possibilidade de escolha entre estes dois foros – o da sede real e o da constituição: por analogia com a hipótese em que os tribunais de dois Estados se considerem simultaneamente dotados de competência exclusiva porque adoptam noções de sede divergentes, também aqui se deve aceitar a competência do tribunal a que a acção tenha sido submetida em primeiro lugar (art. 29.º Bruxelas I)26. 2.4. Competências especiais e pactos de jurisdição Por fim, convém não esquecer que, sempre que a matéria em causa não se inclua na competência exclusiva que acima se procurou delimitar, haverá que atentar nos restantes preceitos do Regulamento Bruxelas I. Entre estes contam-se, não apenas a regra fundamental da competência do foro do domicílio do réu, acima referida, mas também as competências especiais previstas nos art. 5.º ss., que àquela se juntam. E é de notar, na perspectiva da sociedade enquanto parte demandada, que será também internacionalmente competente o tribunal de um Estado que não é o do seu “domicílio”, nos termos descritos, mas onde exista “sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento” da sociedade: cfr. os arts. 5.º, n.º 5; 9.º, n.º 2; 15.º, n.º 2; e 18.º, n.º 2. Aos preceitos identificados junta-se ainda a possibilidade de serem celebrados pactos de jurisdição, sempre que não se trate de matéria de competência exclusiva e nos demais termos previstos no art. 23.º. _______________________________________

Se bem compreendemos o pensamento do Autor, estamos assim a acompanhar JAN KROPHOLLER, Europäisches Zivilprozeßrecht – Kommentar zu EuGVO, Lugano-Übereinkommen und Europaischem Vollstreckungstitel, 8. Aufl.,Verlag Recht und Wirtschaft, Frankfurt am Main, 2005, p. 267. 26

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3. Lei aplicável às sociedades 3.1. Aspectos gerais 3.1.1. O art. 3.º do Código das Sociedades Comerciais É necessário que as sociedades, dotadas de uma organização de maior ou menor complexidade e centros em torno dos quais se desenvolvem relações jurídicas de diversa índole, possam encontrar uma dada lei que regule os seus aspectos fundamentais, desde o seu surgimento até à sua extinção. Desenvolveu-se a partir desta ideia o conceito de estatuto pessoal, denominação congregadora das diversas “matérias jurídico-societárias” que hão-de assim cair sob a alçada da lei pessoal da sociedade. Às sociedades é também reconhecida uma nacionalidade, à semelhança das pessoas singulares (ainda que num sentido metafórico ou translato, como dizia FERRER CORREIA), mas esta é algo de diferente da lei pessoal e irrelevante para o que aqui tratamos27. A sua atribuição gera efeitos próprios, ao nível do direito dos estrangeiros, da aplicabilidade de tratados internacionais e de protecção diplomática28. Também ao nível do reconhecimento de sentenças estrangeiras, no regime do nosso CPC, pode relevar a nacionalidade de uma sociedade: “Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação [do pedido de revisão e confirmação da sentença estrangeira] pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, _______________________________________

V. por todos FERRER CORREIA, Lições..., cit., pp. 81 ss. Cfr. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Algumas reflexões sobre a nacionalidade das sociedades em direito internacional privado e em direito internacional público, in “Estudos em Homenagem ao Prof. António de Arruda Ferrer Correia”, BFD, 1985 (n.º especial), p. 374. 27

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quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa” – é o teor do art. 1100.º, n.º 2, do CPC. Parece-nos, contudo, que tal preceito será em certos casos incompatível com o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade (art. 12.º TCE), na hipótese de o requerente, contraparte do nacional português, ser nacional de um outro Estado-membro da Comunidade Europeia29. BAPTISTA MACHADO sintetizava, nas suas Lições, os diversos interesses em presença, que haveriam de ser acautelados na determinação de uma lei pessoal: o interesse na unidade e estabilidade do estatuto pessoal da pessoa colectiva; o interesse da própria pessoa colectiva; e o interesse do comércio jurídico (segurança do tráfico, protecção de terceiros)30. Historicamente, pode encontrar-se registo da defesa de diversos critérios: nacionalidade, controlo ou domínio, centro de exploração, etc. Mas o debate anda hoje essencialmente em torno de dois: o da sede real ou efectiva, por um lado, e o da constituição ou incorporação, a que se podem somar ainda certas variantes, como a sede estatutária ou o registo. Por um lado, pesaria em favor da sede real a efectividade que a sua ligação a uma ordem jurídica representa, com suficiente estabilidade e cognoscibilidade, e em respeito pela autonomia da própria pessoa colectiva, que pode a todo o tempo determinar uma mudança. Não obstante, é gerador de incerteza jurídica, sempre que a algum interessado não seja possível aceder à informação sobre o lugar onde as actividades sociais são conduzidas31. De outro _______________________________________

Supõe-se, naturalmente, para que a hipótese visada possa colocar-se, a inaplicabilidade das regras do Regulamento Bruxelas I sobre o reconhecimento de sentenças (arts. 32.º ss.). 30 BAPTISTA MACHADO, Lições..., cit., p. 344. V. tb. MANUEL AUGUSTO G. FERNANDES COSTA, Da nacionalidade das sociedades comerciais, in BFD, 1984, vol. XXVII, Suplemento, pp. 120-125. 31 O problema agudiza-se no âmbito dos grupos de sociedades, propondo LIMA PINHEIRO que nesse quadro se tome por sede o lugar onde as decisões 29

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lado, em favor da constituição estaria a plena garantia da estabilidade do vínculo jurídico estabelecido com um Estado, e assim da regulamentação das matérias que mais directamente relevam para a sociedade, dando assim relevo à autonomia privada no momento da constituição. Subsiste aí, contudo, a crítica da possibilidade, que o critério (sem correcções) admite, da falta de efectividade ou conexão relevante com o ordenamento jurídico que a rege32. Pois bem, é no art. 3.º, n.º 1, do CSC que encontramos o preceito fundamental para a determinação da lei pessoal da sociedade: “As sociedades comerciais têm como lei pessoal a lei do Estado onde se encontre situada a sede principal e efectiva da sua administração. A sociedade que tenha em Portugal a sede estatutária não pode, contudo, opor a terceiros a sua sujeição a lei diferente da lei portuguesa”. Vemos assim que é inicialmente consagrado o critério da sede real, reafirmando-se a regra do art. 33.º, n.º 1, do Código Civil, válida para as pessoas colectivas em geral33. Acrescenta, porém, uma segunda frase _______________________________________

fundamentais da direcção são convertidas em actos de administração corrente: Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., p. 82 – noção próxima da que nos fornece a jurisprudência alemã: cfr. WULF-HENNING ROTH, From Centros to Ueberseering: Free Movement of Companies, Private International Law, and Community Law, in ICLQ, 2003, 52.º, Part 1, p. 181; MOURA VICENTE, Liberdade de estabelecimento..., cit., p. 97. 32 V. BAPTISTA MACHADO, Lições..., cit., pp. 344-346; FERRER CORREIA, Lições..., cit., pp. 85-86; LIMA PINHEIRO, O direito aplicável às sociedades – contributo para o direito internacional privado das sociedades, in ROA, 1998, II, pp. 673 ss.; Direito Internacional Privado — Volume II – Direito de Conflitos – Parte Especial, 2ª. ed., Almedina, Coimbra, 2002, pp. 79 ss.; MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, A Transferência Internacional da Sede Social no Âmbito Comunitário, in J. M. Coutinho de Abreu et. al., “Temas Societários”, IDET, Colóquios, n.º 2, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 55-57; ALEXANDRE MOTA PINTO, Apontamentos Sobre a Liberdade de Estabelecimento das Sociedades, in “Temas de Integração”, n.º 18 (2º Semestre de 2004), pp. 141 ss. 33 O art. 33.º, n.º 1, do CC dispõe: “A pessoa colectiva tem como lei pessoal a lei do Estado onde se encontra situada a sede principal e efectiva da sua administração”.

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através da qual se reduz o alcance do critério da sede real ou efectiva, na mesma medida em que se consagra o critério da sede estatutária nas relações externas (com terceiros) – não já nas relações internas, i.e., as relações dos sócios, enquanto tais, entre si e/ou com a sociedade. Daí resulta a inoponibilidade a terceiros da lei da sede social efectiva situada no estrangeiro quando a sede (estatutária) tiver sido estabelecida em Portugal34. Não obstante, há quem compreenda a regra como inscrevendo uma conexão optativa para terceiros35, ou, numa outra leitura, defenda _______________________________________

É este o alcance da lei, segundo MOURA RAMOS, Aspectos Recentes do Direito Internacional Privado Português, in “Das relações privadas internacionais – Estudos de Direito Internacional Privado”, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 110; tb. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, A Transferência Internacional..., cit., p. 57. 35 Assim MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional Privado – Sumários, AAFDL, Lisboa, 1987, pp. 66-67, 127-129, 253, aqui vendo uma influência, ainda que não declarada pelo legislador português, da lei francesa, onde o actual art. 1837.º do Code civil, que retomou o art. 3.º da Lei de 24 de Julho de 1966 (actual art. L. 210-3 do Code de commerce), prevê: “Toute société dont le siège est situé sur le territoire français est soumise aux dispositions de la loi française. Les tiers peuvent se prévaloir du siège statutaire, mais celui-ci ne leur est pas opposable par la société si le siège réel est situé en un autre lieu”. V. YVES LOUSSOUARN, PIERRE BOUREL, PASCAL DE VAREILLES-Sommières, Droit international privé, 8e éd., Dalloz, Paris, 2004, pp. 926-927, n. 4 da p. 926; MICHEL MENJUCQ, Droit international et européen des sociétés, Montchrestien, Paris, 2001, pp. 92-95. Mas note-se como as seguintes considerações deste último Autor, a propósito do amplo reconhecimento da lei do siège statutaire, não merecem transposição para o nosso direito, em face do carácter inequívoco da referência do nosso art. 3.º, n.º 1, 1.ª parte, à “sede principal e efectiva da sua administração”: “Pourtant, l’alinéa premier évoque le siège social sans préciser le siège désigné contrairement au deuxième alinéa qui, lui, fait parfaitement la distinction. En conséquence, rien ne permet d’affirmer péremptoirement que ces termes désignent le siège réel” (ob. cit., p. 92). Com referências à lei francesa, v. RAÚL VENTURA, A sede da sociedade, no direito interno e no direito internacional português, in SI, 1977, t. XXVI, pp. 464-465; LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II…, cit., p. 83, n. 126 e texto correspondente. 34

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que o direito português é o aplicável (a título de lei da sede estatutária) nas relações com terceiros, a menos que estes possam contar com a aplicação do direito da sede da administração36. São de duas ordens as ideias fundamentais que estão na base da consagração da sede estatutária neste âmbito, conforme as expõe MOURA RAMOS37. Por um lado, a tutela da aparência38: o facto de, nos termos dos seus estatutos, a sociedade ter a sua sede num país poderá fundar nos terceiros que com ela se relacionam a convicção de que ela tem também aí o seu centro de decisão e de que é regulada pela lei desse país. Sem esta regra, a presunção poderia revelar-se errada e os terceiros que contratam com a sociedade ficariam desprotegidos. Por outro lado, a protecção da aparência não é integral, antes somente se a sede estatutária tiver sido fixada em território português. Com este requisito, a norma configura-se como não bilateralizável (o princípio da inoponibilidade só joga quando a sede estatutária se localiza em Portugal, e não em qualquer outro país39), que opera, _______________________________________

Assim LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., pp. 98-99. O exemplo, dado pelo Autor, de situação em que tal se verifica, é o de “quando a sociedade tem a sede da administração num Estado que adopta a teoria da sede e, aí, contrata com terceiros que têm conhecimento desta sede” (p. 99). 37 MOURA RAMOS, Aspectos recentes..., cit., pp. 109-110. 38 No quadro da lei francesa, há autores que fundam a respectiva regra na teoria da aparência; mas também há quem o negue, pelo facto de essa justificação ser incompatível com o reconhecimento indiscutido aos terceiros de um “droit d’option pur et simple”: assim MENJUCQ, Droit international..., cit., p. 94, com referência a outras posições (pp. 93-94). 39 É a opinião de MOURA RAMOS (Aspectos recentes..., cit., p. 110) e tb. de MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional Privado – Sumários, cit., pp. 128, 252-253. Apontando que a norma “não foi (como podia ter sido) bilateralizada”, FERRER CORREIA, O direito internacional privado português e o princípio da igualdade, in “Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado”, Almedina, Coimbra, 1989, p. 449, n. 78. Contra a insusceptibilidade de bilateralização, LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., p. 100. 36

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consequentemente, uma extensão do domínio de aplicação da lei portuguesa (à sede efectiva em Portugal junta-se a sede estatutária neste País como conexão suficiente, nas relações com terceiros, o que aconselha a que as sociedades nessas circunstâncias afiram a validade dos seus actos também perante a lei portuguesa, para que assegurem a sua oponibilidade a terceiros), com expressão numa autêntica norma de direito internacional privado material (reguladora de uma determinada situação privada internacional, não pela via das regras de conflitos, mas por meio de disposições materiais especiais). Da fundamentação da referência legal à sede estatutária resulta a sua atendibilidade apenas nas relações com “puros” terceiros, e não também com os próprios sócios, quando estes se relacionam com a sociedade enquanto terceiros (p. ex. como fornecedores), porquanto não existe qualquer aparência a tutelar40. Assim se vê reduzido o potencial domínio de chamamento da lei da sede estatutária a um círculo ligeiramente mais restrito que o das chamadas relações externas. Por fim, no caso de a lei do Estado onde se situa a sede principal e efectiva não se considerar competente (p. ex. porque adopta o critério da constituição, e esta não foi levada a cabo segundo o direito desse Estado), o conflito de sistemas há-de resolver-se de acordo com as regras gerais sobre o reenvio41 _______________________________________

É evidente como cabem, por maioria de razão, aos sócios as considerações de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO sobre a “boa-fé” dos terceiros para efeitos de aplicação do art. 3.º, n.º 1, 2.ª parte: cfr. Direito Europeu das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 16-17. O resultado – a maximização da aplicação da lei da sede real – é positivo, na medida em que a acrescida uniformidade do critério favorece a segurança jurídica e a boa administração da justiça, não se gerando desarmonias materiais (só aceitáveis quando existam, como vimos, razões para tutelar a aparência). 41 É o que também se defende p. ex. na Alemanha: v. por todos PETER KINDLER, in Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, Band 11, 4. Aufl., C. H. Beck, München, 2006, pp. 190-191. 40

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(arts. 16.º ss. do CC), excluindo-se os desvios constantes dos arts. 17.º, n.º 2 (e, consequentemente, n.º 3), e 18.º, n.º 2, ambos do CC, em virtude da sua própria razão de ser42 – que, não obstante alguma discussão doutrinária43, gira certamente em torno das pessoas singulares e não já das pessoas colectivas. 3.1.2. Âmbito de aplicação da lei pessoal. Limites à sua aplicação O CSC não toma posição expressa acerca da delimitação das matérias a que se aplica a lei pessoal. Tal circunstância poderá dever-se ao facto de se tratar de uma regra vista como especial em face do art. 33.º do CC, onde se determina a lei aplicável às pessoas colectivas em geral, e de este, no seu n.º 2, elencar um conjunto de matérias em que a mesma lei será competente, pelo que se tornaria despiciendo repetir semelhante enumeração no CSC. Dispõe o art. 33.º, n.º 2, do CC: “À lei pessoal compete especialmente regular: a capacidade da pessoa colectiva; a constituição, funcionamento e competência dos seus órgãos; os modos de aquisição e perda da qualidade de associado e os correspondentes direitos e deveres; a responsabilidade da pessoa colectiva, bem como a dos respectivos órgãos e membros, perante terceiros; a transformação, dissolução e extinção da pessoa colectiva”. A este elenco legal, que não é taxativo, acrescentar-se-á ainda a matéria da representação orgânica ou estatutária _______________________________________

Assim já PEDRO PAES DE VASCONCELOS, Estatuto pessoal das sociedades comerciais, in “Estruturas jurídicas da empresa”, AAFDL, Lisboa, 1989, pp. 34-35. RAÚL VENTURA não via o reenvio como obstáculo à aplicação da teoria da sede: cfr. A sede da sociedade..., cit., pp. 469-470. 43 V. sobretudo BAPTISTA MACHADO, Lições..., cit., pp. 199-200, 204-211; FERRER CORREIA, Lições..., cit., pp. 309-312; LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume I..., cit., pp. 372-374, 377-378. 42

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da pessoa colectiva, isto é, por intermédio dos seus órgãos: embora não enumerada no art. 33.º, n.º 2, é objecto de uma regra de conflitos autónoma, a do art. 38.º do CC, que expressamente submete a regulamentação desta matéria à lei pessoal da pessoa colectiva. Mas, diferentemente, a representação de uma sociedade comercial por mandatários ou procuradores nomeados para a prática de determinados actos ou categorias de actos (cfr., no CSC português, o art. 252.º, n.º 6, para as sociedades por quotas, e o art. 391.º, n.º 7, para as anónimas) é regulada pela lei competente em matéria de representação voluntária44 (cfr. art. 39.º do CC, e, principalmente, a Convenção da Haia de 1978 sobre a lei aplicável aos contratos de mediação e à representação45). De resto, pode entender-se consagrada uma competência-regra da lei determinada nos termos do art. 3.º, n.º 1, do CSC, para regular as questões pertinentes “à constituição ou nascimento, à vida, e à extinção da pessoa colectiva”46, ou os seus “aspectos essenciais”47. Contudo, no que se refere ao “nascimento”, isto é, a constituição da sociedade, sobretudo porque é requerida a _______________________________________

Nesse sentido, em face da lei espanhola, ALFONSO L. CALVO CARAVACA, in Julio D. González Campos et al., Derecho internacional privado – Parte especial, 6.ª ed., Eurolex, Madrid, 1995, p. 57. Na Alemanha, HERBERT WIEDEMANN, Gesellschaftsrecht – Ein Lehrbuch des Unternehmens- und Verbandsrecht, Band I – Grundlagen, C. H. Beck, München, 1980, p. 813; KINDLER, in Münchener Kommentar…, cit., p. 217. 45 Em vigor em Portugal desde 01.05.1992: cfr. Aviso n.º 239/97, de 29 de Julho. Sobre esta matéria em especial, cfr. BAPTISTA MACHADO, Lições..., cit., pp. 356-357; MARIA HELENA BRITO, A representação em Direito Internacional Privado. Análise da Convenção de Haia de 1978 sobre a lei aplicável aos contratos de intermediação e à representação, in Lima Pinheiro (coord.), “Estudos de Direito Comercial Internacional”, vol. I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 143-194; LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., pp. 169-174. 46 BAPTISTA MACHADO, Lições..., cit., p. 344. 47 F RANK V ISCHER , in Daniel Girsberger et al. (Hrsg.), Zürcher Kommentar zum IPRG, Schulthess, Zürich, 2004, p. 1709. 44

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intervenção de órgãos de autoridade pública, far-se-á de acordo com os critérios da lei da sua constituição (na prática coincidente, tanto quanto se conhece, com a lei do lugar dessa constituição). O que permite explicar por que o art. 33.º, n.º 2, do CC, não inclui esta matéria no âmbito do estatuto pessoal regido pela lei pessoal das pessoas colectivas48. Por outro lado, quanto aos limites à aplicação da lei pessoal, reúne consenso a possibilidade de exclusão da questão dos poderes de representação da sociedade pelos seus órgãos, quando tal seja exigido por uma adequada tutela daqueles que contratam com a sociedade, à semelhança do que sucede a propósito da capacidade das pessoas singulares. A chamada excepção de interesse nacional, prevista no art. 28.º do CC, determina a não aplicação do ordenamento jurídico inicialmente competente (o da lei pessoal do incapaz) em favor da aplicação do ordenamento jurídico português, por razões de tutela da aparência, da boa fé da contraparte e do comércio jurídico local49. Ora, a doutrina portuguesa pronuncia-se pela sua aplicação analógica às pessoas colectivas. Na verdade, os terceiros que contratam no comércio jurídico local carecem de protecção, quer se trate de pessoas singulares estrangeiras ou de pessoas colectivas de estatuto pessoal estrangeiro; e não parece judicioso exigir-se a terceiros que determinem a lei estrangeira aplicável à pessoa colectiva, que indaguem do seu conteúdo e que examinem o acto constituinte do ente societário50. _______________________________________

Cfr. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., pp. 75, 91-96, considerando vigente no direito português uma norma de conflitos implícita que reconhece o direito do lugar da constituição como competente em matéria da constituição da pessoa colectiva (pp. 91-93). Quando essa intervenção não exista, o Autor refere-se ao “Direito regulador do acordo constitutivo ou do contrato de sociedade” (p. 93). 49 BAPTISTA MACHADO, Lições..., cit., pp. 342-343. 50 Assim LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., p. 104; tb. O direito aplicável às sociedades..., cit., pp. 718-720. 48

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A esse entendimento não tem obstado o facto de ser de diferente natureza a incapacidade, por um lado, da pessoa singular, que releva para a facti-species em causa – a de exercício – e, por outro lado, a da pessoa colectiva, que é antes de gozo de direitos que extravasem a especialidade do seu fim51. Com o mesmo fito, certa doutrina nacional e estrangeira baseia-se numa aplicação analógica do art. 11.º da Convenção de Roma52 para obter o mesmo resultado53. Tal significa, em suma, que a contraparte que ignorava a incapacidade ou a falta de poder em causa54 (derivada, nomeadamente, de limitações dos poderes de representação dos órgãos _______________________________________

ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO, Direito Internacional Privado. Pessoas Colectivas, Lisboa, AAFDL, 1971 (apontamentos coligidos por J. B. Macedo, polic.), p. 42. Já, por exemplo, o direito alemão não coloca o mesmo problema, porquanto o art. 12.º EGBGB se refere às várias incapacidades (“Rechts-, Geschäfts-, und Handlungsunfähigkeit”). 52 Para uma análise contrapontística das duas disposições referidas em texto, veja-se MOURA VICENTE, Lei pessoal das pessoas singulares, in “Direito Internacional Privado – Ensaios – Vol. I”, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 71-75. 53 Cfr. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., pp. 103-104. Privilegiando a aplicação ao caso do art. 28.º do CC, e em desfavor da aplicabilidade do art. 11.º da Convenção de Roma, cfr. NUNO MANUEL CASTELLO-BRANCO BASTOS, Das obrigações nas regras de conflitos do Código Civil, in “Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977 – Volume II – A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 664-665. Em França, cfr. BERNARD AUDIT, Droit International Privé, 4ª. ed., Economica, Paris, 2006, p. 884. Admitindo a aplicação da excepção de interesse nacional às pessoas colectivas, em face do direito espanhol (art. 10.º, n.º 8, do Código civil espanhol, bem como igualmente do art. 11.º da Convenção de Roma), CALVO CARAVACA, Derecho internacional privado..., cit., pp. 91-92. Na Alemanha, cfr. KINDLER, in Münchener Kommentar..., cit., p. 218. 54 Que não “por imprudência da sua parte”: cfr. art. 11.º da Convenção de Roma, mais exigente neste aspecto, do que o art. 28.º do CC – assim MOURA VICENTE, Lei pessoal das pessoas singulares, cit., p. 72. 51

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da sociedade, estabelecidos pela sua lei pessoal) “não pode ser prejudicada com a nulidade, anulabilidade ou ineficácia do negócio, se o mesmo negócio, celebrado por uma pessoa colectiva de estatuto português e de tipo idêntico, fosse válido”55. A tutela da aparência justifica-se especialmente quando as restrições aos poderes de representação têm fonte meramente estatutária. No seio da Comunidade Europeia, porém, esse concreto problema está resolvido pela raiz, porquanto as limitações estatutárias, mesmo que publicadas, são inoponíveis a terceiros, nos termos do art. 9.º, n.º 2, da Primeira Directiva em matéria de direito das sociedades56. De resto, a aplicação da lei portuguesa a uma sociedade de estatuto pessoal português está limitada às questões resolvidas pelas normas jurídicas que, pelo conteúdo e função que desempenham no nosso ordenamento, são chamadas a regular o caso por via da regra de conflitos do art. 3.º, n.º 1, do CSC. É o que resulta dos ensinamentos da teoria geral do direito internacional privado, com consagração expressa no art. 15.º do CC57. Significa isto, por exemplo, que num contrato de compra e venda de acções representativas do capital social de uma sociedade X de estatuto pessoal português, em que é vendedora a sociedade A, regida pela lei inglesa, e compradora a sociedade B, de lei pessoal espanhola, as consequências do não pagamento do preço por B a A na data acordada (p. ex., admissibilidade da invocação da excepção de não cumprimento, constituição em mora e suas consequências, montante dos juros devidos desde essa data, apreciação da perda do interesse do credor, etc.) não são reguladas pela lex societatis portuguesa, mas sim pela lei aplicável _______________________________________

BAPTISTA MACHADO, Lições..., cit., p. 351. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Direito Europeu das Sociedades, cit., pp. 127-180 (sobre este aspecto, v. esp. pp. 175-176); KINDLER, in Münchener Kommentar..., cit., p. 218. 57 Sobre o problema da qualificação, v. por todos FERRER CORREIA, Lições..., cit., pp. 199 ss. 55

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às obrigações contratuais [cfr. art. 10.º, n.º 1, b) e c), da Convenção de Roma58], determinada por livre escolha das partes (art. 3.º da Convenção de Roma) ou, na sua ausência, pelo critério da conexão mais estreita conforme consagrado no art. 4.º da Convenção de Roma. Já, por exemplo, a negação a B, pela administração de X, do exercício de direitos sociais por motivo de não ter sido obtido o consentimento da sociedade para a transmissão de acções, conforme estatutariamente exigido, é questão a ser resolvida pelas regras pertinentes do CSC português (cfr. o seu art. 328.º), por estas dizerem respeito, como é evidente, ao estatuto pessoal da sociedade. Particularmente interessante, nesta perspectiva dos conflitos de leis, é também a análise dos acordos parassociais, onde a directiva fundamental, ainda que nem sempre de fácil concretização, será a de procurar separar os seus aspectos que têm verdadeiro carácter societário (e como tal submetidos à lei pessoal da sociedade cuja vida “para-regulam”), daqueloutros em que estão em causa vinculações puramente obrigacionais sem efeitos societários (reguladas pela lei aplicável às obrigações contratuais, e por isso sujeitas à lei livremente escolhida pelas partes; contudo, na falta de escolha, ela coincidirá muito provavelmente com a lei pessoal, com a qual apresentará normalmente a conexão mais estreita)59. 3.1.3. Transferência internacional de sede social; fusão internacional de sociedades Relativamente à transferência internacional da sede social das sociedades comerciais, encontramos no CSC um regime especial nos n.os 2 a 5 do seu art. 3.º. _______________________________________

Cfr. igualmente o art. 12.º, n.º 1, b) e c), Roma I. V. mais desenvolvidamente RUI DIAS, Responsabilidade por Exercício de Influência..., cit., pp. 183 ss. 58

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Em suma, pode dizer-se que aí se distinguem duas situações diversas, embora submetidas a princípios comuns na regulamentação do principal problema que se coloca, i.e., a manutenção da personalidade jurídica da sociedade: a) n.os 2 e 3: a transferência da sede, para Portugal, de uma sociedade que inicialmente a tinha estabelecido no estrangeiro. Neste caso, para se manter a personalidade da sociedade, exige-se que a anterior lei pessoal esteja de acordo quanto a esse efeito e que o pacto social seja conformado com a lei portuguesa, promovendo-se o registo do mesmo60. b) n.os 4 e 5: quanto à transferência para o estrangeiro da sede de uma sociedade que a tinha anteriormente situada em Portugal. Para que se mantenha a personalidade da sociedade, exige-se que a nova lei pessoal esteja de acordo quanto a esse efeito e que sejam respeitados os requisitos da legislação portuguesa para a alteração do contrato de sociedade. É ainda necessário que a deliberação seja tomada por 75% ou mais dos votos correspondentes ao capital social, consagrando-se um direito de exoneração para os sócios discordantes61. No que diz respeito à fusão de sociedades, não encontramos uma regra especial no Código das Sociedades Comerciais, valendo por isso o preceito geral para as pessoas colectivas plasmado no art. 33.º, n.º 4, do Código Civil. Este, ao prever que a _______________________________________

No sentido de que estas regras poderão não se apresentar inteiramente compatíveis com o direito comunitário, na interpretação feita pelo Tribunal de Justiça dos arts. 43.º e 48.º TCE no ac. Überseering, v. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, A liberdade de estabelecimento das sociedades na União Europeia, in “Temas de Integração”, n.os 15 e 16, 2003, pp. 319-321. 61 Para mais desenvolvimentos, v. MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, A Transferência Internacional da Sede Social..., cit., pp. 45 ss. 60

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“fusão de entidades com lei pessoal diferente é apreciada em face de ambas as leis pessoais”, estabelece uma conexão múltipla cumulativa que obriga a que sejam satisfeitos os requisitos estabelecidos em cada uma das leis envolvidas – o que, embora dificulte a produção deste efeito jurídico, tem em mira a segurança e certeza jurídica ao evitar o surgimento de situações jurídicas claudicantes. Sendo muitas vezes difícil a compatibilização dos preceitos materiais das várias leis pessoais envolvidas, que colocam na prática entraves às fusões internacionais62, foi aprovada, com vista a facilitá-las no espaço europeu integrado, a Directiva 2005/56/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada. Tem-se em vista, por um lado, garantir o afastamento de restrições injustificadas à liberdade de estabelecimento e de circulação de capitais, e, por outro lado, salvaguardar interesses de sócios, credores e trabalhadores. Apesar de a Directiva prever como limite a data de 15 de Dezembro de 2007, a sua transposição por Portugal não foi ainda efectuada63.

_______________________________________

V. E VA -M ARIA K IENINGER , Anknüpfung grenzüberschreitender Umstrukturierungen von Gesellschaften – Sitzverlegung, Verschmelzung, Spaltung und Vermögensübertragung, in Hans-Jürgen Sonnenberger (Hrsg.), “Vorschläge und Berichte zur Reform des europäischen und deutschen internationalen Gesellschaftsrechts”, Mohr Siebeck, Tübingen, 2007, pp. 604 ss. 63 Cfr. art. 19.º da Directiva. Esse facto desencadeou já, junto da Comissão Europeia, um processo de infracção contra Portugal e outros Estados-membros na mesma situação. Em exemplo de uma transposição, veja-se na Alemanha a (segunda) alteração à Umwandlungsgesetz, de 19.4.2007 (Bundesgesetzblatt 2007, Teil I, Nr. 15, pp. 542 ss.; a que se junta uma outra lei, aprovada em 21.12.2006, especialmente acerca da participação dos trabalhadores ou co-gestão: Bundesgesetzblatt 2006, Teil I, Nr. 65, pp. 3332 ss.). 62

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3.1.4. Liberdade de estabelecimento das sociedades intra-comunitárias: consequências para a determinação do estatuto pessoal 3.1.4.1. Os artigos 43.º e 48.º TCE, o acórdão Daily Mail e a trilogia Centros-Überseering-Inspire Art64 Com relevância para a mobilidade das sociedades no espaço europeu, encontramos nos arts. 43.º e 48.º TCE a consagração da sua liberdade de estabelecimento: Artigo 43.º No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro. A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 48.º, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais. Artigo 48.º As sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na Comunidade são, para efeitos do disposto no presente capítulo, equiparadas às pessoas singulares, nacionais dos Estados-Membros. _______________________________________

A expressão “trilogía societaria «Centros-Überseering-Inspire Art»” é usada por ALFONSO L. CALVO CARAVACA e JAVIER CARRASCOSA GONZÁLEZ, Sociedades mercantiles: libertad de establecimiento y conflicto de leyes en la Unión Europea, in Revista de Derecho de Sociedades, 2007, IV. 2., pp. 74 ss. 64

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Por «sociedades» entendem-se as sociedades de direito civil ou comercial, incluindo as sociedades cooperativas, e as outras pessoas colectivas de direito público ou privado, com excepção das que não prossigam fins lucrativos.

O direito de estabelecimento é uma das liberdades fundamentais previstas no TCE, com efeito directo, pelo que os preceitos dos seus arts. 43.º a 48.º afastam quaisquer regras dos direitos nacionais que com eles colidam65. Ele surge numa relação de especialidade com o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, consagrado no art. 12.º TCE66. É sobretudo por meio da jurisprudência do TJCE, em sede de reenvio prejudicial, que na última década vêm sendo dadas respostas ao problema da compatibilização do direito de estabelecimento com as regras sobre o estatuto pessoal das sociedades que daquele direito beneficiem. Os marcos mais importantes dessa jurisprudência são, em contraponto ao acórdão Daily Mail, de 27.09.1988 (processo n.º 81/ /87), os acórdãos Centros, de 09.03.1999 (processo n.º C-212/97); _______________________________________

Cfr. desde logo v.g. os acs. Reyners (CJ 1974, pp. 631 ss.) e Daily Mail (CJ 1988, pp. 5483 ss.) do TJCE; BERNHARD GROßFELD, Internationales Gesellschaftsrecht, in J. VON STAUDINGERs “Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen”, Sellier – De Gruyter, Berlin, 1998, p. 28; MIGUEL GORJÃO-HENRIQUES, Direito Comunitário, 3ª. ed., Almedina, Coimbra, 2005, p. 455; ALEXANDRE MOTA PINTO, Apontamentos..., cit., pp. 85-89. 66 Assim o ac. Royal Bank of Scotland do TJCE (de 29.04.1999, no processo n.º C-311/97), n.º 20; ALEXANDRE MOTA PINTO, Apontamentos..., cit., p. 93; v. tb. GORJÃO-HENRIQUES, Direito Comunitário, cit., p. 457. Falando em “concretizações, no domínio do direito de estabelecimento, do princípio da não-discriminação em razão da nacionalidade”, LIMA PINHEIRO, O Direito de Conflitos e as liberdades comunitárias de estabelecimento e de prestação de serviços, in Jorge Miranda et al. (coord.), “Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos – Volume I”, Almedina, Coimbra, 2005, p. 279. 65

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Überseering, de 05.11.2002 (processo n.º C-167/01); e Inspire Art, de 30.09.2003 (processo n.º C-208/00). Estas decisões, seu contexto e implicações mereceram a análise detalhada de muitos autores, nacionais67 e estrangeiros. Tracemos por isso apenas um quadro muito sintético do que delas resultou: – É expressamente admitido o princípio do reconhecimento mútuo de sociedades regularmente constituídas à luz da legislação de um qualquer Estado-membro, independentemente de nele se situar a respectiva sede real ou o exercício da sua actividade, conforme resulta do ac. Centros; – Não se reverteu a jurisprudência Daily Mail, no sentido de que um Estado-membro tem a possibilidade de criar restrições à emigração societária – i.e., à deslocação da sede de uma sociedade para fora do seu território, condicionando a manutenção da sua personalidade jurídica ao preenchimento de certos requisitos por ele impostos; mas – São negadas as restrições à imigração societária – i.e., perante o mesmo problema da transferência internacional de sede real, mas quando visto da perspectiva do Estado de acolhimento, este não pode impor restrições que condicionem o estabelecimento da sociedade no seu território, tendo mesmo que tratá-la como sociedade de direito do Estado de constituição. Isto vale no que diz respeito à sua capacidade jurídica (ac. Überseering), mas também, pelo menos, quanto ao capital social mínimo e à responsabilidade dos administradores (ac. Inspire Art). Em consequência, e apesar de o enfoque desta jurispru_______________________________________ 67 De entre estes, v. MOURA RAMOS, O Tribunal de Justiça..., cit., pp. 65 ss.; MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, A liberdade de estabelecimento..., cit., pp. 283 ss.; O acórdão Inspire Art..., cit., pp. 123 ss.; LIMA PINHEIRO, O Direito de Conflitos e as liberdades comunitárias..., cit., pp. 273 ss.; MOURA VICENTE, Liberdade de estabelecimento..., cit., pp. 91 ss.; ALEXANDRE MOTA PINTO, Apontamentos..., cit., pp. 59 ss.

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dência ter por base a perspectiva do reconhecimento mútuo, é defensável que tomemos já hoje por vigente entre nós o critério da constituição, no que diga respeito às sociedades beneficiárias do direito de estabelecimento comunitário68; – Os Estados-membros poderão, não obstante, lançar mão de medidas restritivas desta liberdade fundamental de estabelecimento, desde que preenchidas quatro condições, que, em face da natureza excepcional dessas medidas, devem ser interpretadas de forma restritiva: (i) serem aplicadas de modo não discriminatório, (ii) justificarem-se por razões de interesse geral, (iii) serem adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e (iv) não ultrapassarem o que é necessário para o atingir. _______________________________________

Expressamente, no ac. Inspire Art, o TJCE não se refere que não às normas sobre o capital social mínimo e a responsabilidade dos administradores; mas é provável que a evolução seja no sentido de submeter à lei da constituição todas as restantes matérias de estatuto pessoal da sociedade. É o que antevê MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, O acórdão Inspire Art..., cit., pp. 144, e o que muita doutrina dá já por assente – na Alemanha, GERHARD KEGEL e KLAUS SCHURIG, Internationales Privatrecht, 9. Aufl., Verlag C. H. Beck, München, 2004, p. 575: “Segundo a opinião dominante, aplica-se à pessoa jurídica o direito da sede. Diferentemente em direito europeu: aqui decide o direito da constituição. Inicialmente não parecia ser assim. Mas o TJCE escolheu o direito da constituição e invocou os arts. 43.º, 48.º TCE” (p. 575); v. tb., com referências jurisprudenciais e doutrinais mais e menos concordantes, KINDLER, Aspetti essenziali di un futuro regolamento comunitario sulla legge applicabile alle società, in RDIPP, 2006 (XLII), n.º 3, pp. 658-659. Escreve entre nós LIMA PINHEIRO, O Direito de Conflitos e as liberdades comunitárias..., cit., p. 286, a propósito da jurisprudência Inspire Art: “Este somar de limites à actuação de regras sobre a determinação do estatuto pessoal das sociedades comunitárias que se desviem da teoria da constituição, se não significa ainda a consagração geral desta teoria, vem colocar em dúvida a coerência dos sistemas que se baseiam na teoria da sede” (sublinhado nosso). 68

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3.1.4.2. De Daily Mail a Cartesio: mudança de paradigma? Tem ainda interesse deixar aqui o registo de um processo em curso no TJCE, em sede de reenvio prejudicial, que poderá vir a ser relevante nesta matéria. Trata-se do caso conhecido como Cartesio69, em que a sociedade, de tipo equivalente a uma sociedade em comandita de direito português, constituída e com sede na Hungria, pretende transferir a sua sede social para Itália, mantendo-se porém registada na Hungria. As entidades húngaras negaram esse requerimento, por considerarem que a lei húngara não permite que uma sociedade mantenha o seu estatuto de sociedade de direito húngaro quando transfere a sua sede para um outro Estado-membro: para validamente o fazer, teria que ser dissolvida e, extinta na Hungria, constituir-se de novo em Itália. Nas suas Conclusões, apresentadas em 22 de Maio de 200870, o Advogado-Geral considera uma tal legislação nacional incompatível com o direito de estabelecimento consagrado nos arts. 43.º e 48.º TCE. POIARES MADURO refere-se àquilo a que chama um “refinamento” da abordagem do problema pelo Tribunal de Justiça, após o acórdão Daily Mail, sobretudo por meio da jurisprudência Centros, Überseering e Inspire Art: se naquele se entendia que a sociedade é uma criação da lei nacional, não conferindo o TCE o direito de ela transferir a sua sede para o território de outro Estado, já nestes últimos se insiste em que as regras nacionais de direito das sociedades não estão excluídas do crivo de conformidade com a liberdade de estabelecimento comunitária. Mas a verdade é que, como muitos foram denunciando e aí se reconhece, estas duas ideias não são facilmente conciliáveis71. No actual estádio do direito comunitário, cabe a cada um dos Estados-membros, e não à Comunidade, fixar as regras que definem _______________________________________ 69 70 71

Cfr. JO C 165, de 15.07.2006, pp. 17-18. Acessíveis em www.curia.europa.eu. Cfr. n.os 27 e 28 das mencionadas Conclusões de POIARES MADURO.

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a determinação da lei pessoal de uma sociedade – isto é, na prática, escolher entre a teoria da sede e a teoria da incorporação, em formas mais ou menos puras de cada uma delas. Contudo, não deixa de se afirmar que o efectivo exercício da liberdade de estabelecimento exige ao menos algum grau de reconhecimento mútuo e coordenação entre estes vários sistemas de regras e “implica que nenhuma das teorias possa ser aplicada em toda a sua extensão” (n.º 30 das citadas Conclusões). Em suma, a ser trilhado pelo Tribunal de Justiça o caminho aberto pelo Advogado-Geral, será invertida a jurisprudência Daily Mail e passará a ter-se como incompatível com o direito comunitário também a legislação nacional que coloque entraves à “saída” de uma sociedade do seu território, para se instalar num outro Estado-membro. Há assim mais uma voz autorizada dentro do Tribunal de Justiça a juntar-se à do então Advogado-Geral (hoje Juiz) ANTONIO TIZZANO: “o artigo 43.º CE não se limita a proibir que um Estado-membro impeça ou restrinja o estabelecimento de operadores estrangeiros no seu território, mas opõe-se também a que levante dificuldades ao estabelecimento de operadores nacionais noutro Estado-membro. Por outras palavras, são proibidas tanto as restrições à entrada como à saída do território nacional”72 (sublinhado nosso). 3.1.5. Actuação de sociedades estrangeiras em Portugal: o art. 4.º do CSC Para além do que vimos, a liberdade de estabelecimento pode ter ainda implicações importantes ao nível da interpretação e aplicação de várias normas do CSC. _______________________________________

Cfr. Conclusões apresentadas (no processo que terminou no ac. SEVIC, de 13.12.2005) em 07.07.2005, no n.º 45, que merece a citação e concordância de POIARES MADURO no n.º 28 das suas aludidas Conclusões. Em Portugal, chamou já a atenção para aquela jurisprudência MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, A Transferência Internacional..., cit., pp. 71-72, n. 44. 72

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É o que parece suceder com o art. 4.º, que regula as condições que uma sociedade comercial estrangeira (i.e., em regra, uma sociedade que não tenha em Portugal a sua sede social efectiva73) deve preencher para exercer no nosso país a sua actividade por um período superior a um ano. No n.º 1 do artigo 4.º, prescreve-se que ela terá que instituir uma representação permanente e cumprir o disposto na lei portuguesa sobre registo comercial – nomeadamente, os artigos 10.º, c) e d), e 40.º, n.º 2, do Código de Registo Comercial. No n.º 2, estabelece-se a sanção decorrente do incumprimento do n.º 1: a sociedade estrangeira responde pelos actos praticados em seu nome em Portugal, e as pessoas que os tenham praticado, bem como os gerentes e administradores, respondem solidariamente com a sociedade. Por estas vias (obrigação de instituição de representação permanente e estabelecimento de um especial regime de responsabilidade) visa-se, essencialmente, a tutela dos interesses dos terceiros que contratem com a sociedade. No seu n.º 3 estabelece-se, ainda, uma especial cominação para a sociedade estrangeira que, cumulativamente, (i) exerça a sua actividade em Portugal por mais de um ano e (ii) não cumpra as obrigações que lhe são impostas: pode ser requerida a cessação da sua actividade em Portugal e a liquidação do seu património aqui situado. Assume legitimidade para requerer a aplicação destas sanções, indubitavelmente, o Ministério Público, referindo-se ainda a lei a “qualquer interessado”. Considera-se duvidoso, porém, que deva ser reconhecido a “quaisquer interessados”, mesmo credores da sociedade, um interesse que vá para além do da _______________________________________

V. por todos FERRER CORREIA, Lições..., cit., pp. 83 ss. Mas o critério de determinação da nacionalidade pode ser outro, especialmente fixado para um certo contexto, como sucede frequentemente em acordos bilaterais de promoção e protecção recíprocas de investimentos celebrados por Portugal. 73

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execução do património da sociedade estrangeira em Portugal, na medida do que for necessário para a realização dos seus créditos; além de que a possibilidade de promover a liquidação do património vem insuficientemente regulada74. Ora, das disposições do Tratado de Roma que instituem o direito de estabelecimento das sociedades, resulta que as limitações previstas na nossa legislação especial para a actuação de sociedades estrangeiras em Portugal, como a constante do art. 4.º, não são aplicáveis a sociedades estrangeiras que beneficiem desse direito. Apesar de, aparentemente, o aludido art. 4.º não impedir ou limitar o direito de estabelecimento em Portugal, a verdade é que a obrigação de instituição de uma representação permanente, a determinação de um especial regime de responsabilidade e, sobretudo, a sanção que impende sobre a sociedade estrangeira incumpridora, que pode ser objecto de um requerimento de cessação da sua actividade em Portugal e de liquidação do seu património aqui situado, constituem medidas nacionais restritivas da liberdade de estabelecimento, para as quais não se vislumbra justificação bastante no plano do direito comunitário. 3.1.6. Perspectivas de futuro: a proposta alemã de reforma do direito internacional privado das sociedades As soluções que a jurisprudência do TJCE vem desenvolvendo encontram sobretudo fundamento no chamado princípio do reconhecimento mútuo. Este tem um papel determinante, embora muitas vezes apenas implícito, no modo como as instituições europeias vêm dando solução a problemas de direito _______________________________________

Problemas estes identificados por MOURA RAMOS, O artigo 4.º do Código das Sociedades Comerciais revisitado, in “Das relações privadas internacionais – Estudos de Direito Internacional Privado”, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 136; v. tb. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado – Volume II..., cit., pp. 106-107. 74

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internacional privado, sem recorrer aos instrumentos dogmáticos tradicionais dessa ciência jurídica. Contudo, uma outra via é possível, recorrendo ao paradigma desses mesmos instrumentos: as regras de conflitos, através de uma sua unificação ao nível comunitário75. Ora, é justamente nesse sentido que vai uma proposta, apresentada pelo Conselho Alemão para o Direito Internacional Privado, simultaneamente de regulamento comunitário e de alteração à Lei de Introdução ao BGB76. Quanto à lei interna alemã, o estudo teve já seguimento numa proposta de lei, de 7 de Janeiro de 2008, nos termos da qual o elemento de conexão relevante será modificado: a ser aprovada esta proposta, reconhecer-se-á a competência-regra ao direito do Registrierungsstaat, isto é, à lei do Estado em cujo registo público a sociedade é inscrita. Trata-se, pois, da consagração do critério da constituição, numa das suas expressões ou variantes, que é aí justificada pela necessidade de compatibilizar o direito de conflitos alemão com a jurisprudência comunitária sobre a liberdade de estabelecimento77. _______________________________________ 75 V. CALVO CARAVACA e CARRASCOSA GONZÁLEZ, Sociedades mercantiles.., cit., pp. 79 ss. e 92 ss. 76 V. HANS -J ÜRGEN S ONNENBERGER e FRANK B AUER , Vorschlag des Deutschen Rates für Internationales Privatrecht für eine Regelung des Internationalen Gesellschaftsrechts auf europäischer/nationaler Ebene, in RIW, 2006, Beilage 1 zu Heft 4, pp. 1-24. Traduções para inglês, francês e italiano, bem como o conjunto dos trabalhos preparatórios desta proposta, estão reunidos em Hans-Jürgen Sonnenberger (Hrsg.), “Vorschläge und Berichte zur Reform des europäischen und deutschen internationalen Gesellschaftsrechts”, Mohr Siebeck, Tübingen, 2007. Cfr. uma breve análise de alguns dos seus aspectos em RUI DIAS, Responsabilidade por Exercício de Influência…, cit., pp. 180 ss. 77 Cfr. Referentenentwurf – Gesetz zum Internationalen Privatrecht der Gesellschaften, Vereine und juristischen Personen, 07.01.2008, disponível no sítio do Ministério da Justiça alemão (www.bmj.bund.de), p. 5. V. tb. SONNENBERGER e BAUER, Vorschlag des Deutschen Rates..., cit., pp. 7-8.

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3.2. As relações intersocietárias no comércio internacional (alguns problemas) 3.2.1. Autolimitação espacial do regime das sociedades coligadas: o art. 481.º, n.º 2, do CSC No CSC, encontramos um regime legal específico para as relações que entre si estabeleçam sociedades por quotas, anónimas e em comandita por acções: trata-se do intitulado regime das “sociedades coligadas”, expressão com que o legislador português epigrafou o Título VI do CSC. Este regime foi ainda dotado de regras especiais sobre o seu âmbito de aplicação, que encontramos essencialmente no art. 481.º, n.º 278. Dispõe-se aí o seguinte: 2 – O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo quanto ao seguinte: a) A proibição estabelecida no artigo 487.º aplica-se à aquisição de participações de sociedades com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, sejam consideradas dominantes; b) Os deveres de publicação e declaração de participações por sociedades com sede em Portugal abrangem as participações delas em sociedades com sede no estrangeiro e destas naquelas; c) A sociedade com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, seja considerada dominante de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios, nos termos do artigo 83.º e, se for caso disso, do artigo 84.º; d) A constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal.

Conforme transcrita, esta é a disposição que resulta da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março. _______________________________________ 78

Cfr. ainda os arts. 325.º-A, n.º 3, e 489.º, n.º 4, a), do CSC.

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Distingue-se do direito anterior a 2006 pela introdução da al. d). No proémio do art. 481.º deparamo-nos com uma regra material espacialmente condicionada, que como tal se caracteriza por comportar uma restrição, “a certos casos definidos através de conexões espaciais, do campo de aplicação de determinadas disposições materiais do foro, em hipóteses em que estas todavia seriam de aplicar em virtude de o sistema jurídico-material do foro ser o competente face às suas próprias regras de conflitos”79. No caso, a conexão espacial exigida é a situação da sede das sociedades em Portugal. Em seguida, o legislador estabelece, nas als. a), b), c) e d), quatro regras a que chamamos de direito internacional privado material, isto é, normas materiais especiais criadas para casos em que as situações a reger apresentam determinados elementos de estraneidade perante a ordem jurídica portuguesa80. Na primeira (a), determina-se que a proibição de aquisição de participações da sociedade dependente pela sociedade dominante, plasmada no art. 487.º, também vale quando a sociedade dominante tenha sede no estrangeiro (embora não valha na situação contrária, isto é, quando tenha sede em Portugal a sociedade dominante). É de sublinhar, porém, que o âmbito de aplicação desta alínea, segundo a opinião dominante, se encontra francamente limitado desde a introdução no CSC dos arts. 325.º-A e 325.º-B, através do Decreto-Lei n.º 328/95, de 9 de Dezembro: estes artigos permitem a aplicação do regime específico de direito português também quando ”a sociedade dominante esteja sujeita à lei portuguesa” (cfr. art. 325.º-A, n.º 3)81. _______________________________________

MOURA RAMOS, Aspectos recentes..., cit., pp. 100-101, n. 42. Sobre estas, v. p. ex. MOURA RAMOS, Aspectos recentes..., cit., pp. 103-104. 81 V. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Comercial – Vol. IV – Sociedades comerciais. Parte geral, AAFDL, Lisboa, 2000, p. 604; JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Grupos de Sociedades – estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária, 2ª. ed., Almedina, Coimbra, 2002, p. 428, n. 829, 79

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Na segunda (b), estabelece-se que os deveres de publicação e declaração de participações que impendam sobre sociedades com sede em Portugal se estendem às participações em sociedades com sede no estrangeiro, e destas naquelas82. Na terceira (c), estatui-se a responsabilidade da sociedade dominante, à luz dos critérios determinantes da existência de relação de domínio no direito português, de acordo com os termos (gerais) dos arts. 83.º e 84.º do CSC83. Por último (d), vem o legislador referir-se à constituição de sociedade anónima originariamente unipessoal por uma “sociedade cuja sede não se situe em Portugal”. Esta nova regra pode suscitar algumas dúvidas interpretativas, que procuraremos de seguida esclarecer84. _______________________________________

e p. 601; MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades – I – Das Sociedades em Geral, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, pp. 989 e 991; LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado — Volume II..., cit., p. 125, n. 231. Cfr. ainda o preâmbulo do citado Decreto-Lei n.º 328/95: “[e]sta nova solução implica uma derrogação dos artigos 487.º, e 481.º, n.º 2, [alínea a, acrescente-se] que se mantêm apenas em vigor para as sociedades por quotas”. 82 No sentido de que os enumerados deveres não abrangem aquele previsto no art. 484.º do CSC, ENGRÁCIA ANTUNES, Os Grupos..., cit., p. 315; em sentido oposto, LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado — Volume II..., cit., p. 125 (v. tb. n. 232). 83 Sobre o sentido desta remissão, v. RUI DIAS, Responsabilidade por Exercício de Influência..., cit., pp. 248 ss. 84 Também a este propósito, repare-se ainda no art. 489.º, n.º 4, a), do CSC. Este preceito prevê como causa de cessação da relação de grupo, por domínio total superveniente, a deslocação para o estrangeiro da sede, quer da sociedade dominante, quer da sociedade dependente. O mesmo vale para o termo da relação de grupo por domínio total inicial, por força da remissão, para esta disposição, do art. 488.º, n.º 3. Perante a lei das sociedades comerciais na formulação anterior a 2006, podia dizer-se que esta remissão teria efeitos apenas nas relações internas ao ordenamento jurídico português: recorde-se que não se admitia, em resultado da autolimitação operada pelo art. 481.º, n.º 2, a constituição de uma sociedade anónima de direito português por uma sociedade sem sede em Portugal, ao contrário do que previa e prevê

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3.2.1.1.A nova alínea d: aplicação do regime dos grupos às sociedades-mãe estrangeiras? Como vimos, acrescentou-se recentemente ao art. 481.º, n.º 2, do CSC, uma al. d): “A constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal”. Ao contrário das alíneas anteriores, esta não é dotada de um predicado, que permita surpreender cabalmente a mens legislatoris. Se, p. ex., na al. c), o legislador determina que “[a] sociedade com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, seja considerada dominante de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios, nos termos do artigo 83.º e, se for caso disso, do artigo 84.º”, já na al. d), em virtude da sua incompletude gramatical, somos levados a perguntar: “[a] constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal” o quê? É admitida? Com certeza, até aí a elipse do legislador deixa-nos indemnes na interpretação. Mas com que efeitos? Constitui-se uma relação de grupo, como se de uma holding com sede em Portugal se tratasse? Se a resposta for negativa, que consequências de regime retirar desta referência: p. ex., pode a sociedade totalmente dominante dar instruções desvantajosas? Responderá por perdas da dependente integral? Responderá perante credores desta? _______________________________________

o art. 488.º para sociedades por quotas, anónimas ou em comandita por acções que tenham sede em Portugal. Hoje, a validade dessa asserção depende do modo como se interprete a nova disposição do art. 481.º, n.º 2, d) (veja-se o ponto seguinte do texto). Atente-se ainda nas disposições que podemos encontrar no regime jurídico das sociedades gestoras de participações sociais (art. 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro); e tb. no regime especial para as sociedades por quotas e anónimas unipessoais licenciadas para operar na Zona Franca da Madeira, constituídas por não residentes em Portugal (art. 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 212/94, de 20 de Agosto).

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Ao que parece, na base da alteração terá estado a intenção de eliminar uma dificuldade interpretativa que se terá feito sentir em cartórios notariais e conservatórias do registo comercial, no sentido da possibilidade ou não de uma sociedade de estatuto pessoal estrangeiro se valer do regime do art. 488.º, n.º 1, e assim constituir, ab initio unilateralmente, uma filial portuguesa, sem a intervenção de quaisquer outros sócios85. Com a nova al. d) pretender-se-ia, tão-só, esclarecer afirmativamente o intérprete acerca dessa possibilidade, não estando subjacente uma tomada de posição acerca da aplicabilidade ou não do direito dos grupos português a sociedades de estatuto pessoal estrangeiro. Da nossa parte, e independentemente da bondade da opção legislativa, parece-nos que são ponderosos os argumentos em favor de uma interpretação do preceito que, por um lado, dele extraia a evidente admissibilidade da constituição de uma “filial a 100%”, sem que, porém, se constitua uma relação de grupo. Esta visão é desde logo sugerida por uma interpretação não derrogante do princípio ínsito no proémio do art. 481.º, n.º 2. Ao dizer-se que “[o] presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo quanto ao seguinte”, o legislador mostra-nos qual é a regra que se afirma: a da inaplicabilidade das normas sobre coligação de sociedades a relações intersocietárias com elementos de estraneidade em relação ao ordenamento jurídico português. E isso deve impedir-nos, ou ao menos aconselha-nos a fazê-lo, de nos estendermos em demasia na interpretação das alíneas seguintes, que surgem como desvios a essa regra, cientes da “natureza excepcional do universo normativo das sociedades coligadas”86. _______________________________________

Faz eco dessa realidade PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 668, n. 767. 86 Expressão de ENGRÁCIA ANTUNES, Os Grupos..., cit., p. 850. COUTINHO DE ABREU, Da empresarialidade – as empresas no direito, Almedina, Coimbra, 1996, p. 252: “a disciplina jurídica das ‘relações de grupo’ é especial, 85

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Efectivamente, na sua letra, a al. d) do art. 481.º, n.º 2, refere-se à “constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 488.º (...)”. E não, repare-se, nos termos do artigo 488.º. Onde está a diferença? Recorde-se que o art. 488.º tem um n.º 3: “[a]o grupo assim constituído aplica-se o disposto nos n.os 4, 5 e 6 do artigo 489.º”. O que regulam estas disposições? Exactamente aspectos respeitantes à extinção da relação de grupo: as suas causas [n.º 4, als. a), b) e c)], um dever de informação daí derivado para a dominante (n.º 5) e o dever de registo do termo da relação de grupo, a cargo da administração da dependente (n.º 687). Ora, em boa verdade, só faz sentido que o legislador não remeta, no art. 481.º, n.º 2.º, d), para as regras que, nos termos do art. 488.º, respeitam à extinção da relação de grupo, se a intenção do legislador é a de que não se constitua, desde o início, uma relação de grupo88. O legislador parece ter tido, tão-só, a intenção de “moralizar” a constituição de sociedades anónimas unipessoais por sociedades de estatuto pessoal estrangeiro, nos termos do art. 488.º do CSC. Com efeito, parecem ser na prática correntes situações em que a unipessoalidade, não existindo embora do ponto de vista formal – graças à colaboração, fácil de obter, de quatro outros sujeitos que componham o grémio social mínimo de cinco _______________________________________

rectius, é ‘excepcional’” (v. tb. p. 253); cfr. ainda RICARDO COSTA, A Sociedade por Quotas Unipessoal no Direito Português – Contributo para o estudo do seu regime jurídico, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 532-533. 87 Na parte que aqui interessa: pois este refere-se ainda ao “registo da deliberação referida na alínea c) do n.º 2”, mas esta reporta-se àquela outra hipótese de domínio total superveniente. A propósito, v. ainda os arts. 3.º, n.º 1, u), e 15.º, n.º 1, do Código do Registo Comercial. 88 A este aspecto esteve o legislador atento no Decreto-Lei n.º 212/94, relativo à Zona Franca da Madeira, ao prever no seu art. 5.º, n.º 2: “A sociedade unipessoal e a sociedade que totalmente a domine consideram-se em relação de grupo, independentemente da localização da sede da sociedade dominante, relação essa que termina nos casos previstos pelas alíneas b) e c) do n.º 4 do artigo 489.º do Código das Sociedades Comerciais”.

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sócios –, exista materialmente, com tais sujeitos a deterem uma ínfima parte do capital social, sem qualquer interesse na sua participação na sociedade criada que não o de satisfazer o propósito do sócio esmagadoramente maioritário. Esta intervenção legislativa afigura-se, pois, como ausente, no seu conteúdo, de preocupações verdadeiramente materiais, sobretudo quando verificamos que se mantém a possibilidade, à disposição de sociedades de estatuto pessoal estrangeiro, de constituir uma estrutura societária de direito português, sem que se sujeitem às regras materiais portuguesas de direito dos grupos: pensamos nas sociedades por quotas unipessoais89. Houvesse o legislador tido o propósito de vincular as sociedades dominantes estrangeiras, que actuem em Portugal através de estrutura societária criada para o efeito em Portugal, ao regime das sociedades coligadas, não faria mais sentido que a modificação do art. 481.º, _______________________________________

Não obstante haver opiniões no sentido de uma extensão analógica do regime dos grupos: v. ENGRÁCIA ANTUNES, Os Grupos..., cit., pp. 850-851. Não se omite que esta será especialmente difícil de aceitar no plano das relações intersocietárias transnacionais, sem que aí se veja uma violação da lei portuguesa, por isso que é o próprio legislador quem expressamente exclui a aplicação do regime das sociedades coligadas àquelas relações, no quadro da excepcionalidade que o caracteriza (art. 481.º, n.º 1). Deste argumento distingue-se aqueloutro, que não subscrevemos, de que o direito português se não poderia “impor” a uma sociedade dominante de estatuto pessoal estrangeiro, responsabilizando-a em termos que são desconhecidos do “seu” ordenamento. O direito português poderia, sim, “impor-se” nesses moldes, se houvesse sido considerada aceitável uma tal configuração do direito das sociedades português para as relações internacionais, porquanto se trata, tão-só, de estabelecer a conexão relevante, não cabendo, na orientação contemporânea do direito internacional privado português, a aferição do âmbito de aplicação de regras de direito português com base numa ideia de (des)respeito de soberanias estrangeiras (cfr., por todos, FERRER CORREIA, Lições..., cit., p. 277). Aliás, no direito alemão, é corrente a opinião da aplicabilidade da lei pessoal da sociedade dependente – lei alemã – nas relações de grupo em que é dominante uma sociedade-mãe estrangeira (v., com referências bibliográficas, KINDLER, in Münchener Kommentar..., cit., pp. 273, 279). 89

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n.º 2, nesse sentido interpretada, fosse acompanhada da intervenção do legislador sobre a articulação do mesmo regime com a regulamentação das sociedades por quotas unipessoais? Só assim se atingiria um propósito que não resulta claro da mera introdução do art. 481.º, n.º 2, d)90. Contudo, perante sociedades de estatuto pessoal estrangeiro que sejam beneficiárias do direito de estabelecimento, o problema complica-se de novo: repare-se como o não reconhecimento a sociedades “intra-comunitárias” dos vários poderes e instrumentos de coligação previstos nos arts. 481.º ss. do CSC (p. ex. a possibilidade legal de dar instruções vinculantes à administração da sociedade dependente ou subordinada; a celebração de convenções de atribuição de lucros, etc.) consubstanciaria, em si mesmo, uma restrição injustificada da liberdade de estabelecimento. Mas é igualmente certo que não poderíamos, ao mesmo tempo que lhes reconhecêssemos tais possibilidades, isentá-las das responsabilidades que a aplicação do Título VI pode acarretar (maxime perante credores e por perdas da dependente ou subordinada: arts. 502.º e 503.º do CSC). Por isso, estamos em crer que as linhas que antecedem não se aplicam a essas sociedades, que no caso em análise estarão em relação de grupo com a sociedade portuguesa que dominam, para efeitos da aplicação dos arts. 488.º ss. do CSC91. _______________________________________

Estamos assim em concordância com MARIA ÂNGELA BENTO SOARES, A sociedade anónima europeia: sociedade de direito comunitário?, in “Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier – Volume I – Congresso Empresas e Sociedades”, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 751-752. Com opinião diversa, ARMANDO TRIUNFANTE, Código das Sociedades Comerciais – Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 520-521. 91 V. mais desenvolvidamente RUI DIAS, Responsabilidade por Exercício de Influência..., cit., pp. 285 ss. 90

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3.2.2. Sentido e alcance do art. 481.º, n.º 2, do CSC: a autolimitação espacial e as normas sobre sociedades coligadas fora do Título VI do CSC No CSC, encontramos várias disposições que, embora referindo-se expressamente às relações de coligação entre sociedades – sobretudo às relações de domínio e de grupo –, se encontram todavia fora do Título VI, ao qual expressamente diz respeito a autolimitação espacial de que falámos. Pode então colocar-se a seguinte questão: serão essas regras aplicáveis em relações intersocietárias que envolvam sociedades não sedeadas em Portugal? Isto é, estarão essas disposições (i) sujeitas à autolimitação espacial prescrita pelo art. 481.º, n.º 2, ou antes (ii) dela excluídas, porque sistematicamente localizadas noutras divisões daquele Código? Não nos parece adequada uma resposta em bloco a favor da segunda sugestão com base numa mera interpretação literal do art. 481.º, n.º 2 (“O presente título aplica-se...”), por muito que se possa duvidar do bem-fundado da opção legislativa. É na ratio de cada uma das normas que recorrem aos conceitos de, p. ex., relação de domínio ou de grupo, que haveremos de encontrar a resposta à questão da sua aplicabilidade apenas nos casos em que o Título VI do CSC vigora, nos termos do art. 481.º, n.º 2, ou antes nos termos gerais que resultem do art. 3.º do CSC92. Só _______________________________________

Sobre o problema ou alguns dos seus afloramentos, pode ver-se desenvolvidamente ENGRÁCIA ANTUNES, Os Grupos..., cit., pp. 303 ss.; do mesmo Autor, O Âmbito de Aplicação do Sistema das Sociedades Coligadas, in Rui Manuel de Moura Ramos et al. (org.), “Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço”, vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 95 ss.; CARLOS OSÓRIO DE CASTRO e DIOGO LORENA BRITO, A concessão de crédito por uma SGPS às sociedades estrangeiras por ela dominadas (ou às sociedades nacionais indirectamente dominadas através de uma sociedade estrangeira) e o artigo 481.º, n.º 2 do C.S.C., in O Direito, 2004, I, pp. 131 ss. Cfr. tb. RUI DIAS, Responsabilidade por Exercício de Influência..., cit., pp. 243 ss. 92

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após a sua compreensão estará o intérprete apto a dizer se um preceito exterior ao Título VI do CSC se vale tão-só das definições legais de “relação de domínio ou de grupo”, aproveitandoas para a sua previsão, ou se, nessa remissão, estará antes pressuposta a aplicabilidade de outras normas jurídicas que constituem o regime jurídico da relação de domínio ou de grupo, por entre elas existir um nexo de sentido que o legislador não pretendeu quebrar, mesmo apesar da sua arrumação fora daquele Título. Ilustremos o critério, de seguida, com dois exemplos. 3.2.2.1. Em especial: o art. 413.º, n.º 2, a), do CSC A administração e a fiscalização de uma sociedade podem ser estruturadas segundo uma de três modalidades: conselho de administração e conselho fiscal; conselho de administração (que compreende uma comissão de auditoria) e revisor oficial de contas; ou conselho de administração executivo, conselho geral e de supervisão e revisor oficial de contas (art. 278.º, n.º 1, do CSC). No primeiro caso (conselho de administração e conselho fiscal), e nos termos do art. 413.º, n.º 1, do CSC, a estrutura de fiscalização societária pode consistir no seguinte: a) fiscal único (ROC) ou conselho fiscal (que inclui um ROC); b) conselho fiscal e ROC. Esta última variante, o chamado modelo tradicional, monista ou latino reforçado93, é obrigatória nos seguintes _______________________________________

V., com referências, GABRIELA FIGUEIREDO DIAS, Fiscalização de Sociedades e Responsabilidade Civil (após a Reforma do Código das Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 22 ss.; COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial – Volume II – Das Sociedades, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, pp. 59 ss.; PAULO CÂMARA, Os modelos de governo das sociedades anónimas, in António Menezes Cordeiro, Paulo Câmara (coord.), “A Reforma do Código das Sociedades Comerciais – Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura”, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 219 ss. 93

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casos: “em relação a sociedades que sejam emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado e a sociedades que, não sendo totalmente dominadas por outra sociedade, que adopte este modelo, durante dois anos consecutivos, ultrapassem dois dos seguintes limites: (i) Total do balanço – € 100 000 000; (ii) Total das vendas líquidas e outros proveitos – € 150 000 000; (iii) Número de trabalhadores empregados em média durante o exercício – 150” [art. 413.º, n.º 2, a), do CSC]. Ora, é no sublinhado que fizemos que se coloca a questão a analisar: estará desvinculada da obrigatoriedade de adopção desta estrutura reforçada a sociedade anónima, com sede em Portugal, cujas acções sejam a 100% detidas por uma outra sociedade que não tenha como lei pessoal a lei portuguesa? Conforme acima anunciado, é importante compreender qual é a função sócio-jurídica de um tal preceito. Ele surge pensado para as sociedades cotadas e de grande dimensão, onde necessidades reforçadas de fiscalização fazem com que imperativamente se preveja uma separação entre as funções e poderes de fiscalização, por um lado, e de revisão legal de contas, por outro94. Assim são acautelados os interesses de todos aqueles que celebram negócios com a sociedade, bem como os seus accionistas minoritários. Mas existindo já esta estrutura na cúpula da relação intersocietária, e não havendo accionistas minoritários porque o domínio é total, não haveria razões que justificassem a necessidade de replicá-la (e os custos a ela associados) também para a totalmente dominada95. _______________________________________

V. GABRIELA FIGUEIREDO DIAS e PAULO CÂMARA, obs. e locs. cits., sublinhando a necessidade, decorrente das regras comunitárias sobre auditoria (Directiva n.º 2006/43/CE, de 17 de Maio de 2006), de existir um órgão, que não o próprio revisor, encarregado de fiscalizar a independência deste. 95 Com a qual, aliás, existirá frequentemente consolidação das contas. A este propósito, um paralelo interessante pode ser traçado com o art. 3.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 238/91, de 2 de Julho, alterado: “Não obstante o disposto nos números anteriores, é ainda dispensada da obrigação de elaborar contas 94

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Ora, que dizer quando a referida sociedade dominante não está sujeita à lei portuguesa, mas respeita modelo equivalente ao por ela previsto na disposição em análise? As suas razões de ser mantêm-se plenamente perante a realidade transnacional descrita, pelo que nos parece ser de interpretar o art. 413.º, n.º 2, a), no sentido de que também estão isentas da adopção do modelo reforçado as sociedades totalmente dominadas por uma sociedade de lei pessoal estrangeira que já o adopte. No plano comunitário, estamos em crer que é esta a mais adequada interpretação da norma, em face do necessário respeito pelas liberdades fundamentais e a inadmissibilidade da sua restrição injustificada. À semelhança do que vimos acima para o art. 4.º do CSC, esta parece ser uma daquelas normas insusceptíveis de serem aplicadas de modo discriminatório a sociedades beneficiárias das liberdades comunitárias. Suponha-se p. ex. a sociedade constituída e com sede em Itália, que tem como filial a 100% uma sociedade anónima de direito português e com sede no nosso País: se esta última ultrapassar dois dos limites estabelecidos no art. 413.º, n.º 2, a), ela terá de considerar-se desobrigada da adopção do modelo de fiscalização reforçado, desde que a sociedade italiana já o adopte. Mas também perante sociedades totalmente dominantes que não beneficiem dessa liberdade a questão se coloca, e mesmo aí se nos afigura adequada a interpretação referida. Poderão é, porventura, ser criadas maiores ou menores dificuldades ao intérprete, consoante a menor ou maior proximidade da estrutura de _______________________________________

consolidadas qualquer empresa-mãe que seja também uma empresa filial, quando a sua própria empresa-mãe esteja subordinada à legislação de um Estado membro das Comunidades Europeias e: a) For titular de todas as partes de capital da empresa dispensada, não sendo tidas em consideração as partes de capital desta empresa detidas por membros dos seus órgãos (...); b) Detiver 90%, ou mais, das partes de capital da empresa dispensada da obrigação e os restantes titulares do capital desta empresa tenham aprovado a dispensa”.

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fiscalização estrangeira em análise em face do regime português. Isto porque, em todo o caso, sempre se exigirá que a dominante adopte ela própria um modelo que seja equivalente ao que a lei portuguesa aqui exige, e que portanto acautele os interesses que este pretende acautelar. É o que a interpretação do passo da lei “que adopte este modelo” impõe, estando-se aqui perante um problema de substituição, tal como ele é colocado e estudado no direito internacional privado96. 3.2.2.2. Em especial: o art. 414.º-A, n.º 1, c), do CSC Podemos encontrar um problema semelhante ao cotejarmos a al. c) do art. 414.º-A, n.º 1, do CSC: “Não podem ser eleitos ou designados membros do conselho fiscal, fiscal único ou revisor oficial de contas: (...) c) Os membros dos órgãos de administração de sociedade que se encontre em relação de domínio ou de grupo com a sociedade fiscalizada”. Já sabemos que a relação de domínio ou de grupo só se constitui quando ambas as sociedades têm sede em Portugal, ou também, segundo defendemos, quando estamos perante relações intersocietárias com sociedades beneficiárias da liberdade de _______________________________________

V. recentemente, a resolução do Institut de Droit International, La substitution et l’équivalence en droit international privé (relatores: ERIK JAYME e ANDREAS BUCHER), tomada na sessão de Santiago do Chile, em 27 de Outubro de 2007, disponível em www.idi-iil.org e tb. IPrax, 2008, p. 297. Cfr. ERIK JAYME, Substitution und Äquivalenz im Internationalen Privatrecht – 73. Tagung des Institut de Droit International in Santiago de Chile, in IPrax, 2008, p. 298. V. BAPTISTA MACHADO, Problemas na aplicação do direito estrangeiro – adaptação e substituição, in BFD, 1960, vol. XXXVI, pp. 339 ss.; MARQUES DOS SANTOS, Breves considerações sobre a adaptação em Direito Internacional Privado, in “Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional”, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 54 ss.; LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado — Volume I – Introdução e Direito de Conflitos – Parte Geral, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, pp. 561 ss. 96

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estabelecimento. Que dizer, porém, quando se questione a elegibilidade, como membro do órgão de fiscalização de uma sociedade anónima com sede em Portugal, de um administrador de sociedade dominante não sujeita ao Título VI do CSC? Será que a inexistência de uma relação de domínio ou de grupo, em sentido técnico, faz com que desapareça a incompatibilidade prevista no preceito, como a sua interpretação literal sugeriria? Não nos parece, para o que novamente convocamos a necessidade de analisar a ratio da norma. Na sua origem estará a intenção de evitar ou limitar a possibilidade do surgimento de conflitos de interesses que possam prejudicar o desempenho do cargo97, assim se neutralizando o perigo98 decorrente de certas proximidades. Ora, tal conflito é susceptível de se afirmar, seja ou não aplicável o Título VI, razão pela qual a norma deve ser interpretada no sentido de abranger também como inelegíveis os administradores de outras sociedades, às quais aquele Título não se aplique, mas que disponham ao menos de uma influência dominante sobre a sociedade de lei pessoal portuguesa. 4. Arbitragem internacional em matéria societária 4.1. Generalidades A arbitragem voluntária é um modo de resolução de litígios conhecido pela sua normal celeridade e flexibilidade, quando _______________________________________

PEDRO DE ALBUQUERQUE, Os limites à pluriocupação dos membros do conselho geral e de supervisão e do conselho fiscal, Almedina, Coimbra, 2007, p. 32. 98 Expressão de COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial..., cit., p. 244 (a propósito dos conflitos de interesses ao nível dos impedimentos de voto dos sócios). 97

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posta em contraponto com o recurso aos tribunais judiciais portugueses. Muitas vezes, ela é preferida pelas sociedades que actuam no comércio internacional, ao nível dos negócios jurídicos que entre si celebram no mercado99. Às características do processo arbitral acresce o facto de que, graças à Convenção de Nova Iorque de 1958 sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras100, actualmente em vigor em mais de cento e quarenta Estados, é potencialmente mais fácil obter o reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira no Estado onde se pretende executá-la do que o reconhecimento de uma sentença judicial estrangeira que contenha exactamente a mesma decisão101. Ora, também perante litígios societários – isto é, não aqueles que opõem uma sociedade a qualquer outra pessoa, singular ou colectiva, no âmbito de negócios jurídicos celebrados ou p. ex. _______________________________________

Sobre as razões que o motivam, v. FERRER CORREIA, Da arbitragem comercial internacional, in “Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado”, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 173 ss.; MOURA VICENTE, Da Arbitragem Comercial Internacional – Direito Aplicável ao Mérito da Causa, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, pp. 17 ss.; MARIA ÂNGELA BENTO SOARES e RUI MANUEL MOURA RAMOS, Contratos Internacionais, Almedina, Coimbra, 1995, pp. 321 ss.; LIMA PINHEIRO, Cláusulas típicas dos contratos do comércio internacional, in Lima Pinheiro (coord.), “Estudos de Direito Comercial Internacional”, vol. I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 264 s. 100 Ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 52/94, de 8 de Julho, esta Convenção entrou em vigor no nosso País em 16 de Janeiro de 1995 (cfr. Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 142/95, de 21 de Junho). 101 Justificando o crescente favor arbitrandum, a par de razões que se associam a reflexos, que naturalmente também aqui se fazem sentir, da liberalização do comércio internacional ou globalização da economia, não podem ser ingenuamente esquecidas razões como a influência de grupos de interesses, ligados à prática jurídica, com plena consciência do mercado que, em si própria, a arbitragem significa: assim HORATIA MUIR-WATT e LUCA RADICATI DI BROZOLO, Party Autonomy and Mandatory Rules in a Global World, in Global Jurist Advances, Vol. 4, Issue 1, 2004, Article 2, p. 3. 99

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relativos a responsabilidade civil em que a sociedade é agente ou lesada; mas sim aqueles que, opondo p. ex. accionistas a outros accionistas enquanto tais, a administradores ou até à própria sociedade, tangem aspectos da própria vida societária – poderá haver interesse em submetê-los a tribunal arbitral, pelas vantagens que os intervenientes aí possam encontrar. Na prática, a questão coloca-se, mais frequentemente, ao nível das arbitragens internas, mas pode também surgir em arbitragens estrangeiras, cuja decisão arbitral se pretenda reconhecer e executar em Portugal, e internacionais, que a nossa Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) define, na linha da tradição francesa, como sendo as que “põem em jogo interesses do comércio internacional”102. Porém, antes de mais, perguntar-se-á: serão as controvérsias societárias susceptíveis de serem subtraídas, por acto de vontade, aos tribunais estaduais e resolvidas por árbitros? Por outras palavras, serão esses litígios objectivamente arbitráveis? A chamada arbitragem societária não vem merecendo uma atenção especial da nossa doutrina103, em contraste com o que se passa em países próximos, onde doutrina, jurisprudência e até mesmo o legislador (é este o caso em Itália) sobre ela se vêm debruçando. Muitos outros problemas, para além da arbitrabilidade, se podem levantar a esse nível, tais como: a vinculação de sócios, administradores e eventualmente alguns terceiros a cláusulas compromissórias que constem do contrato de sociedade, nos diversos tipos societários; a inserção das mesmas em pactos _______________________________________

V. ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, L’arbitrage international dans la récente loi portugaise sur l’arbitrage volontaire (Loi n.º 31/86, du 20 août 1986) – Quelques réflexions, in “Droit International et Droit Communautaire”, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris, 1991, pp. 58 ss. 103 Mas v. RAÚL VENTURA, Convenção de Arbitragem, in ROA, 1986, pp. 340-345; LIMA PINHEIRO, Arbitragem Transnacional – A Determinação do Estatuto da Arbitragem, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 107-108. 102

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parassociais; a (im)possibilidade de julgamento segundo a equidade; a arbitrabilidade (subjectiva) de litígios no caso de sociedades participadas pelo Estado ou por outros entes públicos; o efeito de caso julgado; etc. Vamos cingir-nos, nas próximas linhas, a deixar algumas notas preliminares sobre o problema da arbitrabilidade objectiva. Em particular, referir-nos-emos aos litígios atinentes à impugnação de deliberações sociais e à responsabilidade de membros dos órgãos sociais. 4.2. Arbitrabilidade de litígios societários 4.2.1. Aplicação da lex fori Antes de mais, convém averiguar, perante uma arbitragem internacional, em face de que lei devemos aferir a arbitrabilidade de um litígio societário. A resposta ao problema pode, em teoria, variar consoante a entidade perante o qual ele é colocado, bem como o momento processual em que isso é feito. Se é o tribunal estadual português chamado a responder, temos que atentar na LAV e o seu âmbito de aplicação no espaço, a saber, as “arbitragens que tenham lugar em território nacional” (art. 37.º). Significa isto que, em arbitragens que aqui tenham lugar, o critério de arbitrabilidade é o definido nessa lei, no seu art. 1.º, n.º 1: “Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros”. Porém, quando o tribunal estadual português é chamado a apreciar o problema no quadro de um processo arbitral que tenha lugar fora de Portugal, não encontramos resposta expressa na LAV, em face da autolimitação espacial descrita. Não parece

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fazer sentido a bilateralização do critério constante do art. 37.º, pois deverá caber a cada lei de arbitragem estrangeira determinar o seu próprio campo de aplicação. Em face disso, a solução que se vem privilegiando é a da aplicação da lei do foro (a lex fori) quanto ao problema da arbitrabilidade. Ela é coerente com o art. V, n.º 2, a), da Convenção de Nova Iorque, que admite a recusa do reconhecimento e execução de sentença arbitral estrangeira “se a autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução foram pedidos constatar que, de acordo com a lei desse país, o objecto de litígio não é susceptível de ser resolvido por via arbitral”104. Se, diferentemente, é o próprio tribunal arbitral que aprecia a questão da arbitrabilidade, em sede de verificação da validade da convenção de arbitragem, a circunstância de a arbitragem ter lugar em território nacional convoca as regras da LAV (arts. 37.º e 1.º, n.º 1). Quando se trata de um tribunal arbitral que funciona sob a égide de uma outra lei e é previsível a necessidade de reconhecimento e execução do laudo arbitral em Portugal (p. ex. porque a parte vencida não cumpre a decisão e aqui estão situados os seus bens mais valiosos), deverão os árbitros estar cientes de que o tribunal estadual português a quem seja pedida a execução atentará na lex fori quanto ao problema da arbitrabilidade (cfr. art. V, n.º 2, a), da Convenção de Nova Iorque de 1958 e o que há pouco dissemos). Em suma, faz todo o sentido que procuremos em seguida determinar a arbitrabilidade dos litígios societários à luz da lei portuguesa (lex fori). _______________________________________

V. KARL HEINZ SCHWAB e GERHARD WALTER, Schiedsgerichtsbarkeit – Systematischer Kommentar zu den Vorschriften der Zivilprozeßordnung, des Arbeitsgerichtsgesetzes, der Staatsverträge und der Kostengesetze über das privatrechtliche Schiedsgerichtsverfahren, C. H. Beck, Helbing & Lichtenhahn, 2005, p. 386; PETER SCHLOSSER, Das Recht der internationalen privaten Schiedsgerichtsbarkeit, 2. Aufl., J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen, 1989, pp. 219 ss. 104

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4.2.2. Critério da arbitrabilidade; ausência de resposta unívoca No art. 1.º, n.º 1, da LAV, que se dedica ao problema, foi consagrado o critério da disponibilidade dos direitos. A adequação e oportunidade do critério da disponibilidade, sobretudo em face do critério da patrimonialidade – por muitos defendido e consagrado em algumas legislações estrangeiras105 – suscita dúvidas especiais quando o aplicamos a litígios do domínio do direito das sociedades. Atentemos nas palavras de J. TAVARES DE SOUSA, que nos permitimos transcrever e subscrever: “A formulação adoptada centrou-se nos direitos subjectivos clássicos, perdendo de vista os direitos onde prevalece a dimensão funcional dos mesmos e, consequentemente, aparece debilitado o aspecto da disponibilidade do titular. Para além dos contratos comutativos, que constituem o modelo da teorização normativa prevalecente, existem outras variantes, com especificidades próprias, a exemplo do que acontece com os contratos associativos que conferem posições jurídicas impossíveis de arrumação num esquema de compreensão centrado na ideia do _______________________________________

No direito alemão, rege hoje o § 1030 (1) ZPO (Zivilprozeßordnung), que determina, numa primeira frase, a possibilidade de serem submetidas a árbitros quaisquer pretensões de carácter patrimonial (jeder vermögensrechtliche Anspruch), para em seguida estabelecer, quanto a direitos não patrimoniais, o critério da susceptibilidade de transacção (ou transigibilidade – Vergleichsfähigkeit ) – isto é, a possibilidade de as partes transigirem sobre o objecto do litígio que pretendem submeter a arbitragem (... die Parteien berechtigt sind, über den Gegenstand des Streites einen Vergleich zu schließen). V. SCHLOSSER, Das Recht der internationalen privaten Schiedsgerichtsbarkeit, cit., p. 209; SCHWAB e WALTER, Schiedsgerichtsbarkeit..., cit., p. 29. A lei suíça, no que toca à arbitragem internacional, também consagra o critério da patrimonialidade da pretensão, o que inclui o essencial dos litígios relativos ao direito das sociedades. Assim, e mais desenvolvidamente quanto a estes critérios e sua consagração em diversos países, LIMA PINHEIRO, Arbitragem Transnacional...cit., pp. 104 ss. 105

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aproveitamento individualizado das posições jurídicas deles resultantes. Podem, por conseguinte, gerar-se dúvidas sobre a arbitrabilidade, em face do direito vigente, de questões do direito das sociedades que, no plano dos princípios, se mostram susceptíveis de decisão em tribunal arbitral. Conhecidas as insuficiências do critério seguido na LAV e as garantias processuais de que gozam as partes no processo arbitral, tudo indica que o intérprete pode operar com uma noção lata de disponibilidade, de modo a aproximá-la da característica da patrimonialidade dos direitos envolvidos.”106

Sublinhe-se, em acréscimo, que a apreciação da arbitrabilidade dos litígios societários não é passível de uma resposta unívoca para todos eles: antes haverá que atentar nas características de cada fórmula processual107. Vejamos de seguida dois exemplos. 4.2.3. Em especial: as acções de impugnação de deliberações sociais A arbitrabilidade objectiva das acções de impugnação de deliberações sociais suscita dúvidas. É verdade que o Relatório SCHLOSSER, elaborado aquando da adesão, em 1978, do Reino Unido e outros Estados-membros à Convenção de Bruxelas de 1968108, é muito claro no sentido favorável à arbitrabilidade, ao dizer: “The 1968 Convention as such in no way restricts the freedom of the parties to submit disputes to arbitration. This applies even to proceedings for which _______________________________________

JOSÉ EDUARDO TAVARES DE SOUSA, em apontamentos disponibilizados aos alunos de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2007/2008, pp. 17-18. 107 V. p. ex., recentemente, PERRY HERZFELD, Prudent Anticipation? The Arbitration of Public Company Shareholder Disputes, in Arbitration International, Vol. 24, Iss. 2, p. 318. 108 JO C 59, de 05.03.1979, pp. 71 ss.. 106

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the 1968 Convention has established exclusive jurisdiction”109. Um outro ponto de apoio para esta perspectiva é o seguinte: não obstante a definição de competências exclusivas no art. 16.º da Convenção de Bruxelas, a que corresponde o art. 22.º Bruxelas I, resulta da exclusão da arbitragem do respectivo âmbito de aplicação, pelo art. 1.º de cada um dos instrumentos, que essas mesmas regras de competência exclusiva em nada poderão relevar na determinação da arbitrabilidade do litígio. Elas como que definiriam imperativamente entre os Estados Signatários ou Membros a competência exclusiva dos tribunais, mas apenas quando a jurisdição estadual fosse chamada a resolver o litígio, já não quando a mesma lhe é subtraída por convenção de arbitragem, porquanto esta escapa ao âmbito de aplicação do Regulamento (cfr. o art. 1.º). Contudo, vozes autorizadas, como a de BENEDETTELLI, pronunciam-se contra a arbitrabilidade dos litígios submetidos a competência exclusiva pelo art. 22.º, n.º 2 Bruxelas I110. Com efeito, diz-se, a validade de deliberações sociais é uma questão que, ratione materiae, cai dentro deste âmbito de aplicação, pelo que não é o facto de as partes terem celebrado uma convenção de arbitragem que as autoriza a derrogar as competências exclusivas, definidas imperativamente, e que aliás nem podem ser prejudicadas por pactos de jurisdição (v. art. 23.º, n.º 5, Bruxelas I111). _______________________________________

§ 63, na p. 93 do citado Relatório, que prossegue: “Nor, of course does the Convention prevent national legislation from invalidating arbitration agreements affecting disputes for which exclusive jurisdiction exists under national law or pursuant to the 1968 Convention.” 110 BENEDETTELLI, Brussels I, Rome I and Issues of Company Law, in Johan Meeusen et al. (eds.), “Enforcement of International Contracts in the European Union – Convergence and divergence between Brussels I and Rome I”, Intersentia, Antwerp, Oxford, New York, 2004, pp. 249-250. 111 Onde se prevê: “Os pactos atributivos de jurisdição (…) não produzirão efeitos (…) se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 22.º”. 109

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Poderia mesmo avançar-se como argumento contra a arbitrabilidade, em Portugal, a circunstância de a própria LAV começar por definir o critério de arbitrabilidade nos seguintes termos: “Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial (...)”. Nessa perspectiva, o texto legal serviria de base à afirmação da não arbitrabilidade de litígios submetidos a regras de competência legal exclusiva, como são as impugnações de deliberações sociais por força dos arts. 22.º, n.º 2, Bruxelas I, e 65.º-A, c), do CPC. Não obstante, o argumento literal pode ser rebatido mesmo no (fraco) plano da própria letra, porquanto o art. 1.º, n.º 1, da LAV afasta da arbitragem controvérsias que por lei especial estejam submetidas exclusivamente ao tribunal judicial, i.e., à jurisdição estadual, em contraste com a jurisdição arbitral; e não controvérsias submetidas à competência legal exclusiva de uma jurisdição estadual, em contraste com outras jurisdições estaduais estrangeiras. Pois bem: cremos que uma resposta satisfatória só pode ser encontrada depois de atentarmos, por um lado, nas razões subjacentes à criação de competências exclusivas, que acima elencámos (2.3.1.), e, por outro lado, na concreta realidade societária, nomeadamente o carácter mais ou menos aberto da sociedade – porventura tão ou mais importante a este nível que o próprio tipo legal societário. Ora, de entre aquelas razões, são aqui convocáveis a tutela de interesses de terceiros que se relacionem com a sociedade e a garantia do cumprimento de certas formalidades e da aplicação de regras imperativas da lei do Estado da sede, por serem as únicas que não se afiguram plenamente “disponíveis” pelas partes. Contudo, justificarão elas, por si só, a interpretação que exclua a arbitrabilidade de todas as controvérsias que respeitem à validade ou invalidade das decisões de órgãos sociais? É duvidoso, se pensarmos nas realidades societárias mais fechadas, bem como em deliberações que produzem efeitos pouco ou nada relevantes para o exterior, e não esquecermos também as incertezas que hoje se colocam acerca

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da noção relevante de sede para o art. 22.º, n.º 2, Bruxelas I (v. supra 2.3.3.), que por si só põem em causa a satisfação das exigências normativas em que o preceito se funda. Sempre diremos, de todo o modo, que as nossas dúvidas no plano do direito constituído112 se dissipam, em favor da arbitrabilidade objectiva destes litígios, no plano de jure condendo, uma vez que sejam satisfeitas as garantias de publicidade (p. ex. através do registo obrigatório dos processos arbitrais de impugnação de deliberações sociais), de tutela de interesses de terceiros (p. ex., prevendo-se expressamente e regulando-se a sua participação processual por meio de incidente de intervenção de terceiros) e de protecção dos interesses dos sócios (p. ex., através da acessibilidade aos sócios – e apenas a eles, para salvaguarda da confidencialidade – dos elementos processuais)113. 4.2.4. Em especial: as acções de responsabilidade Quando a sociedade ou os sócios pretendam demandar membros dos órgãos sociais, maxime administradores, pelos _______________________________________

Veja-se, com muito interesse, o acórdão da Relação de Lisboa de 29.04.2008 (relatado por AFONSO HENRIQUE CABRAL FERREIRA), disponível em www.dgsi.pt, onde em momento algum do aresto se pôs em causa a arbitrabilidade da controvérsia, que respeitava à impugnação de deliberações sociais. No mesmo sentido, cfr. já o acórdão do mesmo Tribunal, de 15.04.1986, citado por LIMA PINHEIRO, Arbitragem Transnacional..., cit., p. 107, n. 246. RAÚL VENTURA, Convenção de Arbitragem, cit., pp. 342-343, afirmava-se inclinado para a solução da Cassazione italiana, no sentido de que “do âmbito da operatividade da cláusula compromissória, devem ser excluídas apenas as controvérsias relativas à impugnação da assembleia que respeitem a direitos de terceiros ou ao interesse geral da sociedade no regular desenvolvimento das actividades sociais em conformidade com as previsões normativas ou estatutárias”. 113 Todas estas soluções vão ao encontro do previsto no art. 35 do Decreto Legislativo de 17 de Janeiro de 2003, n.º 5, que regula em Itália a arbitragem societária. 112

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danos que estes tenham causado àquela e/ou a todos ou a um daqueles, pode igualmente questionar-se a admissibilidade de uma cláusula compromissória sobre esta sorte de controvérsia. A nossa doutrina chama a atenção para a importância que aqui assume o art. 74.º, n.º 2, do CSC: “A sociedade só pode renunciar ao seu direito de indemnização ou transigir sobre ele mediante deliberação expressa dos sócios, sem voto contrário de uma minoria que represente pelo menos 10 % do capital social; os possíveis responsáveis não podem votar nessa deliberação”. Perante regra semelhante no direito pretérito (o art. 19.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 49 381, de 15 de Novembro de 1969), entendia RAÚL VENTURA, na linha de alguma doutrina italiana, que, podendo a autorização para a renúncia ou transacção resultar somente de deliberação da assembleia geral, em que não vote contrariamente a referida minoria de pelo menos 10% do capital social, não faria sentido que a autorização dos sócios que condiciona o recurso à arbitragem pudesse tão-só resumir-se a uma cláusula estatutária, tendo a assembleia de sócios que autorizar o litígio concreto – o que, está bem de ver, não seria compatível com uma prévia cláusula compromissória de fonte estatutária114. Por seu turno, sustenta LIMA PINHEIRO: “No que toca à responsabilidade dos gerentes, administradores e directores perante a sociedade, parece que os requisitos estabelecidos para a disponibilidade do direito de indemnização (designadamente para a renúncia ou transacção) devem constituir também requisitos da arbitrabilidade”115. _______________________________________

RAÚL VENTURA, Convenção de Arbitragem, cit., pp. 344-345. LIMA PINHEIRO, Arbitragem Transnacional..., cit., p. 108. A referência aos “directores” é hoje (desde a reforma de 2006) de desatender, após a unificação terminológica no CSC em torno da palavra “administrador”, em detrimento de “director”. 114

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Estamos em crer, não obstante o paralelismo normal entre as noções de arbitrabilidade, disponibilidade e transigibilidade116, que não é a circunstância de se imporem condicionalismos à transacção (no caso, uma deliberação social nos termos do art. 74.º, n.º 2, do CSC) que torna o litígio necessariamente inarbitrável, ou sequer insusceptível de ser objecto de uma cláusula compromissória validamente inserida nos estatutos. Há aqui, de facto, uma importante nuance a registar: é a própria lei societária, no passo citado, que afirma a disponibilidade do direito de indemnização, pois aceita que a sociedade (i) renuncie a esse direito e (ii) transija sobre ele; simplesmente se sujeita essa disposição a um “condicionamento da formação da vontade da sociedade”, que visa proteger sócios minoritários117. Uma noção lata de disponibilidade, como aquela a que se refere J. TAVARES DE SOUSA, que a aproxime da patrimonialidade dos direitos sempre que, como é o caso, aquele critério se revele fundamentalmente inadequado, permite-nos sustentar a admissibilidade de uma cláusula compromissória estatutária que submeta essas lides a árbitros, ficando apenas as eventuais renúncia (p. ex. por desistência do pedido perante a instância arbitral) ou transacção (por celebração de acordo que ponha fim ao litígio perante essa instância118) dependentes da referida especialidade na formação da vontade societária – i.e., a deliberação que respeite as imposições do art. 74.º, n.º 2, do CSC. Não há quaisquer imperativos ao nível da protecção da minoria considerada pelo art. 74.º do CSC que sejam colocados em causa com a _______________________________________

Cfr. o art. 1249.º do CC: “As partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos”, lembrando-se ainda que a arbitrabilidade é, nos termos do art. 1.º, n.º 1, da LAV, função da disponibilidade do direito. 117 RAÚL VENTURA, Convenção de Arbitragem..., cit., p. 344. 118 Excluímos aqui, naturalmente, a transacção preventiva (cfr. art. 1248.º do CC), porquanto aí não chega a colocar-se a questão da arbitrabilidade, aplicando-se o prescrito no art. 74.º, n.º 2, do CSC. 116

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arbitragem. Assim, supondo-se a válida vinculação dos administradores à convenção arbitral, tudo se passa de modo idêntico ao que acontece no processo judicial: basta a simples maioria para intentar uma acção de responsabilidade (cfr. art. 75.º, n.º 1, do CSC), e a intervenção ou concordância daquela minoria não é de nenhum modo exigida pela lei, que não nos mencionados casos de renúncia e de transacção. Isto, naturalmente, sem prejuízo do direito de informação que sempre será reconhecido aos sócios, nos termos gerais, acerca do decurso do processo arbitral. Aceitando-se a validade de uma tal cláusula compromissória, mais facilmente se resolve o problema da possibilidade de se celebrar compromisso arbitral (isto é, a convenção de arbitragem que tem “por objecto um litígio actual, ainda que se encontre afecto a tribunal judicial”: art. 1.º, n.º 2, da LAV). Neste caso, do lado da sociedade, pressupõe-se uma deliberação dos sócios por simples maioria (art. 75.º, n.º 1, do CSC). E, estando assim o litígio já concretizado, nada obsta a que essa deliberação se refira igualmente à possibilidade de os representantes da sociedade no processo arbitral transigirem sobre a relação material controvertida, o que mais uma vez será plenamente regular, desde que não exista voto contrário de minoria representativa de pelo menos 10% do capital social (art. 74.º, n.º 2, do CSC).

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