As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas

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As sombras do real: a visão de mundo gótica e as poéticas realistas1 Júlio França (UERJ – Brown University/CAPES)

A visão de mundo gótica A leitura da ficção brasileira produzida entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX revela-nos como são sombrias as obras produzidas pelas poéticas realistas. Refiro-me não apenas àquelas narrativas que a tradição consagrou como realistas, mas também às ditas naturalistas, e a todas que se propuseram dar conta daquilo que se convencionou chamar de realidade – e foram consideradas bem sucedidas pela recepção crítica. E o que chamo de “sombria” é a visão de mundo que enforma uma série de romances, novelas e contos que demonstram uma percepção desencantada, pessimista e negativa do espaço e do tempo com os quais dialogam. Não estará aqui em questão quão acurada é a representação da realidade encetada por essas narrativas. O que proponho neste ensaio é demonstrar como grande parte das obras consideradas “realistas” e, especialmente, “naturalistas”, no período estudado (1870-1920), manifestam uma inopinada presença de elementos e procedimentos comuns a uma estética tradicionalmente entendida como antirrealista: o Gótico. Pode parecer, portanto, quase uma contradição em termos defender que as poéticas realistas brasileiras estão impregnadas por uma visão de mundo gótica. A suposta incoerência dessa afirmação basear-se-ia na compreensão do senso-comum – e não de todo descabida, ressalve-se – de que o Gótico se caracteriza por seus elementos sobrenaturais, incompatíveis, pois, com projetos estéticos de representação do mundo real. A literatura gótica, contudo, possui, desde sua origem, duas tradições opositivas: a linhagem de Horace Walpole, a do horror sobrenatural, que se contrapunha ao racionalismo e ao realismo que começavam a se impor nos romances do final do século XVIII, e a linhagem de Ann Radcliffe, em que o elemento sobrenatural é subjugado pela razão, e os atos humanos são a causa dos verdadeiros horrores (cf. COLAVITO, 2008, p. 44). “Gótico”, sobretudo, é um conceito fugidio e um termo com uma notável capacidade de adaptação a contextos de pensamento diversos. Sua história é longa e rocambolesca, e faz parecer inglória qualquer tentativa de conciliar seus significados mais restritos com seus usos mais amplos. Ao longo de séculos, tem sido empregado para rotular as mais díspares ideias, tendências, autores e obras, e, nas últimas décadas, especialmente, a palavra passou a funcionar como um termo “guardachuva”, tendo seu sentido diluído e sua força conceitual esvaziada. Qualquer consulta ao vocábulo apontará pelo menos quatro sentidos principais: (i) um                                                                                                                 1

CHIARA, Ana; ROCHA, Fátima Cristina Dias, org. Literatura Brasileira em Foco VI; em torno dos realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2015. (pp. 133-146)  

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adjetivo pátrio, que se refere a uma das tribos germânicas responsáveis diretamente pela queda do Império Romano; (ii) o termo depreciativo que os renascentistas utilizaram para nomear a arquitetura da Idade Média; (iii) o estilo dos romances escritos entre o fim do século XVIII e o início do XIX, sobretudo na Inglaterra, notabilizados pela produção do horror e/ou terror como efeito de recepção; (iv) uma subcultura de arte e moda contemporânea, caracterizada pelo apreço pelos temas da melancolia, do horror e da morte. Correlacionar tais significações seria possível, se seguíssemos a errante deriva da palavra, mas fugiria aos objetivos propostos. Importa aqui apenas circunscrever o significado do termo ao contexto da afirmação central deste trabalho. Para tanto, é necessário, em primeiro lugar, entender o Gótico menos como um movimento artístico coerente, restrito a um local e a um momento histórico muito específicos, e muito mais como uma tendência do espírito moderno, que afetou profundamente os modos de pensar, de sentir e de expressar a arte na modernidade. O Gótico seria como uma faceta da natureza humana, que permearia várias manifestações da cultura (STEVENS, 2012, p. 31), e teria se consolidado, no campo da arte, como uma estética negativa: A bondade, seja em termos morais, estéticos ou sociais, não se faz presente nos textos góticos. É o vício que lhe interessa: os protagonistas são egoístas ou maus; as tramas envolvem decadência ou crime. Seus efeitos, estéticos e sociais, são repletos de características negativas – não há beleza, nem demonstrações de harmonia ou proporção. Deformados, obscuros, feios, lúgubres e completamente avessos aos efeitos do amor, da afeição ou dos prazeres nobres, os textos góticos inscrevem a repulsa, o ódio, o medo, a aversão e o terror. (BOTTING, 2014, p. 2. Tradução minha.)

A atração do Gótico pelos prazeres estéticos negativos – o sublime da tradição burkeana, o grotesco, o art-horror etc. – é o resultado da combinação entre uma visão de mundo desencantada e uma linguagem artística que dela se depreende. Os textos góticos fazem convergir uma forma artística altamente estetizada – exatamente porque desprendida da realidade imediata – e uma percepção desiludida da realidade social, do futuro que o progresso científico nos reserva, e, especialmente, da própria natureza do homem, vítima que é da crueldade inerente que nos anima, algo que Allan Poe (2005) chamou de nosso “Demônio da Perversidade”. A relação que se estabelece entre a forma literária e o que ela expressa, representa ou significa, seja de modo intencional ou não, é sabidamente complexa e problemática, mas nunca acidental ou arbitrária. As convenções e os maneirismos do Gótico são, menos do que delírios da razão, uma linguagem artística plenamente capaz de dar conta de uma ideia do homem e da sociedade profundamente enraizada na modernidade. O irrealismo do Gótico, portanto, ao menos em suas obras mais bem sucedidas, não assume a feição de puro escapismo ou de entretenimento alienante. A tradição artística do gótico tem oferecido um conjunto de temas, tipos, ambientes e enredos facilmente reconhecíveis pelo público, permitindo aos escritores atuarem não como epígonos de um estilo anacrônico, mas como  

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manipuladores de uma linguagem artística capaz de dar conta dos aspectos mais sombrios da existência humana – muitas vezes, no espírito da assim chamada “pós-modernidade”, através da paródia, do pastiche, da paráfrase, da alusão ou da sátira. Não por acaso, todas as principais linhas de estudo da literatura e da cultura nas últimas décadas – dos estudos de gênero aos étnicos, dos pós-colonialismos aos orientalismos, da reflexão sobre a cultura popular à sobre a indústria cultural – cruzaram com a ficção gótica. O propósito desse ensaio é demonstrar como as poéticas realistas no Brasil contaminaram-se tanto pela visão de mundo quanto pela linguagem artística gótica. Parte-se do entendimento manifesto de que nem os projetos de arte realista são duplicações do mundo real, nem a literatura gótica versa sobre mundos irreais. Nos termos de Wolfgang Iser (2002), como construtos ficcionais, ambos transgridem, ainda que em medidas diversas, os limites do real e do imaginário, irrealizando o primeiro, e realizando o segundo. O Gótico nas Américas Como Luiz Costa Lima bem observou em Sociedade e discurso ficcional (1986), a propensão brasileira ao que chamou de literatura documental pouco espaço concedeu à ficção de caráter mais imaginativo. O empenho romântico em utilizar a literatura a serviço da pátria nascente implicava dar preferência ao verídico e ao factual, e, sobretudo, a tudo que ajudasse a diferençar nossas características das demais sociedades. Tornou-se hegemônico o projeto alencariano2 de construção literária da identidade nacional, sufocando poéticas que não versassem nessa cartilha (cf. GABRIELLI, 2004) – um cenário que sofreu poucas transformações no século XX, com o irromper do Modernismo. As obras de influxo gótico foram as que mais sofreram por seu desacordo com a expectativa de arte vigente, por terem dado vida, no Brasil, a uma prosa ficcional muito mais fundada nos jogos da imaginação do que na tendência, por vezes monocórdia, de representar a realidade imediata e de dar conta das questões especificamente brasileiras. Mesmo obras de explícita influência gótica de autores consagrados, como Noite na Taverna (1855), de Álvares de Azevedo, foram tratadas como acidentes sem continuidade em nossa literatura, a despeito do grande número de epígonos gerados, hoje esquecidos, e do sucesso entre os leitores, atestado pelas sucessivas edições (cf. OLIVEIRA, 2010). A expectativa de arte que exige de nossa literatura a explícita e contínua reflexão direta sobre as questões da “realidade” brasileira é tão poderosa que, ainda hoje, se converte em juízo                                                                                                                 2

Faça-se a ressalva que o próprio Alencar bebeu nas fontes góticas (cf. SÁ, 2010), e sua visão de mundo foi se tornando cada vez mais sombria. Compare-se, a esse propósito, o desfecho utópico, mítico, de O Guarani (1857) com o epílogo distópico, aporético, de O sertanejo (1875).

 

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estético. Tome-se, como exemplo, o que diz Roberto de Souza Causo, um dos principais estudiosos da ficção especulativa brasileira, sobre Noite na Taverna e Macário: Álvares de Azevedo (...) [escolheu] personagens e ambiência alienígenas ao contexto social brasileiro de sua época. Mais que isso, sua narrativa foi enfraquecida pelos índices imitativos nela presentes, que remetem não só a outra realidade, mas a outro ideário não dominado pelo autor, tornando-o apenas um imitador das convenções góticas. (CAUSO, 2003, p. 108) (...) a carência da cor local (...) é um fato a apontar para uma postura detectável de negação da realidade brasileira, e de qualquer intenção de agir sobre ela (IBID., p. 109).

Para a crítica e a historiografia do século XIX e da primeira metade do século XX, os temas “mórbidos”, “crepusculares”, “lúgubres” e “macabros” (cf. OLIVEIRA, 2010) por elas identificados na obra de Azevedo tinham uma causa e uma consequência claras: sua personalidade sorumbática e sua alienação das questões pungentes da realidade nacional, respectivamente. João Adolfo Hansen (1998, p. 9) notou que os dois “protocolos de leitura” que a crítica aplica a Álvares de Azevedo, o político e o biográfico, expurgam sua obra ou pelo ponto de vista nacionalista – “modismo, importação de ideias, ornamento oco, artificialismo que não reflete o próprio do lugar” (IBID., p. 10) – ou pelo moralista – sem a mediação das convenções literárias com as quais sua obra dialoga, o escritor ora é visto como “uma recalcada casta diva, ora um depravado Don Juan” (IBID.). O nexo causal entre vida e obra encontrado tanto pela crítica de orientação política quanto pela de orientação biografista legou um vasto material de análises psicológicas e pseudopsicanalíticas do homem Manuel Antônio Álvares de Azevedo 3 , mas pouco ajudou a compreender a prosa do escritor Álvares de Azevedo. Quando muito, tais orientações mostram como as narrativas do autor falham em contemplar as expectativas de arte da maior parte da crítica literária brasileira, e raramente as avaliam como pertencentes a uma outra tradição estética. O caso de Álvares de Azevedo serve para ilustrar como o Gótico, seja porque foi compreendido como sintoma de distúrbios psicológicos de seus cultivadores, ou como algo estrangeiro e alheio à realidade brasileira, foi posto à margem pelos Estudos Literários no Brasil. Contudo, por ser a tradição gótica não apenas um estilo artístico, mas também uma visão de mundo muito afinada com a modernidade, foi absorvida por poéticas afins à ideologia do nacionalismo em literatura. Nesse sentido, a história do Gótico no Brasil tem muitos paralelos com a que ocorreu nos EUA. A ausência, no continente americano, dos elementos que forneceram o pano de fundo inicial do gótico europeu – a arquitetura medieval, as ruínas, o longo passado comum (do colonizador branco, dos escravos negros, dos povos nativos) –, fez parecer que o gótico nada tinha a ver com a escrita norte-americana, que lutava por se distanciar dos interesses e tradições da literatura da                                                                                                                 3

 

O artigo “Amor e medo”, de Mario de Andrade, é o corolário desse tipo de orientação crítica.

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metrópole (cf. GROOM, 2012, p. 112). Do mesmo modo, no gótico de Álvares de Azevedo, que escrevia na alvorada pós-colonial de nossa literatura, o débito cultural com os países europeus é inconteste. Mas uma outra sociedade se formava, uma outra geografia, outros conflitos e desafios, dando forma a uma nova cultura: “As especificidades americanas representaram uma oportunidade para um novo tipo de literatura, uma nova espécie de Gótico” (IBID., p. 114). O escravismo – e os horrores a ele associados, como o racismo, a tortura, o assassinato, o estupro – é uma das muitas molduras que a afluência gótica na literatura brasileira compartilha com a norte-americana. Fernando Monteiro de Barros (2014), em artigo recente, aprofundou essa relação entre os passados senhoriais dos dois países, ao estudar o espaço gótico da casa-grande em Gilberto Freyre: Gilberto Freyre, em sua obra de estreia, salienta as similitudes entre o etos do sul dos Estados Unidos e o do passado senhorial do Brasil. Em seu prefácio à primeira edição de Casa-grande & senzala, Freyre assinala que “a todo estudioso da formação patriarcal e da economia escravocrata do Brasil impõe-se o conhecimento do chamado ‘deep South’” (...), que é o “velho sul escravocrata” norte-americano, onde se destacam estados como “Louisiana, Alabama, Mississippi, as Carolinas, Virginia”, que constituem, com efeito, uma “região onde o regime patriarcal de economia criou quase o mesmo tipo de aristocrata e de casa-grande; quase o mesmo tipo de escravo e de senzala que no norte do Brasil e em certos trechos do sul” (BARROS, 2014, p. 5).

A ficção estadunidense, afirmou de modo provocador o crítico Leslie Fiedler (1966, p. 29), é uma “uma literatura das trevas e do grotesco numa terra de luz e afirmação”. O quanto esta afirmação é válida para a nossa própria literatura é o que se pretende demonstrar na sequência. O imaginário do sertão e a visão de mundo gótica Por seu estatuto discursivo híbrido – não é, propriamente, uma obra ficcional, nem um relato jornalístico, ou um tratado científico –, Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, oferecem uma instigante possibilidade de entender como os procedimentos estéticos e a mundividência gótica atravessam os discursos do real. Euclides foi, de certa maneira, um dos primeiros intérpretes do Brasil, mas o maior legado de Os sertões não é jornalístico – afinal, a obra foi publicada cinco anos após o término do conflito – ou científico – a ciência que embasa o livro é francamente desacreditada hoje. Seu relato sobre o conflito em Canudos sobrevive pelo que contribuiu para o imaginário brasileiro sobre o interior do país, sobre o Brasil profundo, sobre o sertão. Após Euclides, falar do sertão brasileiro passou a ser, sem escapatória, partir de Os sertões – seja para desenvolver ou contestar suas ideias. A extensa literatura realista, naturalista e regionalista que tomará o sertão brasileiro como espaço narrativo, ou mesmo como um tópos, beberá das imagens e perspectivas euclidianas. Se for bem sucedida na demonstração de que Os sertões foram impregnados por eflúvios góticos, não será difícil entender como o goticismo se espraiou, de modo  

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sutil, por nossa literatura. Dos muitos elementos comuns entre as poéticas realistas brasileiras e a ficção gótica, há pelo menos cinco pontos que entendemos serem fundamentais: (i) a construção de espaços narrativos, exóticos ou familiares, que são descritos como loci horribiles; (ii) a relação fantasmagórica com o passado, que ressurge para assombrar o presente; (iii) a caracterização de personagens como monstruosidades, por conta da própria natureza humana ou de psicopatologias; (iv) o desenvolvimento de enredos que exploram, tanto no plano da diegese quanto no da recepção, efeitos melodramáticos e emocionais; (v) a utilização contínua de campos semânticos relacionados à morte, à morbidez e à degeneração física e mental Por conta da limitação espacial do presente ensaio, será focalizado prioritariamente o primeiro tópico, ainda que os demais acabem sendo mencionados ao longo da demonstração. O sertão euclidiano como Locus Horribilis O espaço é um elemento central nas narrativas góticas. Em muitos casos é personificado, tornando-se ele próprio uma monstruosidade capaz de gerar seus próprios monstros. O locus horribilis pode mesmo ser encarado como um tópos da literatura gótica, o que pode ser comprovado pelas incontáveis narrativas que tematizam locais maus – sejam os castelos nos romances góticos tradicionais, as florestas nos contos de fadas, as casas mal-assombradas nas ghost stories, ou as metrópoles nas narrativas noir. Os ambientes são capazes de inspirar medo não apenas em decorrência de suas características concretas, físicas, mas dependem das percepções subjetivas que os indivíduos têm dos lugares. Tais percepções, entretanto, não são apenas idiossincráticas, mas respondem a determinadas condições culturais. Uma paisagem do medo (cf. TUAN, 2005. p. 12) é, portanto, algo complexo, que combina a objetividade do espaço físico com a subjetividade do espaço psicológico. No caso da ficção, os aspectos geofísicos e socioculturais são sempre dependentes da perspectiva de quem os descreve (narradores, personagens) e da de quem os experimenta (personagens, leitores). Foi essa dimensão psicológica da descrição que intensificou o efeito do inóspito espaço físico do sertão sobre a mentalidade dos leitores de Euclides. As descrições euclidianas, quando não se constroem com o uso de uma nomenclatura científica invulgar, que desnaturaliza ainda mais a paisagem exótica, exploram exaustivamente os campos semânticos da lugubridade. Mesmo as “paragens menos estéreis”, os “oásis”, apresentam “um aspecto lúgubre: localizados em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores” (CUNHA, 2002, p. 85). A terra está em “insurreição (...) contra o homem” (p. 233), mas é, ela própria, uma  

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“natureza torturada” (p. 91). Se o sertão é fonte de sofrimento para quem nele habita, está em “martírio” (p. 145), vítima dos elementos naturais que o castigam e do próprio homem, esse “terrível fazedor de desertos” (p. 138): Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os lastros das grupiaras; feriu-a a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda a parte, para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas... (CUNHA, 2002, p. 140)

À inospitalidade geológica dessa terra em perene conflito cósmico, somam-se, pois, os horrores das ações humanas. Euclides não economiza nas cores tétricas, pintando os mais sórdidos e cruéis detalhes da “vida turbulenta dos sertões” (p. 257). Narra o episódio de Pedra Bonita, sobre o bárbaro culto sebastianista que sacrificava crianças; conta histórias sobre “a prepotência sem freios dos mandões de aldeia” (p. 257); das lutas de família e seus rancores e vinganças hereditários; das escaramuças da jagunçagem; da vilania hedionda do cangaço. Mas são nas marcas que a guerra deixa na paisagem do sertão que a estetização gótica de Canudos torna-se mais evidente, em um sem número de mórbidos tableaux. Na sequência, um dos mais expressivos: (...) os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas... A caatinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes... Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo. Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca. (CUNHA, 2002, p. 492-3)

O narrador euclidiano deixa-se contagiar pela desolação dessa terra transida. Engana-se quem supõe que os trópicos sejam incompatíveis com o espírito Gótico: “Há, ali, toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!” (p. 125), diz Euclides, citando o – falso – paradoxo de Saint Hilaire. A ausência e a pletora de luz têm o mesmo valor, com sinais invertidos, apenas. Afinal, como ele dirá mais adiante: “Naquelas paragens o meio-dia é mais silencioso e lúgubre que a meia-noite.4” (p. 648)                                                                                                                 4

Note-se, a esse respeito, o comentário que Euclides faz sobre a suposta cegueira noturna do sertanejo. Se o Gótico do hemisfério norte foi pródigo em criaturas noturnas, avessas à luz do dia, os habitantes do sertão sofrem de hemeralopia (p. 235).

 

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O sertão, nas palavras de Euclides, era um “hiato” (p. 140) das cartografias, a Terra Ignota (p. 80), a “paragem impressionadora” (p. 87) predestinada a “atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história” (p. 81). Em termos geopolíticos, o sertão é um além da fronteira da República: Viam-se [os soldados] em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria. (CUNHA, 2002, p. 677)

Os sertões, porém, não são exatamente uma terra estrangeira5. Sua singularidade está ligada ao fato de que o sertão não é apenas um outro lugar, mas, também e sobretudo, uma outra temporalidade. No plano das figuras e imagens empregadas por Euclides, o deslocamento temporal trai sua influência gótica nas constantes associações com a Idade Média, nas descrições dos rochedos que se assemelham a “majestosas ruinarias de castelos” (p. 88) e no vaqueiro comparado ao “campeador medieval desgarrado em nosso tempo” (p. 213). Mesmo o sertanejo – ainda que Euclides entenda e aprecie a perfeita adaptação do sertanejo ao ambiente, e não o considere um degenerado, em comparação com os “mestiços neurastênicos do litoral” (p. 207) – é um “retrógrado” (p. 203). O próprio Antônio Conselheiro – o “heresiarca do século II em plena idade moderna” (p. 278), que “reproduz o fácies dos místicos do passado” (p. 275) – é alguém “fora do nosso tempo” (p. 275). As metáforas da decadência, da degradação e da degeneração são constantes na literatura gótica, uma vez que elas concretizam a tensão entre o peso do passado e o vazio misterioso do futuro que se projetam sobre o homem moderno. Não por acaso, portanto, as ruínas são espaços narrativos recorrentes, em seu óbvio valor fantasmático, como algo que irrompe do passado para permanecer existindo, de forma incompleta, no presente. Em Os sertões, a imagética da ruína é disseminada nos diversos ambientes, como nas descrições das propriedades da própria geografia local: (...) a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro. (CUNHA, 2002, p. 236. Grifo nosso.) A serra do Cambaio, cujos morros são comparadas a “necrópoles vastas”: Porque o Cambaio é uma montanha em ruínas. Surge, disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas súbitas e insolações intensas, disjungida e estalada – num desmoronamento secular e lento.

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“A Rua do Ouvidor valia por um desvio da caatinga” (p. 501), diz Euclides, desencantado pela barbárie travestida de ideal civilizatório republicano.

 

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(IBID., p. 391. Grifo nosso.)

Ou, ainda, nas descrições de cidades: Queimadas, povoado desde o começo deste século, mas em plena decadência, fez-me um acampamento ruidoso. O casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da praça irregular, fundamente arada pelos enxurros – um claro no matagal bravio que o rodeia – e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, entre os morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas. (CUNHA, 2002, p. 675. Grifo nosso.) [Canudos] Estava, porém, em plena decadência quando [Antônio Conselheiro] lá chegou aquele em 1893; tijupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas... (IBID., p. 290. Grifo nosso.) A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. (IBID., p. 291. Grifo nosso.)

O caso de Canudos é exemplar, pois, para Euclides, a ruína é o modo de ser do povoado, que se tornou inexpugnável quando arruinado pelos canhões: era essa a sua “trágica originalidade: intacto – era fragílimo; feito escombros – formidável” (p. 469). A ruína, como símbolo da decadência, não aponta apenas para a degradação das construções humanas, mas do próprio homem. Em Os sertões, a visão gótica da decadência transcende o indivíduo: “pobreza repugnante, traduzido de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça” (p. 292). Um bom exemplo da decadência gótica dos espaços arquitetônicos de Os sertões é a descrição da igreja que Antônio Conselheiro faz construir em Canudos. Euclides, que chama a construção de “o templo monstruoso dos jagunços” (p. 755), vê nela o símbolo maior dos insurrectos, “arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente” (p. 306). A associação com a arquitetura medieval não é uma questão interpretativa, pois está expressa no texto euclidiano: Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem. (CUNHA, 2002, p. 306)

Mas é ao associar a forma do novo templo ao espírito de Antônio Conselheiro, isto é, quando harmoniza locus horribilis e monstro, mostrando que este existe à imagem e semelhança daquele, que Euclides da Cunha soa como um renascentista descrevendo uma catedral gótica: Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável; mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante. (CUNHA, 2002, p. 307)

 

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Na construção discursiva de Canudos e do sertão como locus horribilis, é central a noção de “além dos limites”. Mas as fronteiras ultrapassadas não são exclusivamente espaço-temporais. São fronteiras cognitivas: a ida de Euclides ao sertão é uma viagem a uma região à margem do conhecimento. O narrador nos fala sobre como a horrida silva sempre afastara os cientistas (p. 102), e fizeram dos sertões a categoria geográfica esquecida por Hegel (p. 133). Ali, onde “a História não iria” (p. 714), tampouco chegara a Ciência. O ciclo da seca, a “moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra” (p. 230) é um de seus mistérios, uma de suas leis naturais ainda ignorada (p. 110). Muitos teóricos do horror ficcional moderno e do Gótico (CARROLL, 1990; COHEN, 1996; COLAVITO, 2008) entendem que a relação conflitiva que a humanidade estabelece com sua própria racionalidade, seja sob a forma da ciência, da tecnologia ou da sabedoria, é uma das características centrais desse tipo de literatura. Os monstros e os loci horribiles constituem ameaças não apenas físicas, mas sobretudo cognitivas, pois abalam nossas concepções de mundo ao transgredirem as crenças morais e as categorias conceituais pelas quais compreendemos a realidade. Os adjetivos de cunho teratológico que o narrador emprega para dar conta do “repugnante, aterrador, horrendo” (p. 308) arraial de Canudos; do sertanejo, esse híbrido “Hércules-Quasímodo” (p. 207); e do “truanesco e pavoroso” (p. 274) Antônio Conselheiro6 revelam o quanto o sertão escapa ao saber científico de Euclides. Os sertões contam, por isso, também a história de um fracasso – um fracasso da razão encarnada no livro, nas atrocidades republicanas. Euclides é um narrador em choque, horrorizado. É natural, pois, que Os sertões sejam tão góticos. Referências Bibliográficas BARROS, Fernando M. de. Do castelo à casa-grande: o “Gótico brasileiro”, em Gilberto Freyre. In: Revista Soletras. São Gonçalo, V. 27, [no prelo], 1o semestre de 2014. BOTTING, Fred. Gothic. 2nd ed. London: Routledge, 2014. CARROLL, Noël. The philosophy of horror or the paradoxes of heart. Nova York: Routledge, 1990. CAUSO, Roberto de S. Ficção cientifica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte:                                                                                                                 6

As descrições que Euclides faz de alguns dos habitantes de Canudos – “vivandeiras-bruxas, de rosto escaveirado” (p. 637), “Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa” (p. 775); “velhas espectrais” (p. 774) – e, principalmente, de Antônio Conselheiro – “o anacoreta sombrio (...) face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso” (p. 266) e “a sua fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do camisolão comprido, feito uma mortalha preta” (p. 272) – poderiam facilmente ser analisadas a partir das contemporâneas teorias da monstruosidade (Ver COHEN, 1996).

 

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Editora UFMG, 2003. COHEN, Jeffrey J., ed. Monster theory; Reading culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996. COLAVITO, Jason. Knowing Fear; Science, Knowledge and the Development of the Horror Genre. Jefferson, NC: McFarland, 2008. CUNHA, Euclides da. Os sertões; campanha de Canudos. Edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci. 2a ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. FIEDLER, Leslie. Love and Death in the American Novel. London: Paladin, 1966. GABRIELLI, Murilo G. A obstrução ao fantástico como proscrição da incerteza na literatura brasileira. Tese de Doutorado em Lit. Comparada. Rio de Janeiro: UERJ, 2004. GROOM, Nick. The Gothic; a Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2012. HANSEN, João Adolfo. Forma romântica e psicologismo crítico. In: ALVES, Cilaine. O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica. São Paulo: EDUSP, 1998. P. 9-24. ISER, Wolfgang. The Fictive and the Imaginary: Charting Literary Anthropology. Baltimore: John Hopkins University Press, 1993 LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. OLIVEIRA, Jefferson D de. Um sussurro nas trevas: uma revisão da recepção crítica e literária de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira. São Paulo: USP, 2010. POE, Edgar Allan. The Imp of Perverse. In.___. Complete Stories and Poems of Edgar Allan Poe. New York: Doubleday, 2005. p. 271-275. SÁ, Daniel S. de. Gótico tropical: o sublime em O Guarani. Salvador: EDUFBA, 2010. STEVENS, David. The Gothic Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução Lívia de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

 

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