AS TELAS DE WATTEAU COMO TABULETAS DA LOJA DE GERASAINT: QUESTÃO ESTÉTICA EM ARTE E EM PUBLICIDADE DESDE 1721

May 31, 2017 | Autor: Victor Aquino | Categoria: Publicidade, Estética, Artes, História da arte
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PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 10 E 11 OUTUBRO DE 2011

As Telas de Watteau como Tabuletas da Loja de Gersaint: Questão Estética em Arte e em Publicidade desde 1721. 1

Victor Aquino 2 Waldenyr Caldas 3 Ivan Santo Barbosa 4

Resumo: Este trabalho aborda uma discussão que se desdobra de pesquisa em andamento no CEDE – 5

Coletivo Estudos de Estética, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. A pesquisa, sobre câmbios de sentido da estética desde a criação do neologismo por Alexander Gotlieb Baumgarten, em 1753,6 como dos conteúdos que tradicionalmente constituíram a filosofia da arte, trata dos alcances do termo em outros domínios da cultura, como a publicidade, por exemplo. A pesquisa mencionada, que subsidia livro dos autores a respeito, traz para o campo dos estudos em publicidade o célebre caso das duas telas que, entre 1720 e 1721, Jean-Antoine Watteau pintou para usar como tabuleta da loja de seu marchand, Edmé-François Gersaint. Um caso até certo ponto banal, não tivesse o feito se transformado em polêmica, que ainda hoje ocupa teóricos e estudiosos de arte sobre a legitimidade (ou não) de se utilizar qualquer obra de arte como instrumento de comércio, ou ela mesma em objeto de negócio.

Palavras-chave: Watteau; estética; arte; arte publicitária; história da arte.

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Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Estética , do 1º Encontro de GTs do COMUNICON, São Paulo, 10 e 11 de outubro de 2011. 2 Doutor em ciências. Professor titular da ECA-USP, da qual foi diretor entre 1997 e 2001. 3 Doutor em sociologia. Professor titular da ECA-USP, da qual foi diretor entre 2001 e 2005. 4 Doutor em semiótica. Professor titular da ECA-USP e do IA-UNICAMP. 5 http://www.cede.org.br 6 Cahn, Steve; Meskin, Aaron (ed.). Aesthetics: a comprehensive anthology. Oxford, Malden & Blackwell Publishing, 2008.

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Em 1721, a loja de artigos de arte de um senhor chamado Edmé-François Gersaint, às margens do Sena, em Paris, teve instalada sobre a porta de entrada, duas telas pintadas com uma representação do interior da loja. O artista que teve essa ideia, Jean-Antoine Watteau, pretendia, com o trabalho de sua autoria, chamar a atenção para a natureza do negócio ali existente. O senhor Gersaint era o marchand e grande admirador das criações do artista. Um dos grandes nomes da pintura da França, no Séc. XVIII, morreu antes dos 40 anos, deixando espalhada seleta relação de quadros em acervos e coleções importantes, como Louvre, Prado, Hermitage, National Gallery. Deixou, entre outros, os conhecidos Embarque para Cithera, La boudeuse, Gilles, Canção de amor, O indiferente. A obra de interesse neste trabalho encontra -se no acervo do Schloss Charlottenburg, em Berlim. Constituída das citadas duas telas, mede no total 308 centímetros de largura, por 163 centímetros de altura. O conjunto de ambas mostra todo o interior da loja, numa bem definid a perspectiva, na qual aparecem representados os artigos que ali se encontram à venda. São representações de desenhos, telas e ilustrações que forram paredes do chão ao teto. Ao lado direito aparece um balcão sobre o qual se reúnem presumíveis clientes. Ao esquerdo, um também presumível funcionário segura um quadro sobre um caixão aberto. O curioso dessa representação que, mesmo sob a crítica de autoridades no estudo da arte, continua a ser produto da criação de um artista de grande envergadura em seu tempo , é o fato de não conter porta nem janela. Ou seja, o pintor representou, objetivamente e com grande singularidade, todo o interior da loja como se este fosse visto da rua sem o obstáculo de paredes, portas, janelas ou vitrines. Em outras palavras, pode -se dizer que a representação assume, ela mesma, a função de uma vitrine. Vitrine, aliás, à época inexistente no estabelecimento comercial junto à antiga Pont Notre Dâme, em Paris. Esse fato

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que comprova a intencionalidade do artista em utiliza -la como um ins trumento de negócio, desencadeou histórica polêmica. Sem qualquer inscrição, a exemplo do nome do estabelecimento, do proprietário, ou da natureza do que se comercializa naquele lugar , pode-se dizer que essa tabuleta resumiu nas imagens produzidas por um a rtista como JeanAntoine Watteau, com objetividade, esmero e talento, tudo aquilo que então consistia o negócio do marchand Edm é-François Gersaint. O que, do ponto de vista da publicidade, pode -se resumidamente também afirmar que a obra de arte foi transformada em instrumento de difusão comercial. Além das discussões que têm circundado a esfera dos estudos de teoria e história da arte, a exemplo dos pretextos que circundam o fenômeno do “ fim da arte”,

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esse assunto também interessa à publicidade. Isto porq ue na perspectiva

do entendimento dos sentidos que estética assume depois da arte, localiza -se pelo menos um desses sentidos, mediante o qual também se pode qualificar as demais

expressões

humanas. Dentre

essas,

ressalte -se,

emerge a própria

publicidade qu e de longa data vem contribuindo para o uso dessa qualificação.

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Qualificação que funciona como agregador de sentido, cuja natureza está em ampliar o valor e a importância daquilo que se diz, mostra, divulga ou anuncia. O trabalho de Watteau iconiza, com forte propriedade, a interdependênci a entre a comunicação e a arte. E o faz, especificamente, entre a comunicação publicitária e as artes visuais. Ou, ainda, entre a arte publicitária e a comunicação visual.

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Danto, Arthur. After the end of Art. New Jersey, Princeton University Press, 1997. Aquino. V. Aesthetics, as way for watching Art and things. Monroe, WEA.Books, 2003.

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A comunicação parte do princípio da informação semântica transmitida do(s) emissor(es) ao(s) receptor(es), por intermédio da codificação e de um repertório que é comum entre ambos. Já a arte exige a presença de uma informação estética que, na origem grega da palavra criada por Baumgarten, quer dizer aesthety. Palavra que diz respeito a tudo que se percebe pelos sentidos, que caracteriza a transmissão e o compartilhamento dessas informações como sensações. Isto é, daquilo que resulta do que decorre da sensibilidade, na qual o receptor atua ativamente. Já o contingente de um produto é marcado por seu design, rótulo ou invólucro. Assim, como qualquer estabelecimento é reconhecido por sua tabuleta ou símbolo indicativo, que informa sobre sua identidade ou origem, seu conteúdo também se torna uma informação semântica ao identifica -lo e seduzir pela expressão estética correspondente. Para quem prefere a observação direta dos elementos constantes da obra, aprofundando a reflexão sobre os significados constantes da representação correspondente, pode-se sugerir um exercício um tanto mais paciente, que é enxergar cada um deles isoladamente e depois tentar, no conjunto, estabelecer o que teria o artista querido dizer. Mas isto seria suficiente? Talvez não, mas já serve como argumento, não para se responder, mas para se indagar qual terá sido, enfim, o motivo pelo qual tantos estudiosos de arte têm perdido tempo em dizer que, desse modo, a obra não serve aos propósitos da Arte. Será? Essas telas de Watteau para a loja de Gersaint – como arte – representam uma calçada com o seu exato revestimento de pedras polidas. Mas nota -se uma mancha do lado esquerdo do observador oculto, contido pela quarta parede do entelamento do artista. Ou pelo pé direito da dama que parece adentrar à loja naquele instante. Vista de longe, cham a mais a atenção pelo vestido claro, ou pela posição altiva de costas, ou ainda pelo pescoço delgado.

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Também perfeitamente visível, a mão de outra mulher, que tem cabelos escuros e está sentada, de costas para o balcão, mas cujo olhar está fixo sobre algo que lhe é mostrado sobre ele. Nota -se a manga longa, com a mão esquerda displicentemente pendida. Enquanto a primeira segura discretamente a saia, como que esbarrando em um caixote do qual presumível funcionário retira, ou coloca, a tela de um retrato, (e m que se reforça a função de metalinguagem da tela, já que é o ponto de referência dessa dama, um senhor de botas, bengala e chapéu, acostado à quina do estabelecimento. O homem tem o olhar discreto dirigido à obra. Mas o olhar de outro homem no interior do estabelecimento é explicito dirigido à dama. Mantém -se em posição semi frontal, com a cabeça voltada para a dama e a atividade do pretenso funcionário, que coloca ou retira a obra do caixão. Concomitantemente, outro cavalheiro segura outra obra, que no momento retratado volta a cabeça ao mesmo funcionário. O qual, por estar em mangas de camisa é único no lugar a não vestir casaca – remetendo com isto à própria situação funcional ou mesmo a condição social, reforçando desse modo as funções que ali exerce. No conjunto de imagens que constitui esta obra, Watteau desenvolve ainda uma excelente relação “ claro/escuro”, tanto na representação da calçada, como nas paredes e nos pisos da loja, ou ainda nas roupas dos cavalheiros e das damas que integram o quadro . Trata-se, antes de tudo, de uma obra de arte plena, concebida na intuição de uma estética sofisticada. Mas é também a tabuleta que pretendeu criar, plenamente informativa do que deve comunicar e informar, seja do ponto de vista semântico, como do estétic o. O quadro “fala” de tudo o que se executa naquele ambiente e naquela especialidade de negócio. Igualmente, serviu para atrair a atenção de quem passasse pelo lugar na época. Além da objetividade da representação, segundo os preceitos do tempo em

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que ela foi realizada, existe ainda toda a intersubjetividade presente naquilo a que se poderia denominar de autêntica obra de arte. Ela informa semanticamente a natureza do negócio, claro, dando -lhe a visualidade metalinguística e explicitando o que ali se realiz a no plano comercial. Mas ela o faz também de modo quase transcendental. E tanto isto é verdade que essa transcendência alcança nosso tempo e muitos de nós ainda se ocupam dela. Com tudo, há mais de duzentos anos continua a provocar uma discussão praticamente inócua. Discussão que, para aqueles que cegamente entendem que só existe arte quando há manifestação de "arte pela arte", sem se darem conta da hibridação presente nas obras contemporâneas, inclusive no design, e mesmo na publicidade. Ao defenderem a " inutilecência " da obra de arte, como o di sse Paulo Leminsk, leva -nos a pensar nos enganos, equívocos e cegueiras de certos ou errados "especialistas " em arte e sua história, mas que não reconhecem as mínimas condições que a justificariam contemporaneamente . Eis porque tais telas de Jean -Antoine Watteau, independente de qualquer outra discussão, são importantes para se compreender a questão do sentido estético em publicidade. O pintor limitou -se a representar o interior da loja como forma de assinalar que, n aquele local, vendiam -se obras de arte, ou trabalhos de natureza artística ou, pelo menos, “ pinturas”. Mas produziu essa representação utilizando -se das mesmas técnicas de criação artística, orientadas pelo talento que o tornavam um profissional incomum. Desse modo, do ponto de vista da publicidade, o que o artista realizou terá sido algo muito além da arte: não apenas a geração de um estilo publicitário até então inexistente, mas a geração do princípio de recall de um anúncio que atravessou os séculos. Pr edominantemente marcado por uma condição estética única, essa tabuleta converteu -se, ela própria, em uma forma de anúncio, do qual foi impossível esquecer -se. E o foi por conta não do que ela anunciava, mas

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dessa discussão quase neurótica em torno da arte, dos sentidos da arte, de arte convertida em não -arte e assim por diante. Essa condição estética é única porque a tabuleta, simultaneamente, atinge o propósito imediato do anúncio contido nela e também alcança as ilações a respeito que se prolongarão ao lo ngo do tempo. De um ponto de vista da publicidade o processo de criação do artista estaria plenamente concluído, tendo a tabuleta cumprido rigorosamente seus objetivos, ao informar a quem passasse nas imediações. O que, no preciso tempo de sua criação, dav a conta da natureza do comércio do senhor Gersaint. Por

outro

lado,

de

um

ponto

de

vista

estritamente

acadêmico,

ultrapassando os limites do tempo e da geografia, nada poderia ser concluído, tendo em vista que ainda não se respondeu à questão: terá essa obra de Watteau deixado de ser arte porque sua destinação assumiu, ao tempo em que ela foi produzida, função distinta de seus demais trabalhos ? Isto é, enquanto uns eram adquiridos até mesmo como objeto de adereço de ambiente, este divulgava o local em que aqueles eram comercializados? Ora, cumprir os objetivos publicitários mínimos a tabuleta os cumpriu. Tais objetivos mínimos, que são informar da natureza do negócio, dar -lhe visibilidade e assinalar o local em que ele é realizado, foram plenamente cumpridos. E o foram à época, como agora. Todavia, a polêmica que se prolonga por mais de duzentos anos, se de um lado ainda não responde plenamente à questão sobre a natureza estética da obra de arte, por outro comprova que um fato tratado fora do contexto do an úncio, qualquer que seja, pode ser útil ao anúncio se ressaltar o que está contido no anúncio. Caso indiscutível dessas tabuletas que, por conta de uma discussão bizantina, a todo instante lembram para finalidade elas foram pintadas e usadas.

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Vale acrescentar outra discussão sobre essa questão. A discussão sobre a necessidade que os negócios sempre tiveram de ganhar e manter visibilidade entre os demais. Qualquer negócio, seja um banco, uma drogaria, uma oficina mecânica, uma escola de idiomas, um bar, um s alão de cabeleireiro e assim por diante, sempre tenta assinalar, por uma designação qualquer, a natureza, para o que serve e a condição daquilo que oferece. Condições estas que aparecem, antes de tudo, na tabuleta do negócio. Tabuleta, ou inscrição com que se assinala a existência de qualquer estabelecimento comercial no lugar onde ele opera. Pode se dizer que a tabuleta é a primeira manifestação de publicidade de um negócio, qualquer que seja ele. É comum observar a existência de palavras que, muitas vezes , não têm um sentido direto e objetivo associado ao negócio em si. Mas são palavras que se agregam à designação do negócio como um modo de qualificar a respectiva natureza. A exemplo , entre outros, do salão de cabeleireiros que se auto intitula “Estética Design Cabeleireiros ”. As palavras “ estética” e “design” estão reunidas na mesma tabuleta com um propósito de qualificar o negócio além da própria

natureza,

agregando -lhe

uma

condição

que

amplia

o

valor

correspondente. Imagine-se, então, que o proprietário desse salão tenha o nome de “Valdomiro”, por exemplo. Do mesmo modo, que a tabuleta respectiva mostre apenas “Cabeleireiro Valdomiro ”, ou “Valdomiro Cabeleireiro ”. (Este ou qualquer outro nome). É possível que apenas o nome do profissional , por mais exímio e altamente preparado que venha a ser, não seja insuficiente para projetar a dimensão de importância, glamour, engajamento, contemporaneidade ou qualquer outra qualidade desejada. Daí porque, cada vez mais, de modo apropriado ou não, mais termos são junt ados aos nomes de estabelecimentos mundo afora.

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Quando se observa as duas telas criadas por Jean -Antoine Watteau para servir de tabuleta da loja de Gersaint, a primeira sensação que se tem é a de que se está frente a uma obra de excepcional qualidade. Prim eiro, em razão do inconfundível estilo do artista. Segundo, por conta da sensibilidade em colocar o seu talento pessoal a serviço de outro propósito, não menor, mas que demandava uma ação específica para assinalar o local onde se vendia o que ele próprio produzia. Terceiro, por causa da singularidade do trabalho. Sem o saber, o artista estava realizando uma criação publicitária que, embora subjetivamente, alcançaria a posteridade. Pode-se dizer que as tabuletas, as inscrições ou denominações comerciais que têm essa finalidade de assinalar o local dos correspondentes negócios são mais, ou menos objetivas. Essa classificação, naturalmente, depende do conteúdo (ou quantidade) de termos que empregam para anunciar o que há da porta para dentro do estabelecimento.

Pode-se até dizer que quanto menos termos

apresentarem com mais objetividade, mais esclarecedoras se tornam. Exatamente o que Watteau logrou fazer. Pois seu trabalho independe da designação do lugar, do nome do proprietário e de qualquer termo, com qualqu er preocupação de agregar outro valor que não seja o que está representado nas duas telas. Em outras palavras: o artista supriu as exigências de um projeto de divulgação, tal como o intuiu, sem adicionar outro elemento que não seja o que consta de sua pintura. Desse modo, cumpriu temporaneamente os objetivos a que se propôs. Do ponto de vista da publicidade, estabelece uma forma de dizer nas telas para a loja, aliás, tudo que tem relação com os elementos de interesse, conteúdo, funcionalidade e objetividade do negócio de Gersaint. O que, por sua vez, resulta nessa obra historicamente tão especial para a arte, quanto importante para os estudos de publicidade.

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Nessas condições e tendo ainda como base a criativa idéia de Watteau, é preciso pensar no significado da arte contemporaneamente. Durante algum tempo, pelo menos nos países capitalistas, existia certo mito de que o artista deveria produzir aquilo que brotasse única e exclusivamente de sua inspiração. A verdadeira arte, portanto, seria produto da lucidez d o seu criador. Uma pessoa dotada de princípios probos muito fortes e, como tal, não adaptaria sua criatividade, seu trabalho artístico às demandas de mercado. Alguns teóricos e estudiosos da arte, até que discordavam dessa visão tão romântica do fazer art ístico. Quero citar, por exemplo, a obra do filósofo Ernst Fischer, A Necessidade da Arte. 9 Em certo momento, analisando justamente a dicotomia entre o produto artístico e o não artístico, o autor acrescenta que, “a função da arte não é a de passar por po rtas abertas, mas a de abrir portas fechadas”. Pois bem, eis aqui certamente, uma questão bastante lúcida e, ao mesmo tempo instigante, para ser discutida por estudiosos interessados neste tema. Se por um lado, o cidadão que usou a obra Watteau não fez um trabalho artístico, segundo a ótica dos mais puristas, de outra parte, ele permitiu ao espectador, outra leitura desta mesma obra, mas agora em uma perspectiva mercadológica. Deve-se repetir aos “puristas” que o uso do trabalho de Watteau não passa de inexpressivo pastiche e, como tal, desimportante. Uma espécie de simulacro, apenas para lembramos da feliz expressão de Jean Baudrillard, 10 quando, mais uma vez, analisa as relações de produção e de consumo, mesmo o consumo da arte, na sociedade capitalista. Ou, simplesmente, na sociedade de consumo. Ora, mas isso não significa dizer que os puristas tenham razão. Aliás, nem mesmo metade da razão. A rigor, por trás desse purismo conservador subjaz, na 9

Fisher, Ernst. The necessity of Art. New York, Verso Books, 2010. Baudrillard, Jean. The conspiracy of Art. New York, Columbia University Press, 2005.

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verdade, uma questão ideológica que envolve a sociedade cap italista e as classes sociais. Em outras palavras, a conhecida luta de classes discutida por Karl Marx ao longo de toda sua obra. Dessas lições, aprendemos a interpretar a sociedade, o que ela produz e as relações entre as classes sociais. Todos nós sabemo s, portanto, que o artista insere -se no contexto social como um trabalhador igual a tantos outros e, como tal, faz parte da chamada população ativa produtiva. Isto significa dizer, em outros termos, que sua força de trabalho precisa ser absorvida pela soci edade, pela demanda do mercado, como a do artesão, do operário, da balconista, do publicitário e de tantos outros profissionais que procuram garantir sua sobrevivência na sociedade capitalista. Nessas condições, é imprescindível que se desmistifique a ima gem senil e extremamente equivocada sobre o artista e sua obra. Se este profissional não adaptar seu trabalho à demanda de mercado, ao gosto estético vigente em determinado momento histórico, ele certamente terá sérias dificuldades para sobreviver. Ele, como ninguém mais, consegue viver de ideologia. O artista não pode ser apenas muito criativo. Ele também precisa ser alguém com o potencial de captar o ethos cultural da sociedade em que vive, como de criar sua obra nessa direção. Aí sim, ele viverá do seu t rabalho. As questões estéticas são importantes e ele pode perfeitamente conciliar sua sobrevivência cotidiana com a estética que nomeou e na qual acredita. Não há diferença alguma entre o artista, o publicitário, o operário e tantos outros profissionais. Há apenas diferenças no que dizem respeito à divisão social do trabalho. Ou, então, diferenças entre o que consomem uns e outros. Todos eles estão a serviço de um grande mercado na sociedade de consumo. Esta é a fórmula extremamente inteligente que os ideól ogos do capitalismo encontraram para organizar o Estado capitalista.

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O mundo do conhecimento é usualmente dividido em três grandes conjuntos: o conjunto das chamadas ciências exatas, o das ciências da vida (da biologia, ou da saúde) e o das ciências humana s (ou das humanidades, entre as quais se insere a arte). Mas seria isto absolutamente correto? Se pensarmos que nos dois primeiros conjuntos o conhecimento só progride quando, de uma etapa para outra, adquire -se a convicção de que na etapa precedente tudo já foi esgotado, teremos que admitir que, pelo menos do ponto de vista de progressão do conhecimento, os dois primeiros conjuntos são equivalentes. No que concerne às ciências humanas, ou conjunto das humanidades, não se tem essa condição indispensável da convicção para o avanço do conhecimento. É importante ressaltar no presente trabalho, semelhante reflexão, porque dúvidas,

desinteligências,

divergências

(até

mesmo

as

conceituais

mais

profundas) são parte da construção de todo o acervo que constitui as ch amadas ciências humanas. E não se tem como driblar essa realidade. Há, por assim dizer, um grande contexto de conhecimento que não raras vezes está eivado de um equívoco incontornável. Como é o caso dessas opiniões, ou dessas ideias, que circundam o enten dimento sobre o que é, ou o que não é, arte. A nós nem interessa essa discussão. Pois o que se está levantando em conta é, sobretudo, a função de utilidade prática de um trabalho artístico de grande importância – e historicamente um patrimônio da própria c ultura. Jean-Antoine Watteau produziu, sim, uma tela com a representação de uma loja. Uma loja na qual se comercializavam, inclusive, suas obras. Ponto final. O que se seguiu depois disso, com base em dúvidas conceituais e possíveis equívocos acadêmicos, foi transformar a obra em polêmica sobre a natureza e a função da arte. Resultado, ou consequência inesperada, dessa discussão: a formulação de algo a que poderíamos denominar de “um grande recall” para a obra do artista. E

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isto crítico, ou historiador de arte nenhum poderá negar. Os historiadores, os teóricos, sem o querer trouxeram para o campo da evidência publicitária, por mais de duzentos anos, a memória de um negócio que existia em Paris e que, mesmo preteritamente, chama a atenção quando alguém se re fere a ele. Há como que uma lógica interna, quase perfeita, nessa estrutura tão bem construída. Portanto, apenas para encerrar, a releitura do trabalho de Watteau é, quando menos, uma das formas possíveis de “abrir portas fechadas”, como diz filósofo Ernst Fischer, e sair da mesmice estética, fundando outras concepções para a obra de arte, até mesmo no universo da publicidade. Aliás, especialmente neste universo.

“L’Enseigne de Gersaint”, Jean-Antoine Watteau, Paris, 1720-1721. Conjunto de duas telas a óleo, representando o interior da loja do marchand Edmé-François Gersaint, Pont Notre Dâme, 1719-1729. (Medidas: 1,66 m x 3,06 m). Adquirida em 1744 pelo Conde de Rottenburg. Integra o acervo Schloss Charlottenburg, em Berlim, desde 1836.

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