As Teorias do inconsciente em Stevenson

June 13, 2017 | Autor: Marta D'Agord | Categoria: Psychoanalysis And Literature
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CAPÍTULO DE LIVRO PUBLICADO EM 2013 D'Agord, M. R. de L. As teorias do inconsciente em Stevenson. In: V Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada: Fazeres Indisciplinados. Organizadoras: Rita Lenira de Freitas Bittencourt e Rita Schmidt. Porto Alegre. Publicação junho 2013. dados do sistema de bibliotecas UFRGS [000929210] D'Agord, Marta Regina de Leão. As teorias do inconsciente em Stevenson. In: Fazeres indisciplinados: estudos de literatura comparada. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2013. p. 219-226

Prefácio ESCRITO PELAS ORGANIZADORAS DO LIVRO

O campo da literatura comparada, ao longo do século XX, foi marcado por transformações profundas, decorrentes, de um lado, de sua expansão para além do contexto europeu, e, de outro, da disseminação de teorias que, a partir dos anos 1960, abalaram os pressupostos que alicerçavam a disciplina. Hoje, o viés historicista do paradigma fonte/influência, que trazia em seu rastro uma concepção essencialista dos fenômenos literários, pautada na defesa da literatura como categoria ontológica, de caráter universal foi, sem dúvida, superado. Do mesmo modo, as teorias que não mais têm por base somente o valor estético da literariedade articulam relações variadas, híbridas, transdisciplinares, antes impensadas e improváveis. Se, nas últimas décadas, a discussão de parte de teóricos e críticos da área sobre o que é ou não é literatura comparada não chegou a nenhum termo conclusivo, o fato é que seu desenvolvimento, mais aos saltos do que por uma linearidade progressiva, trouxe uma revitalização ímpar ao contexto dos estudos literários. A fertilidade e a variedade dos projetos se deve a um princípio norteador que pressupõe a travessia das fronteiras linguísticas, estéticas, políticas e geoculturais no estudo da literatura e de suas relações textuais com as artes e com os outros discursos, sem prescindir de um amplo contexto referencial. Nas palavras de Jonathan Culler, “comparative literaturedirects critical force at pieties or complacencies based on exclusions of other texts, other discourses, other peoples.”1Nesse sentido, a pedagogia 1

Comparative Literature and the Pieties.Profession 1986, New York, p. 30, 1986.

inscrita em sua prática contemporânea coloca em foco o comparatismo como mecanismo para produzir, ao mesmo tempo, cultura e conhecimento sobre a cultura. O reconhecimento da heterogeneidade cultural e a relativização dos discursos e valores como efeito da incrição do literário na ordem histórico-cultural e geopolítica planetárias, concomitantemente aos trânsitos interdisciplinares, pela aproximação do discurso da crítica literária com os discursos das Ciências Humanas e das Artes, reconfigurou a disciplina acadêmica a tal ponto que o comparatismo, acima e além de quaisquer definições, assume a forma singular de uma hermenêutica pluritópica, que, segundo Zulma Palermo, “posibilita la articulación entre distintas formas de conocimiento y de comprensión a partir de la acceptación de la diversalidad de la experiencia, de los distintos procesos de formación sociocultural y por ende lingüística.”2 As discussões a partir dos termos da diferença, conectadas ao questionamento das fronteiras – em seus mais variados planos: geográficos, epistemológicos, genéricos, linguísticos, culturais –, e associadas a noções como as de deslocamento, trânsito, intercâmbio, desterritorialização, tornam a cena comparatista atual muito rica, plural e variada, o que aparentemente parece desenhar uma configuração caótica, mas que, efetivamente, faz aparecer variáveis teóricas, pensamentos em choque e, sobretudo, dissensos posicionais e regionais, a partir dos quais todos ganham, já que conduzem ao debate e ao amadurecimento das reflexões em torno da tolerância, dos limites e das singularidades. O tema da presente coletânea, intitulada Fazeres indisciplinados: estudos de literatura comparada traduz a natureza múltipla e instigante das estratégias e metas comparatistas de uma área avessa à modelos metodológicos pré-determinados, o que faz com que a produção teórico-crítica voltada às indagações sobre produções simbólicas se articule como possibilidade de transformação epistemológica, em resposta à demanda de um mundo plural, em um cenário complexo e multiforme. A indisciplina como prática pode resultar em revisões de conceitos, como a performatividade, a verossimilhança, o romance total, ou promover discussões em relação à tradução, à crítica de poesia, às artes visuais, à teoria literária, à psicanálise, à 2

Comparativo contrastivo y hermenéuticas pluritópicas: variaciones latinoamericanas. In: ANGELO,Biagio D.(Org.).Espacios y discursos compartidos en la literatura de América Latina. Lima: Fondo Editorial dela Universidad Católica Sedes Sapientiae, 2003, p.324.

filosofia, ao cinema. Pode, também, ser suporte para reflexões em torno de posicionamentos culturais, seja a respeito da Amazônia, das condições de afrodescendência e de subalternidade sexual, seja em torno das quebras de paradigmas de mídias confundidas e polissistemas, de guerras e rupturas, inovações e singularidades. Pode retornar, ainda, a discussões clássicas, como as da relação entre literatura e ensino, ou mesmo prever novos termos, como limiarologia, por exemplo. De qualquer ponto de vista, os artigos aqui compilados muito têm a contribuir para a produção acadêmica na área de Letras e fora dela, e demonstra enfaticamente a vitalidade do comparatismo no âmbito internacional e nacional. É um conjunto de estudos de autoria de docentes e pesquisadores de várias procedências institucionais que não só evidencia o escopo do comparatismo no presente como imprime à coletânea a qualidade de um fórum de diálogo e de debate, em cujos movimentos de convergência e divergência, ponto e contraponto, definem-se as práticas e pesquisas contrastivas e críticas, visceralmente inseridas em seu tempo e lugar e, ao mesmo tempo, diretamente comprometidas com o pensamento amplo, em seus cruzamentos inter e extraliterários. Trata-se de um mosaico de abordagens que exibe e fomenta, na medida do possível, as práticas e os pensamentos da teoria, até onde ela hoje, ética e politicamente, pode ir.

Os organizadores

AS TEORIAS DO INCONSCIENTE EM STEVENSON

Marta Regina de Leão D’Agord

En el vocabulario crítico, la palabra precursor es indispensable, pero habría que tratar de purificarla de toda connotación de polémica o de rivalidad. El hecho es que cada escritor crea a sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del passado, como ha de modificar el futuro.

Jorge Luis Borges Kafka y sus precursores

Introdução

Depois de lermos a obra de Freud, não temos como escapar da atribuição de inconsciente aos atos falhos de nosso cotidiano. Tendemos, inclusive, a encontrar conceitos psicanalíticos na literatura. Ao lermos a novela O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Robert Louis Stevenson (1850-1894), encontramos uma metafóra do conflito psíquico, que até pareceria uma criação psicanalítica para representar a luta entre o Eu e o Isso, como foi proposta por Freud (1923). Não poderíamos de forma alguma atribuir uma influência psicanalítica de Freud sobre Stevenson, na medida em que essa obra do novelista escocês foi publicada em 1886, justamente uma década antes do termo “psicanálise” ter aparecido sob a pena Freud. A nova palavra, psychoanalyse, foi apresentada em artigo científico (1896) que descrevia um novo método de tratamento das neuroses e que viria a ser o nome da nova disciplina que, então, era gestada. Assim, teria sido mais provável Freud ler Stevenson do que Stevenson ler Freud. Freud poderia ter lido a novela no idioma original, pois ele tinha familiaridade com a língua inglesa, mas era impossível que Stevenson houvesse escutado algo sobre a psicanálise antes de publicar sua novela. Assim, parece que a relação de Freud com

Stevenson seria antes um caso do que Borges chamou de criação de precursores. Nós, leitores de Freud, criamos um precursor da psicanálise em Stenvenson. Guardadas as devidas diferenças entre obra de ficção e teoria do inconsciente, aproximamos os dois autores. Pretendemos, ainda, mostrar que Stevenson, cria um personagem, o Dr. Jekyll, que apresenta uma teoria sobre a dupla natureza do homem, motivação para seu experimento. O impacto desse experimento sobre a vida do personagem, representa, por sua vez, a teoria psicológica do autor Stevenson.

O gênero fantástico no final do século XIX

Na literatura fantástica, o sobrenatural é um acontecimento inesperado, repentino, que produz uma ruptura em um mundo governado pela razão. A literatura fantástica cria um campo do sobrenatural que não encontra explicação nem no maravilhoso dos contos de fadas nem na fé religiosa e cujos personagens são pessoas e não animais que falam como nas fábulas e alegorias. O fantástico emerge no final do séc. XVIII, surgindo em oposição aos contos de fadas, cujo encantamento não era, até então, contraditório com o mundo. Ou seja, o fantástico apareceu, na literatura, quando, na ciência, a razão passou a dominar a explicação do mundo. Como contraponto à razão, o gênero fantástico produzirá uma quebra na coerência esperada no mundo cotidiano. Assim, o fantástico emerge como resistência ao triunfo da concepção científica de uma ordem racional e necessária do mundo. Se a razão havia nomeado e expulsado o impossível a partir da ideia de que o que não é racional não existe; Este, o irracional, retorna nas diversas formas criadas por escritores do século XIX. Esse impossível, irracional e incoerente encontraria na psicanálise uma explicação, passando a compor uma dimensão do ser humano que, mesmo escapando ao controle, pode, mesmo assim, encontrar uma lógica e uma coerência como negatividade em relação ao necessário e universal. O impossível está em oposição ao necessário e o contingente em oposição ao universal. O gênero fantástico do final do século XIX caracteriza-se por abordar o sobrenatural como um irracional encarnado em um personagem com o qual o leitor poderia compartilhar o cotidiano. Com exceção de um traço, a irracionalidade, misto de característica moral ou psicológica. Assim, ao criar esses personagens com traços

irracionais, os autores aproximavam o irracional ao impossível do cotidiano e prenunciavam o que a teoria psicanalítica iria elaborar uma década depois como teoria sobre o inconsciente. Se no fantástico do final do século XIX, o racional era confundido com o moralmente correto, Freud, com a Interpretação dos Sonhos e com a Psicopatologia da vida cotidiana iniciará uma ruptura com o pensamento daquele século, ao mostrar que moralidade e racionalidade não se confundem, pois um pensamento pode ser inconsciente sem ser, por isso, imoral.

O duplo como precursor do inconsciente?

O duplo é um tema universal cuja primeira forma foi mítica, o mito de narciso. No século XIX, a literatura fantástica antecipou a intertextualidade na sua abordagem do fenômeno do duplo, inserindo a linguagem científica para paradoxalmente criticar a abordagem científica reducionista (como podemos identificar na novela O duplo de Dostoiévski). A literatura mostrava resistir a um reducionismo positivista, assim também a psicanálise vai fazer a sua contribuição a essa crítica. No século XIX, o duplo encontrou um terreno propício também na literatura fantástica. Da qual destacam-se: O homem de areia, de E. T. A. Hoffmann (17661822);William Wilson, de E. A. Poe (1809-1849); O duplo, de F. Dostoiévski (1821-1881) e o O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson (1850-1894). Confrome o mapeamento histórico proposto por Calvino (2004), dessas quatro obras, a primeira pertence à vertente do fantástico visionário que predominou no início do século XIX. Já as três últimas pertenceriam ao fantástico mental, abstrato, psicológico ou cotidiano que predominou no final do século XIX.

Sobre “O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde” de Stevenson (1886)

A novela de Robert Stevenson pertence, portanto, ao gênero fantástico psicológico que produz uma ruptura em um mundo governado pela razão. Em primeiro lugar, cabe retomar que no contexto sócio-histórico, razão e moralidade estão coesas, logo, a fratura de uma implicaria na fratura de outra. O fantástico vai irromper e gerar efeitos sobre cada um dos seguintes personagens: Dr. Jekyll, Dr. Lanyon, Mr. Utterson.

A narração da novela é apresentada ao leitor em dois estilos, inicialmente na forma de descrição objetiva dos fatos; ao final, na forma de narrativa epistolar. Primeiramente, Mr. Utterson conduz a história da maneira mais racional possível, jamais indagando o que não está dito, não procura nada nas entrelinhas e mantêm-se fiel às descrições tais como lhes são fornecidas. Com tal postura, o leitor é praticamente forçado a fazer as críticas que faltam ao personagem e, de certa forma, é capaz de antecipar o desfecho da história. Após a revelação, para Mr. Utterson, de que Jekyll e Hyde são a mesma pessoa, ocorre uma mudança na forma da narrativa. Mr. Utterson agora se torna o leitor de cartas endereçadas a ele por Lanyon e Jekyll. A primeira carta é do Dr. Lanyon, que, assim como Mr. Utterson, fazia parte do círculo mais próximo de amigos de Jekyll. Em sua carta, ele conta que o amigo tinha preocupações de ordem pseudo-científica e que se afastaram por conta disso. Após ter presenciado a transformação de Jekyll em Hyde, Lanyon adoecera. Por fim, temos acesso à carta de Dr. Jekyll, onde o personagem conta a trajetória que iniciara pelo anseio por viver uma vida plena que o levaria à transformação em Mr. Hyde.

A teoria do duplo do Dr. Jekyll

O Dr. Jekyll, homem de posses e médico de grande prestígio, ambicionava manipular a natureza bipartida do ser humano. Servindo a seu experimento como cobaia, o médico almeja uma vida repleta de liberdade, cheia de vitalidade e de prazeres secretos. O que aparece nesse texto como uma possível crítica aos costumes do final do século XIX é o fato do autor colocar a repressão social como um dos motivos pelos quais o médico quer ser irreconhecível. O personagem não poderia seguir seus impulsos sem os limites da consciência moral representada pela sociedade, forçando-o, por isso, a procurar uma fórmula que permitisse livrar-se de seus “pensamentos maldosos”. Até um determinado momento da narrativa, Jekyll mostra-se capaz de livrar-se de Mr. Hyde tranquilamente. Logo após o assassinato de Carew, o Dr. Jekyll fala para Mr. Utterson que está tudo acabado entre ele e Mr. Hyde. Após o acontecimento isso parece ser verdade, Mr. Hyde parece ter sido afastado e o médico retoma sua vida social por completo. Entretanto, sua dependência já havia tornado-se demasiada e seu

lado sombrio já parecia ter uma existência praticamente própria. Nesse aspecto, Jekyll não foi como o Ulysses de Homero, que pode se deleitar com o canto das sereias porque amarrado ao mastro do navio, enquanto sua fiel tripulação continuava a remar com os ouvidos tapados para não sucumbir ao canto. Ulysses aproveitou o canto, já que estava seguro junto ao mastro. Jekyll teve uma experiência desprotegida e individual, como fica claro ao final da narrativa, ele não tinha uma garantia que teria controle sobre a experiência e, de fato, não teve. Uma grande quantidade de pó foi comprada e acabou promovendo todas as transformações que ocorreram ao longo da história. Quando o pó termina, e o médico faz uma nova encomenda, descobre que se tratava de uma mistura imprecisa que não poderia ser reproduzida. Freud (1930) reflete sobre essa questão em O mal-estar na cultura: se a satisfação dos impulsos equivale à felicidade, a mesma torna-se causa de grave sofrimento quando o mundo exterior nos deixa na indigência, quando se recusa a saciar as nossas necessidades. Até um determinado momento da narrativa, o Dr. Jekyll acreditava que poderia controlar Mr. Hyde tranquilamente. Entretanto, surge uma dependência em relação a Mr. Hyde que parece ganhar uma existência própria. Freud e Stevenson interessaram-se por um pó que poderia liberar forças psíquicas. A cocaína, segundo os relatos da experiência de Freud (Bick, 1989), e o sal na ficção de Stevenson, representariam um meio para liberar um lado proibido e obscuro do humano. No caso de Freud, esse lado proibido se relacionava aos impulsos sexuais. Porém Freud abandonou o pó (cocaína), assim como também abandonou a hipnose, para fundar a psicanálise. Para o abandono desta última, Freud (1925[1924]) justificava a necessidade de contar com a consciência, de modo que o paciente soubesse sobre o que havia falado durante a sessão. Pois de nada adiantaria trazer um conteúdo inconsciente para o consciente sem que o paciente estivesse pronto para tolerá-lo. Caso contrário, o conteúdo que estivera recalcado, e que fora trazido, sob efeito da hipnose, seria novamente repelido. Assim, o que o autor pretendia era contar com as forças psíquicas próprias do sujeito. A hipnose e o uso da cocaína representavam forças alheias ao sujeito. Freud elaborou sua teoria do psiquismo que supunha uma divisão do eu em três instâncias: Eu,Supereu e Isso, caracterizadas por processos conscientes, pré-conscientes e inconscientes.

A teoria psicológica do Dr. Jekyll é a teoria do ser duplo, ou seja, os homens são formados de duas partes, a má e a boa. Mas não conseguem viver plenamente a parte má. São medíocres por isso. Ele, Jekyll, vai experimentar ser plenamente. Vivendo secretamente o lado obscuro. Para isso, precisa transformar-se pela ingestão de uma mistura de sal efervescente, à base de um pó. A metáfora do pó impuro, ao qual o Dr. Jekyll teve acesso e foi o mediador de suas transformações, remete-nos à concepção de viés subjetivo. Isto é, em um experimento controlado, o sujeito é o observador externo ao experimento, sua ação não deve interferir no processo; mas, se ocorrer, haverá um desvio ou erro no experimento. Portanto, essa metáfora também pode ser lida como um limite da ciência. Poderíamos compará-la ao ato falho, uma formação do inconsciente. Freud aceita que a ciência não pode dar conta de tudo, por isso, de certa forma, abandona as ideias desenvolvidas em seu Projeto para uma psicologia científica, onde tentava explicar o aparelho psíquico via neurologia, pensava nas quantidades de energia e nos tipos de neurônios para, então, formular uma teoria onde o inconsciente tem um papel central. Na sua formulação final do aparelho psíquico em o Eu e o Isso mostranos que nosso psiquismo é essencialmente inconsciente, ou seja, “não somos senhores em nossa própria casa”, pois grande parte de nossas atividades mentais fogem a consciência e não são controláveis.

Uma teoria literária do inconsciente

Além da teoria da dupla natureza do homem, que é proferida pelo Dr. Jekyll como justificativa para suas experiências, é possível realizar uma leitura desta novela considerando aspectos ensaísticos que representariam uma concepção de inconsciente proposta por Stevenson. Para essa leitura, seguimos a apresentação que Stevenson faz do personagem Mr. Hyde. A primeira descrição do personagem Mr. Hyde aparece da seguinte forma: “não parecia um homem, e sim um demônio maldito”, dessa aparição em diante, sempre há um elemento intangível, algo que não consegue ser dito, algo inquietante. O efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada (Freud, 1919). Mr. Hyde é a concretização do devaneio do Dr. Jekyll de ser livre do mal-estar e de

aproveitar o lado “mais criativo da vida”. Porém, o que acontece é a preponderância do agir impulsivo. Para descrever a conduta descontrolada, de puro impulso, sem consciência moral e impiedosa de Mr. Hyde, na cena em que ele atropela uma criança, Stevenson utiliza o termo de origem indiana “Juggernaut”:3 […] for the man trampled calmly over the child’s body and left her screaming on the ground. It sounds nothing to hear, but it was hellish to see. It wasn’t like a man; it was like some damned Juggernaut (Stevenson, 2003, p. 7). [...] pois, com toda a calma deste mundo, o homem pisoteou o corpo da criança e seguiu em frente, deixando-a em prantos no chão. Contando assim, não parece nada de mais, porém foi abominável assistir àquela cena. Não parecia um homem, e sim um demônio maldito (Stevenson, 2011, p. 156).

Essa descrição poderia ser uma proposta de um “inconsciente do ponto de vista de Stevenson”, na forma de uma impulsividade descontrolada cuja relação com a sexualidade não é explicitada. Para acrescentar elementos a essa hipótese, observamos que Mr. Hyde aparece em sonho para Mr. Utterson. Trata-se de uma noite de estranhos sonhos, nos quais Mr. Utterson consegue ver a figura de Mr. Hyde, mas não o seu rosto. Simbolicamente, seria a identidade de Hyde? A partir desses estranhos sonhos, surge no advogado uma curiosidade singularmente forte, quase descontrolada,de ver as feições do Mr. Hyde real. Quando Mr. Utterson finalmente consegue deitar os olhos em Mr. Hyde, suas observações apenas confirmam o sentido de misteriosa deformidade registrado por testemunhos anteriores: Mr. Hyde era pálido e pequeno (dwarfish), dava a impressão de deformidade sem que fosse possível especificar o problema (He gave an impression of deformity without any nameable malformation). Ele tinha um sorriso desagradável, sua voz era sussurrante e rouca.

3

Juggernaut, segundo o Webster’s: Noun. 1. Any large, overpowering, destructive force or object; 2. Anything requiring blind devotion or cruel sacrifice; 3. Also called Jagannath, an idol of Krishna at Puri in Orissa, India, annually drawn on an enormous cart under whose wheels devotees are said to have thrown themselves to be crushed.

As explicações científicas se fundam nas causas de um fenômeno, mas qual é a causa do surgimento de Mr. Hyde? Uma mistura de um sal, um pó. Entretanto, nesse experimento que transformaria o Dr. Jekyll em seu outro, em sua parte puramente impulso, nem tudo era previsto e controlado. O pó impuro fez seus efeitos sobre Jekyll, transformando-o em Mr. Hyde. Só depois o Dr. Jekyll descobre que a causa da transformação lhe era desconhecida e, assim, não poderia reproduzir o experimento mais uma vez. A causalidade se revelou desconhecida. Com a metáfora do pó impuro, Stevenson inverte o tempo da ciência do controle, que antecipa as hipóteses e controla as variáveis. O fracasso de Jekyll foi o fracasso do controle. Esse é o contexto do que chamaríamos de uma leitura crítica da ciência experimental e da racionalidade. A racionalidade parecia não satisfazer o homem no Dr. Jekyll. Seguindo a análise de Caillois (1997), o fantástico não poderia ter surgido senão depois do triunfo da concepção científica de uma ordem racional e necessária dos fenômenos, depois do reconhecimento de um determinismo estrito no encadeamento das causas e dos efeitos. O fantástico nasce no momento em que cada um é mais ou menos persuadido da impossibilidade dos milagres. A literatura fantástica questiona a racionalidade, mostrando o misterioso. Aquilo que a ciência banira como inadmissível retorna através da literatura fantástica, como retorno do recalcado, retorno do que era para ficar desconhecido. A partir da conceituação lacaniana, a descoberta de que o pó era impuro pode ser considerada sob a perspectiva de um saber que não se sabe. O pó impuro já estava sendo utilizado desde o início das transformações, mas será somente depois, quando o estoque está acabando, que o Dr. Jekyll descobrirá que o pó do qual fizera uso era impuro. Essa poderia ser uma metáfora para a relação temporal de antecipação e precedência do lugar do Outro para o sujeito. O sujeito é precedido, primeiro estava o Outro, o significante. Depois, o sujeito vai ler um sentido na relação entre significantes. Ou seja, se o inconsciente é o Outro da consciência, é como se houvesse um saber no Outro, um saber que antecede ao sujeito. Assim, o pó impuro que originara Mr. Hyde não correspondia ao que era esperado. Jekyll acreditara ter ascendência sobre Mr. Hyde. Mas os acontecimentos revelaram que havia um saber sem sujeito, isto é, a relação entre pó impuro (significante 1) e Mr. Hyde (significante 2). O saber estava lá, esperando ser decifrado por um sujeito, nesse caso, o Dr. Jekyll. Mas esse encontro do

sujeito com o saber é um desencontro, nunca se dá senão em descompasso, isto é, sódepois. Enfim, o método comparativo propiciou um diálogo da psicanálise com a novela de Stevenson, como um olhar entre muitos possíveis. Propusemos uma direção metodológica que tomamos de empréstimo a Borges. Nossa leitura do Stevenson precursor da psicanálise provém, portanto, da própria literatura comparada. A psicanálise, por sua vez, disponibilizou seus instrumentos conceituais para a leitura das metáforas. Assim, o diálogo entre as duas disciplinas propiciou uma redescoberta desse clássico da literatura que se tornou emblemático do embate entre literatura fantástica e razão. Não podemos deixar de lembrar que o principal elemento fantástico dessa novela perdura nas recriações fílmicas da cena de transformação do Dr. Jekyll em Mr. Hyde.

Referências

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_____. Obras completas.Trad. José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1990. _____. O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, [1930] 2011. HOFFMANN, E. T. A. O homem de areia. In: COSTA, F. M. da (Org.). Os melhores contos fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1815] 2006. HOMERO. Odisséia. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2011. LACAN, J. O seminário sobre ‘A carta roubada’. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998. POE, E. A. Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril Cultural, 1978. STEVENSON, R. L. The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde and other stories. Introduction and notes by Jenny Davidson. New York: Barnes & Noble Classics, 2003. _____. O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde. In: _____. O clube do suicídio e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2011. WEBSTER’S Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English Language. New York: Random House, 1989.

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