As terras indígenas e a (in)justiça de transição: o Supremo Tribunal Federal e a legitimação dos crimes da ditadura militar

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As terras indígenas e a (in)justiça de transição: o Supremo Tribunal
Federal e a legitimação dos crimes da ditadura militar[1]

Pádua Fernandes


Resumo: O artigo trata das últimas revelações pelas Comissões da Verdade
sobre o genocídio e a remoção forçada sofridos pelos índios brasileiros
durante a ditadura militar, e de como decisões recentes do Supremo Tribunal
Federal estão legitimando os crimes da ditadura, limitando ou até anulando
a demarcação de terras indígenas, com a aplicação da tese do "marco
temporal". Contra essa jurisprudência, organizações indígenas e outras da
sociedade brasileira estão levantando a bandeira da justiça de transição e
das medidas reparativas aos direitos originários dos povos indígenas.

Palavras-chave: Terras Indígenas, Justiça de Transição, Direitos Indígenas,
Ditadura Militar.


Introdução: os crimes contra os povos indígenas e a CNV

A nova comprovação do genocídio de povos indígenas pela ditadura militar
brasileira foi realizada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV)[2], em
dezembro de 2014, que estimou a morte de oito mil trezentos cinquenta
índios das dez etnias que logrou pesquisar.
A única condenação por genocídio na época da ditadura militar, apesar de o
crime ter sido tipificado em 1956 por meio da lei nº 2889[3], foi realizada
por um tribunal da sociedade civil internacional, o Tribunal Bertrand
Russell, em 1980, e rechaçada pelo governo federal. O fim da ditadura não
trouxe mudanças a esse quadro: a Justiça brasileira não tocou na impunidade
dos crimes contra a humanidade praticados contra os índios brasileiros.
Além do genocídio, ocorreu uma série de remoções forçadas que também
ensejaram, pela CNV, a recomendação de medidas reparativas. Elas não estão
sendo cumpridas pelo Estado brasileiro, no entanto. Projetos anti-indígenas
da ditadura militar, de barragens na Amazônia (um deles, o da usina
hidrelétrica de Belo Monte), estão sendo levados a cabo pelas
administrações federais do Partido dos Trabalhadores, inobstante sua
manifesta ilegalidade ambiental e a violação aos direitos constitucionais e
internacionais dos povos indígenas.
Contudo, além de uma conjuntura desfavorável nos Poderes Executivo e
Legislativo, em que as forças anti-indígenas (especialmente políticos
ruralistas), agravada pelas eleições de 2014, desde esse mesmo ano a 2ª
turma do Supremo Tribunal Federal tomou decisões que não só ameaçam a
demarcação de novas terras indígenas, mas ameaçam desfazer demarcações já
realizadas, na contramão das medidas reparativas preconizadas pela justiça
de transição, com a aplicação do chamado "marco temporal". Tal é o objeto
de estudo deste pequeno artigo, que possui caráter meramente exploratório.


1. Graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas durante a
ditadura militar: a democratização e a insuficiências das medidas
reparativas

A criação da Funai durante a ditadura militar foi ensejada pela
investigação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) pela chamada Comissão
Figueiredo, chefiada por Jader de Figueiredo Correia. Ele, procurador do
Ministério do Interior, foi Presidente de Comissão de Inquérito criada pela
Portaria n.º239/1967 daquele Ministério com o fim de "Apurar
Irregularidades no Serviço de Proteção aos Índios".
O relatório, de quase oito mil páginas, levantou uma infinidade de graves
violações de direitos humanos, inclusive assassinato, tortura, estupro e
redução ao trabalho escravo[4]. O SPI foi extinto e substituído pela
Fundação Nacional do Índio, criada pela lei no 5371, de 5 de dezembro de
1967. O Estatuto do Índio só viria mais tarde, com a lei no 6001, de 19 de
dezembro de 1973.
Se o SPI havia se revelado um órgão de extermínio dos povos indígenas, com
a Funai não foi diferente. Criada durante a ditadura e militarizada, ela
servia para atender aos fins desenvolvimentistas e de segurança do governo
federal, para quem os povos indígenas eram simples "obstáculos ao
desenvolvimento". Neste trecho do relatório da Comissão da Verdade do
Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (2015), vemos parte do depoimento em CPI
da Câmara dos deputados sobre denúncias de invasão de terras indígenas,
dado pelo secretário executivo do Centro Indigenista Missionário (CIMI,
criado durante o governo Médici por causa do genocídio contra os povos
indígenas), Antônio Iasi Junior, que comparou a Funai ao Esquadrão da
Morte:

O padre Antônio Iasi Júnior, então secretário do Cimi (Centro
Indigenista Missionário), começou seu depoimento aos deputados
afirmando que


"As investigações que se tentaram fazer sobre o índio e, agora,
se tentam, novamente, têm muito a ver com as investigações sobre
o Esquadrão da Morte. Estas têm muito a ver com as investigações
do Esquadrão da Morte. Estas, como aquelas, jamais chegarão ao
término, porque há muita gente importante envolvida no assunto.
"Se eu fosse chamado a depor, dizia-nos um alto funcionário da
Funai, não sobrariam nem governadores, nem senadores, nem
deputados, nem sequer as missões, pois todos cometeram graves
irregularidades contra os índios".
E o referido funcionário poderia acrescentar, com respeito à
FUNAI, o mesmo que Jader de Figueiredo Correia disse a respeito
do SPI, quando depôs, numa CPI como esta, no dia 19 de junho de
1968: "O difícil não é apurar os criminosos do SPI, mas, sim, os
inocentes. (Diário do Congresso Nacional, 28/4/1971, p. 6).
[...]
Sr. Presidente e Srs. Deputados, a semelhança entre FUNAI e
Esquadrão da Morte não reside apenas na dificuldade de apuração
dos fatos, mas nesses mesmos fatos, que chamam ambas entidades a
um julgamento, pela opinião pública nacional e internacional, já
que a nossa justiça, domesticada pela exceção, se torna incapaz
de o fazer."


E há uma correlação óbvia com o Esquadrão da Morte, nos dois
casos o Estado torna-se um aparato de matar. Como no Esquadrão
da Morte, trata-se de muitos criminosos em vários escalões, que
chegavam aos mais altos postos da república: os presidentes da
república, como foi demonstrado no relatório da CNV.

A constatação da Comissão "Rubens Paiva" de que o Estado havia se tornado
uma máquina de matar não era nova. Em 1980, em julgamento do Tribunal
Bertrand Russsell, o Estado brasileiro foi condenado pelo crime de
genocídio contra os povos indígenas, o que é explicado no relatório da
mesma Comissão: em nome da "integração" desses povos, da colonização da
Amazônia e dos projetos desenvolvimentistas, a ditadura cometeu, em termos
culturais, etnocídio, e também remoções forçadas e genocídio.
Deve-se apontar, contudo, que o relatório Figueiredo, que denunciou tantos
crimes cometidos até 1967, também apresentava uma ideologia
integracionista:

Mas o SPI trouxe fome, desolação, abandono e despersonalização
do indígena.
Proclama-se a míngua de recursos orçamentários escondendo-se que
o índio brasileiro, um dos maiores latifundiários do mundo, tem
meios de auferir rendas de suas terras, de suas dezenas de
fazendas, capazes de tornar cada um deles tremendamente rico se
convenientemente administrados, com zelo e honestidade. [...]
Palmilhando o campo em todos os sentidos o índio fixou-se nos
sítios onde o solo mais rico permitia maior abundância de
elementos para sua atividade típica de colheita.
Seria óbvio que a aculturação dessas tribos, o encaminhamento de
seus membros para a atividade rural, mesmo agropastoril
elementar, traria abundantes frutos. (1967, p. 4919)

Sua solução para os índios é a da "aculturação", ou seja, de fato o que os
químicos chamariam de "solução". Também esse documento oficial, que
denunciava diversas graves violações de direitos humanos, tinha como
horizonte simbólico o etnocídio.
A ditadura militar, no entanto, acabou, em reação, por levar a uma inédita
articulação em nível nacional dos povos indígenas no Brasil, que originou a
União dos Povos Indígenas (UNI), hoje extinta. A Articulação dos Povos
Indígenas (APIB) exerce atualmente esse papel.
Ademais, criaram-se associações de apoiadores dos povos indígenas, como as
Comissões Pró-Índio, e a própria Associação Brasileira de Antropologia
(ABA), a partir da gestão de Eunice Durham, de 1980 a 1982, engajou-se
nessa luta. Manuela Carneiro da Cunha, que presidiu a ABA de 1986 a 1988,
época em que ocorreu a Assembleia Constituinte, conta que recebeu de Rubens
Santilli um livro antigo com as conferências de 1911 de João Mendes Júnior
sobre os direitos territoriais indígenas.


João Mendes Júnior sustentava que os direitos indígenas eram
originários, ou seja, antecediam a própria Constituição. À
Constituição cabia reconhecê-los, não outorgá-los. Colocamos
essa tese em circulação novamente e, alguns anos mais tarde,
conseguimos que fosse expressamente aceita na Constituição de
1988. (Cunha, 2009, p. 383)

O governo federal não viu com bons olhos esse associativismo. Ao mesmo
tempo em que buscava reprimir as lideranças indígenas que despontavam, como
Mário Juruna, buscava impedir que os povos indígenas lograssem formar
movimentos sociais. Como declarou Ailton Krenak (2015, p. 88), uma das
lideranças da União das Nações Indígenas (UNI), criada em 1979, dez anos
depois da criação da organização: "Nós provocamos os fazendeiros. Nós
provocamos o Conselho de Segurança Nacional, que botou os militares para
nos vigiar mais de perto.".
Ao lado desses povos, havia também movimentação de entidades pró-indígenas,
muitas criadas nessa época. O CIMI (Conselho Indigenista Missionário) foi
criado em resposta ao genocídio ocorrido no governo Médici.
A Constituinte foi um momento alto dos movimentos indígenas – o capítulo
finalmente aprovado foi da proposta dos índios, não o da Igreja Católica.
No entanto, após a Constituinte, as velhas novidades do desrespeito aos
direitos originários dos povos indígenas e da inefetividade seletiva do
direito constitucional permaneceram. A Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) assinaram
documento denunciando que, em 1992, um ano antes de acabar o prazo
constitucional para a demarcação das terras indígenas (de 5 anos, segundo o
artigo 67 do ADCT), faltava a demarcação de 16 áreas e que 20 das 25 áreas
já demarcadas ou homologadas nos Estados do Pará e do Amapá haviam sido
invadidas, e nelas os Kayapós e os Mundurukus haviam sido envenenados com
mercúrio.

Em 05 de fevereiro de 1991 o então presidente da república
Fernando Collor emanou uma série de 6 decretos transferindo para
os Estados a tarefa, até então da UNIÃO, de zelar pelos bens
materiais e imateriais dos povos indígenas, como: saúde,
educação, subsistência, cultura…
Devido à mudança repentina e à falta de instâncias operativas os
índios ficaram desassistidos, desamparados e a mercê de qualquer
um (madeireiras, mineradoras, ONGs, missões) que tenham algo a
oferecer me troca de seus próprios interesses. (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil; Conselho Indigenista Missionário,
1992)

O ritmo da demarcação das terras indígenas foi decaindo especialmente nas
últimas administrações federais. Sobre o atual governo, Mauricio Guetta
(2014) lembra que "[...] o número de TIs declaradas e homologadas durante o
Governo Dilma foi o mais baixo da história desde os tempos de ditadura
militar, omissão estatal caracterizada pelo movimento indigenista como
elemento indutor da violência contra indígenas no Brasil." No Legislativo,
constata-se a presença de diversos projetos anti-indígenas. Este artigo,
porém, só estudará a conjuntura desfavorável no Judiciário, mais
especificamente no Supremo Tribunal Federal.


2. Posições anti-indígenas no Supremo Tribunal Federal: legitimação da
ditadura e dos crimes contra a humanidade pela Justiça brasileira

Após o caso da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol em Roraima (Petição
3388-RR, julgada em 2008), em que o Supremo Tribunal Federal aprovou
"condicionantes" para a demarcação de TI não previstas na Constituição
brasileira, houve diversas tentativas, inclusive oficiais (como a Portaria
303 de 2012 da Advocacia Geral da União[5]), de tentar institucionalizar
essas limitações para todas as terras indígenas do Brasil.
Entre os diversos riscos dessa institucionalização, além da proibição de
expansão de TI já homologada, está a "ideia de que só são sujeitos do
reconhecimento de seus direitos territoriais as populações indígenas que
estavam no local reivindicado na data da proclamação da Constituição"
(Pateo, 2009, p. 166). Apesar da recente decisão em embargos de que as
condicionantes da TI Raposa Serra do Sol só valem para esse caso, a 2ª
turma do STF tem procurado, em recentes decisões, aplicar essas
condicionantes e, inclusive, inovar em entraves contra o reconhecimento dos
direitos originários dos povos indígenas. Em 2014, pode-se lembrar de
agravos, da 2ª Turma, que anularam portarias declaratórias de terras dos
Guarani-Kaiowás, no Mato Grosso do Sul, e, em relação à TI Porquinhos, o
povo Canela-Apãniekra, no Maranhão.
Vejamos o primeiro desses casos, em que a tese jurídica prevalecente foi a
mesma. No tocante à Terra Indígena Guyraroká do povo Guarani-Kaiowá (RMS
29087 DF), no Mato Grosso do Sul, a 2ª turma do STF, no recurso ordinário
em mandado de segurança, anulou a portaria declaratória da TI em prol de
fazendeiros. Foi adotada a tese do "marco temporal", isto é, a de que a
Constituição de 1988 só teria reconhecido os direitos originários dos
índios sobre as terras que ocupavam no instante da promulgação da
Constituição:

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO REFERENCIAL DA OCUPAÇÃO
É A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE
OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A
configuração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios,
nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi
pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula
650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição
Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que
ocupadas por indígenas em passado remoto.
2. A data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é
referencial insubstituível do marco temporal para verificação da
existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal
ocupação fundiária pelos índios (RE 219.983, DJ 17.9.1999; Pet.
3.388, DJ e 24.9.2009).
3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as
salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal
Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol).
4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos,
não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na
área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente
a desapropriação das terras em questão, deverá seguir
procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia
indenização ao seu legítimo proprietário.
5. Recurso ordinário provido para conceder a segurança. (Supremo
Tribunal Federal, 2014)

A decisão foi tomada em 16 de setembro de 2014. O relator do recurso,
Ministro Lewandowski, aplicava a jurisprudência da Corte, que era pró-
indígena, e foi vencido, contra os votos dos Ministros Carmen Lúcia, Celso
de Mello e do relator do acórdão, Gilmar Mendes, que já havia dado várias
decisões monocráticas anti-indígenas em seu último período como presidente
do STF[6].
Lewandowski havia votado contra o provimento do recurso, seguindo a
jurisprudência da Corte de que o mandado de segurança não é via adequada
para anulação de terras indígenas, tendo em vista a grande complexidade do
assunto, que envolve estudos antropológicos, ambientais, históricos, além
de jurídicos, como bem lembrou Mauricio Guetta (2014), em artigo sobre a
anulação das Terras Indígenas Guyraroká e Porquinhos:

[...] o Mandado de Segurança é modalidade de ação com
procedimento diminuto e simplório, sem a possibilidade de
produção de provas ou debate sobre questões de fato (como a
tradicionalidade da ocupação indígena, por exemplo), o que o
torna via absolutamente inadequada para debater os complexos
processos de demarcação de terras indígenas, na linha do que vêm
decidindo o STF e também o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Além do manifesto erro de Direito Processual cometido pela 2a turma do STF,
insustentável em qualquer orientação de Teoria Geral do Processo, mas
conveniente para os violadores dos direitos indígenas, deve-se verificar
outro problema. O fato de o mandado de segurança ter sido provido mostra o
menosprezo, digamos, metodológico, pela demarcação de TI: somente
considerando-a algo de menor complexidade poder-se-ia sustentar que o
mandado de segurança caberia nessas questões. Vemos nisso a reprodução de
um dos traços mais característicos e mais nocivos da cultura jurídica
dominante no Brasil, que é o da sistemática desconsideração dos saberes de
outros ramos do conhecimento, corroborada pelo fato de que a decisão, foi
tomada contra o laudo antropológico, que demonstra a resistência dos
Guarani-Kaiowás contra a invasão de suas terras.
No caso do Limão Verde (ARE 803.462-AgR/MS), terra indígena do povo Terena
no Município de Aquidauana (Mato Grosso do Sul), o Ministro Teori Zavaski
foi relator do agravo em recurso extraordinário, que inaugurou, apesar de
retoricamente fazer referência à jurisprudência do tribunal, a tese do
"esbulho renitente" para anular demarcação de terras indígenas:

Ementa: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA "LIMÃO
VERDE". ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, §
1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO
PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO.
1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet
3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu
como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para
efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da
promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o
conceito de "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" não
abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado
remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR
MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014.
3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação
passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de
haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo
conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda
persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a
data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se
materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma
controvérsia possessória judicializada. (Supremo Tribunal
Federal, 2015)

A decisão é de 9 de dezembro de 2014. Neste caso, a 2a turma do STF
entendeu que, se os povos indígenas não estavam presentes em suas terras
quando a Constituição de 1988 foi promulgada, deveriam estar lutando contra
os grileiros ou, ao menos ter proposto alguma ação judicial antes dessa
promulgação (a "controvérsia possessória judicializada") para que a
demarcação fosse válida.
O aberrante etnocentrismo dessa tese, que viola os direitos originários e
os direitos culturais internacionalmente reconhecidos, pressupõe que os
índios: a) tinham amplo acesso à Justiça, o que, em termos sociológicos, é
absurdo: continua havendo profunda disparidade entre os conflitos nas
florestas e os conflitos nas cidades; b) poderiam livremente propor ações
no próprio nome, o que supõe um profundo desconhecimento do direito
positivo da época, tendo em vista a tutela prevista pelo Estatuto do Índio;
c) preferiam usar os mecanismos oficiais do Estado brasileiro para
resolução de conflitos, quando, em razão de sua própria identidade
cultural, tinham mecanismos próprios e, pelo seu saber histórico, tinham
toda a razão para não confiar nos mecanismos oficiais, inclusive no
Judiciário brasileiro, cuja jurisprudência é historicamente etnocêntrica;
d) a exigência de que ainda estivessem resistindo fisicamente em 1988
ignora completamente a relação de forças no campo brasileiro e dos
massacres cometidos contra os povos indígenas.
A combinação nefasta de absurdo sociológico, desconhecimento do direito
positivo e desprezo à antropologia confirma-se no fato de que o povo Terena
não se manifestou no processo em fase alguma – ele não é parte" – e a Corte
decidiu sobre seus direitos, negando-os, sem os ouvir.

[...] a comunidade indígena Terena de Limão Verde, atualmente
detentora da posse da área em litígio, não foi chamada nos autos
para discutir a legitimidade do título de propriedade em terras
que, imemorial e atualmente, são suas e por isso, a comunidade é
imediatamente afetada pela decisão do STF. Desta feita, deveria
ter sido citada como parte e ter tido a oportunidade de fazer
provas nos autos, o que não foi promovido pela parte requerente
e muito menos pelo judiciário, o que anularia todos os atos do
processo. (Comunidade Terena da Terra Indígena do Limão Verde,
2015, p. 2)

A questão é elementar em termos processuais: o processo é nulo. Além de sua
hostilidade a qualquer parâmetro da antropologia atual, arrogância
etnocêntrica e colonizadora de discutir os direitos dos povos indígenas sem
lhes ouvir a voz e as reivindicações fere frontalmente o direito
constitucional brasileiro. O artigo 232 é claro em estipular que "Os
índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar
em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério
Público em todos os atos do processo." O processo foi conduzido em negação
à condição de sujeitos de direito dos povos indígenas, ou, na formulação de
Hannah Arendt, ao direito de ter direitos.
Negando a condição de sujeitos de direito aos povos indígenas e, dessa
forma, o direito a suas terras, a 2a turma do Supremo Tribunal Federal
afronta a Constituição brasileira e o Direito Internacional dos Diretos
Humanos. Se o Judiciário brasileiro, em pleno século XXI, realiza essa
radical negação de direitos humanos dos povos indígenas, tanto no plano do
direito material quanto no do processual, retirando-lhe direitos sem mesmo
ouvi-los judicialmente, o que deve pensar da esdrúxula exigência, não
prevista na Constituição, de que os povos indígenas estivessem discutindo
judicialmente seus direitos em outubro de 1988 para que possam ter a
demarcação das terras que foram expulsos, seja por ação ou omissão do
Estado brasileiro?


3. Injustiça de transição e povos indígenas: respostas à legitimação
judicial do genocídio

O absurdo sociológico, o desconhecimento do direito positivo e da violação
dos direitos originários e dos direitos culturais dessas decisões, vêm
somar-se à radical violação dos padrões mínimos de justiça de transição. O
relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entre suas recomendações,
previu a demarcação, a desintrusão e a recuperação ambiental das terras
indígenas, tendo em vista as inúmeras violações de direitos humanos
sofridas por esses povos que foram, tanto em números absolutos quanto
relativos, as maiores vítimas do regime ditatorial: a CNV, embora só tenha
conseguido investigar dez etnias, logrou estimar que oito mil e trezentos e
cinquenta índios foram mortos (2014, vol. II, p. 199).
As novas decisões do STF vêm penalizar o grupo social mais atingido pela
ditadura, configurando um radical exemplo de injustiça de transição. Maria
Rita Kehl, ex-membro da CNV a que ficou a cargo a pesquisa sobre esses
povos, publicou, em abril de 2015, uma carta aberta ao Supremo Tribunal
Federal, a pedido da Mobilização Nacional Indígena. Na carta, alertou os
Ministros sobre os rumos preocupantes que aquelas decisões da 2a turma
passaram a adotar, e que ainda podem ser desfeitos em plenário:

A história mostra que são múltiplas as formas de resistência
indígena diante de situações de expropriação territorial e, na
maioria dos casos que analisamos na CNV, pudemos verificar que
os indígenas expulsos ou impedidos à força de ocuparem seus
territórios foram obrigados a adotar estratégias para evitar o
confronto direto a fim de conseguirem permanecer usufruindo de
suas terras tradicionais, mesmo que de maneira precária.
Exemplos disso são os recorrentes e documentados casos de
permanência nos fundos das fazendas, como ocorreu na Terra
Indígena Guyraroka e também no Limão Verde.
Como imaginar que pudesse ser de outra maneira, diante de
adversários que detinham tão evidente superioridade bélica, além
do Estado a seu serviço para a expulsão dos indígenas? Entender
"o renitente esbulho" como apenas aquele que envolve resistência
violenta e continuada por parte dos índios tem como consequência
uma incitação a que esses povos optem por estratégias de
enfrentamento guerreiro, o que me causa enorme consternação ao
vislumbrar o futuro próximo desses conflitos. É isso que
desejamos para o país?
Da mesma maneira, Vossa Excelência, como exigir para a
caracterização de renitente esbulho a permanência de
"controvérsia possessória judicializada" até 1988, como no caso
do julgado sobre a Terra Indígena Limão Verde, conhecendo o
contexto de exceção do Estado Brasileiro que precedeu a data da
promulgação da Carta Magna. Como exigi-lo para verificação de um
direito originário quando é apenas a partir de 1988 que os povos
indígenas passaram a ser considerados sujeitos dotados de
personalidade jurídica própria para defesa dos seus direitos,
pois até então eram tutelados juridicamente pelo mesmo Estado
que assumiu, através da CNV, sua responsabilidade direta no
esbulho destas terras indígenas? (Kehl, 2015)

As questões que Maria Rita Kehl dirige à Corte revelam bem a impressionante
ignorância antropológica dessas decisões do STF, que deixam de lado as
formas de resistência próprias dos povos indígenas e escolhem como via
única, a ser considerada juridicamente, a da justiça oficial do Estado
brasileiro - como se ela estivesse realmente aberta para esses povos
durante a ditadura e no governo de José Sarney (em que a Constituição de
1988 foi promulgada), que foi um governo tutelado pelas Forças Armadas.
No dia seguinte à decisão de Limão Verde, o Estado brasileiro assumiu, por
via do relatório da CNV, a responsabilidade por diversas graves violações
de direitos humanos cometidas pela ditadura militar e a necessidade de
medidas de reparação, indicadas nas recomendações gerais presentes no final
do volume I do relatório, bem como, para os povos indígenas, as que constam
no final do capítulo concernente no volume II. No volume, a recomendação
26, letra g, prevê "apoiar as medidas de reparação coletiva pelas graves
violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV,
com ênfase na regularização, desintrusão e recuperação ambiental de suas
terras" (2014, vol. I, p. 973). No volume II, temos, entre outras, o
"Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça
transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas
visando a colonização de suas terras durante o período investigado
constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio
modo de ser indígena." (2014, vol. II, p. 247).
O Judiciário, ao contrário, está a legitimar esses crimes. Marcelo Zelic,
com muita razão, qualificou essas decisões da 2ª turma do STF como uma
"anistia" dos grileiros, que seguiu à anistia dos torturadores disposta
pelo mesmo tribunal no julgamento, em abril de 2010, da arguição de
descumprimento de preceito fundamental n. 156, proposta pelo Conselho
Federal da OAB.

A 2ª turma do STF, reunida em 16 de setembro, votou por maioria
contrariamente aos direitos dos Guarani Kaiowá sobre terra da
qual foram expulsos em 1940. Os indígenas nunca desistiram de
voltar a ocupar seu território tradicional. Três dos cinco
ministros, Gilmar Mendes, Celso de Melo e Carmen Lúcia, votaram
contra os índios. O relator Ricardo Lewandowski votou a favor e
Teori Zavaski se declarou impedido e não votou. A decisão final
sobre o caso será tomada pelo plenário.
Se confirmada, a decisão representa um sério revés para a causa
indígena. Depois de impedir a punição aos torturadores, o STF
anistiará a todos que grilaram terras indígenas no Brasil antes
de 1988.[...]
Grave também é o fato do STF anistiar a si próprio, tal qual a
ditadura fez com seus torturadores, passando uma borracha sobre
a atuação do judiciário no esbulho das terras indígenas no
Brasil de 1988 para trás. Uma ação iniciada no STF em 1961,
sobre o roubo de terras indígenas no atual Mato Grosso do Sul,
teve como desfecho dos magistrados da mais alta corte do País,
em 2014, uma declaração de que mais nada se poderia fazer, mesmo
tendo sido provado o esbulho de terra indígena. A justificativa:
teria se passado muito tempo. Nenhuma linha sobre a necessidade
de reparação aos povos esbulhados do Mato Grosso do Sul. Somente
um arquive-se mais de 50 anos depois. (Zelic, 2014)

Zelic está correto também na denúncia da responsabilidade do Judiciário nas
remoções forçadas dos povos indígenas, documentadas pela CNV. No entanto, a
Comissão não incluiu nenhum magistrado e nenhum membro do Ministério
Público entre os autores de graves violações de direitos humanos, apesar de
ter documentado sua participação em algumas dessas violações.
Em 12 de abril de 2015, a rede Índio é Nós criou a declaração "Contra o
marco temporal: a legalização na democracia do genocídio dos povos
indígenas durante a ditadura", assinada por várias organizações, como a
Associação Juízes para a Democracia, voltadas para os direitos humanos e/ou
para os direitos específicos dos povos indígenas, como a Comissão Guarani
Yvyrupa, que articula os povos de etnia Guarani[7].


1. O Estado brasileiro, por meio do relatório da Comissão
Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, reconheceu ter
cometido graves violações de direitos humanos contra os povos
indígenas. Somente de dez etnias, a Comissão Nacional da Verdade
apurou o número de 8350 mortos. Além de terem sido vítimas de
genocídio, esses povos foram removidos violentamente de suas
terras.
2. Por essa razão, o Estado brasileiro aprovou, como
recomendação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade,
reparar esses povos por meio da demarcação, desintrusão e
recuperação ambiental de suas terras, medidas mínimas e
imprescindíveis de justiça restaurativa.
3. Essas medidas de reparação não são compatíveis com uma
interpretação restritiva dos direitos humanos e da Constituição
da República que faça crer que os constituintes desejavam, nos
artigos 231 e 232, legitimar o criminoso status quo da remoção
forçada dos povos indígenas.
4. A remoção forçada foi, de acordo com o próprio Estado
brasileiro, o produto do genocídio e de outras ações violentas
da ditadura: envenenamento, fuzilamento e bombardeios de tribos
pelas Forças Armadas, criação de campos de concentração para
índios. Usar esses fatos contra os povos indígenas significaria
culpabilizar as vítimas e beneficiar os assassinos com sua
própria iniquidade, violando preceitos básicos de justiça e de
dignidade.
5. A demarcação das terras indígenas é uma dívida histórica do
Estado brasileiro e uma exigência no campo dos direitos humanos
que a Constituição cidadã determinou que fosse cumprida até
1993. Exigir que os índios e as comunidades tradicionais em
geral devessem estar presentes em 1988 nas terras ainda não
demarcadas significaria legalizar o legado do genocídio cometido
contra os povos indígenas, além de violar gravemente as normas
nacionais e internacionais de justiça de transição e de
diversidade cultural.

A remoção forçada dos povos indígenas, por si, já se qualifica como
violação grave dos direitos humanos, tendo em vista a relação essencial que
esses povos mantêm com suas terras, e porque seus modos de vida dependem da
terra e da natureza. O afastamento das terras significa a destruição
cultural desses modos de vida e desses grupos sociais, ensejando, no
mínimo, o etnocídio.
A consequência da culpabilização das vítimas foi ressaltada também por
Manuela Carneiro da Cunha (2014), em sua análise das decisões da 2ª turma
do STF:

Negou-se aos kaiowá expulsos da aldeia de Guyraroká seu direito
ao retorno, por não a habitarem desde a década de 1940! É a
tentativa de aplicação automática da controversa teoria do
"marco temporal", segundo a qual a Constituição de 1988 só
garantiria aos índios as terras que eles estivessem ocupando no
dia da promulgação da Carta Magna.
Ignora-se que desde a Constituição de 1934 e em todas as que
seguiram, os direitos dos índios à posse permanente de suas
terras estava assegurada. E ignora-se uma história de violência
e de esbulho.
A Constituição de 1988 inaugurou entre os índios guarani
espoliados a esperança de que agora se encontravam em um "tempo
do direito".
Como disse um líder kaiowá ao protestar recentemente em
Brasília: "A coisa está tão absurda que hoje querem nos
penalizar por termos sido expulsos de nossos territórios. Querem
que assumamos a culpa pelo crime deles.
Durante décadas nos expulsaram de nossa terra à força e agora
querem dizer que não estávamos lá em 1988 e, por isso, não
podemos acessar nossos territórios?".

Com efeito, essa jurisprudência adota uma posição frontal contra a memória,
a verdade e a justiça, pilares da justiça de transição.


Conclusão: mobilização pelas medidas reparativas aos povos indígenas

A conjuntura atual não é favorável aos índios. A Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB) denunciou em 2015 a presidenta da República, o
Ministro da Justiça e o Advogado-Geral da União como "os maiores
responsáveis pelo genocídio de povos indígenas em curso no Brasil" (2015).
No Acampamento Terra Livre de 2015 (ocupação anual que os povos indígenas
fazem em Brasília para apresentar suas reivindicações), um dos focos da
APIB e de seus aliados foi o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista as
ameaças judiciais representadas pelas decisões aqui analisadas.
O diálogo, certamente, não é fácil, desde a composição do Supremo Tribunal
Federal: nenhum indígena o compõe, e mais nenhum negro desde a
aposentadoria do ministro Joaquim Barbosa. No entanto, vê-se a presença de
ministro que veio da elite agrária: Gilmar Mendes, cuja família é
proprietária de terras e politicamente influente no Mato Grosso, já foi
questionado pela Comissão Pastoral da Terra e pelo MST por suas decisões:

Para Dom Xavier Gilles, presidente da Comissão Pastoral da
Terra, o ministro "não esconde sua parcialidade e de que lado
está. Como grande proprietário de terra no Mato Grosso ele é um
representante das elites brasileiras, ciosas dos seus
privilégios. Para ele e para elas os que valem, são os que
impulsionam o "progresso", embora ao preço do desvio de
recursos, da grilagem de terras, da destruição do meio-ambiente,
e da exploração da mão de obra em condições análogas às de
trabalho escravo". [...]
Ao atacar frontalmente movimentos sociais como o MST, o
presidente do Supremo Tribunal Federal age como magistrado ou
preposto de velhas pretensões oligárquicas? (Caroni Filho, 2009)

Cléber Buzzato, secretário executivo do CIMI, qualifica-o de "intelectual
orgânico do ruralismo dentro do Supremo" (2015). A correlação de forças no
Judiciário brasileiro não se mostra - jamais se mostrou - favorável aos
povos indígenas.
No julgamento da TI Raposa Serra do Sol, não se podia deixar de perceber o
fato de que as chamadas "condicionantes" para a demarcação fossem quase
totalmente restrições à demarcação da TI. O Coletivo Makunaima Grita
ressaltou: "Chama a atenção o fato de a maioria das ressalvas serem
restritivas ao direito de usufruto da terra pelos indígenas, subordinando
este usufruto ao interesse nacional, o que pode levar à interpretação que,
segundo os ministros do STF, a ocupação indígena não está de acordo com
esses interesses." (2009, p. 216).
Temos nisso a confirmação do caráter colonial da cultura jurídica ainda
predominante no Judiciário brasileiro, francamente hostil aos direitos
humanos dos povos indígenas e dos quilombolas, o que é assunto para outros
artigos: apesar de suas especificidades jurídicas e culturais, as terras
quilombolas sofrem ameaças semelhantes no Brasil, inclusive com a tese do
marco temporal.
Lutar contra esse caráter colonial significa reconhecer a autonomia dos
povos indígenas e eliminar os entraves institucionais para o seu exercício,
o que inclui repensar toda a estrutura do indigenismo oficial:

[...] hoje quem fixa o território de um povo tradicional é a
Funai. É ela que tem o poder de polícia. Chega na área e faz um
inquérito, uma espécie de boletim de ocorrência do contato. Nós
não admitimos isso. O movimento indígena quer que as conquistas
que conseguimos na constituição sejam aplicadas na prática.
(Krenak, 2015, p. 102)

Trata-se da situação paradoxal em que os povos indígenas são os que
defendem, contra o próprio Estado brasileiro, a aplicação do direito
oficial desse mesmo Estado. Nessa estratégia, além da denúncia da
hipocrisia oficial das instituições, o uso do relatório da CNV e de outras
Comissões que estudam ou já estudaram as violações dos direitos indígenas
(Amazonas, Paraná e São Paulo, e a Comissão da Verdade em Minas Gerais, que
continua a funcionar, anunciou que já pesquisa a matéria) é uma estratégia
inteligente de usar contra o Estado documentos oficiais que desnudam essa
hipocrisia e revelam a justiça das reivindicações indígenas.


Referências:

Fontes documentais:
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Relatório.
Capítulo Violação dos Direitos dos Povos Indígenas. São Paulo, 2015. Acesso
em 13 jun. 2015. Disponível em .
Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília, 2014. Acesso em 10 maio
2015. Disponível em .
Comissão Figueiredo. Relatório. 1967. Projeto Armazém Memória: Centro de
Referência Virtual. Fundo Documentos Indígenas. Disponível em
.

Comissão Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); Conselho Indigenista
Missionário (CIMI). Campanha pela demarcação das terras indígenas. Centro
de Documentação Pastoral da Terra. Documento TA-0036-0056. 6 dez. 1992.

Fontes bibliográficas:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Dilma, Cardoso e Adams:
os maiores responsáveis pelo genocídio de povos indígenas em curso no
Brasil. 25 jun. 2015. Acesso em 3 jul, 2015. Disponível em <
https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/2015/06/25/dilma-cardozo-
e-adams-os-maiores-responsaveis-pelo-genocidio-de-povos-indigenas-em-curso-
no-brasil/>
Buzatto, Cléber. O STF golpeará a Constituição e os Povos Indígenas em
benefício do ruralismo? Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. 2
março 2015. Acesso em 10 jul. 2015. Disponível em
.
Caroni Filho, Gilson. A nudez de Gilmar Mendes. Carta Maior, 23 abr. 2009.
Acesso em 10 jun. 2015. Disponível em .
Coletivo Makunaima Grita. Nota sobre o fim do julgamento. In: Miras, J. T.;
Gongora, M. F.; Martins, R.; Pateo, R. D. (org.) A demarcação de Terras
Indígenas no Brasil e o caso Raposa Serra do Sol. Makunaima grita! Terra
Indígena Raposa Serra do Sol e os direitos constitucionais no Brasil. Rio
de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 215-217.
Combate ao Racismo Ambiental. AI-5 dos Povos Indígenas? Portaria da AGU
publicada hoje no Diário Oficial é uma vergonha! 17 jul. 2012. Acesso em 10
fev. 2015. Disponível em .
Cunha, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo:
cosac Naify, 2009.
Cunha, Manuela Carneiro da. O STF e os índios. Folha de S. Paulo. São
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Guetta, Mauricio. O papel do STF no cenário da crescente ameaça anti-
indígena. Instituto Socioambiental, 21 out. 2014. Acesso em 20 jan. 2015.
Disponível em .
Kehl, Maria Rita. Carta ao Supremo Tribunal Federal. Mobilização Nacional
Indígena. 9 abr. 2015. Acesso em 12 jul. 2015. Disponível em

Krenak, Ailton. Encontros: Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
Pateo, Rogério Duarte do. A demarcação de Terras Indígenas no Brasil e o
caso Raposa Serra do Sol. In: Miras, J. T.; Gongora, M. F.; Martins, R.;
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2009, p. 163-166.
Yamada, Erika. O legado do Presidente do STF, Gilmar Mendes, aos povos
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Zelic, Marcelo. Povos indígenas: ainda uma vez o esbulho. Carta Capital, 2
dez. 2014. Acesso em 10 dez. 2014. Disponível em
.

Fontes judiciais:
Comunidade Terena da Terra Indígena do Limão Verdade. Memorial apresentado
no ARE 803.462-AgR/MS. 9 jun. 2015. Acesso em 15 jul. 2015. Disponível em
.
Supremo Tribunal Federal. RMS 29087/DF. Julgamento em 16 set. 2014. Acesso
em 12 jul. 2015. Disponível em
.

Supremo Tribunal Federal. ARE 803.462-AgR/MS. Julgamento em 9 dez. 2014.
Informativo STF n. 774. Brasília 9-13 fev. 2015. Acesso em 10 jul. 2015.
Disponível em
.
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[1] Comunicação apresentada no V Seminário Nacional Direitos, Pesquisa e
Movimentos Sociais, realizado entre 22 e 26 de setembro de 2015 na
Faculdade de Direito de Vitória, em Vitória-ES, com organização do
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e da Faculdade
de Direito de Vitória (FDV).
[2] É verdade que o relatório foi realizado de forma pouco sistemática e
visivelmente apressada: o genocídio, por exemplo, não é citado na seção
conceitual sobre graves violações de direitos humanos. No entanto, esse
crime está nele bem documentado.
[3] A lei foi aprovada em virtude do dever do Estado brasileiro, como
membro da Convenção para Prevenção e Repressão do crime de genocídio,
aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1948, de tipificar esse
crime em seu direito interno.
[4] O relatório, que era altamente comprometedor para o governo federal e
diversos governos locais, ficou perdido por décadas e só foi encontrado por
Marcelo Zelic, do grupo "Tortura Nunca Mais" de São Paulo, no Museu do
Índio, no final de 2013.
[5] Essa Portaria, que simplesmente reproduz as condicionantes do caso
Raposa Serra do Sol, foi acolhida com júbilo pelos políticos ruralistas e,
depois, suspensa. Ela foi corretamente apelidada pelo Combate ao Racismo
Ambiental de "AI-5 dos Povos Indígenas" (2012)
[6] Erika Yamada (2010), em análise do período 2008-2010, em que o
mencionado Ministro foi presidente do STF, lembra que, "Como presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos dois anos, o ministro Mendes
proferiu monocraticamente pelo menos oito decisões liminares que ameaçam a
segurança jurídica de Terras Indígenas (TIs) no país. Só durante as últimas
férias forenses entre 24 de dezembro e 29 de janeiro, na ausência de seus
colegas, o presidente do STF concedeu quatro liminares, inclusive em
mandados de segurança (MS 28574-DF, MS 28567-DF, MS 28541-DF e AC 2556-MS)
para suspender os efeitos de decretos presidenciais de homologação e de
portaria do Ministério da Justiça que declara no Mato Grosso do Sul e em
Roraima." O Ministro deixava de considerar a jurisprudência do STF
especialmente no tocante aos mandados de segurança, que não são a via
adequada para a anulação de TI, matéria que exige uma discussão processual
e uma fase probatória maiores.
[7] São elas: a Associação Juízes para a Democracia, o Movimento de Apoio
aos Povos Indígenas (MAPI), o Uma Gota No Oceano, o Instituto de Pesquisa
Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), o Grupo de Estudos sobre
Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST), a Comissão
Guarani Yvyrupa (CGY), o Tortura Nunca Mais/SP, a União de Mulheres de São
Paulo, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). o Instituto Socioambiental
(ISA), a Associação Bem Te Vi Diversidade, o Instituto de Pesquisa e
Formação Indígena (Iepé) e o Grupo Nacional dos Membros do Ministério
Público (GNMP).


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