AS TRADIÇÕES E RUPTURAS DE \"CADEIA: RELATOS SOBRE MULHERES\"
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Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba Nº 03 - Ano 2015 ISSN | 2179-7137 | http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index
1 Seção: Resenhas
AS TRADIÇÕES E RUPTURAS DE "CADEIA: RELATOS SOBRE MULHERES" Luna Borges Pereira Santos1
Os
nomes
mulheres
Os números que encontrou pela
"Cadeia:
análise dos dados coletados explicitaram
relatos sobre mulheres" são fictícios; as
de forma particular o que algumas das
mulheres
são
pesquisas críticas sobre a movimentação
verdadeiras. Apesar da linguagem
do sistema penal indicam: mulheres
literária utilizada para descrever o
encarceradas são marcadas por um longo
itinerário carcerário e precariedade de
percurso de abandono. E quem são essas
vida de cada uma delas, o livro parte de
mulheres
um trabalho de pesquisa pautado por
feminino da capital? Com os dados do
normas
censo de 2012, a pesquisadora mostra
presidiárias
das
presentes
e
suas
acadêmicas
em
histórias
tradicionais
e
ciência.
sentenciadas por regime fechado já havia acadêmica
que
cada
presídio
que
tradição
em
no
incorpora pespectivas feministas na
A
uma
encarceradas
quatro
das
passado por medidas socioeducativas de internação
porque Debora Diniz – professora da
multidão, são pretas e pardas (67%), têm
Faculdade de Direito da Universidade de
pelo menos um filho (80%) e estão
Brasília e pesquisadora do Instituto de
envolvidas com infrações relacionadas
Bioética (Anis) – percorreu mais um de
ao tráfico de entorpecentes (69%)”
seus
(Diniz e Paiva, 2014: 8).
sólidos
caminhos
no
fazer
científico: realizou entrevistas e um
Os
na
adolescência;
“na
embasou a escrita deste livro se justifica,
números
frutos
da
realizada
no
censo no presídio feminino da capital do
pesquisa
país, conhecido como Colmeia; publicou
presídio. O livro “Cadeia: relatos sobre
relatórios e artigos nos moldes prescritos
mulheres”, por sua vez, relata cinquenta
pelos manuais de metodologia.
histórias de mulheres, escritas a partir de
1
quantitativa
são
Bacharela em Direito e mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
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2 uma etnografia realizada pela autora da
integrar o dentro, em forma de cartas,
vida miúda de mulheres no singular que
saudades, tristezas e solidão. A autora
eram atendidas no Núcleo de Saúde do
descreve também o que entra pelas
presídio. Mediada pela escolta (ou colete
grades como sigla para sobrevivência, a
preto, nos termos da obra), e junto a
COBAL; e os espaços vigiados e ainda
algum representante dos jalecos brancos
mais restritos da prisão, como o Seguro
– ora o assistente social, ora a psicóloga
e o Isolamento. 2
ou a médica do presídio –, Diniz optou
Em
seguida, diversas
são-nos
por apenas ouvir os atendimentos e
apresentadas
histórias
de
anotá-los em seu caderno de campo.
mulheres e aqueles mesmos números do
A gestão da vida que acontece no
censo são corporificados em fragmentos
presídio — no dentro, de acordo com os
biográficos marcados pela vida no crack,
termos da obra — já nos é apresentada
pela situação de rua, por violência
nas primeiras histórias. A triagem que
doméstica, pobreza e choques com o
resume o acolhimento das quartas-feiras,
poder punitivo. O modo pelo qual a
dia em que o bonde desce para apresentar
autora concebeu o livro também é
as provisórias aos jalecos brancos, é
relevante para entender como o produto
composta por “perguntas sobre os
final se diferencia de outros trabalhos já
descaminhos do fora: se a provisória usa
realizados
drogas, se os remédios são companhia
feminino: diariamente, das notas feitas a
para dormir e, na surpresa de ouvir ‘Não’
partir da escuta dentro do Núcleo de
às drogas e aos remédios, [D. Jamila, a
Saúde, Diniz fazia pequenas escritas
psicóloga
assunta
para não perder a emoção transbordada
sentimentos sobre a chegada ao presídio"
no campo. Eram instantâneos da vida
(Diniz, 2015a: 15).
daquelas
O
do
senhor
presídio]
sobre
mulheres
encarceramento
encarceradas,
encarregado pelo
combinando suas histórias na multidão
trabalho de Inteligência do presídio, por
ou na singularidade. Apesar de serem
sua vez, controla diariamente o que pode
mulheres parecidas entre si, cada história
2
presídio, significa tudo que entra para compor a sobrevivência das presas. A família, em geral, leva a COBAL em um saco transparente, às quintas-feiras (Diniz, 2015a: 215 e 216).
Segundo os modos de falar do presídio, bonde é a condução que leva, da delegacia, as presas ao presídio. O que, no Distrito Federal, ocorre diariamente. COBAL, por sua vez, é sigla para Companhia Brasileira de Alimentos, e, dentro do
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3 possui
uma
narrativa
própria,
O
adjetivo
“verdadeiras”,
justificando o que se entende por
concedido no começo da obra às
histórias no singular.
histórias contadas, é um dos primeiros
Uma delas leva o título de “Avó”
pontos
importantes
a
serem
e descreve o itinerário de abandono da
problematizados. A verdade de um
mãe que foi visitadora do filho no
discurso pode ser entendida como a
presídio por treze anos e, da filha, por
integração de elementos discursivos e
oito. Ao saber de ameaça de morte ao
não
filho por dívida não paga, tentou levar
localização ocupada pela pessoa que fala
drogas para dentro do presídio em dia de
é apenas um dos elementos que
visita. Atualmente, a avó encarcerada
convergem para produzir significado e,
cumpre sua sentença de tráfico em área
então, determinar a validade epistêmica
de segurança na Colmeia, mesmo
de uma enunciação (Alcoff, 1991).
discursivos.
Dentre
estes,
a
presídio da filha; enquanto os sete netos
Nesse contexto, o conhecimento
são cuidados pela única filha sem crime
científico é constantemente interpelado
e em liberdade — usando os termos da
por críticas feministas, que questionam
obra, aquela que vive no fora.
construções teóricas e políticas para
Os elementos da obra que passo a destacar
são
selecionados
determinar o que se entende como
para
objetividade e verdade em pesquisa.
caracterizar a principal novidade trazida
Donna Haraway (1995) traz elementos
pelo livro: a experiência etnográfica
importantes para mostrar como as
traduzida em “Cadeia: relatos sobre
feministas
mulheres” enuncia na prática temas
explicações melhores do mundo: o
relevantes para a pesquisa feminista no
conhecimento, sempre corporificado,
que tange aos problemas de fala e
deve ser situado e capaz de prestar contas
representação. Alguns desses elementos
sobre o que enuncia com apelo de real.
precisam
apostar
em
provocam rupturas em relação ao fazer
As exigências de se adotar um
científico tradicional, tornando o livro
conhecimento situado no fazer científico
um exemplo inovador que endereça, na
transformam a realização de pesquisas
própria escrita, o desafio de falar sobre
por
mulheres muito distantes da realidade de
entrevistas, instrumentos de coleta de
uma pesquisadora.
dados e censos — em elementos
meios
tradicionais
—
como
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4 necessários, mas não suficientes para que
qualquer
seja
inclusive levanta hipóteses sobre a
considerada verdadeira e que transmita,
relação entre sua localização e seu pouco
pelo caráter constitutivo da leitura
entendimento da realidade vivida por
(Sartre, 2008) os sentidos buscados pela
algumas mulheres do dentro – o que
autora.
representa, segundo Alcoff (1991), uma Diniz
enunciação
Há passagens em que a autora
relata
que
as
presas
das formas mais eficazes de se explicitar,
ignoraram sua presença silente vestida
pela
desconstrução
de preto: ela não foi interlocutora de
localização
histórias, e sim “anotadora do que era
acadêmica.
da
privilegiada
escrita, de
a
uma
dito por cada uma das presas ao jaleco
A autora de Cadeia conta as
branco” (Diniz, 2015a: 11). As histórias
histórias por meio de termos utilizados
possuem, assim, apelo de testemunho
pelas presas – termos que, ao nos serem
marcado por pedidos, necessidades,
apresentados, preenchem sentidos sobre
precisões de vidas que insistem em
a realidade do dentro. Esses significantes
sobreviver. Por vezes, a autora descreve
são organizados em uma seção no livro,
que precisou recorrer a uma pesquisa
sobre modos de falar do presídio, como
posterior em arquivos do presídio e a
uma das formas de nos mostrar que a
explicações
pela equipe da
posição social marginal, ocupada pela
Colmeia, mas o trabalho de escutadeira
maioria das mulheres antes de serem
foi a principal fonte das histórias de vida
encarceradas,
daquelas mulheres.
linguagem do dentro.
dadas
Apesar
ter
a
E aqui se apresenta uma das
Diniz
rupturas marcantes na escrita do livro:
apresenta na escrita a honestidade de não
Diniz utilizou métodos característicos de
se confundir com qualquer umas das
uma antropóloga confiável, mas a escrita
profissionais do Núcleo de Saúde,
próxima à literária e bastante prazerosa
tampouco com a segurança do presídio.
que utiliza para apresentar de forma
Isso não significa, entretanto, que deixou
crítica os relatos sobre mulheres é uma
de reconhecer seu lugar de poder como
forma de rejeitar parâmetros acadêmicos
pesquisadora.
de comunicação com estética e conteúdo
das
não
molda
sido
interlocutora
de
também
mulheres,
que se pretendem neutros e objetivos.
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5 A estética da escrita é certamente
(2005: 26) como a tentativa de falar ao
um ponto a ser evidenciado na listagem
poder sobre “pessoas e problemas que
de rupturas da obra ao fazer científico
são
tradicional, pois a autora não escreve de
invisibilizados”.
sistematicamente
forma enfadonha, com termos próprios
Pela
esquecidos
linguagem
fluida,
e
sem
da academia; pelo contrário: o livro é um
diálogos diretos e incorporadora das
exercício de criatividade e comunicação
expressões do dentro, a autora consegue
que tem no prazer um adendo, mas que
nos emocionar com uma escrita que
se apresenta como argumento para falar
afasta a possibilidade da dor em abstrato
de vidas concretas e complexas em
das mulheres encarceradas, pois essas
diversas cenas de injustiça e violência. E,
dores estão inseridas em marcos de
pelo ato de generosidade da leitora
poder que são mais perversos com
descrito por Jean-Paul Sartre (2008), o
mulheres, em geral, muito parecidas
livro provoca às leitoras, profundas
entre si, marcadas pelas desigualdades
emoções na tarefa de revelação do
que um regime de gênero
mundo.
(Diniz, 2015b). O livro, portanto, é uma
provoca
Dessa forma, o rompimento com
produção acadêmica, mas cujo conteúdo
o jargão acadêmico se instaura nesse
pode ser acessado por pessoas que não
gênero de discurso seco, com poucos
compartilham do jargão próprio da doxa
adjetivos, para também procurar acalmar
escolástica,
as fronteiras entre o fora e o dentro,
Bourdieu (2001).
desmistificando
o
estereótipo
nos
termos
de
Pierre
de
Os sofrimentos descritos são
criminosa muito disseminado, inclusive,
fruto de observação etnográfica sensível
em cursos de direito. A autora utiliza sua
e, ao mesmo tempo, representados por
posição de pesquisadora para falar em
uma escrita situada, crítica em relação às
nomes e histórias de vidas verdadeiras:
ordens
verdadeiras na tragédia, no sofrimento,
permitem aquelas gestões da vida, na
em necessidade e até sobre prazeres
rua, no crack ou na prisão. Assim, a
dessas outras que existem para o fora
aproximação de fronteiras citada acima –
apenas por seus encontros com poder
entre o fora e o dentro –
punitivo. Diniz aplica na prática o papel
conscientização da academia e de todas
de intelectual definido por Edward Said
as demais pessoas que tiverem acesso ao
políticas
específicas
que
permite a
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6 livro, sobre os regimes de precarização
provoca a comunidade acadêmica a
aos quais estão submetidas as mulheres
refletir sobre como o método científico,
encarceradas. Apoiada na concretude
por sua linguagem própria e critérios de
das histórias singulares, a obra oferece
veridição, pode esconder sensibilidades
fortes argumentos sobre como se move o
e marcos éticos políticos que são, ambos,
sistema punitivo em relação a mulheres
responsáveis pela forma como nos
diferentes, mas com marcadores sociais
movemos na pesquisa. No entanto, a
semelhantes.
subjetividade não torna o escrito menos
Assim, “Cadeia” se destaca do
transparente,
pelo
contrário:
uma
conjunto de produções científicas sobre
perspectiva feminista de pesquisa pode
encarceramento
feminino
afirmar que é uma das formas de se
principalmente por sua escritura e forma
“conciliar compromissos políticos e
de ver as mulheres na prisão: apesar de
responsabilidades acadêmicas” (Diniz,
não adotar um tom explícito de denúncia,
2015b: x).
a obra apresenta dúvidas e matizes sobre
A
autora
transmite
uma
as razões do encarceramento como
mensagem forte e eficiente por meio
ressocialização.
os
dessas histórias, como um catatau de
argumentos acima expostos, pode-se
presídio — nos modos de falar do dentro,
afirmar que a problematização proposta
bilhete que contém história de vida e,
pela obra é feita de forma inovadora: é
muitas vezes, "pedido de socorro narrado
sensível à realidade da prisão e procura
com economia de palavras" (Diniz,
se aproximar, sem julgamentos, das
2015a: 26). O pedido em Cadeia,
vivências das mulheres.
entretanto, possui status de afirmação
Reforçando
Diniz também explicita no livro
científica: as histórias de vida ali
seu lugar privilegiado de pesquisadora,
contadas,
com
mediações
do
real
que pode falar ou silenciar na produção
descritas
pela
própria
autora,
são
de conhecimento e escrever sobre
verdadeiras cartografias no singular de
histórias verdadeiras, e não deixa de
vidas dentro de uma instituição que é
apresentar na própria escrita sua posição
linha final de um caminho de abandono.
de quem vê injustiça no encarceramento
E é na descrição do presídio que talvez
daquelas mulheres. A subjetividade
resida a principal tese do livro: “uma
presente na escrita do livro certamente
máquina de produzir abandono para o
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7 qual os sentidos da violência são múltiplos” (Diniz, 2015a: 210).
Trad. Aurora Bernárdez. Data de Recebimento: 02/10/2015 Data de Aceitação: 09/12/2015
Referências bibliográficas Alcoff, Linda (1991). “The problem of speaking for others”, Cultural Critique, 20 (20), 5-32 [=vol. 20, nº 20]. Bourdieu, Pierre. (2001). “Crítica da razão escolástica”; “As três formas do erro escolástico”. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil: 19-112. Diniz, Debora (2015a). Cadeia: relatos sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Diniz, Debora (2015b). “Introdução. Etnografia e políticas da vida”, Didier Fassin entrevistado por Debora Diniz. Coleção Pensamento Contemporâneo, Trad. Debora Diniz, Rev. Tradução Ana Terra e Soraya Fleischer. Rio de Janeiro: EdUERJ: x-z. Diniz, Debora; Juliana, Paiva. (2014). “Mulheres e prisão no Distrito Federal: itinerário carcerário e precariedade da vida”, Revista Brasileira de Ciências Criminais 111, 313-328 [= nº 111]. Harding, Sandra (1993). “A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista”, Revista de Estudos Feministas, 1(1), 7-32 [= vol. 1, nº 1]. Said, Edward (2005). “Representações do intelectual”; “Falar a verdade ao poder”, Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993. Trad. Milton Hatoum. São Paulo: Cia das Letras, 19-36; 89-104. Sartre, Jean-Paul (2008). Qué es la literatura?. Buenos Aires: Ed. Losada,
DOI: 10.18351/2179-7137/ged.2015n3p1-7
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