As universidades e as comissoes da verdade

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http://www.unesp.br/portal#!/debate-academico/as-universidades-e-as-comissoes-daverdade-um-imperativo-etico-e-politico/ As universidades e as comissões da verdade: um imperativo ético e político Inês Virgínia Prado Soares

Pedro Paulo A. Funari

Por que criar uma Comissão da Verdade para Universidades que no período da ditadura brasileira ainda iniciavam suas atividades? Que tanta repressão e violência há para contar? Há histórias e verdades sobre o contexto universitário que precisam realmente ser contadas e reveladas?

A reflexão sobre a utilidade de funcionamento das Comissões da Verdade nas instituições de ensino superior também passam por essas questões que parecem tratar de oportunidade e conveniência, mas que no fundo atingem diretamente o objetivo central das Comissões da Verdade: que é a garantia de não repetição. Trata-se, portanto, de uma questão ética e política. A verdade, no sentido grego original de “franqueza” (parrhesía) deve ser conhecida, revelada e recordada para que nunca mais as atrocidades cometidas durante o regime de exceção voltem a acontecer.

Para lidar com a verdade sobre os acontecimentos mais sórdidos do passado recente, após períodos violentos ou autoritários, foi criado o arranjo institucional conhecido como Comissão da Verdade (CV). Estas Comissões oferecem outro olhar sobre os abusos aos direitos humanos e são consideradas como parte do processo de transição política de uma sociedade e são particularmente úteis quando há uma situação de impunidade, quando não houve o processamento judicial dos responsáveis pelos crimes e outras violações praticadas contra a sociedade civil e aos opositores do regime. Nesse sentido, a CV é uma forma de responsabilização pública. e um espaço público para a narrativa dos que foram perseguidos e injustiçados, transformando o que se sabe acerca dos fatos violentos e arbitrários em um reconhecimento oficial e público.

No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) começou a funcionar em maio de 2012 e, de acordo com a lei que a criou, é um instrumento para esclarecer casos de violação de direitos humanos ocorridos entre 1946 e 1988, inclusive a autoria de tortura, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres.

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Apesar da potencialidade positiva dos relatórios finais das Comissões de Verdade, estudos indicam que a veiculação de recomendações para adoção de medidas “para o nunca mais” não têm o condão de modificar os programas governamentais, já que para os governos o mais importante no trabalho de uma CV é seu sentido simbólico de revisão do passado (1). Diante desse dado, não se pode desprezar a relevância de uma Comissão da Verdade em uma Universidade. No ambiente acadêmicos muitos abusos foram recorrentes, em particular em universidades mais visadas pelo regime militar, por abrigarem espíritos livres e humanistas.

É sabido que as Universidades eram vistas pelo regime militar como “local vocacionado à subversão”, o que ficou claro com a edição do Decreto-Lei no. 477 de 26 de fevereiro de 1967, que limitava o gozo de liberdades dentro do ambiente universitário, definindo, por exemplo, como infrações cometidas por professores, alunos e funcionários de instituições de ensino públicas e privadas: o apoio a qualquer movimento que paralisasse as atividades escolares, a participação em passeatas não autorizadas e a produção e distribuição de materiais considerados subversivos. A punição para os infratores era a demissão de professores e funcionários e a expulsão de alunos. Não poucos foram vitimados por tais atos de arbítrio.

Junto com o Decreto 477, era comum que dentro das Universidades funcionasse um órgão para cuidar da vigilância de professores, servidores e estudantes, em outras palavras, para tratar de assuntos relativos à informação e contra-informação no ambiente universitário. Muitos professores, funcionários e alunos foram vitimados por tais agentes internos, alguns deles ainda vivos e em posição de destaque, a despeito desses atos de repressão e violência.

A lei brasileira sobre a CNV ainda trouxe a possibilidade de criação e instalação de outras Comissões pela Verdade em âmbitos regionais, locais, com foco mais específico nos acontecimentos (nesse sentido foram criadas diversas comissões da verdade estaduais, municipais, sindicais). As CV Universitárias são importantes porque podem ser estudadas (e trabalhadas) a partir de um enfoque mais restrito, pelo compartilhamento das histórias vividas por grupos de vítimas (docentes, alunos, servidores). Essa divisão permite uma melhor compreensão do presente e, a depender do caso, também contribui para um melhor entendimento do funcionamento e dos problemas atuais da instituição que vivenciou e herdou o legado de graves violações durante o regime autoritário.

Há algumas tarefas que podem ser desenvolvidas pela CNV e também por Comissões setoriais/regionais, como uma Comissão da Verdade em Universidades. Nesse sentido,

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o legado autoritário e os fatores de sustentação do governo ditatorial no âmbito da instituição acadêmica precisam ser expostos e conhecidos. Por essa razão, os assuntos relacionados a reformas pendentes ou necessárias na Universidade devem ter destaque nos relatórios produzidos (2).

A previsão legal de que a CNV pode desenvolver linha de investigação para efetivar o direito de a sociedade saber “se; como; e por quem?” o regime ditatorial era financiado, pode ser replicado no âmbito das Comissões de Verdade setoriais/regionais. E essa é revelação importante para compreensão da trajetória das Universidades brasileiras.

Como a CV brasileira tem por objetivo promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, os trabalhos de Comissões da Verdade na USP, na UFRJ, UFPE, UnB e outras vitimadas de maneira mais duramente, com a realização de oitivas de vítimas e testemunhas e coleta ou recuperação de narrativas, informações, documentos e dados são essenciais para uma visão ampla do cenário de resistência e repressão durante a ditadura (3).

Por fim, na perspectiva temporal, as Comissões de Verdade têm um expressivo valor para a geração presente, mas também uma projeção de futuro, de atendimento de direitos intergeracionais ligados à herança cultural e à cultura de direitos humanos. Lega às novas gerações relato sobre as circunstâncias das mortes, desaparecimentos e demissões ou aposentadorias arbitrárias de opositores da ditadura para ajudá-las a compreender esse período da história de seu país, com caráter sócio-educativo. Proporciona o direito ao luto, aos restos mortais, considerando a forte tendência do direito à verdade e o direito ao luto e à reparação da memória, todos direitos considerados partes integrantes dos direitos humanos fundamentais. Resgata o papel honrado daqueles brasileiros que, independente da posição e função, agiram como cidadãos, anônimos ou não, permanecendo fiéis na defesa direitos humanos, na solidariedade, no respeito, na consideração pelo sofrimento alheio , assumindo riscos, inclusive de vida para si , suas famílias e amigos, como exemplos para as novas gerações, de caráter pedagógico, sócio educativo para uma cultura de direitos humanos.

Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora da República.

Pedro Paulo A. Funari é professor da Unicamp.

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Notas (1) Em estudo sobre a utilização da Comissão de Verdade e outros mecanismos da justiça de transição em sete países (Argentina, Cambodia, Guatemala, TimorLeste,Northern Ireland, Sierra Leone, and South Africa), pesquisadores apresentam resultados que sugerem que, independentemente da estabilidade dos sistemas jurídicos, os resultados mais importantes da CV são no plano simbólico. Laurel E. Fletcher, Harvey M. Weinstein e Jamie Rowen, Context, Timing and the Dynamics of Transitional Justice: A Historical Perspective, Human Rights Quarterly 31 (2009) 163– 220, p.194-195.

(2) HAYNER, Priscilla. Unspeakable Truths. Facing the Challenge of Truth Commissions. New York: Routledge, pp. 154-169, 2001.

(3) Conforme art. 3°, inc. IV; art. 4°, inc. IV e inc. VII.

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