As viagens pela biblioteca de Borges

July 5, 2017 | Autor: Rafael Voigt | Categoria: Jorge Luis Borges, Jonathan Swift, Crítica literaria, As viagens de Gulliver
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AS VIAGENS PELA BIBLIOTECA DE BORGES RAFAEL VOIGT LEANDRO1

A revelação das obras literárias prediletas de um grande escritor é algo a ser observado com atenção redobrada por qualquer leitor interessado. A pedido de uma editora argentina, Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu Biblioteca personal 2 . Apesar de restrito à indicação de cem obras de leitura imprescindível, o autor teve plena liberdade para estabelecer seus critérios de seleção. Em razão de sua morte prematura, o projeto ficou inconcluso. Mesmo assim, restaram comentários sobre 66 obras. Entre as preocupações de Borges na composição dos textos, à guisa de prólogos, estava o fato de não pretender produzir análises literárias, e sim estimular o gosto do leitor. No prefácio, o autor de O Aleph demonstra seu lado afetivo e gratidão como leitor: “Não sei se sou um grande escritor; creio ser um excelente leitor ou, em todo caso, um sensível e agradecido leitor” (p.12). Na seleta de Borges, há uma gama heterogênea de escritores, de diferentes períodos históricos e pedaços do mundo. Dentre todas as opções, pode-se experimentar um reencontro com o irlandês Jonathan Swift (1667-1745) e sua obra-prima As viagens de Gulliver. Numa dessas artimanhas borgianas, não há comentários profundos sobre As viagens de Gulliver. Borges ressalta tanto mais os traços biográficos e as polêmicas associadas à vida de Swift, como sua ligação política com o Partido Liberal e o Conservador. Ressalta que a controvertida figura de Swift desfruta da admiração das crianças pelos capítulos iniciais das Viagens, sem dar o peso devido da sátira a esse monumento literário. Embora destaque a ojeriza das crianças pela última parte do livro, não é o bastante para ressaltar o poder satírico

Doutor em Literatura Brasileira pela UnB. Professor de Língua Portuguesa no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). 1

2

BORGES, Jorge Luis. Biblioteca personal. Buenos Aires: Emecé, 1998.

da prosa do “representante mais radical do racionalismo da Ilustração”, como assinala Otto Maria Carpeaux3. Jonathan Swift, o dos Panfletos satíricos 4 , perfilado como “antifilósofo”, proporciona a viravolta do pensamento, com a subversão do microscópio pelo qual analisa a sociedade de sua época, como em “Uma meditação sobre um cabo de vassoura”. O polígrafo argentino realça apenas um dos panfletos do criador de Gulliver: “Modesta proposta para impedir que os filhos dos pobres sejam um fardo para seus pais” (1729). A carga satírica poderia se juntar à iniciativa de Borges em desafiar o leitor na leitura das várias facetas de Swift, não se concentrando apenas numa dimensão (pseudo)infatojuvenil de As viagens de Gulliver. Alerta semelhante serve para qualquer leitor apressado de Alice no país das maravilhas ou de Pinóquio. Impossível não colocar a Biblioteca pessoal de Borges dentro de outra criação sua: o conto “A biblioteca de Babel”, publicado em Ficciones (1944) 5. Por um breve instante, o criador de “Pierre Menard, autor del Quijote” transforma-se em um bibliotecário da infinitude, capturando partes do cosmo literário. No pequeno catálogo borgiano, pode-se chegar a uma impressão de um viajante que aporta na babélica biblioteca: “No hay, en la vasta Biblioteca, dos livros idénticos.” Se permitida uma pequena paródia: “Não há, na vasta Biblioteca, dois Borges idênticos”. Agosto de 2015.

3

CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. São Paulo: Leya, 2011. Vol. 2.

4

SWIFT, Jonathan. Panfletos satíricos. Tradução de Leonardo Fróes. São Paulo: TopBooks, 1999.

5

BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Barcelona: Debolsillo, 2011.

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