As virgens suicidas: para mais informações ligue 555-MARIA

May 23, 2017 | Autor: Rodrigo Ferrari | Categoria: Mental Health, Suicide, Cinema
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2014 - Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons Distribuição gratuita, venda proibida.

Edição integrante do Programa Centro Universitário de Referência em Saúde e Direitos Humanos realizado com apoio do EDITAL PROEXT 2014 - PROGRAMA DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA - MEC/SESu. Optamos por aceitar as duas formas de acentuação ora vigentes no Brasil Editora Bestiário www.bestiario.com.br Rua Marques do Pombal, 788/204 90540-000 - Porto Alegre, RS. Brasil Telefone: (51) 3779.5784 | 9491.3223 Edição, projeto gráfico e capa: Roberto Schmitt-Prym

C676c Ana Carolina da Costa e Fonseca, Cora Efrom e Isabella Moreira dos Santos (Org.) Cinema, ética e saúde: Volume 2 Direitos Humanos / Obra de autoria coletiva - Porto Alegre, RS. - Editora Bestiário, 2014 528p. ISBN 859880252-2 ISBN 9 - 9788598802527 1. Filosofia, Cinema, Ética. I Título CDD-170

As virgens suicidas: para mais informações ligue 555-MARIA

Rodrigo Gomes Ferrari Cesar97

Logo após a filha mais nova do casal Lisbon, Cecília, ser salva de sua primeira tentativa de suicídio, ainda no leito do hospital, o médico a confronta com uma frase que é ao mesmo tempo uma espécie de censura, mas também de curiosidade: “O que você está fazendo aqui, meu bem? Você nem tem idade para saber o quanto a vida pode se tornar ruim”, ao que a pequena Cecília responde, afiada como a lâmina com a qual cortara seus pulsos: “é óbvio, doutor, você nunca foi uma menina de treze anos”. Sofia Coppola estréia no cinema com o filme As virgens suicidas (The virgin suicides, 1999) mostrando talento e sensibilidade, pois acertadamente manteve ipsis litteris esse diálogo que está presente no romance homônimo de Jeffrey Eugenides do qual foi adaptado. Esta cena, uma das primeiras do filme americano, retrata um quadro já conhecido mais ao sul do continente: 35% dos adolescentes brasileiros, dos 13 – idade de Cecília – até os 19 anos pensam em suicídio98. Pensar em suicídio não é incomum. Pesquisa realizada pela Unicamp99 indica que 17% dos brasileiros já pensaram seriamente em se matar e quase 5% chegaram a elaborar um plano para isso. Estes números expõem a necessidade de se trabalhar seriamente para a prevenção do suicídio. Falar abertamente sobre o assunto é um primeiro passo. No filme, entretanto, após a saída de Cecilia do hospital depois de sua tentativa frustrada de suicídio, a família não fala sobre isso. E esconde os cortes com braceletes. Portanto, a escolha da estreante diretora não podia ser mais feliz. Se por um lado, o questionamento feito pelo médico expõe como o suicídio é um assunto coberto de preconceito e estigma e se mantém tabu também entre os profissionais de saúde, por outro, sua fala busca conhecer as causas, que é uma das formas de se tentar reduzir as taxas de suicídio. A pergunta sobre a qual não apenas o próprio filme se debruça como é também interrogação freqüente entre familiares e amigos próximos aos suicidas é: “por quê?”. Por isso o filme se utiliza em vários momentos do formato conhecido por mockumentary100 entrevistando personagens que conheceram as cinco 97 Bacharel em Física (UNICAMP). Professor de Roteiro (IBAV/Escola de Cinema Darcy Ribeiro). Coordenador adjunto de Informação e Comunicação (FIOCRUZ). 98 BORGES, V. WERLANG, B.. Estudo de ideação suicida em adolescentes de 13 a 19 anos. Psicologia, Saúde & Doenças. 7 (2), 2006, p.195-209. 99 BOTEGA, Neury José [et al]. Prevalências de ideação, plano e tentativa de suicídio: um inquérito de base populacional em Campinas. São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 25, n. 12, Dec. 2009. 100 Mockumentary é uma categoria de filme cujo formato apresenta eventos fictícios em

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filhas do casal Lisbon e que, uma após a outra, se suicidaram. Acompanhamos o ponto de vista de um grupo de garotos que viveu e desejou as cinco lindas e loiras irmãs da casa vizinha e que, 25 anos depois, investigam a trágica história da família Lisbon a partir de cartas, diários, revistas e fotos deixadas na casa onde elas foram criadas, memórias coletivas de momentos que eles nunca viveram. Essa mistura de falso documentário com o quebra-cabeças sendo montado pelos garotos nos remete a um aspecto detetivesco comumente observado nos que ficam e que buscam explicações para o triste ocorrido em uma espécie de engenharia reversa. Ao refazermos os passos de Cecília, a caçula de 13 anos, Lux, 14, Bonnie, 15, Mary, 16, e Therese, a mais velha, mas ainda com singelos 17 anos, veremos como a histeria sexual da controladora mãe católica recai sobre as cinco meninas quando estão em idade de descobrirem o sexo e a vida. Cecília, ao cortar os pulsos, parece conseguir flexibilizar a ultraconservadora senhora Lisbon (Kathleen Turner). Aconselhados por um psiquiatra (interpretado por Danny DeVito), assim que a filha recebe alta do hospital, seus pais organizam pela primeira vez na vida delas uma pequena festinha no porão de casa, ainda que sob as atentas vistas da mãe. Um dos convidados é Joe, um menino com Síndrome de Down. Em certo momento, alguns garotos começam a provocá-lo. Cecília parece se identificar com Joe e não gosta do que presencia. Ela então sobe as escadas até o seu quarto e se joga pela janela, sendo empalada na cerca da frente da casa. Não basta arrancar a cerca, medida que Ronald Lisbon, o pai de Cecília, toma após o enterro da filha, pois a mãe continuará cerceando as quatro filhas restantes, especialmente Lux, protagonista do filme a partir de então (e cujo papel fez a carreira de Kirsten Dunst deslanchar). Não apenas isolando-as fisicamente, mas tentando apagar até suas fantasias mais pueris, como quando, ainda antes da morte de Cecília, a senhora Lisbon descobre que Lux alimenta uma paixão platônica pelo lixeiro e que escreveu o nome dele em suas calcinhas. A mãe não tem dúvidas: esfrega as roupas íntimas da filha com água sanitária até que todos os nomes sejam apagados. James Woods faz o pai das jovens, um professor de matemática bastante excêntrico que fala com as plantas e dá aula na escola das filhas. Ele não interfere na rígida educação que sua mulher impõe às meninas mas, ainda assim, consegue dissuadi-la, permitindo que Trip, um aluno do último ano, visite Lux em casa. Trip é o garoto mais popular da escola e se apaixonou talvez nem tanto pelos atributos indiscutíveis de Lux, mas por ela ser praticamente inalcançável em sua clausura. estilo documentário.

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A visita, entretanto, não se assemelha em nada ao que Trip tinha em mente: a grosseira senhora Lisbon fica o tempo todo sentada entre o jovem casal enquanto todos assistem Animals in the wild, um programa de TV no melhor estilo mundo animal. Na telinha, a luta pela sobrevivência no deserto sul-africano, a vida selvagem da qual os Lisbon querem manter a família a salvo. Não à toa, mais adiante no filme, veremos, dentre os vários objetos que os garotos recolheram da casa, uma revista de turismo sobre a África, a forma que as jovens encontraram de alçar vôo. Trip consegue levar Lux ao baile do colégio, mas com a condição de que as irmãs os acompanhem. A mãe altera os vestidos das jovens, alargando-os na cintura e deixando-os mais fechados no decote, mas as garotas estão tão radiantes que não se importam que seus vestidos mais pareçam sacos de batata. Não por acaso, contrastando com a prisão de sua curta existência, Lux perde a virgindade nesta noite, ao ar livre, no campo de futebol. Depois, Trip e ela caem no sono. Sem conseguirem encontrar a irmã Lux, Bonnie, Mary e Therese voltam para casa com medo de se atrasarem e terem de enfrentar a ira de sua mãe. Quando Lux acorda, já é dia claro, e descobre que Trip não está mais lá, tendo deixado-a sozinha. Pela transgressão de Lux, a senhora Lisbon pune as filhas tirando as quatro da escola e confinando-as numa casa repleta de imagens religiosas. Mas tal castigo parece não ser severo o bastante e a mãe, provavelmente inspirada pelo sermão dominical na igreja, obriga Lux a queimar sua coleção inteira de discos de rock na lareira do primeiro andar. O vinil, que quando queima lança no ar uma densa e sufocante fumaça que toma toda a casa, é a imagem que, de outra forma, estará presente também nos minutos finais do filme, no derradeiro pedido de socorro que Lux faz à mãe, quando a jovem reclama se sentir sufocada e já não conseguir respirar. Lux não deve vivenciar nada de prazeroso, pois o prazer pressupõe uma entropia que coloca em risco a segurança do lar perfeito dos Lisbon. A senhora Lisbon não imagina, portanto, que os garotos vizinhos assistem por uma luneta sua filha lutar contra a castração imposta transando, noite após noite, com vários homens no telhado que protege o sono tranqüilo da mãe. Sem poderem sair de casa, as quatro irmãs se comunicam com os jovens narradores por meio de código Morse (usando um abajur vermelhosangue) e de cartas deixadas no limpador de pára-brisa do carro do pai. Ironicamente, mesmo dessa forma, as meninas conseguem uma comunicação melhor com eles do que com seus vigilantes pais. 88

Pelo livro que deu origem ao filme, sabemos que o olmo doente na frente da casa dos Lisbon sucumbiu de um fungo disseminado pelo besouro da grafiose101. Ainda assim a família se une na tentativa de salvá-la. As irmãs, isoladas do mundo, fazem um cordão de isolamento impedindo que a prefeitura corte a árvore que precisa ser posta abaixo para não contaminar as demais. Parecem não se dar conta que a árvore já está morta, recheada por uma espécie de cimento que tenta manter em pé um casco sem vida. Tentam evitar o inevitável, assim como tentam impedir que a inexorável marcha da liberação sexual iniciada no final da década anterior chegue àquela casa no subúrbio de Michigan. Ao menos, naquele momento, ainda lutam. Vão desistir da árvore, dos bailes, da música, não muito tempo depois. Elas mandam um recado aos garotos combinando que eles as busquem à meia-noite. Os garotos chegam na hora indicada e Lux os convida para entrar. É quando eles descobrem que Bonnie, Mary e Therese já haviam partido: uma enforcada, outra com a cabeça dentro do forno e a terceira com uma overdose de remédios. Enquanto isso, Lux se envenena com o gás carbônico que sai pelo escapamento do carro, encerrando a insurreição extrema das adolescentes contra a tirania – de afeto, aliás – de seus pais. Ainda em busca de compreender os motivos do suicídio em massa das cinco irmãs, o filme obtém o depoimento da senhora Lisbon que se defende dizendo sempre ter havido muito amor em sua casa e confessa não entender o porquê, pergunta com a qual o roteiro de Sofia Coppola inicia e propositalmente termina essa bela e trágica história. Resposta que os garotos não vão obter de todo, porque, afinal, eles nunca foram uma garota de treze anos. Epílogo Camus considerava o suicídio o único problema filosófico realmente sério102. Portanto, é bastante corajoso por parte de Sofia Coppola escolher esse tema como pano de fundo. Além de ser uma bem sucedida estreia no cinema, o filme contribui para elencarmos uma série de fatores de proteção para evitar suicídios, em especial na adolescência, mas que se estende a todos. O primeiro deles está presente na cena de abertura do filme, quando um santinho com os dizeres “Para mais informações ligue 555-MARIA” cai do colo ensangüentado da pequena Cecilia. A religião, segundo 101 Grafiose, também conhecida como “Doença do Olmo Holandês”, é causada pelo fungo Ascomycota e disseminada pelo besouro da casca do olmo. Autoria desconhecida. Disponível em: http://www.biorede.pt/page.asp?id=1701. Acesso em agosto de 2014. 102 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 17.

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Durkheim, age como integrador (por meio de seus ritos e crenças) e acaba tendo a função suplementar de prevenir o suicídio103. Entretanto, no filme, a religião age ao contrário, como opressora das jovens, pois só a mãe professa a fé. Isso fica evidente quando o padre visita a família logo após a morte de Cecilia. Ronald, o pai, não deixa de assistir à partida de beisebol para atender ao pároco, assim como as quatro irmãs nem mesmo o cumprimentam quando ele abre a porta do quarto. Além deste fator, destacam-se a conservação dos vínculos afetivos e a sensação de fazer parte de um grupo ou comunidade. Quais vínculos afetivos as jovens Lux, Bonnie, Mary e Therese poderiam criar se foram impedidas de continuar freqüentando a escola? A qual grupo se integrariam se estavam alijadas de qualquer evento ou confraternização após o baile em que Lux perde a virgindade? Para piorar, isso acontece justo quando elas estão em idade escolar, etapa da vida quando se observa no presente, em comparação com o século passado, um aumento considerável no número de suicídios. Nessa fase – como em qualquer outra, aliás – o problema não é ter o pensamento suicida, o problema é não ter com quem falar sobre ele. Para discussão: 1. No filme, os profissionais de saúde aparecem em duas cenas: (a) quando Cecilia está no hospital e o médico pergunta o que ela está fazendo lá já que não teria idade para saber como a vida pode ser ruim; e (b) após Cecilia receber alta, quando um psiquiatra aplica o teste de Rorschach104 e diz que a jovem não queria de fato acabar com sua vida e sim pedir socorro, sugerindo que Cecilia tenha mais vida social. De que forma essas intervenções podem ter impactado no destino trágico das cinco adolescentes? 2. Ronald Lisbon é um pai amoroso, um marido presente, mas algumas cenas do filme o colocam como obediente – e até mesmo temeroso – em relação à senhora Lisbon, sua mulher. Isso acontece quando ele se coloca atrás dela na soleira da porta de entrada no momento em que a prefeitura tenta cortar a árvore; e também quando confessa para Trip que ele não poderia tomar uma decisão sem antes falar com a esposa. Em outra cena, Ronald cochila enquanto Trip e Lux assistem TV, podendo indicar que o 103 DURKHEIM, Emile. O suicídio: estudo sociológico. Lisboa: Editorial Presença, 1996. 104 “O teste de Rorschach, popularmente conhecido como “teste do borrão de tinta”, é uma técnica de avaliação psicológica pictórica (...) [que] consiste em apresentar dez pranchas com manchas de tintas (...) ao indivíduo. A partir das respostas dadas, procura-se obter um quadro psicológico dele.” Autoria desconhecida. Teste de Rorschach. Wikipédia, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2014. Disponível em: http://pt.wikipedia. org/w/index.php?title=Teste_de_Rorschach&oldid=39739068. Acesso em setembro de 2014.

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pai não apenas não dá tanta importância (talvez até ache natural) que sua filha comece a namorar como também deixa que o papel de impor limites fique a cargo da senhora Lisbon. Qual o papel da figura paterna em suicídios cometidos por mulheres? 3. No início dos anos 1970, as ondas da revolução sexual iniciada em 1968 ainda não haviam chegado ao subúrbio e muito menos à casa onde as jovens moravam. Após as irmãs serem impedidas de sair e de frequentar a escola, Lux começa a transar e a fumar no telhado de casa, mas isso se mostrou insuficiente. Não por acaso, Lux se suicida dentro do carro onde se imaginava fugindo, mas ainda assim, na garagem de casa. Em suma, elas estão presas. Em situações como as das meninas Lisbon, quais seriam outras saídas para adolescentes, que não o suicídio, para escaparem de sistemas opressores impostos pelos pais? Qual o impacto da liberação sexual nas taxas de suicídio nas sociedades ocidentais? Sugestões de leitura: BERTOLOTE, José Manoel. O suicídio e sua prevenção. São Paulo: Editora Unesp, 2012. EUGENIDES, Jeffrey. As virgens suicidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. STACK, Steven; BOWMAN, Barbara. Suicide movies: social patterns: 1900– 2009. Cambridge: Hogrefe, 2011. Sobre o filme: Título no Brasil: As virgens suicidas Título original: The virgin suicides País de origem: Estados Unidos da América Gênero: drama Classificação: 14 anos Tempo de duração: 97 minutos Ano: 1999 Direção e roteiro: Sofia Coppola

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