Aspectos da experiência neurojurídica: livre-arbítrio, responsabilidade e racionalidade (Parte 4)

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Aspectos da experiência neurojurídica: livre-arbítrio, responsabilidade e
racionalidade (Parte 4)




Atahualpa Fernandez(
Manuella Fernandez(




"We cannot afford for people to internalize the
truth about free will". S. Smilansky





Livre-arbítrio (2)
Para Patricia Churchland, a questão de se somos ou não livres em
nossas decisões depende do que entendamos por livre-arbítrio. Se por livre-
arbítrio entendemos que agimos de uma forma controlada de modo que somos
capazes de atuar de acordo com nossas preferências, crenças e intenções,
e de reconhecer as consequências de nossas ações, então (neste sentido e
somente neste) poderíamos dizer que temos livre-arbítrio. Contudo, se por
livre-arbítrio entendemos uma espécie de criação desde "nada" por uma alma
não física, então não, não temos uma coisa assim. Não elegemos nossas
preferências, crenças nem intenções, uma vez que o que pensamos, sentimos e
fazemos depende de processos que não conhecemos.
De fato, visto que a maior parte do que o cérebro faz se produz fora
de nossa consciência (o que inclui nossas preferências, crenças, eleições e
decisões), há que descartar as intenções conscientes entre as causas das
ações. Admitir o contrário, explica Daniel Wegner, é cair em uma ilusão:
umas vezes, as pessoas não são conscientes de suas ações; outras, creem que
realizam intencionalmente coisas que em realidade não fazem; e outras, as
pessoas operam de forma automática, sem motivo aparente. Dado que nosso
sobrecarregado cérebro deve tomar decisões constantemente mediante um
processo inconsciente, Wegner fala de "vontade inconsciente" em lugar de
livre-arbítrio.
A vontade inconsciente toma decisões vertiginosamente baseando-se no
que sucede no entorno, umas decisões nas que desempenham um papel
fundamental a forma em que se desenvolveu nosso cérebro e o que aprendemos
desde então: dado o entorno complexo e sempre cambiante em que vivemos, não
é possível que nossa vida esteja predeterminada de forma previsível, e dada
a forma em que se desenvolveu nosso cérebro não é possível que exista um
completo livre-arbítrio. Não obstante, todos sentimos que podemos fazer
eleições livremente e a isso é o que chamamos "livre-arbítrio", que não é
mais que uma ilusão necessária, segundo Wegner, para imprimir na ação nosso
selo de identidade: "Esto es mío, ése soy yo".[1]
De mais a mais, a conduta do ser humano evolucionou da mesma maneira
que a do resto dos animais: "tendremos más algoritmos, más lineas de código
de programación si se quiere, pero no dejamos de ser criaturas programadas
por la selección natural". O próprio autocontrole (a capacidade de esperar,
de inibir determinadas condutas[2]) de que tanto presumimos e nos
orgulhamos tampouco nos situa à margem da natureza. Se podemos exercer esse
autocontrole é porque temos umas fibras nervosas que vão desde o córtex
cerebral ao sistema límbico e que cumprem uma função inibidora de nossos
instintos básicos (e o controle que temos é só parcial). "Y esas fibras las
ha puesto ahí la selección natural y lo ha hecho por una buena razón,
porque en animales sociales como los humanos inhibir esos instintos en
situaciones grupales hace que pasen más copias de genes a las generaciones
futuras". (P. Malo)
Portanto, a ideia de livre-arbítrio fundada na capacidade de
autocontrole ou controle volitivo (embora selecionada pela seleção natural
porque é adaptativa) não somente não se salta as leis da evolução e da
física (e nem provém de Céu), senão que, apesar de todas as nossas
esperanças e intuições acerca da liberdade de eleição e decisão, na
atualidade não existe prova alguma, não há nenhum argumento, que demonstre
sua existência de maneira convincente (D. Eagleman). Do que resulta que a
forma como enfocamos a valoração das questões do livre-arbítrio, da
culpabilidade, da responsabilidade e o funcionamento do sistema legal a
este nível não é compatível com os descobrimentos da boa neurociência, das
ciências do comportamento e da cognição, isto é, de que já não é possível
sustentar-se à vista das provas existentes.
Inclusive quando não sofremos nenhuma lesão cerebral ou transtorno
mental tampouco temos a (plena) capacidade de eleger atuar de outra
maneira. Pensemos no exemplo da psicopatia. Cada vez mais os autores estão
sugerindo que os psicopatas não são livres e que não podem atuar de outra
maneira (e propõem alternativas aos fundamentos morais e legais que
utilizamos para condenar-lhes e castigar-lhes). A verdade é que nem os
psicopatas nem os não-psicopatas têm livre-arbítrio porque nenhum deles
pode eleger.
Por quê? Porque se o livre-arbítrio, como dissemos antes, é a
liberdade para eleger outra coisa, isso não o podemos fazer nem psicopatas
nem não-psicopatas. A um psicopata não se lhe pode pedir que responda ao
castigo ou que mostre as condutas morais próprias de um cérebro moral,
porque não o tem. Da mesma forma, a uma pessoa com cérebro moral normal
tampouco se lhe pode pedir que tenha as condutas de um psicopata. Eu não
posso sair à rua e violar a primeira mulher que desperte minha atenção,
roubar o relógio de um indivíduo simplesmente porque me encaprichei com ele
(e de passagem dar-lhe um tiro se mostra resistência) ou roubar um banco
[estamos caricaturizando um pouco; mas, se o indulgente leitor (a) suspeita
que os exemplos utilizados tratam de situações extremadamente adornadas ou
extravagantes, intente, em um domingo qualquer, atuar como um verdadeiro
psicopata por algum shopping de sua cidade]. Simplesmente eu faço o que
está em minha natureza fazer e um psicopata faz o que está na sua,
naturezas que nem ele nem eu elegemos (fazemos o que fazemos porque somos
como somos, porque o cérebro restringe previamente nossas possíveis opções
e, pior ainda, escolhe uma delas antes mesmo de que nos demos conta). Ter
livre-arbítrio seria poder tomar o outro caminho, eleger a outra opção: ter
as duas opções (e poder efetivamente levar a cabo a elegida), não ter
somente uma.
Dito isto, a ideia de livre-arbítrio e/ou de que a consciência,
atuando livremente, é a causa das ações parece ser uma pura ficção
cerebral. Temos graus de liberdade para fazer o que queiramos (mais que uma
ameba, um rato ou um chimpanzé), mas nenhuma liberdade para querer o que
queiramos. Isto não é, em absoluto, contraditório com que nossa experiência
de decidir é um processo real com a função de atuar de acordo com nossas
preferências, crenças, eleições e intenções (com nossa natureza), e de
reconhecer e selecionar diferentes opções de acordo com as previsíveis
consequências que têm para o organismo; por conseguinte, devemos comportar-
nos "como se" tivéramos livre-arbítrio, a despeito de que este seja uma
ilusão do cérebro. Nos sentimos agentes da conduta ainda que tão somente se
trata de conhecimento ou consciência de haver realizado dita conduta. Quer
dizer, o cérebro atua e logo crê que foi sua vontade a impulsora de dita
ação ou, o que é o mesmo, atua e logo crê que houvera podido eleger outra
opção - ainda quando já não seja possível retroceder.
O que significa que existem razões poderosas para crer que estamos
submetidos a forças que não controlamos ou que não podemos atuar de forma
distinta a como o fazemos. E se bem que os defensores de uma suposta
liberdade humana incondicional rechacem o fato de que nossas ações estejam
causadas, não se nos ocorre como pode melhorar a coisa se a causa é o puro
azar, o ambiente ou o simples fato de não existir nenhuma causa[3]. Nas
sensatas palavras de Ranulfo Romo: "Entiendo que el libre albedrío no
existe; entiendo que la única forma racional de relacionarnos unos con
otros es asumir que existe, aunque en lo profundo sabemos que no es así. Es
probable que no seamos otra cosa que títeres de nuestras neuronas: quienes
toman las decisiones son los circuitos neuronales, que en su trabajo por
detrás del nivel de consciencia hacen estas operaciones y finalmente mandan
una decisión para que creamos que la hemos tomado nosotros. Es una ilusión
creer que somos dueños de nosotros mismos".
Resultado: projetamos um «eu livre» em nossas ações porque ao fazê-lo
podemos explicar a aparente coerência destas. Em muitos casos, a liberdade
que encontramos não é mais que imaginárias. Também é curioso o fato de que
atribuamos ao «eu livre» a maioria da atividade cerebral, quando em
realidade esse «eu» é uma instância tardia em comparação com o inconsciente
que governa a imensa maioria de nossa atividade cerebral ao serviço da
sobrevivência. Apenas falta conhecer por que é gerado esse «eu livre» pelo
cérebro, e qual é sua verdadeira finalidade. 

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
( Abogada Il Ltre. Col legi d'Advocats de les Illes Balears – ICAIB/España;
Doctora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes
Balears-UIB, España; Doctorado Derecho Público/ Universitat de les Illes
Balears-UIB, España; Master (M.Sc.) Evolución y Cognición Humana/
Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Research Scholar/ Fachbereich
Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und
Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main,
Deutschland; Miembro de la Comisión de Derechos Humanos del ICAIB/España.
[1] É possível resumir a proposta de Wegner – para quem a mente é como um
mago que produz umas aparências para seu dono, mas não sabe em realidade o
que causa suas próprias ações -, da seguinte maneira: (i) nós percebemos
uma relação causal entre nosso pensamento (que costuma preceder à ação) e a
ação. Mas que B siga a A não quer dizer que A seja a causa de B. A noite
segue ao dia, mas o dia não é a causa da noite, senão que ambos estão
causados por C, a rotação da Terra. É, portanto, possível que tanto
pensamento como ação sejam causados por algo que não observamos; (ii)
processos mentais inconscientes dão lugar ao pensamento consciente acerca
da ação; (iii) procesos mentais inconscientes dão lugar à ação; (iv) pode
haver, ou não haver, uma relação entre os procesos mentais inconscientes
que dão lugar ao pensamento e os que dão lugar à ação; (v) pensamentos e
atos co-ocorrem porque os pensamentos se lançam à consciência como
"previews" do que ocorrerá. O pensamento é um sinal (algo similar ao
velocímetro de carro), um indicador, mas não é a causa do movimento do
carro: o que move o carro é o motor, não o velocímetro; (vi) as causas
reais das ações humanas são inconscientes e nunca aparecem na consciência.
[2] Libet conserva um certo vestígio da ideia de livre-arbítrio em sua
noção de veto (a capacidade da consciência para bloquear ou abortar um ato
iniciado pelo cérebro; não sobra dizer que também pode haver uma atividade
cerebral inconsciente que seja prévia ao veto ou inibição). Desde alguns
pontos de vista neurocientíficos, a essência do livre-arbítrio parece ser –
o qual é bastante irônico - a capacidade de inibição, a capacidade de
escolher o não fazer algo. O que distingue aos seres humanos mais que
qualquer outra coisa de seus cercanos parentes primatas é o desenvolvimento
de um sistema mais elevado do "eu",organizado fundamentalmente em
mecanismos inibitórios (M. Solms & O. Turnbull; R. Baumeister). O problema
é que nunca podemos saber "cuándo hemos ejercido ese veto (o si lo hemos
llegados a ejercer). Nuestra experiencia subjetiva es con frecuencia (si no
siempre) ambigua" (J. Gray). Quando estamos a ponto de atuar, não podemos
predizer o que vamos a fazer. Mas pode que, quando miramos atrás, vejamos
nossa decisão como uma etapa mais de um rumo que já havíamos empreendido.
Algumas vezes, nos parece que nossos pensamentos são "hechos que nos
sobrevienen y, otras, creemos que son nuestros actos mismos. Nuestra
sensación de libertad se activa al pasar de uno a otro de esos dos ángulos
de visión. El libre albedrío es, pues, una ilusión creada por la
perspectiva". (J. Gray)
[3] O determinismo biológico tem sua contrapartida no determinismo
meioambiental. Também podemos encontrar um amplo abanico de causas que
podem levar a diminuir a responsabilidade de nossas condutas. Se a causa
recai nos meios de comunicação, os maus tratos na infância ou a educação
por parte dos pais também é possível que se exculpe ao individuo de seus
atos. Sempre se pode escusar-se nas substâncias que tomou a mãe durante a
gravidez, as más companhias, a probreza, a falta de oportunidades, os maus
vícios, ou em geral à sociedade como máximo responsável de nosso
comportamento. A lista de atenuantes que os agentes jurídicos intentam
buscar pode levar, inclusive, a situações graciosas como a que apareceu em
uma "vinheta" no New Yorker faz uns anos referindo-se às declarações de uma
mulher defendendo-se ante um tribunal: "Es verdad, mi marido me pegaba por
la infancia que tuvo; pero yo le maté por la que tuve yo".
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