Aspectos da experiência neurojurídica: livre-arbítrio, responsabilidade e racionalidade (Parte 5)

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Aspectos da experiência neurojurídica: livre-arbítrio, responsabilidade e
racionalidade (Parte 5)




Atahualpa Fernandez(
Manuella Fernandez(


"Con los juicios (y las creencias) sucede lo
mismo que con los relojes: ninguno va igual que otro,
pero cada uno cree al suyo". Alexander Pope




Responsabilidade
Mas há outro aspecto em que devemos afrontar a ausência do livre-
arbítrio: o da responsabilidade (individual e coletiva). Se não podemos
eleger como nos comportamos, como podemos julgar a gente como moral ou
imoral? Como podemos culpar a alguém se está obedecendo cegamente a um gene
determinado ou a uma amígdala reduzida? Por que castigar aos criminosos ou
recompensar aos que fazem boas obras? Por que fazer responsável a qualquer
de seus atos se ditos atos não foram livremente escolhidos?
A compreensão da natureza humana em termos biológicos sempre provocou
fortes rechaços porque pode eliminar o concepto de responsabilidade pessoal
em que se baseia o sistema de administração da justiça. Parece como se
atribuir às causas de nossas condutas ao cérebro, aos genes ou nosso
passado evolutivo, à parte de oferecer uma visão monstruosa de nossa
condição, deixa ao indivíduo sem responsabilidade em suas ações.. 
Como dito antes, as evidências de todos os tipos de estudos
neurobiológicos sugerem que já não é possível sustentar a existência do
livre-arbítrio tal e como o concebemos na atualidade. Nada obstante, o fato
de que o livre-arbítrio ou a crença de que "somos dueños de nosotros mismos
y que tenemos control en la toma de decisiones"(R. Romo) sejam uma ilusão,
não implica, em absoluto, que os indivíduos não sejam responsáveis ou que
não se lhes possa aplicar nenhum castigo.
Em primeiro lugar, porque a neurociência, iluminando o conteúdo do que
anteriormente se teve por uma "caixa negra", converte ao cérebro em "algo"
cada vez mais transparente e em que confluem desde os genes até nossas
circunstâncias particulares e as influências recebidas pela experiência. No
entanto - e nunca é demasiado insistir neste ponto -, a neurociência jamais
encontrará o correlato cerebral da responsabilidade, porque é algo que
atribuímos aos humanos – às pessoas -, não aos cérebros. Os psiquiatras,
psicólogos e neurocientistas podem descrever um determinado estado mental
ou cerebral, mas não podem dizer-nos (sem arbitrariedade) em que momento se
deve exonerar a alguém de uma responsabilidade porque não tem controle
suficiente de seus atos.
Ao igual que o tráfego é o que ocorre quando interatuam os carros
fisicamente determinados, a responsabilidade é o que ocorre quando
interagem as pessoas. A questão da responsabilidade pessoal é uma decisão
social e/ou um conceito público. Existe dentro de um grupo, não no contexto
de um indivíduo. Se só houvesse uma única pessoa na Terra, não seria
pertinente e sequer teria qualquer sentido o conceito de responsabilidade
pessoal. A responsabilidade é um conceito que cada um se forma em torno às
ações próprias e alheias. Os cérebros estão determinados; a gente (mais que
um único ser humano) se rege por um sistema de regras quando (con-) vive
com outras pessoas, e dessa interação surge o conceito de responsabilidade
gerado pela suposta liberdade de ação.
Em termos biológicos ou neurocientíficos, ninguém é mais ou menos
responsável que outra pessoa de determinadas ações. Formamos parte de um
sistema determinista que algum dia lograremos compreender plenamente. Mas a
ideia da responsabilidade, constructo humano que existe nas regras de uma
sociedade, não existe nas estruturas neuronais do cérebro: é uma invocação
cultural, um valor moral que exigimos às pessoas de nosso entorno, de seres
humanos que se regem por regras, isto é, de fazer os indivíduos
responsáveis porque essa é a natureza do intercâmbio social entre as
pessoas. (M. Gazzaniga)
Trata-se, em suma, de um artefato social, de uma convenção que existe
somente no contexto da interação ( e imaginação) humana, quer dizer, uma
série de normas que garantem e otimizam o bem comum. O castigo cumpre a
função de apartar aos transgressores do resto da sociedade e de servir de
exemplo para dissuadir de condutas similares ao resto de cidadãos. As
condutas que se considerem merecedoras de um castigo, por desviar-se das
normas estabelecidas pela sociedade para melhorar a
convivência, responsabilizarão, por definição, aos indivíduos que
realizem ditas condutas[1]. Desse modo, a inexistência do livre-arbítrio
não está renhida com o conceito de responsabilidade, e o conceito de defesa
social é o ponto central dessa moralidade baseada em convenções.
Daí que a neurociência tem pouco que aportar à compreensão da
responsabilidade: radica unicamente em convenções destinadas a regular as
relações que se desenvolvem quando interatuam uns cérebros automáticos com
outros. Nisso consiste o "núcleo duro" da responsabilidade que, em sua
dimensão sociocultural, intersubjetiva (relacional, coexistencial), fundada
na natureza essencialmente social do ser humano e que não pode conceber-se
à margem de vínculos sociais relacionais (da relação entre pessoas), é de
suma transcendência para calibrar e potencializar o sentido e o alcance dos
direitos e deveres que encontram nela (na responsabilidade) sua garantia.
Em segundo lugar, porque as visões teóricas do castigo legal se
agrupam principalmente em dois tipos de teorias: as retributivas e as
utilitaristas (ou consequencialistas). A visão retributiva, que se baseia
em dar ao infrator "o que merece" por sua ação, mira ao passado e se centra
no agente do ato e em sua relação com esse ato. Para castigar desde o ponto
vista retributivo o indivíduo tem que merecê-lo e, por essa razão, atribuir-
lhe liberdade e possibilidade de atuar de outra maneira. Este princípio se
fundamenta na ideia intuitiva de que é "injusto" que uma pessoa seja
julgada ou castigada pelo que não depende dela, pelo que não está baixo seu
controle ("princípio de controle"). Já a visão utilitarista ou
consequencialista, que não se propõe dar a cada um o que se merece segundo
suas passadas ações, senão somente castigar com o fim de assegurar um
hipotético bem social, mira ao futuro, às consequências para a sociedade e
aos indivíduos do castigo, sem necessidade de que o castigo seja merecido.
Desde uma ótica utilitarista, por exemplo, é possível castigar a um
psicopata pelo perigo que supõe para a sociedade.
O único inconveniente é que a carga retributivista tem um peso muito
maior tanto nas justificações intuitivas das penas como nas tradições
culturais, religiosas ou legais, e está firmemente arraigada em conceitos
como o de "culpa" ou em expressões como "olho por olho" ou "dar a alguém
seu merecido"[2]: somos essencialmente retributivistas e tendemos a
confundir explicação com exculpação, determinismo com fatalismo.[3]
Como explica Chris Frith, o sentimento de tomar decisões livres é uma
parte fundamental de nossa experiência consciente. Sejamos livres ou não, o
importante é que nos experimentamos como agentes livres; também
experimentamos as outras pessoas como agentes livres e preferimos "pagar
com a mesma moeda" do que resguardar-nos baixo o manto da indiferença
utilitária. E esta experiência tem uma função muito importante ou, no pior
dos casos, é uma ilusão útil. Tanto é assim que o sistema legal pressupõe
que todos somos igual de capazes de controlar nossos impulsos e de tomar
decisões livres.[4]
A justiça, o Estado de direito e a sociedade em seu conjunto nos
tempos modernos se erigiram sobre o suposto do livre-arbítrio e a
responsabilidade das pessoas sobre atos que podem ser premiados ou
castigados. Pouco importa que nos creiamos ou não no livre-arbítrio ou que
nossas ações se explicam em virtude do que sucede a nível nervoso em nossa
cabeça; o relevante é que esteja socialmente justificado (na prática, sem
essa crença compartida qualquer ordem ou ordenamento jurídico resultaria
impossível). Ninguém ou praticamente ninguém crê no determinismo, posto que
vai contra a grande tradição de nossa cultura... E somos prisioneiros desta
– ou, segundo a feliz expressão de Ortega y Gasset: não se "tem" tradições,
senão que "se está" nelas.



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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
( Abogada Il Ltre. Col legi d'Advocats de les Illes Balears – ICAIB/España;
Doctora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes
Balears-UIB, España; Doctorado Derecho Público/ Universitat de les Illes
Balears-UIB, España; Master (M.Sc.) Evolución y Cognición Humana/
Universitat de les Illes Balears-UIB, España; Research Scholar/ Fachbereich
Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und
Rechtsphilosophie, Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main,
Deutschland; Miembro de la Comisión de Derechos Humanos del ICAIB/España.
[1] Jerry Coyne explica claramente a função da pena para os que não creem
no livre-arbítrio: "El objeto de la pena, si eres un determinista, es
triple: la disuasión, la rehabilitación, y alejar a los delincuentes de la
sociedad para evitar mayor daño. (La retribución no es una opción viable,
ya que no sirve para nada, aparte de atender nuestro deseo de venganza.)
Ninguno de éstos se cumple con la pena capital, y tal vez tampoco con
cadenas perpetuas automáticas sin libertad condicional. Si no crees que un
asesino o un violador hicieron una "elección" libre con sus acciones,
entonces tienes que repensar cómo hacer frente a su transgresión. La razón
por la que no nos concentramos más en qué formas de castigo son las mejores
para disuadir a otros, rehabilitar a los delincuentes, y mantenerlos
alejados de la sociedad hasta que no hagan más daño, es porque esas cosas
son difíciles de hacer. Requieren estudio empírico — análisis científico.
Pero es lo que debemos hacer si nuestro sistema de justicia va a ser a la
vez racional y humano. Lo que no haces es seguir infligiendo crueldad
simplemente porque eso es lo que siempre se ha hecho. […] Por otro parte,
entender que no existe el libre albedrío no aboliría las cárceles ni el
sistema de justicia criminal, porque seguiríamos castigando a la gente para
alejarlos de la sociedad, para dar un ejemplo para los demás - esto afecta
a sus propias decisiones futuras - y para reformar a las persona". E mais:
para Christopher Boehm, a origem da moral "es el control social por parte
del grupo, es decir, el grupo castiga a los individuos que se desvían de
las conductas que favorecen la supervivencia del grupo. Este castigo es una
especie de "selección social" porque las preferencias sociales de los
miembros del grupo -y del grupo en su conjunto- acaban modificando el
acervo genético. Para no ser castigado el individuo aprende e interiorizar
las normas del grupo y esa interiorización de las normas sería la moral. La
selección moral va en el sentido de aumentar las conductas cooperadoras y
disminuir las conductas de depredación social y el castigo social a lo
largo de generaciones modela y cambia el genotipo en esa dirección de mayor
cooperación y menos depredación."
[2] Uma hipótese plausível sustenta que o retributivismo foi uma ferramenta
útil para a manutenção da ordem social durante a evolução, com o que certos
mecanismos psicológicos que o sustentam puderam fixar-se no transcurso da
mesma (T. W. Clark). Analogamente, existem também muito boas razões para
explicar por que nossas concepções do mundo físico são de tipo euclidiano-
newtoniano, do mesmo modo que as do mundo social são retributivistas: o
mundo tal e como o percebemos responde bem a esse esquema. Segundo vários
expertos em ética, contudo, há ao menos várias situações psicológicas
clínicas nas quais o castigo retributivo carece já de sentido. Lincoln
Frias, membro da sociedade internacional de neuroética, nega que os
psicopatas devam ser castigados, precisamente porque carecem dos
sentimentos morais necessários: "El castigo podría no ser la mejor
estrategia e incluso podría no ser moralmente oportuna, al menos si se
entiende el castigo como infligir sufrimiento para castigar por lo que se
ha hecho para. Por extraño que parezca, los psicópatas merecen nuestra
compasión". Para Frias, a ética moderna, informada pelos novos
conhecimentos científicos, nos distancia da "savana" onde evolucionaram os
primeiros seres humanos: "Los impulsos retributivos probablemente se
desarrollaron durante la selección natural como una forma de disuadir a los
aprovechados (free-riders). Pero los psicópatas no son suficientemente
sensibles a las amenazas como para que puedan ser disuadidos". Um problema
é que estas teorias éticas logicamente consistentes chocam com as intuições
das pessoas, que de fato mantêm intuições compatibilistas e
incompatibilistas ao mesmo tempo. O trabalho dos filósofos
experimentales (de S. Nichols e J. Knobe, por exemplo) evidencia que o
emoldurado emocional da pergunta influi no el tipo de resposta que damos em
dilemas morais: "¿Son moralmente responsables las personas en un universo
determinista? Partiendo de este supuesto, si hacemos la pregunta de un modo
abstracto, los sujetos ofrecen una mayoría de respuestas
"incompatibilistas" (un 86%), pero si recreamos la misma pregunta en
circunstancias cargadas de emoción y de detalles vitales, los sujetos
ofrecen una mayoría de respuestas "compatibilistas" (un 78% de la misma
muestra). Conclusión: la creencia en un universo determinista no socava, de
por sí, las nociones corrientes de moralidad y responsabilidad personal".
Em seu conjunto, estes resultados insinuam que os juízos morais correntes
não surgem de abstrações filosóficas capazes de pôr entre parênteses as
situações concretas e as velhas emoções que despertam. O sentido da justiça
evolucionou muito antes que aos filósofos morais se lhes ocorrera falar de
um imperativo categórico.
[3] Com a palavra, Sam Harris: "El gran problema es que la gente a menudo
confunde el determinismo con fatalismo. El determinismo es la creencia de
que nuestras decisiones son parte de una cadena irrompible de causa y
efecto. El fatalismo, por el contrario, es la creencia de que nuestras
decisiones no importan, porque todo lo que está destinado a suceder,
sucederá, como el matrimonio de Edipo a su madre, a pesar de sus esfuerzos
para evitar que el destino".
[4] John Darley, por exemplo, publicou na Annual Review of Law and Social
Science um artigo em que repassava as contribuições experimentais a um dos
fenômenos mais curiosos da natureza humana: o rechazo à injustiça. Os seres
humanos desejam castigar aos transgressores das normas compartidas, ainda
que as consequências das transgressões não lhes afetem, e estão dispostos a
fazê-lo inclusive se têm que pagar por isso ou se de alguma forma lhes
prejudica pessoalmente a busca de justiça. Quer dizer, que a noção de
justiça poderia derivar-se da necessidade de canalizar um sentimento de
vingança, depositando em um terceiro (a instituição jurídica, por exemplo)
a responsabilidade de obrigar ao infrator a pagar por suas culpas. É o
chamado «castigo altruísta», porque os indivíduos castigam o comportamento
injusto e não cooperativo, mesmo que o castigo seja custoso e não acarrete
nenhum benefício material ao que lhe inflige (E. Fehr & S. Gächter). Um
comportamento no qual um sujeito A, ao ver como outro B se salta as regras
da convivência, está disposto a pôr algo de sua parte, contanto que o
transgressor B seja castigado e pese a que seu «delito» não afete A de
maneira pessoal. O castigador altruísta não recebe nenhum benefício, mas
sim sofre uma perda — de bens ou de qualquer outro tipo. Ernst Fehr e
colaboradores estudaram esta questão explorando os cérebros de sujeitos
mediante a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) enquanto estes
decidiam se castigar a uma pessoa que havia abusado previamente de sua
confiança violando uma norma justa. O estudo demonstrou que a parte do
cérebro crucial no circuito da recompensa ou gratificação se ativa enquanto
os sujeitos estão decidindo se castigar ou não. Pesquisadores anteriores
demonstraram que esta mesma área se ativa quando, por exemplo, os sujeitos
recebem dinheiro, vêem caras formosas, consomem cocaína ou no caso de
indivíduos enamorados ao ver imagens de seus amados ou amadas.
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