Aspectos da Hermenêutica em Habermas

July 3, 2017 | Autor: H. de Oliveira Sa... | Categoria: Hermeneutics
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ASPECTOS DA HERMENÊUTICA EM HABERMAS1 Hermano de Oliveira Santos2

O título desta resenha não é à toa. Com ele se pretende destacar que Habermas não faz da Hermenêutica um programa teórico em si mesmo, mas a considera como perspectiva filosófica a partir da qual possa vislumbrar a práxis do conhecimento humano, sobremodo na área das Ciências Sociais. Daí a opção de não se falar numa Hermenêutica de Habermas, mas na Hermenêutica em Habermas (ou, mais precisa e honestamente, em questões de Hermenêutica extraídas da parte eminentemente hermenêutica de sua obra, e principalmente de comentários sobre o viés hermenêutico de sua vasta e multifacetada obra) (cf. DUPEYRIX, p. 43-70; GRONDIN, p. 83-86; HABERMAS, 1982, p. 233-319, 1987, p. 13-25, 26-72, 86-97, 2004, p. 63-97, e 2011, p. 295-335; REESE-SCHÄFFER, p. 9-16; SIEBENEICHLER, p. 47-68, 148-160). Com efeito, a obra de Habermas tanto pressupõe e dialoga com o pensamento ocidental moderno, quanto suscita e inspira investigações contemporâneas em diversas áreas do conhecimento, notadamente na área das Ciências Sociais, como já se disse. Ademais, sua perspectiva, por não assentar sobre uma base puramente epistemológica ou ontológica, não se preocupa tanto com a natureza, método e limites do saber hermenêutico, quanto com a potencialidade desse saber em oferecer soluções para problemas teóricos e práticos dos mais diversos matizes (cf. DUPEYRIX, p. 11-17, 19-32; REESE-SCHÄFFER, p. 9-16; SIEBENEICHLER, p. 47-68, 148-160). Para tal mister, Habermas adota uma abordagem pragmática, sem todavia almejar a constituição de algo como uma teoria geral prática. Como se depreende de um panorama geral de sua obra, a Hermenêutica que lhe interessa tem caráter menos perspectivo do que prospectivo. Nesse sentido, é possível afirmar que a Hermenêutica seria uma teoria menos descritiva do que funcional. Em outras palavras, não uma teoria da interpretação, de pretensão generalizante e codificadora, mas uma teoria de interpretação, de cunho instrumental porque procedimental. Desse modo, a missão do hermeneuta estaria não em decantar uma tipologia abstrata de formas de interpretação, e sim em reforçar a legitimidade do procedimento e assim legitimar o produto da

Exposição escrita para obtenção dos créditos relativos à disciplina “Hermenêutica, Direito e Argumentação”, ministrada pela Profa. Constança Terezinha Marcondes César, no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe, no período letivo 2014.1. 2 Currículo: lattes.cnpq.br/8900052310138642. E-mail: [email protected]. 1

interpretação

(cf.

HABERMAS,

1987,

p.

13-25,

26-72,

e

2004,

passim;

SIEBENEICHLER, p. 47-68, 148-160; STEIN, p. 98-132). Em suma, para Habermas, a Hermenêutica é um saber reflexivo e dialógico, permanente e cíclico. Ou seja, um saber filosófico, ou mesmo uma espécie de filosofia. E assim sendo, um saber insatisfeito e desencantado, necessário e útil a toda análise crítica da linguagem, da comunicação, do homem, da sociedade e da história. Ou, ainda, um saber radical, profundo, crítico, aplicável a todas as áreas do conhecimento, destacadamente as de viés normativo, como o Direito, a Ética, a Moral, a Política e a Teologia (cf. DUPEYRIX e REESE-SCHÄFFER, passim; ENCARNAÇÃO, p. 49-60). Enfim, é nesse diapasão que Habermas se propõe rediscutir alguns conceitos básicos da Hermenêutica, como forma de ampliar a concepção sobre sua natureza, objeto, objetivos e limites. E o faz tendo em vista o manejo de um dado arcabouço teórico com o fito de compreender e explicar o que chama de mundo da vida, conceito que utiliza para definir, sinteticamente, todo e qualquer processo e ato de comunicação humana (cf. BLEICHER, p. 215-231; GRONDIN, p. 83-86; SIEBENEICHLER, p. 4768, 148-160). A propósito, a abordagem de Habermas, por assim dizer, “implica a adopção, a crítica e a eventual ultrapassagem-por-integração, da hermenêutica”, culminando “numa projectada teoria da competência comunicativa” (BLEICHER, p. 216). Igualmente importante é destacar que a obra de Habermas parte do dissenso (com autores das mais variadas áreas do conhecimento, como Ratzinger na Teologia, a “querela dos historiadores”, Luhmann na Sociologia, Wittgenstein na Linguística e, sobretodos, Gadamer na Hermenêutica) em busca do consenso. Não se pode inferir, no entanto, que esses diálogos transcorreram de modo pacífico, uma vez que, de fato, tratase de uma trajetória marcada por polêmicas e também, por que não dizer, por incompreensões de parte a parte, o que certamente tem subtraído parcela do sucesso da empreitada, na medida em que tais dissensos por vezes inviabilizam os consensos possíveis (cf. DUPEYRIX e REESE-SCHÄFFER, passim; ENCARNAÇÃO, p. 49-60, 115-124). Assim delineado um painel, algo rudimentar, sobre a participação de Habermas no debate filosófico-hermenêutico mais amplo3, cumpre esboçar alguns 3

Cf. Palmer, p. 9-11, 15-22, 43-54, 55-73, 75-79. Nessa obra, Palmer não chega a tratar da participação de Habermas no debate filosófico-hermenêutico. Ainda assim, apresenta um painel deveras abrangente e elucidativo, dos primórdios até o estágio em que se encontrava pouco antes da polêmica entre Habermas e Gadamer, servindo sobretudo como resumo da hermenêutica gadameriana.

aspectos de sua contribuição específica, o que se deu como crítica à chamada Hermenêutica Filosófica (cf. BLEICHER, p. 201-204, 216-223; HABERMAS, 1987, p. 13-25, 26-72, 86-97, e 2004, p. 63-97). Para tanto, impende considerar, sobretudo, a polêmica entre Habermas e Gadamer, não apenas porque este antecedeu aquele cronologicamente, mas principalmente porque o segundo, ao equacionar e reduzir a termo uma espécie de estatuto da Hermenêutica (em torno de suas noções de linguagem, sentido, tradição etc.), inspirou e instigou o primeiro (e tantos outros) nas discussões travadas nessa área do conhecimento (cf. BLEICHER, p. 216-223; ENCARNAÇÃO, p. 131-137; GADAMER, p. 270-292, 292-321; GRONDIN, p. 86-91; HABERMAS, 1987, p. 13-25, 26-72, 86-97; PALMER, p. 197-219; SCHMIDT, p. 201-213; STEIN, p. 98-132).

1. Divergências entre Habermas e Gadamer

Sem prejuízo de outras possíveis referências bibliográficas, a polêmica entre Habermas e Gadamer está documentada nas obras de ambos, quase como um esforço conjunto de compreensão, de acordo com a seguinte cronologia das publicações originais (cf. STEIN, p. 109-110): 1960 – Verdade e Método, de Gadamer (cf. GADAMER, 2004); 1966 – “A universalidade do problema hermenêutico”, por Gadamer (cf. GADAMER, 2011, p. 255-270); 1967 – “Retórica, Hermenêutica e crítica da ideologia: comentários metacríticos a Verdade e Método”, por Gadamer (cf. GADAMER, 2011, p. 270-292); 1971 – “Sobre ‘Verdade e Método’, de Gadamer” e “A pretensão de universalidade da Hermenêutica”, por Habermas (cf. HABERMAS, 1987, p. 13-25, 2672; 2011, p. 295-335); 1971 – “Réplica a ‘Hermenêutica e Crítica da Ideologia’”, por Gadamer (cf. GADAMER, 2011, p. 292-321); e 1981 – “Hermenêutica Filosófica: leitura tradicionalista e leitura crítica” (cf. HABERMAS, 1987, p. 86-97). Grosso modo, nessa polêmica4, duas são as divergências, a saber: a) as “implicações da natureza da ‘pré-estrutura da compreensão’”, ou a “situação da 4

Trata-se de uma polêmica marcada por divergências de entendimento pontuais, não por uma contenda inconciliável, e jamais pela inimizade. Aparentemente, Habermas e Gadamer divergem em aspectos periféricos, mas convergem na parte central de suas perspectivas hermenêuticas. Ademais, entre eles vigorou, até o passamento de Gadamer, em 2002, uma profícua e amistosa relação intelectual, conforme

linguagem” como fundamento último da compreensão; e b) a “justificabilidade da posição crítica desenvolvida por Habermas, em face do sentido imposto pela tradição [segundo Gadamer]” (BLEICHER, p. 216).

2. Críticas de Habermas a Gadamer

2.1. Críticas gerais

Na discussão dessas divergências, Habermas dirige a Gadamer duas críticas gerais, quais sejam: 2.1.1. A crítica à “pretensão de universalidade da hermenêutica” Habermas questiona Gadamer no que chama de “‘pretensão de universalidade da hermenêutica’” (apud TEIXEIRA, p. 85). Para tanto, cita dois “limites de decisivo relevo”: a) “o facto de o compreender hermenêutico, que se move no domínio da comunicação da linguagem ordinária, perder a sua competência nas esferas em que as proposições excedem o campo daquela linguagem” (por exemplo, os “sistemas linguísticos organizados monologicamente pela ciência moderna”); e b) “as situações em que não só a comunicação como a linguagem se encontram perturbadas” (por exemplo, “psicanálise, no domínio individual” e “crítica das ideologias, no domínio colectivo”) (TEIXEIRA, p. 86-87; cf. BLEICHER, p. 216-219; HABERMAS, 1987, p. 26-72, e 2011, p. 295-335; STEIN, p. 117-119).

2.1.2. A crítica à ideia de permanência da tradição

Habermas, como se disse, discorda da ideia de permanência da tradição, afirmando que “Gadamer avaliaria mal ou desatenderia a força da reflexão que se

se depreende de alguns fatos, cabendo destacar dois deles: foi Habermas quem pronunciou a laudatio a Gadamer, na ocasião em que este foi agraciado com o Prêmio Hegel, em Stuttgart, em 13/6/1979 (VALLS, 1987, p. 5-7; cf. HABERMAS, 1987, p. 73-85); eles também privavam do convívio social, na academia e fora dela, como atesta a seguinte declaração de Habermas (JH), em entrevista concedida a Barbara Freitag-Rouanet (BF) e Sérgio Paulo Rouanet (SPR), na casa do entrevistado, em Starnberg, em 15/3/1995: “BF – Gadamer acaba de fazer 95 anos. Li, ouvi e vi muitas entrevistas que ele vem dando. Está inteiramente lúcido... JH – Sim, sim! Nós fomos visitá-lo em Heidelberg. Ele ainda está... bem, com a cabeça ótima, e com muita mobilidade. BF – Numa entrevista dada a Focus, o entrevistador disse que Gadamer lhe ofereceu um café que ele mesmo fizera. JH – Sim, sim! (Risos)” (FREITAG, p. 258-259).

desenvolve no compreender” (TEIXEIRA, p. 86). Segundo ele, esse entendimento representaria uma “reabilitação do preconceito como tal, admitindo, sem mais, a legitimidade dos preconceitos” (IDEM, ibidem; cf. BLEICHER, p. 217; STEIN, p. 113116). Em contraposição, ele sugere o seguinte raciocínio: “se é correcto conceber a linguagem como uma espécie de meta-instituição”, e que “a acção social se constitui unicamente na comunicação de linguagem corrente”, então se conclui que “a linguagem é também meio de dominação e de poder social, que serve para legitimar as relações de violência organizada, pelo que se apresenta, igualmente, como ideológica”, de modo que “a transformação dos modos de produção e as modificações institucionais provocam uma reestruturação da imagem linguística do mundo” (TEIXEIRA, p. 86; cf. HABERMAS, 1987, p. 86-97).

2.2. Críticas específicas, propostas, réplicas e tréplica

Habermas esmiúça tais críticas gerais em críticas específicas (CE), às quais eventualmente contrapõe algumas perspectivas próprias (PP), e em relação às quais Gadamer interpõe algumas réplicas (RP), sucedidas de uma tréplica (TP) de Habermas, senão vejamos: 1ª CE – para Habermas, Gadamer é relutante “em tecer quaisquer considerações metodológicas” (BLEICHER, p. 219). 2ª CE – segundo Habermas, Gadamer é fiel à “concepção heideggeriana de uma hermenêutica filosófica como ‘investigação do que sucede connosco, superior à nossa vontade e aos nossos actos’” (BLEICHER, p. 219). 3ª CE – para Habermas, Gadamer “aceita sem contestar a autoridade e a tradição; o seu ‘idealismo relativo’, que considera a linguagem como o absoluto transcendental, denota uma falta de objectividade” 5 (BLEICHER, p. 220). Na mesma entrevista: “SPR – A propósito, recordo-me do seu ensaio “A aspiração de universalidade da hermenêutica”, no qual o Senhor rejeita a posição de Gadamer de que não podemos transcender o horizonte da nossa tradição. As duas posições permanecem o que eram há vinte anos? Gadamer continua defendendo a tese de que o horizonte da tradição não pode ser ultrapassado? JH – Bem, é difícil dizer. Nesse ponto, que eu considero decisivo, Gadamer é flexível demais para se comprometer de modo unívoco. Sim, o ponto decisivo – e também Apel o criticou novamente nesse aspecto – é saber se podemos derivar consequências particularistas do seu enfoque hermenêutico. Ou seja, se, apesar de todos os nossos esforços de compreensão, permanecemos de tal modo partes de nossa tradição que... sim, que, em última análise, não podemos assumir nenhuma distância crítica com relação a essa tradição. Mas minha impressão é que Gadamer prefere não passar para o campo dos contextualistas. Ele não quer ser considerado um contextualista. Mas ao mesmo tempo, continua fiel, num sentido heideggeriano, à tese da historicidade da verdade. Ou seja, a verdade como acontecimento (Ereignis), a verdade como destino (Geschick). E, por isso, acho que ele continuaria a não aceitar hoje a minha objeção de anos atrás, 5

1ª PP – entende Habermas que: Uma estrutura mais adequada para a interpretação do sentido referir-se-ia (...) aos sistemas de trabalho e poder que, em conjunção com a linguagem, constituem o “contexto objectivo a partir do qual têm de ser entendidas as ações sociais”. A hermenêutica transforma-se numa ciência social, sob a forma de uma crítica da ideologia, quando o sentido tradicional é interpretado em referência a determinados níveis de actuação na sociedade, i. e., o desenvolvimento económico e as formas de poder existentes (BLEICHER, p. 220).

4ª CE – segundo Habermas, “Ao conferir aos processos hermenêuticos uma base ontológica, Gadamer é levado a menosprezar os factores políticos e económicos que podem limitar drasticamente o ‘horizonte’ de alguns ou de todos os participantes” (BLEICHER, p. 220-221). 2ª PP – entende Habermas que: A tradição como contexto, que inclui os sistemas de actuação e influência, tanto permite como restringe os parâmetros dentro dos quais definimos as nossas necessidades e interagimos a fim de as satisfazer. O facto de os processos sócio-históricos poderem ocorrer nas costas daqueles que os executam, que podem não conseguir sistematicamente fazer uma descrição circunstanciada dos seus actos individuais e das motivações subjacentes, aponta para uma abordagem dos fenómenos sociais que ultrapassa o âmbito das investigações meramente interpretativas do sentido (BLEICHER, p. 221).

5ª CE – para Habermas, “A suposição comum a Dilthey e Gadamer no campo da interpretação hermenêutica diz respeito à necessidade do sentido” (BLEICHER, p. 221). 3ª PP – lembra Habermas que: a psicanálise evidenciou o mecanismo em que reprimimos motivos socialmente inaceitáveis, canalizando-os para formas de expressão aceitáveis. Esta “redefinição”, que se regista em condições de força, aqui representada pelas exigências do Super-ego, constitui o modelo para a crítica da autoilusão dos grupos, no interior de uma sociedade de classes (BLEICHER, p. 221).

1ª RP – pondera Gadamer que: Caso o “problema hermenêutico” envolvesse toda a atividade significativa, então seria impossível partir de uma posição exterior, ou mesmo contrária, a ele; não existiria um ponto arquimediano, visto que a própria tentativa de alterar um conjunto de pensamentos carece de uma base de sustentação e, ao mesmo tempo, de uma série de pressuposições e concepções prévias que é de todo impossível esclarecer de imediato (BLEICHER, p. 221-22).

2ª RP – defende Gadamer “a universalidade de uma hermenêutica filosófica com base na concepção heideggeriana do verstehen como um existencial, em vez do processo metodicamente preparado das ciências hermenêuticas” (BLEICHER, p. 222). segundo a qual devemos ter a possibilidade de criticar os preconceitos veiculados pela tradição. SPR – Isso tem a ver talvez com sua ideia de uma apropriação seletiva da tradição, segundo a qual não devemos, justamente, aceitar todos os conteúdos dessa tradição. Num país como a Alemanha, a tradição é uma questão tão delicada, que precisamos manter uma atitude seletiva com relação a ela. Não é mesmo? JH – Sim, sem dúvida” (FREITAG, p. 259).

É dizer: para Gadamer, a Hermenêutica é um saber reflexivo, ou, em duas frases marcantes, tributárias de Heidegger: “o ser que pode ser compreendido é linguagem”; “tudo o que existe se reflecte no espelho da linguagem” (IDEM, ibidem). 3º RP – rejeita Gadamer a “antítese abstracta entre Razão e autoridade, reflexão e tradição”, assim como “a transposição do modelo da psicanálise para a realidade social”, argumentando pela impossibilidade de tal perspectiva abstrata e objetivista6 (BLEICHER, p. 222-223, 226-228; cf. STEIN, p. 119-122). TP – responde Habermas que: A questão centra-se agora no problema da criação dos parâmetros a que a ideologia crítica se pode referir, a fim de legitimar o seu processo. (...), em primeiro lugar, na tentativa de distinguir os limites do conhecimento hermenêutico e, em segundo lugar, na tentativa de delinear, de forma pragmática, uma estrutura teórica nos termos da qual uma crítica da ideologia se pode tornar um empreendimento viável e justificável (BLEICHER, p. 223).

3. Reconhecimento de “realizações positivas” da hermenêutica gadameriana Habermas reconhece as seguintes “realizações positivas” da hermenêutica gadameriana: a) “capacidade para descrever a estrutura da restituição da comunicação perturbada”; b) “estar necessariamente referida à práxis”; c) “destruir a autocompreensão objectivista tradicional das ciências do espírito”; d) “mostrar às ciências sociais que o seu domínio objetivo está pré-estruturado pela tradição e que têm o seu lugar histórico determinado”; e) “revelar às ciências naturais a sua auto-compreensão cientificista”; e f) “papel que lhe pode caber hoje na tradução para a linguagem do mundo da vida social de informações científicas ricas de consequências” (TEIXEIRA, p. 87; cf. STEIN, 122-123).

4. Elementos da Hermenêutica Crítica Daí a formulação de Habermas do que ele mesmo “designa por hermenêutica crítica, nalguns aspectos próxima ou convergente com a hermenêutica transcendental” (TEIXEIRA, p. 87). Dir-se-ia divergente no tocante à valoração histórico-metodológica da linguagem: otimista em Apel e desencantada em Habermas (cft. BLEICHER, p. 205-213, 223-231; TEIXEIRA, 82-85, 85-90).

A essa réplica de Gadamer cabe uma ressalva retificadora, haja vista que “Habermas introduziu a hermenêutica na metodologia das ciências sociais a fim de combater o objectivismo das abordagens cientificistas do universo social” (BLEICHER, p. 223; cf. HABERMAS, 2011, p. 72-291). 6

Para ele, então, a natureza da Hermenêutica não seria meramente descritiva, como “uma técnica ou uma arte que discipline e cultive, metodicamente, a capacidade natural de compreender e que se relaciona, simetricamente, com a arte de conhecer e persuadir em situações em que são trazidas para a decisão questões práticas” (oratória e retórica), mas essencialmente crítica, como “uma reflexão que pode partir da nossa experiência da linguagem comunicativa”, ou seja, “a reflexão sobre o modo correcto de compreender e tornar inteligível e de convencer e persuadir deveria estar ao serviço de uma meditação sobre as estruturas da comunicação na linguagem corrente” (TEIXEIRA, p. 87-88). Mais uma vez, valorizando o modo descritivo da Hermenêutica, ele reconhece que sua perspectiva crítica é tributária “à arte de compreender e tornar inteligível”, no que diz respeito à “experiência de que os meios da linguagem natural são suficientes para esclarecer o sentido de quaisquer textos simbólicos, por mais estranhos e inacessíveis que se apresentem”; e “à arte de convencer e persuadir”, no que se refere à “experiência de que, através da comunicação da linguagem corrente, são trocadas comunicações e são formadas e modificadas atitudes orientadoras da acção” (TEIXEIRA, p. 88). Em síntese, “Habermas insiste numa Hermenêutica entendida como arte de compreender um sentido linguisticamente comunicável e, no caso de comunicações perturbadas, torná-lo inteligível. A Hermenêutica, assim, relaciona-se com a arte de convencer e persuadir para questões práticas” (ENCARNAÇÃO, p. 57). Na composição dessa perspectiva, hão de ser considerados os seguintes elementos:

4.1. Uma concepção marxista da linguagem Para Habermas, “a infra-estrutura-linguística da sociedade seria momento de um contexto”, mediado simbolicamente pela linguagem e constituído por “coacções da realidade” de “natureza exterior” (“processos de disposição técnica”) e de “natureza interior” (“repressões das relações sociais de força”), donde “o contexto objetivo a partir do qual podem ser compreendidas as acções sociais se constitua, sobretudo, pela linguagem, pelo trabalho e pela dominação” (TEIXEIRA, p. 86; cf. STEIN, p. 105-107). Partindo da premissa de que a divisão proposta por Habermas faz sentido numa perspectiva marxista da linguagem, não seria absurdo identificar os dois últimos elementos (trabalho e dominação) ao primeiro (linguagem), ou, mais precisamente, ao

conceito que o sucede desde Foucault, isto é, o conceito de discurso, sobretudo se considerados as análises do discurso de viés crítico, como em Charaudeau, Maingueneau, Van Dijk, dentre outros.

4.2. O caráter ideológico-alienatório da linguagem Sobre o caráter ideológico da linguagem, Habermas diz que “a crítica das ideologias é necessária para tornar patente o contexto da vida social em todos os seus momentos” (TEIXEIRA, p. 89). E resgatando e ampliando o conceito heideggeriano de alienação, ele afirma que “os homens vivem na alienação, que tem a sua origem na dominação de homens sobre homens”, ou seja, “a comunicação sistematicamente perturbada ou distorcida é um aspecto da sociedade”, o que “encontraria na comunicação livre a sua ideia regulativa” (TEIXEIRA, p. 89; cf. BLEICHER, p. 225-227).

4.3. A linguagem como intersubjetividade

Aproximando-se, e divergindo, de Apel, Habermas entende que a “experiência [humana] caracterizar-se-ia pela intersubjectividade do acordo na linguagem corrente, intersubjectividade que é ilimitada, por poder ser livremente ampliada, e susceptível de ser rompida, por nunca poder ser integralmente produzida” (TEIXEIRA, p. 88; cf. BLEICHER, p. 225-226). 4.4. O conceito de “consciência hermenêutica” Habermas cunha o conceito de “consciência hermenêutica”, como “o resultado de uma auto-reflexão, em que o sujeito que fala percebe as suas próprias liberdades e dependências relativamente à linguagem”, a qual “será incompleta enquanto não assumir em si a reflexão sobre os limites da compreensão hermenêutica” (TEIXEIRA, p. 88). De modo geral, pensa ele, “uma hermenêutica criticamente esclarecida sobre si mesma teria de assumir “o saber metahermenêutico sobre as condições de possibilidade da comunicação sistematicamente distorcida ou perturbada” (IDEM, p. 89). E também “deveria reconhecer que o contexto da tradição, enquanto lugar da verdade possível e do estar-de-acordo fáctico, é também o lugar da inverdade fáctica e da violência duradoura” (IDEM, ibidem).

4.5. O “princípio do discurso racional” Segundo Habermas, “a reflexão hermenêutica vincula a compreensão ao princípio do discurso racional, segundo o qual a verdade só poderia ser garantida pelo consenso”, de modo que “a interpretação devesse supor uma racionalidade imanente em todas as manifestações e declarações, por mais opacas que se apresentem inicialmente” (TEIXEIRA, p. 89). E num lance de inegável percuciência, diz que o referido princípio pressupõe que se possa “atribuir a um sujeito cuja imputabilidade e responsabilidade não suscitem dúvidas, pois só quando o intérprete descobre as razões que fazem aparecer como racionais as declarações de qualquer autor pode compreender o que ele poderia ter querido dizer” (IDEM, ibidem; cf. BLEICHER, p. 230-231). 4.6. “Para uma teoria da competência comunicativa”

O título deste item corresponde ao utilizado por Bleicher (p. 223-231) para apresentar o desiderato de Habermas, qual seja, a elaboração de uma “metahermenêutica” baseada no “modelo da psicanálise”, entendido como crítica da compreensão distorcida que um indivíduo tem de si mesmo que estabelece uma estrutura teoria que combina o conhecimento sobre a personalidade geral com as histórias da vida dos indivíduos (BLEICHER, p. 229).

De modo similar, Sob o domínio da ideologia, os grupos sociais são impedidos de reconhecer e prosseguir os seus interesses comuns; a eficácia destes sistemas de interpretação depende da criação de barreiras à comunicação, que bloqueiam os processos comunicativos que procuram a formulação de objetivos e directivas sócio-políticas relevantes (BLEICHER, p. 229).

Assim, segundo Habermas, seria possível uma testagem, no sentido de verificação da tradição. Defendendo algo como uma “teoria da comunicação sistematicamente distorcida”, acredita ele, Se tal pudesse ser desenvolvido de forma satisfatória, em articulação com uma pragmática universal e combinado com pressuposições básicas do materialismo histórico formuladas com rigor, então seria possível a compreensão sistemática da tradição cultural. Pode suceder que uma teoria da evolução social leve a pressuposições testáveis relativamente à lógica do surgimento de sistemas de moral, de cosmologias e das correspondentes práticas culturais (apud BLEICHER, p. 229).

Para tanto, Habermas vale-se de uma teoria da psicanálise além-Freud e da crítica da ideologia de Marx, aproveitando-lhes algumas ferramentas hermenêuticas, com vistas a uma teoria consensual da verdade (cf. HABERMAS, 1982, p. 233-319). Da psicanálise, ele faz uso da “compreensão cénica”, a qual salienta “as condições iniciais que levaram à distorção sistemática da linguagem”: mediante “a reconstrução da situação ou ‘cena’ conflituosa original, no começo da infância, é dada ao paciente a hipótese de ressimbolizar aquelas áreas da história da sua vida que semanticamente se mantiveram vazias” (BLEICHER, p. 227). Ele, então, propõe somar o modelo da psicanálise ao “modelo de práxis emancipadora”, “para iniciar o processo de reflexão e dissolver as barreiras da comunicação” e, assim, “deduzir as hipóteses explicativas sem ter (ou arranjar) a oportunidade de iniciar a comunicação com as pessoas em questão e ver a sua própria interpretação confirmada pelos seus processos de reflexão”, sem, contudo, “excluir o diálogo directo com os opositores”, se for o caso (BLEICHER, p. 228). Nesse diapasão, torna-se possível distinguir a interação de um discurso ideal: no primeiro caso, da interação, pelo fato de esta ser marcada por normas e opiniões dogmáticas, pois “tomadas como certas”, não é possível “distinguir um consenso verdadeiro de outro falso”, pressupondo-se que “qualquer consenso a que se chegou (...) pode ser considerado como um consenso verdadeiro”; já no segundo caso, do discurso, em que as normas e opiniões estão “problematizadas”, a “concepção de verdade como consensual pressupõe – ou melhor, antecipa – a ‘situação de discurso ideal’ caracterizada pela exclusão de pressões alheias, i. e., a discussão livre de influências”, situação esta que “cria um clima em que os debates permitem a formulação dos verdadeiros interesses dos participantes e o eventual aparecimento e aceitação do melhor argumento” (BLEICHER, p. 230). Neste passo, surge a figura (algo artificial, há de se reconhecer) do “falante sincero”, aquele que, por ser inteligível e verdadeiro, atende às “condições prévias para o êxito da interacção”, de modo que “os participantes [do discurso] podem não se iludir, ou não iludir os outros, a respeito das suas intenções, excluindo assim a possibilidade de distorção do processo comunicativo” (BLEICHER, p. 231). Eis, pois, em apertadíssima síntese, a teoria da competência comunicativa almejada por Habermas, exposta de modo sistematizado em sua opus magnum, publicada em 1981, sob o título de Teoria do Agir Comunicativo, a qual vem a ser, sem embargo, um work in progress, dado que o autor sempre a retoma, como proposta e exemplo de uma hermenêutica crítica ou profunda (cf. REESE-SCHÄFFER, p. 44-63).

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