Aspectos da oralidade na atual produção musical nordestina

June 16, 2017 | Autor: Nivea Lazaro | Categoria: Popular Music, Ethnomusicology, Folk Music
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Aspectos da oralidade na atual produção musical nordestina: A relação palavra e música na obra de Elomar

Nivea Lazaro dos Santos Aluna de Pós-Graduação Universidade Federal Fluminense (UFF) Curso de Ciência da Arte Mestrado em Ciências da Arte [email protected]

Introdução

Literatura e música, como conhecemos hoje, apresentam contornos bem definidos e, por vezes, rígidos. Mas houve um tempo em que a fronteira entre essas duas artes era tão tênue ao ponto do ofício do poeta não denotar uma clara distinção entre falar e cantar, o que indica a estreita relação entre as duas artes por via da voz. Partindo-se desta asserção, neste trabalho pretende-se mostrar a íntima relação entre literatura e música da atual "cantoria sertaneza" nordestina acentuando as marcas da oralidade na obra do compositor, cantador e violeiro Elomar Figueira como representante deste segmento musical. Se considerarmos apenas a funcionalidade da voz no texto e no contexto musical, tanto Elomar quanto qualquer outro moderno cantador constituiria objeto de análise. No entanto, seguindo a distinção no conceito de oralidade apresentada neste trabalho, a obra de Elomar se revela um exemplo peculiar (e bem diferente dos cantadores pesquisados pelos pioneiros em folclore no Brasil). Apesar da aversão à exposição midiática, Elomar teve e tem contato com

diversos outros mundos. É homem estudado, culto e ao mesmo tempo resgatador das antigas lendas, contos, mistérios e valores que, não raro, ainda figuram o imaginário nordestino. É um "cantador muderno", mas ainda assim, legítimo representante do trovador sertanejo. Em vista dos estudos encontrados sobre oralidade e música nordestina (em sua maioria, a cantoria e seus estilos) cujo foco é quase que exclusivo no aspecto discursivo desta relação, propõem-se aqui caminhos para uma análise não restritiva ao aspecto discursivo do texto, mas uma análise que também considere os aspectos formais da palavra e da voz como elemento que dialoga com o significado musical de uma obra.

Do conceito de oralidade. Duas acepções a serem observadas

Dentre as acepções do vocábulo "oralidade", podem-se encontrar tanto traços semânticos relacionados ao discurso e à condição do que é oral em si. Tomando por exemplo o artigo de Luciana Ferreira M. Mendonça sobre literatura e oralidade, encontramos os pares oralidade/ audibilidade e poeta/ compositores. Tais relações podem ser manifestas na tradição temática da cantoria nordestina, mas também no próprio processo de composição desta. Os estudos de Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1993) sugerem que, houve um tempo, estas duas artes – literatura e música – não apresentavam contornos rígidos e aparentemente estáticos como nos nossos dias. Em seu livro "A letra e a voz", Zumthor difere os tipos de oralidade e enfatiza a funcionalidade da voz em relação ao texto. À primeira classificação, atribuo um valor de oralidade discursiva. Uma oralidade mais estreitamente relacionada com o conteúdo discursivo do texto e, no caso da música nordestina, com sua temática. Desta forma, o autor distingue os tipos de oralidade em oralidade primária, mista, segunda e a dos meios de comunicação. Na oralidade primária, não há contato com a escrita e a base da comunicação é exclusivamente oral. Na mista, há uma

influência da escrita, mas tal influência é parcial e externa. A oralidade segunda parte de uma cultura já letrada, apresentando um caminho de retorno à oralidade. E a última refere-se à oralidade pertencente à cultura de massa. À luz desta classificação, a cantoria nordestina é estudada sob o conceito de oralidade mista. É esta acepção do termo oralidade que parece atuar como ponto de partida para o trabalho dos folcloristas tradicionais (CASCUDO, 1984 e MOTA, 1976). Sobre a funcionalidade da voz, o autor propõe o conceito de índices de oralidade. Os índices de oralidade constituem-se de indicações sobre o uso da voz no próprio texto: "tudo o que no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação" (ZUMTHOR, 1993). O autor coleta textos entre os séculos X e XV contendo notações musicais sugerindo a íntima relação entre voz/música e poesia. É na observação da intenção de voz que se estabelece uma relação mais estrutural entre música e palavra/literatura. Como, por exemplo, compreender o que motivou a modificação da versão portuguesa da lenda da Donzela Teodora de prosa para verso na versão brasileira e qual a relação intrínseca na escolha das palavras, na forma de falar que alteram o significado do "texto musical".

Seriam tantos os exemplos que cabe agora dissecar uma amostra da

música nordestina através do bardo sertanejo Elomar.

Relação palavra/ literatura e música na obra de Elomar

1. Análise da oralidade formal

A primeira observação a respeito da linguagem empregada nas canções de Elomar acontece nas palavras do próprio cantador: "...uma vez que a gente canta em linguagem dialetal

sertaneza...". Mas qual o diferencial dessa "linguagem dialetal sertaneza" para que o músico a chame "dialetal"? Uma breve comparação desta linguagem com a norma culta do português pode sugerir tal resposta. Em relação ao português pertencente à dita norma culta, observa-se, no dialeto sertanejo usado por Elomar, um dado conservador em certa medida. Este fenômeno refere-se às nasalizações e de como estes se diferenciam da norma culta do nosso português. Tomandose, por exemplo, os vocábulos "lûa", "madîa", "mîa" e "cumpaîa", observamos, nos três últimos exemplos, a queda do fonema representado pelo dígrafo "nh", mas não da nasalização. Há, nestes exemplos, uma redução que remonta do português arcaico (TARALLO, 1994). No caso de "lûa", houve a queda de outro fonema (/n/), ainda assim, mantendo-se a nasalização tal qual nos outros vocábulos. Além dos exemplos citados, ocorrem diversos outros tipos de supressão de fonemas. Desconsiderando a apócope observada nos verbos empregados no infinitivo por não se constituírem realização exclusivamente nordestina, a supressão do fonema /d/ em "veno", "prossiguino", dentre outras formas gerundivas, é característica do nordeste do Brasil. O próprio léxico também aponta respostas. As alusões à lua, aos animais, à vida no campo em si indicam um estilo de vida que não é comum aos grandes centros. Como afirma o compositor: "...Então decidi que, ao tratar de temas ligados à sociedade rural, dos roçadianos, sempre iria escrever na sua variação lingüística." (ELOMAR in GOBBI, 2005 ) Assim posto, é preciso relembrar a diferenciação baseada no conceito de oralidade. Para fins de análise, empregarei o termo "oralidade discursiva" para a oralidade que se refere ao conteúdo temático do texto propriamente dito em oposição à "oralidade formal" que se relaciona com o aspecto formal da língua portuguesa.

Passo ao aspecto que denominei por oralidade formal, sobre o qual a análise de como as palavras e a melodia de uma canção se relacionam constituem um dos fatores determinantes à feitura e interpretação de uma obra. Na canção "Faviela", por exemplo, observa-se a sincronia da sílaba tônica com a mudança de acorde. Trata-se de uma composição em compasso quaternário que, via de regra, apresenta um tempo inicial forte, o seguinte sendo fraco, outro, mezzo forte e o seguinte também fraco, seguindo a fórmula F f Mf f. Embora se reconheça a mensuração da música, é interessante observar que o intérprete (o próprio Elomar) não a segue fielmente como afirma Cascudo a respeito dos cantadores:

"O cantador aceita a medida rítmica justa sob todos os pontos de vista a que a gente chama de Tempo mas despreza a medida injusta (puro preconceito teórico as mais das vezes) chamada Compasso." (CASCUDO, 1984).

Neste sentido, Cascudo distinguiu os termos tempo e compasso ao tratar dos cantadores. Em Faviela observa-se que o compositor interpreta sua canção exatamente nestes moldes, sendo recorrente em todas as estrofes em que há uma leve precipitação do tempo inicial, o tempo forte (F) onde recai a sílaba tônica das palavras.

Nota: 1

As partituras de Elomar não estão disponíveis para venda. Um

songbook contendo cerca de dez óperas escritas pelo compositor está sendo produzido pela Casa de Cultura de Vitória da Conquista. Um projeto de catálogo digital de todas as suas gravações e outras partituras foi selecionado por um programa da Petrobrás e aguarda, somente, a liberação do patrocínio para sua elaboração.

Observa-se também o ralentar do acompanhamento da viola de Elomar, sempre marcante nas finalizações de cada verso e, por vezes, no início destes. Ainda, nas palavras de Cascudo sobre o tempo da cantoria:

"São movimentos livres acentuados por fantasia musical, virtuose pura, ou por ocasião prosódica. Nada tem com o conceito tradicional da sincopa e com o efeito contratempado dela. Criam um compromisso sutil entre o recitativo e o canto estrófico." (CASCUDO, 1984).

Afora a questão do contratempo, presente na música de Elomar, o "compromisso entre o recitativo e o canto estrófico" é evidente em suas composições. Não creio que a presença deste efeito "contratempado" mencionado por Cascudo exclua a imbricação concernente aos limites entre música e palavra na obra de Elomar. Bem ao contrário. O falar não segue estas normas rítmicas. Talvez a declamação, mas este já é assunto passível de outra análise. Daí um dos laços da música de Elomar com a cantoria nordestina estudada pelos folcloristas, haja vista que já é consenso classificar cantoria como gênero poético-musical por diversos autores (RAMALHO, 2000). Retomando o compromisso mencionado por Cascudo, é na viola de Faviela e Cantiga do Estradar (ELOMAR, 1984) que se revela esta conjugação entre o canto e acompanhamento. Em primeira instância, é possível que se precipite em dizer que o instrumental na música de Elomar esteja sujeito à palavra, às suas estrofes. Contudo, a exemplo do rojão, do ponteio da viola entre suas estrofes, percebe-se que o instrumental na música de Elomar adquire feições próprias, distintas das estrofes, sem estar isoladas destas. Os dois elementos coocorrem e dialogam um com o outro, sendo enfatizados individualmente, cada um ao seu tempo e à sua intenção. Em Faviela, por exemplo, dentro da estrofe inicial, ao final de cada verso, o tempo musical é preenchido com um pequeno solo de viola, estrutura harmônica que se revela como característica deste violeiro - cantador.

Dentro do mesmo exemplo, outro elemento que sugere a relação do texto (como um todo) com o jogo harmônico instrumental, referem-se aos graus de tensão da harmonia e de como estes se conjugam com a tensão da história narrada pela música. Assim, tem-se uma canção desenvolvida no tom Fá maior. Que encerra todos os ciclos harmônicos da música, apresentando uma resolução própria do sistema tonal indicado nas finalizações conjugadas com as palavras "chegá", "lá". Com o monossílabo "pai" há uma preparação para um outro ciclo, uma mediação para o momento de tensão na música indicado na mudança do acorde de um grau maior para o menor (Fá menor), acentuado por ser justamente o acorde que indica o tom da música. Este outro ciclo apresenta seu ponto de partida na sílaba tônica de "tomem". E, encerrando este ciclo de tensão, a tônica de "priguntá". Visualizando a letra, torna-se mais compreensível esta mudança na narrativa do texto:

"A bença madîa cabei de chegá Do rêno das pedra das banda de lá Meu pai mando queu vince aqui te salvá Tomem queu subesse das nova de cá De nada isquecesse de li priguntá" (ELOMAR, 1984).

Algumas elucidações sobre esta estrofe corroboram para a compreensão dessas alterações harmônicas. A canção narra a jornada de um "malonguinho" de 15 anos cujo pai pede que vá à casa de sua madrinha levar notícias de sua família e também trazer notícias de lá ao seu pai. Ao chegar à casa de sua madrinha, ele a saúda e pede sua benção. Nos versos seguintes, ele esclarece os objetivos de sua viagem. Essa divisão é claramente acompanhada pela harmonia da canção. Tratou-se até esta etapa de uma oralidade formal, intrínseca à música e ao texto. Uma oralidade que revela um movimento interno no poema-canção (ou canção-poema).

2. Oralidade discursiva ou textual

A despeito da oralidade discursiva ou textual, considere-se uma breve interpretação acerca de uma das composições do cantador estudado:

"...Cada pedaço desta canção, que se delimita musicalmente em trechos de caráter diferente, se apóia na força ancestral e contundente da tradição oral, transmite um clima de magia permanente da primeira à última linha... Misteriosamente, como numa colagem, surge o tema do veadinho branco, que aparece no mundo do romance de encantamento medieval e que é também transmitido pela História do Imperador Carlos Magno, um dos textos matrizes de nossa cultura popular e sertaneja." (FERREIRA, Jerusa Pires in XANGAI, 1984).

Segundo, Cascudo, a História do Imperador Carlos Magno, ao lado de outras obras como a Donzela Teodora, Lunário Perpétuo dentre outras, compõem fonte de erudição dos cantadores. Até mesmo aqueles não alfabetizados, tomavam conhecimento dessas obras através de outros que as lessem e através dos desafios que as continham. Como o comentário sugere, o compositor da música Gabriela tem conhecimento das obras de base da tradição folclórica do sertão. Diz-se de Figueira Mello o seguinte:

"Daqui leu todos os poetas, escritores e profetas hebreus; leu os mélicos e os clássicos gregos; os latinos, incluindo Esopo e o Fedro; os italianos, franceses, ingleses, espanhóis, russos e, por último, os alemães, tendo, é claro, antes disto perpassado pelos essenciais patrícios." (ELOMAR, 2006)

No intuito de esclarecer tal afirmação é preciso explicitar alguns dados biográficos do compositor.

Elomar nasceu em Vitória da Conquista, Bahia em 1937. Aos sete anos de idade, deixou a vida urbana e rumou para São Joaquim de onde saiu apenas para cursar o chamado científico em Salvador. Entre suas chegadas e partidas da terra natal, teve contato com a música dos cantadores Zé Krau, Zé Guelê e Zé Serradô. Além dos cantadores é preciso ressaltar, na sua infância, a presença das músicas do hinário cristão de base evangélica (profissão de fé de sua família por parte de mãe). Mas é na capital que o compositor descobre a música de câmara. Figueira Mello compõe desde os onze anos de idade, entretanto, é aos dezessete que inicia suas "composições literárias e musicais" no formato que se consolidou posteriormente. Já nessa época adquire fluência na leitura musical, ao passo que sua escrita musical precisa ainda ser desenvolvida. Formado em arquitetura, só abre mão da profissão como sustento no início da década de 80, passando a dedicar a maior parte do seu tempo, ao exercício da composição. Radicado em Vitória da Conquista, além da música, Elomar divide seu tempo com atividades agro-pecuárias em suas fazendas. Daí já se percebem traços distintivos entre os cantadores-repentistas pesquisados por Cascudo, Mota entre outros folcloristas e os cantadores que se encaixariam em uma outra categorização como Elomar. Ao mesmo tempo, tal qual os cantadores encontrados nas feiras, Elomar é "representante legítimo de todos os bardos, menestréis, glee-men, trouvéres, Meistersängers, Minnesingers, escaldos, dizendo pelo canto improvisado ou memorizado, a história dos homens famosos da região, os acontecimentos maiores, as aventuras de caçadas e derrubadas de touros..." (CASCUDO, 1984). Ainda, nas palavras de Cascudo: "Analfabetos ou semi-letrados, têm o domínio do povo que os ama e compreende. Independem das cidades e dos cultos." Apesar de homem letrado, a incursão de Figueira, legitima a similaridade de sua persona artística com o cantador-repentista.

A temática de Figueira Mello é predominantemente a respeito da vida do homem do campo, o homem sertanejo. A exemplo do que ele mesmo diz ao afirmar que trata de temas da sociedade rural. Mas que temas, em sua obra, constituem amostras do arcabouço da tradição oral nordestina? Em seu álbum solo, Cantoria Brasileira 3, a primeira canção "Donzela Teodora" trata da história de uma donzela que desafiou todos os sábios de um rei, obtendo por recompensa "mili dobra de oro". Segundo Cascudo, a origem árabe do conto é indiscutível e chegou a nós, via Espanha e Portugal, através da tradução de Carlos Ferreira Lisbonense (CASCUDO, 1984). Tal narrativa encontra-se nas edições do Lunário Perpétuo e do Manual Enciclopédico (fontes literárias da cantoria nordestina). O dado curioso a respeito deste texto está na forma em que se apresenta a versão sertaneja – verso – enquanto as demais se mantém em prosa. A respeito desta alteração na versão sertaneja, uma das motivações que podem tê-la favorecido está no próprio uso da narrativa enquanto música. Os registros mais antigos da música ocidental (que datam da Idade Média) apontam a preferência da poesia, da versificação para a musicalização das estrofes (ZUMTHOR, 1993). Na canção "Gabriela", o comentário esclarece:

"Cada pedaço desta canção, que se delimita musicalmente em trechos de caráter diferente, se apóia na força ancestral e contundente da tradição oral..." (XANGAI, 1986, Faixa 6)

A relação entre texto e música se estabelece. Trata-se de uma melodia nos moldes descritos por Cascudo, revelando o compromisso entre o recitativo e as estrofes, de acompanhamento instrumental que conjuga acordes e sílabas tônicas. A canção comporta uma harmonia que sugere a influência da música medieval (CÂNTICOS, 1996).

Em História de Vaqueiros (XANGAI, 1986) o tema se aproxima mais do presente: uma espécie de "louvação" aos heróis do sertão:

"...Mas foi tanto dos vaquero que rênô no meu sertão Qui cantano um dia intero num menajo todos não" (XANGAI, 1986, Faixa 9)

É um mote revelador de traços que remetem às canções de gesta (um dos temas de base da cantoria tradicional). Uma narrativa da saga dos vaqueiros, contando o corpo a corpo dos heróis com animais (no caso, o boi) ou outros elementos do imaginário nordestino (nesta canção, o lobisomem). Em se comparando esta canção com a anterior, a primeira, aponta uma aproximação maior das raízes medievais ibéricas, mas, ambas apresentam melodias recitativas. As duas constituem narrativas, bem como grande parte da obra de Elomar. Considere a letra de Patra Véa do Sertão:

"Patra véa do sertão Terra donde eu nasci Teus campo de solidão Me alembra ôtro sertão Qui a sagrada letra canta E muitu longiu daqui Pl’as banda da Terra Santa Nos campo de Abraão No sertão do Rei Davi"

(ELOMAR, 1991, Faixa 3) O trecho corresponde a uma das árias de Elomar. Trata-se de uma mulher que, após aceitar a proposta de fuga de sua prima, lança um lamento, um grito de dor despedindo-se de sua terra.

Primeira observação de como o texto dialoga com o significado da harmonia da canção, ocorre na tonalidade desta. É uma melodia triste com finalizações em intervalos descendentes (PRIOLLI, 1979), cujo tom é menor sugerindo este clima de melancolia vivido pela personagem. Os elementos religiosos presentes no texto remetem a uma das fontes da cantoria sertaneja:

"Menos lido, mas inseparável dos cantadores letrados, todos campeões do ortodoxismo católico. Os recursos de orações, explicações de fácil teologia... catecismo, regras morais, tudo vinha da 'Missão Abreviada'" (CASCUDO, 1984)

Em todo caso, não se desconsidere o histórico familiar de Elomar, ascendente de uma família de cristãos novos (haja vista o sobrenome "Figueira", comum a esses imigrantes). Ainda sobre elementos da religiosidade sertaneja, no verso "a letra sagrada canta", a alusão à Bíblia é clara. Está nela a narrativa do povo hebreu no deserto em busca da terra prometida. Nesta parte da análise, é possível observar que, a influência cultural da capital, não anulou em Elomar as raízes de uma oralidade tipicamente "sertaneza". Seja consciente (como ele afirmou ser) ou não, suas canções revelam muito da vida, do contexto do homem do campo cujo elo com o legado colonizador europeu é mais evidente quando comparado ao "urbanóide" (usando a terminologia do próprio compositor). Tal elo se expressa no diálogo entre temas e música. O jogo harmônico de suas canções, os instrumentos utilizados em suas composições (todos à base da viola e do violão), heranças do contato com o europeu (SOLER, 1978 in RAMALHO, 2000), diferenciam-no da música urbana e o aproximam da produção ibérica medieval.

Considerações finais

Ao nos deparar com uma obra musical ou literária, muitas vezes, surge a pergunta de como o compositor ou autor chegou àquela forma, qual o significado dela, daquele conteúdo. Uma melhor compreensão em torno da questão da oralidade pode elucidar algumas respostas de como a intenção de um intérprete (seja ele músico ou poeta) atua em uma determinada obra. Segundo Ramalho, "os estudos sobre tradição oral e cultura escrita têm revelado aportes importantes para se entender melhor a confluência de modos de pensar com os quais convivemos no momento atual..." Ratifico: os estudos sobre oralidade apontam diretrizes para a compreensão do arcabouço ideológico do homem atual, tanto no seu aspecto conservador, quanto no seu aspecto transformador. E, de um modo intrínseco, compreender melhor a relação palavra/ literatura e música nos dá pistas de como o contexto histórico-social se manifesta nas características de um dado estilo musical, de um dado artista. A obra se revela, então, um microcosmos de seu contexto social que, através dos elementos próprios da arte (formais e discursivos como a denúncia e a descrição, por exemplo), corroboram com uma melhor compreensão da ideologia que transmite. Em se tratando de oralidade, poderia-se pensar que a escolha de Elomar enquanto corpus para a análise não constituísse um bom exemplo, por se tratar de um compositor que deliberadamente escolheu o linguajar de suas canções e seu modo de vida também, posto que teve opções outras que não a música. Mas, não seria também justamente essa escolha pessoal do cantor provocadora da reflexão sobre os motivos que o levaram a regressar ao campo, constituindo assim, um modo de chamar a atenção para o modus vivendi e o modo de pensar do homem proveniente de uma região tão peculiar do país?

Creio que é nesse aspecto que o cantador-violêro-poeta-compositor Elomar Figueira tem seu lugar, sua voz e vez de evidenciar a cultura nordestina. Mostrando que nem só de tradição e de folclore vivem os cantadores, mas, criando e revisitando seu imaginário, penetram em traços da alma brasileira que o homem "urbanóide" costuma sufocar.

Referências

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