Aspectos de tensionamento: entre Nietzsche, Bella Tarr e James Ensor

May 31, 2017 | Autor: Aline Vieira | Categoria: Friedrich Nietzsche, Nietzsche Art and Décadence, James Ensor, Bélla Tarr
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Aspectos de tensionamento: entre Nietzsche, Bélla Tarr e James Ensor. Aline Vieira de Souza Partindo de um caráter específico de Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) enquanto crítico da modernidade, esse ensaio, dedicado ao encerramento do curso Tempo Histórico e Subjetividade, aborda o destaque da filosofia de Nietzsche através do papel que ele se propõe como filósofo em relação a esse período ao qual ele escolhe chamar de “décadence” (decadência). Em consonância com esse estudo trarei de encontro uma leitura do filme O Cavalo de Turim (2011) do diretor húngaro Bélla Tarr e algumas obras de James Ensor, pintor belga que viveu entre 1860 e 1949 e ficou conhecido pelo sua influência no expressionismo e no surrealismo. A modernidade, mesmo com a oscilação feita entre alguns autores como Kant, Descartes, Hegel, etc, fixou ideias que incomodaram profundamente Nietzsche. Dentre elas a busca incessante pela verdade ainda socrática ou a noção de sujeito, com o conceito de “eu”. Conhecer a si mesmo, para Nietzsche, passa a tomar outro sentido. Quando tal sentença se tranforma numa relação com o próprio passado, numa relação com a própria história. Abandona-se a noção de eu, pronome de unidade identitária, pois para ele, é impossível conhecer a si mesmo – há um paradoxo entre o sujeito enquanto conhecimento objetivo e o papel do filósofo. “Eu” é uma representação, uma sedução da linguagem e portanto um personagem que pode ser dirigido cegamente pela moral ou pode tomar as rédias de sua encenação. Nesse percurso traçado históricamente por Nietzsche é possível observar duas linhas em que se desdobra o seu projeto crítico: uma seria cultural e a outra individual. Cultural quando através da Genealogia Da Moral o filósofo elenca na história alguns sentidos morais que foram tomando espaço no tempo, em especial a moral cristã sustentada pela aristocracia sacerdotal, carregada pela dicotomia entre pureza e impureza e repleta de um fundo filosófico platônico. Essa moral cristã opera como uma moral de rebanho, destituindo das ovelhas qualquer autonomia, além de se colocar como única em detrimento de quaisquer outras perspectivas. Nietzsche, então, através da genealogia enfatiza que apesar de a moral cristã se ver como “a” moral é necessário recolocá-la como “uma” moral. Nietzsche observa, também sobre a moral cristã, que a modernidade não rompe com o cristianismo. Ainda que o discurso moderno demonstre uma ruptura com a

aristocracia sacerdotal da Idade Média e eleve a razão como seu ícone máximo, existe uma forte correspondência entre valores da moral cristã e valores modernos. Para ele a modernidade reforça os valores cristãos e os adequa ao paradigma da época, dando a eles a uma sustentação dita racional. A segunda linha crítica inserida no seu plano genealógico é a individual. Ele elenca alguns casos para desenvolver um diagnóstico de seu tempo. Em O Caso Wagner, Nietzsche escolhe retratar o compositor como uma figura moderna ao máximo e para entender o que seria essa época decadente seria importante entender as características de um típico moderno. Em Wagner, Nietzsche vê uma modernidade nua. A décadence, termo escolhido por Nietzsche para tratar do problema moderno, vem de Paul Bourget e para além de designar um movimento de decomposição, é lido também como um imenso alinhamento de alguém ao moldes de uma época que acaba por se tornar a própria imagem desta. A crítica à modernidade é feita pela crítica à música e à vida de Wagner como traço característico dessa decadência: sua rendição ao valores modernos, suas escolhas, seus ídolos, seu drama e seus falseamentos. Contudo, existe também toda uma discussão fisiológica da decadência, via indivíduo, quando se trata do esquema de organização e constituição dos impulsos, por um lado, mas também como cultura. A fisiologia, nesse caso, funciona basicamente como a hierarquia e constituição dos instintos e impulsos. Para tanto, devemos pensar na psicologia que está nascendo como disciplina no final do século XIX e que tal desenvolvimento teórico acerca dos impulsos corporais e a relação destes com o pensamento humano é algo que está sendo tipicamente pensado na época. A escolha de Nietzsche, então, sobre o tipo decadente possui dois principais elementos: 1) a "anarquia dos instintos" atribuído a Sócrates e; 2) o decadente histriônico que Wagner e sua música esteticamente representam na modernidade. Quando Nietzsche critica Sócrates e necessidade de verdade, extendida até os tempos modernos, surge o questionamento em termos de fisiologia sobre o que significa o impulso cego à verdade e qual é o valor desse impulso ao conhecimento. Ou seja, Nietzsche desvia a questão epistemológica de a verdade ser possível ou não para questionar o valor pulsional que dá aos humanos a sede por conhecimento. A questão colocada apresenta a escolha de Sócrates pela verdade como um sintoma, como se a vontade de verdade não passasse de um impulso fisiológico, inclusive no sentido de indicar um impulso de conservação. No caso da décadence, ocorre ainda a nuance da desordem dos impulsos. Toda a

regulação normativa e racionalizante da modernidade tem efeito aparente de ordem, mas também não passa de uma casca moral de fundo impulsivo pela verdade. Toda verdade tem por trás uma moral e toda moral implica uma espécie de impulso que pode ser diagnosticado como decadente ou não. É a relação entre valor e verdade que importa fundamentalmente para Nietzsche, o que pode orientar na observação de quem seria um decadente e quem consegue superar a decadência. O juízo sobre algo/alguém ser ou não decadente passa pela noção de intensificação e afirmação da vida – ser tenso em contraposição ao rebanho. Há em Nietzsche um exercício de desestabilização da moral de rebanho e há ainda um projeto: uma finalidade de pensar que tipo de pessoa ser e essa é também uma maneira de pensar o papel do filósofo. Nietzsche entende que não é possível escapar dos impulsos fisiológicos, portanto, para ele a autoilusão não aparece como um problema, pois existem apenas interpretações de mundo – perspectivas – e nunca verdades num sentido epistemológico. O que Nietzsche faz é mostrar o jogo de perspectivas anteriores a qualquer determinação convicta de um valor e como cada valor implica em um modo de vida. Em contraposição a Wagner, Nietzsche se coloca como outro caso em Ecce Homo. Afirma “desconsiderando o fato de que eu sou um décadent, sou também o seu contrário”1. Com isso Nietzsche indica seu caminho de superação. A saída da modernidade só pode ser encontrada dentro dela própria. É um duplo sentido, propositalmente equívoco contido no niilismo causado pela decadência que torna aquilo que é declinante em algo se que se eleva às “alturas”: “O homem moderno constitui, biologicamente, uma contradição de valores, ele está sentado entre duas cadeiras, ele diz Sim e Não com o mesmo fôlego”2

É inserido na décadence que Nietzsche encherga a possibilidade de contrariá-la. Trata-se de tomar o domínio de si, percorrer suas própria história, criticar a si mesmo e desvelar o jogo da moral dominante. Sem o peso da verdade e a busca por um “eu” verdadeiro, Nietzsche se utiliza de uma autoencenação filosófica para realizar uma crítica a si mesmo, se expõe como um caso e faz isso também com Wagner ou qualquer outro personagem. Não há a intenção de retratar alguém verdadeiramente. No próprio processo performático está contido uma desconstrução de si mesmo para daí então escrever o próprio personagem. Tomar o controle de suas vontades é um movimento de força e 1 NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p. 24. 2 NIETZSCHE, F. O Caso Wagner. p. 45.

virtude, o que acarreta uma grande responsabilidade e comprometimento com aquilo que se faz. É com relação a essa noção de virtude que Nietszche se utiliza de termos como saúde e doença, trazendo sempre uma alegoria fisiológica para o texto. É nesse sentido que o diretor húngaro Bélla Tarr pensou o filme O Cavalo de Turim (2011). O filme leva o nome pela suposta história de que Nietzsche teria visto um camponês espancando um cavalo. Comovido, o filósofo teria abraçado o cavalo começado a chorar intensamente. Após tal ocorrido, Nietzsche teria enloquecido e nunca mais teria se recuperado. Essa história acabou soando mais como uma lenda pois não teria uma veracidade comprovada, ainda mais por ser muito semelhante a uma cena descrita por Dostoiévski, na qual o protagonista do livro Crime e Castigo, em sonho, quando criança, abraça uma égua morta por bêbados. Voltando à leitura de Bélla Tarr, o cineasta escolheu a história do cavalo de Turim para retratar a transição do século XIX para o século XX à maneira nietzschiana. A história se passa pela vida de um pai, uma filha e um cavalo do campo que sobrevivem na miséria do que transportam na carroça. A rotina desses personagens é percebida pela incansável lentidão e repetição de atos dia após dia – quase uma imagem do eterno retorno. Presos a valores e crenças, pai e filha não notam as mudanças externas. O vizinho anuncia que tudo está decandente e podre, os ciganos dizem o mesmo, mas em tom festivo. O forte vento indica o movimento, a vida sombria é a falta de vitalidade a passagem de ciganos indica a ideia de nomadismo. Mas pai e filha limitados a uma perspectiva não conseguer ver o que se passa, até o momento em que o cavalo se paralisa e não se move mais, algo próximo do que Nietzsche enuncia como o fatalismo russo3. O cavalo, um animal, portanto mais distante da racionalidade humana e aprisionamento moral, simboliza uma recusa, assim como o fatalismo russo é uma revolta do soldado contra a situação que lhe é hostil à vida, doente. É no extremo esgotamento que se encontra muitas vezes uma grande virtude. Nietzsche reivindica saúde, um melhoramento da vida em contraposição à doença ou o que estamos chamando de décadence. A maneira como isso se evidencia é pela insatisfação e assim provoca seus leitores com palavras ácidas e até mesmo com ar de deboche. James Ensor faz esse movimento crítico através da pintura. O artista viveu entre 1860 e 1949, portanto teve um período de produção comum ao período de Nietzsche. É possível interpretar nas obras de Ensor alguns aspectos críticos à sociedade da época semelhantes aos trazidos pelo filósofo. Em 1882, Ensor foi um dos fundadores do grupo de artistas chamado Les XX que estavam descontentes com o cenário artístico 3 NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p. 35

belga da época. Les XX foi conhecido por ser um grupo polêmico, formador de tensões e as obras de Ensor demostram isso. Dentro da vasta obra de Ensor, gostaria de destacar dois pontos ilustrativos que se correlacionam com perspectiva crítica de Nietzsche. Ensor também se utiliza de alguns personagens que costumam aparecer em seus quadros para representar a decadência de uma época. O primeiro deles é o personagem esqueleto (anexo 1). Na obra “O esqueleto pintor” (anexo 1), há a imagem de um pintor como caveira que pode ser lida como a morte do “eu”. A caveira, símbolo da mortalidade, não só exibe a condição do artista, mas exibe uma morte de um sujeito verdadeiro. O que não significa a morte do artista, pois ele aparece como produtivo, contém muitos quadros pintados e está pintando um quadro novo. Ao fundo dessa tela é possível identificar outros quadros de Ensor, um deles é a obra chamada “Esqueletos disputando um pedaço defumando de arrenque” (também em anexo 2) o que significa que em um outro momento o esqueleto, que é o próprio Ensor, ilustrou uma cena miserável e decadente. O segundo ponto ilustrativo se dá com a repetida representação de juízes. Sabemos que o séc. XIX foi o século do desenvolvimento do positivismo jurídico, durante o processo histórico de monopolização do poder político pelos aparelhos estatais, burocratização das leis e normatização dos valores modernos. Ensor explicita a decadência do judiciário na obra “Bons Juízes” (anexo 3) onde há vários juízes, alguns aparecem distraídos, bobos, nervosos, descomprometidos com o julgamento. Um deles apresenta uma mosca na testa, outro um caracol na cabeça, entre outros dois uma aranha faz sua teia. Nenhum deles parece que sabe o que está fazendo. É um cenário sujo, em declínio. No canto a balança da justiça esquecida com teias de aranha. No alto e no centro, a parede sustenta um quadro com pés crucificados – uma clara alusão à presença e vigência da moral cristã. O quadro com os pés de cristo aparece também no “Retrato de Gustave Culus ou O Justo Juiz” (anexo 4). Após a menção de algumas críticas à décandence que vão de encontro com a proposição feita por Nietzsche desde o fim do século XIX até o presente, cabe talvez tomar como lição o percurso do caso Nietzsche e questionar o quanto ainda está em jogo esse conjunto de aspectos decadentes. É fato que detectados os sintomas de tamanha doença, na configuração de uma outra época é necessáro um novo diagnóstico que dê conta da complexidade contemporânea, novas reivindicações, novos deslocamentos e assim por diante.

REFERÊNCIAS GERALDO, C. “O Cavalo de Turim”: Armadilha dos tempos. Reportagem retirada do site:http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4260&id_coluna=13 NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM Editores, 2006. ____________. O Caso Wagner. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. PASCHOAL, A. E. Entre a décadence e a rangordnung: anotacoes sobre a critica de Nietzsche a modernidade. Cadernos de Filosofia Alemã. jan.-jun. 2013. pp.11-30. PELBART, P. P. O Avesso do Niilismo: Cartografias do Esgotamento. São Paulo: N-1 Edições, 2013. ANEXOS* *Todas as imagens foram retiradas do site: http://artboom.info/painting/painting-classics-james-ensor.html

Anexo 1: O esqueleto pintor – 1896.

Anexo 2: Esqueletos disputando um pedaço defumado de arrenque – 1891. (arrenque é um tipo de peixe)

Anexo 3: Bons juízes – 1891.

Anexo 4: Retrato de Gustave Culus ou O Justo Juiz – 1892.

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