Aspectos do pensamento de Karl Marx e Max Weber na obra Peças e engrenagens das ciências sociais, de Jon Elster

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Aspectos do pensamento de Karl Marx e Max Weber na obra Peças e engrenagens das ciências sociais, de Jon Elster Alice Fátima Martins 1

Resumo Neste artigo, não apresentadas algumas proposições de Jon Elster, no âmbito das ciências sociais, particularmente no livro Peças e engrenagens das ciências sociais, buscando identificar possíveis influências dos pensamentos marxista e weberiano. A obra desse autor, que integra as concepções contemporâneas do pensamento sociológico, embora seja considerada como alinhada ao neomarxismo, tem referências muito mais explícitas ao pensamento weberiano, sobretudo na recusa às leis gerais para a explicação dos eventos sociais, além de outras possíveis influências de pensadores que não constituíram matéria desta investigação. Abstract This article presents some propositions made by Jon Elster to explain the complex social phenomena, looking for to identify the influences of Marx and Weber thinking. The work of this author, particularly through his book Nuts and bolts for the social sciences, is together to the contemporary conceptions of the social thinking. Although the author is considered new marxist, his work is based on Weber thinking in most of their aspects, mainly on refusing to he general lows to explaining the social events, beyond others influences of authors whose work didn’t made mater of this research.

Se, à primeira vista, Marx e Weber representam linhas de pensamento antagônicos e confrontantes, não são poucos os estudos que têm buscado demonstrar que, afora as diferenças de pensamento entre os dois autores e seus seguidores, há inúmeras correspondências e análises que podem ser consideradas como complementares às suas diferenças. Entre os pesquisadores que têm se debruçado sobre essas possíveis convergências entre as posições dos dois cientistas, Michael Löwy pode ser citado. Em artigo intitulado “Figuras do marxismo weberiano” (1995), aborda as influências do pensamento weberiano na formulação teórica de vários cientistas sociais de formação marxista, ao longo do século XX, dentre os quais, Luckács, Horkheimer, Adorno, Marcuse, Merleau-Ponty, além de fazer referência ao que denominou “toda uma geração de sociólogos críticos” de inspiração tanto weberiana quanto marxista, em especial nos Estados Unidos. Entre esses, Jon Elster. Sublinhe-se que os autores apresentados por Löwy, em seu estudo, têm um perfil de pensamento marcadamente marxista, em que se ressalta, dentre outros traços, a expectativa quanto à intervenção do cientista no contexto da realidade social. Tal traço define uma 1

Doutora em Sociologia (UnB), Mestre em Educação (UnB), Arte-Educadora. Professora no Programa de PósGraduação em Arte e Cultura Visual, da Faculdade de Artes Visuais/FAV da UFG.

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corrente no ambiente das ciências sociais que não é partilhada por todos. Max Weber (1977), por exemplo, não faz concessões quanto à necessidade de distanciamento objetivo do cientista em relação à realidade observada e explicada, manifestando-se contrário ao uso instrumental do conhecimento. Esse parece ser um ponto irreconciliável entre marxistas e weberianos. Mas o eixo deste trabalho não é formado pelas divergências, e, sim, pelos possíveis vértices comuns entre essas duas linhas de pensamento, especificamente aqueles que puderam ser observados na leitura do trabalho de Jon Elster, particularmente do livro Peças e engrenagens das ciências sociais (1994), em que propõe explicitar os mecanismos que causam os fenômenos sociais. Para tanto, o autor toma, como pontos de partida, a premissa do individualismo metodológico, de acordo com o qual os fenômenos sociais são explicáveis a partir dos indivíduos, de modo que a ação individual é entendida enquanto unidade elementar da vida social; e o pressuposto de que as ciências sociais devam oferecer explicações intencionais-causais, ou seja, a explicação intencional das ações individuais juntamente com a explicação causal das interações entre os indivíduos. A leitura dessa obra, que dá continuidade às idéias anteriormente apresentadas em Ulisses e as sereias (1989), permite indagar sobre, em que medida, o autor inspira-se tanto em Weber, quanto em Marx, sistematizando métodos de observação e tentativas de explicação da realidade social, no contexto da teoria da escolha racional. Isto posto, a intenção, neste trabalho, é apresentar algumas formulações de Jon Elster em Peças e engrenagens das ciências sociais, buscando identificar possíveis influências, dentre quantas, dos pensamentos marxista e weberiano, seja pela reelaboração conceitual, seja pelo contraponto.

As questões do “mirante” Löwy (1994) lança mão da metáfora do cientista social como pintor de uma possível paisagem. Observa que o resultado da pintura depende de vários fatores, dentre os quais, o primeiro é o observatório de onde o artista vê o assunto a ser pintado. Se o mirante é elevado, mais ampliado será o horizonte percebido, bem como a paisagem nele contida. Prosseguindo, acrescenta que toda visão da possível paisagem é situada a partir de um observatório determinado, de modo que os limites estruturais do horizonte dependem da altura e da posição em que o se observador encontra ao momento em que observa. Lembra, ainda, que “o mirante não oferece senão a possibilidade objetiva de uma visão determinada da paisagem” (p. 213). Acrescente-se o fato de que o resultado da pintura não depende apenas do observatório, mas também do próprio pintor, de sua forma de olhar e do domínio de sua arte. Segundo Löwy, no

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caso do cientista social, esse olhar é condicionado, entre outros fatores, pelas pertinências sociais de classe e também não-classistas, tais como gênero, religião, história pessoal, etc. Esses fatores podem estimular ou desviar as visões do cientista social/pintor em relação a certos aspectos da paisagem que se apresenta a seus olhos, ou que seja assunto de seu potencial interesse. Vale lembrar que Löwy também não está infenso às delimitações do seu próprio mirante de observação, bem como das suas condicionantes pessoais. Sua formulação teórica, de base marxista, é construída na direção da defesa de que “o observatório mais alto [e portanto mais privilegiado quanto ao campo de visão] é o ponto de vista do proletariado” (1994, p. 212). A sua metáfora ilustra de modo bastante elucidativo as condicionantes histórico-sociais do pensamento no campo das ciências sociais. A adoção dessa metáfora, para situar os pensamentos de Marx, Weber e Elster, do mesmo modo, supõe uma escolha metodológica para o foco trazido a este trabalho: a de que todo pensamento social é condicionado ao tempo e no espaço de sua produção. Ou seja, admite a dimensão histórico-social na formulação do pensamento. Assim, o intento está no sentido de localizar o pensamento de Elster em seu contexto de construção, identificando possíveis influências desses dois clássicos do pensamento sociológico, Marx e Weber, e, do mesmo modo, seus possíveis mirantes de observação. Marx constrói sua obra num momento histórico em que a dominação colonialista européia e, no caso específico, a alemã, significou o massacre de vários povos nas atividades de instalação de produção pré-industriais e campesinas, em África, Pacífico Sul e México, por exemplo. Em toda sua obra há referência a essa realidade, a exemplo do Manifesto comunista (1999). Desde o seu mirante de observação, é com esse cenário que Marx se indigna profundamente, a ponto de envidar toda a sua vitalidade intelectual a serviço da proposição de uma sociedade mais justa, na qual estivesse assegurada aos indivíduos a sua auto-realização, sem que isso significasse a degeneração do sentido de coletividade ou de comunidade. Muito embora as questões religiosas tenham sido colocadas à parte de todo o contexto de sua produção, o seu projeto de sociedade reivindica um sentido de igualdade, de justiça, de autorealização que pode apontar para uma visão de “paraíso” inevitável do percurso da humanidade, segundo sua perspectiva determinista de história. Não é por outra razão que a obra de Marx e sua construção metodológica está eivada de valores, orientada, segundo Elster, em muitos aspectos, pelo wishful thinking, ou seja, uma tendência para acreditar que as coisas devam acontecer de acordo com os desejos do indivíduo.

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Elster (1989a), reconhece que, a seu tempo, não apenas Marx não dispunha de recursos que lhe possibilitassem a revisão de possíveis equívocos metodológicos, bem como o cenário social que se lhe apresentava ou que lhe foi possível de observar desde seu ponto de observação, mirante, acrescidos da forma como ele os via, forneceram parâmetros definidores, em grande parte, da sua visão social de mundo. Do mesmo modo, no que tange ao mirante desde o qual Weber formula sua construção teórica, é possível pontuar dois aspectos significativos. O primeiro, refere-se ao desencantamento do mundo, ou desmagificação, marco referencial no pensamento do autor, traço característico do que marca o século XX desde o seu início, não apenas nas ciências sociais, como também nas artes, na literatura e em outros campos da produção humana. O homem viu-se às voltas com conflitos que o levaram, entre outros fatos, às duas Guerras Mundiais, diante das quais, a realidade da existência humana revelou sua face mais dura, destituída, em certa medida, de fé, de um sentido objetivo que justificasse o relacionamento dos homens com o mundo 2. Löwith (1997) comenta que esse desencantamento, motivador da pergunta pelo sentido da relação do próprio homem com o mundo, representa uma profunda desilusão. Em Weber, essa desilusão pode ser traduzida na necessidade de “imparcialidade” científica, no rigor objetivo da produção de pensamento científico. O segundo aspecto referese à sua formação religiosa original, protestante, que lhe forneceu as bases para a formulação ética e histórica a respeito do homem moderno. A obra de Elster é destituída da utopia e do determinismo que podem ser atribuídos ao projeto de sociedade em Marx. A mais, seu indivíduo racional não chega a padecer do desencantamento do mundo, tal qual Weber, mas está às voltas com as incertezas quanto ao resultado objetivo de suas ações individuais em interação com as ações dos outros indivíduos, no sentido de alcançar resultados que atendam aos seus desejos, se não da melhor forma, ao menos de modo satisfatório. Inquieta-se, o autor, ante a constatação empírica de que esse indivíduo nem sempre age racionalmente, ou mesmo faz escolhas que o levem aos melhores resultados. E, muitas vezes, não orienta suas escolhas a partir de fatores intra-subjetivos, mas submete-se a fatores externos, a exemplo das normas sociais.

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Nas artes visuais, por exemplo, o espírito de desilusão engendrado pela Primeira Guerra Mundial foi traduzido, entre outros, pelo movimento denominado dadaísmo, levado a cabo por artistas e escritores europeus e norteamericanos referencialmente, no qual prevaleceu intensa revolta contra a civilização que produziu essa guerra. No dadaísmo, não só o valor da arte é questionado, mas também a situação humana como um todo. A esse respeito, conferir: HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2000; JANSON, H. W. Iniciação à história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996; FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1991.

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As reflexões de Elster são formuladas desde um ponto de observação localizado no final do século XX, numa sociedade de consumo, em que prevalece o individualismo. Ao que indica em seu texto, o autor não está preocupado em visões mais amplas e gerais da paisagem, mas justamente nos detalhes desta. Ao invés do geral, ocupa-se em buscar explicações sobre como interagem as microestruturas, resultando na constituição de uma paisagem mais ampla, qual um artista que trabalha com bico de pena, produzindo, pelo micro-ponto, a miríade que, supõe-se, poderá revelar a forma de todo o conjunto. Em Elster, as formulações a respeito das microestruturas e suas interações não chegam a possibilitar a compreensão da paisagem mais ampla em vários aspectos. Muitas das questões propostas permanecem em aberto, sem explicação que possa ser considerada satisfatória. Dentre essas pode ser citada a orientação da ação individual pelas normas sociais. Nesses termos, possamos afirmar que a paisagem/sociedade objeto de observação e análise para a formulação de sua teoria é, de modo mais específico, a sociedade norteamericana, cujo arcabouço teórico é inspirado na apresentação radiográfica feita por Tocqueville, no século XIX. Àquele tempo, o autor traçou seu perfil de sociedade que, em sua instalação democrática, caracteriza-se, essencialmente, pelo individualismo. Segundo Tocqueville, enquanto “a aristocracia fizera de todos os cidadãos uma longa cadeia que subia do camponês ao rei; a democracia desfaz a cadeia e põe cada elo à parte” (1987, p. 387). Se o individualismo pode levar os homens ao isolamento, numa presunçosa autoconfiança, reforçada por possíveis ódios oriundos da desigualdade das sociedades aristocráticas, “a grande vantagem dos americanos é terem chegado à democracia sem ter de suportar revoluções democráticas e terem nascido iguais em vez de iguais se tornarem” (Idem, p. 388), afirma. O povo norteamericano, a seu ver, prezaria mais a igualdade, do que a liberdade. A idéia de igualdade pode ser associada à idéia de “justiça básica” apontada por Elster ao final do seu livro Peças e engrenagens nas ciências sociais. Prosseguindo na paisagem pintada por Tocqueville, deve ser acrescentada a figura das instituições livres, por meio das quais o povo americano combate os aspectos perversos do individualismo, por recordarem “a cada cidadão que ele vive em sociedade” (Idem, p. 391), posto que a partir do momento em que se tratam em comum os assuntos comuns, cada homem percebe que não é tão independente dos seus semelhantes quanto imaginava a princípio e, para obter o seu apoio, muitas vezes é necessário emprestar-lhes o seu concurso (Idem: 389).

Se a sociedade norte-americana é a paisagem observada empiricamente por Elster, as bases para a sua discussão em torno das instituições sociais, cooperação, negociação, tendo como base a ação individual, apontam para essa análise, por Tocqueville.

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Marx em Jon Elster A obra de Karl Marx constitui objeto de análise crítica de Jon Elster já ao início de sua carreira intelectual, tendo no individualismo metodológico e na teoria da escolha racional as linhas mestras da montagem de suas formulações, para o que, em muitos pontos, busca inspiração no pensamento de Max Weber. Monteiro (1992) faz uma análise de vertentes teóricas que considerou desdobramentos do marxismo no pensamento social ocidental contemporâneo, tomando enquanto foco específico o indivíduo e a subjetividade. A obra de Jon Elster, apontada como representante do chamado “marxismo analítico”, é estudada pelo viés da reflexão racional, no contexto da escolha racional enquanto base para a compreensão dos microfundamentos da sociedade. Ao tomar esse percurso de análise, Monteiro participa de uma tendência contemporânea, nas ciências sociais, de reinterpretação de alguns aspectos da teoria marxista, tendo como panorama o neoliberalismo econômico. Em sua tese de doutoramento, Elster elabora análise crítica à obra de Marx. Esse trabalho, mais tarde e já reformulado, foi publicado com o título “Marx hoje” (Elster, 1989a). Nele, o autor discute vários conceitos do pensamento marxista, o que resulta no levantamento do que ele aponta sejam lacunas, equívocos conceituais e metodológicos, bem como princípios que julga terem permanecido plenos de coerência ainda na contemporaneidade. Apresenta, assim, aqueles conceitos que julga estarem “mortos” e “vivos”. Podemos depreender que essa obra apresenta, em certa medida, peças do marxismo, nas quais Elster busca alguns pontos de apoio para a contextualização de seu pensamento. Do ponto de vista da metodologia marxista, Elster (1989a) rejeita enfaticamente três aspectos: o primeiro é o holismo metodológico, visão segundo a qual existem na vida social totalidades ou coletividades, proposições sobre as quais não podem ser reduzidas a proposições sobre seus membros individuais. O segundo é a explicação funcional, tentativa de explicar fenômenos sociais em termos de suas conseqüências benéficas para alguém ou alguma coisa, mesmo que não se demonstre a intenção de produzir tais conseqüências. O terceiro é a dedução dialética, modo de pensar derivado da Lógica de Hegel (...) (p. 3536)

Trabalhando na concepção do individualismo metodológico, Elster afirma que essa “é a posição segundo a qual todas as instituições, padrões de comportamento e processos sociais só podem ser em princípio explicados em termos de indivíduos: suas ações, propriedades e relações” (1989a, p. 36), numa busca dos “microfundamentos”. Para ele, existem, em Marx

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duas instâncias principais de holismo metodológico: a noção de “capital”, enquanto entidade coletiva, com lógica própria; e a idéia de “humanidade” que, na perspectiva do materialismo histórico, aparece enquanto sujeito coletivo, “cujo florescimento no comunismo constitui o fim da história” (Idem, p. 38). Os conceitos de “classe” e de “luta de classes” podem ser acrescidos a essas duas instâncias, por supor uma estrutura diferenciada do conceito de grupo de indivíduos. Ao mesmo tempo em que lista o holismo metodológico enquanto um dos pontos frágeis da teoria marxista, Elster busca demonstrar que Marx era um individualista num sentido normativo. A idéia de individualismo normativo pode ser ilustrada pela seguinte situação: a reivindicação de igualdade entre os sexos não é um valor em si mesma, mas se justifica na medida em que leve à maior igualdade entre indivíduos. Do mesmo modo, o desenvolvimento tecnológico, as grandes produções culturais, e outras realizações na arte e na ciência podem ser atribuídas ao homem enquanto entidade geral, mas não necessariamente estão disponíveis a todos os homens enquanto indivíduos. Para Marx, apenas pela exploração de muitos é que as sociedades de classe podem criar as condições para que poucos venham a contribuir para o progresso da civilização. Assim, o seu projeto consiste na auto-realização individual de cada homem, enquanto indivíduo, e não apenas de uma pequena elite ou classe. Essa autorealização levaria, por conseqüência, a um “florescimento sem precedentes da humanidade” (Idem, p. 39). Elster insiste no fato de que essa compreensão não é, em si mesma, uma fonte de valor, mas tem um sentido normativo. Para Elster, a observação a respeito do individualismo no pensamento marxista firma-se nessa interpretação. A expressão “dialética” em Marx é criticada por Elster, na sua concepção histórica de três momentos: o estágio primitivo da sociedade, em que prevalece o sentido coletivo de produção de vida, o segundo em que ocorre o desenvolvimento extremo da individualidade, com uma desintegração da comunidade, e o terceiro em que a comunidade é restaurada sem, no entanto, se perder o sentido de individualidade, em que a auto-ralização é ponto central. A crítica apóia-se em dois pontos considerados frágeis: o holismo metodológico e a explicação funcional. Em contrapartida, o autor ressalta a importância do método dialético enquanto busca de compreensão das “contradições sociais [que] correspondem tanto a um certo tipo de falácia lógica(...) quanto aos mecanismos perversos através dos quais o comportamento individualmente racional gera resultados coletivamente desastrosos” (Idem, p. 214) O sentido de evolução ou desenvolvimento histórico elaborado por Elster difere tanto de Marx, quanto de Weber. Para o autor, numa compreensão não funcionalista da realidade social, as mudanças ocorrem não necessariamente num sentido evolutivo, mas em função do

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equacionamento das escolhas dos indivíduos no momento de desequilíbrio, das suas crenças e dos riscos que eles estão dispostos, ou não, a correr. Segundo suas palavras, “a mudança social é progressiva se os resultados são melhores do que o que foi antecipado, regressiva se piores” (1994, p. 188). A idéia de “melhores” e “piores” não está ligada à idéia de evolução ou desenvolvimento, mas a conquistas frágeis e sempre instáveis de maior ou menor racionalidade. O princípio da escolha racional, em Elster, está ligado à idéia de igualdade de oportunidades. O que é um aspecto de divergência entre o seu pensamento e o de Marx, para quem a igualdade de oportunidades não é algo pressuposto, espontâneo ou natural: tem que ser construída por meio da consciência, pela superação do estado de alienação. Do mesmo modo, o conceito de classe e de luta de classes nas obras de Marx e em Elster merece uma reflexão. A crítica de Elster à idéia marxista de classe obedece a lógica do individualismo metodológico, por meio da qual ele tenta demonstrar a classe enquanto combinação de indivíduos que articulam seus auto-interesses numa espécie de “bloco” com maior poder de pressão e negociação. Marx estava interessado em explicar a origem histórica das classes sociais, em especial no capitalismo. O modelo de Elster não leva em consideração a dimensão histórica, mas o conjunto de indivíduos buscando administrar auto-interesses conflitantes. Neste ponto, vale lembrar a relação existente entre o modelo teórico de Elster e a análise de Tocqueville (1987) sobre a visão individualista do povo americano e, ao mesmo tempo, a sua organização em instituições livres, com vistas a assegurar a realização de seus interesses pessoais.

Weber em Jon Elster Max Weber pode ser considerado um pensador social que rompe com as idéias do século XIX, definindo o objeto da sociologia enquanto a ciência que estuda a ação social, radicando tal ação no indivíduo. A mais, apresenta as ciências sociais enquanto projeto não concluso, para a qual não há uma verdade a respeito da realidade social, que possa ser formulada nos moldes de leis gerais, mas há verdades que decorrem dos modos de aproximação da realidade e dos aspectos dessa mesma realidade escolhidos para serem conhecidos. São vários os pontos do pensamento de Jon Elster que parecem apoiar-se no pensamento weberiano, a começar pela recusa às leis gerais para explicar os eventos sociais. O autor propõe que as ciências sociais enfrentem a complexidade das questões que lhe são próprias por meio da explicitação de seus mecanismos. Na metáfora da máquina social de que

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lança mão, as peças representam os mecanismos da ação individual, e as engrenagens constituem os mecanismos da interação social propriamente dita. O seu trabalho está organizando a partir de duas premissas básicas, de inspiração weberiana: o individualismo metodológico – de acordo com a qual os fenômenos sociais são explicáveis a partir dos indivíduos, de modo que a ação individual é entendida enquanto unidade elementar da vida social – e do pressuposto de que as ciências sociais devam oferecer explicações intencionais-causais – a explicação intencional das ações individuais juntamente com a explicação causal da interação entre os indivíduos. Em Elster, a idéia de indivíduo racional, ou de racionalidade perfeita, apresentada em Ulisses e as sereias, pode ser analisada como tipo ideal que, de acordo com a concepção weberiana, trata-se de um recurso metodológico para ensejar a orientação do cientista no interior da inesgotável variedade de fenômenos observáveis na vida social. Consiste em enfatizar determinados traços da realidade até concebê-los na sua expressão mais pura e conseqüente, que jamais se apresenta assim nas situações efetivamente observáveis. Por isso mesmo esses tipos necessitam ser construídos no pensamento do pesquisador, existem no plano das idéias sobre os fenômenos e não nos próprios fenômenos (Cohn, 1982, p. 8).

É desde a formulação da idéia de racionalidade perfeita (Elster, 1989b) que o autor estabelece os parâmetros de discussão a respeito das situações em que “a racionalidade falha”, ou dos fatores que interferem na escolha racional, tais como as emoções, a indeterminação, o wishful thinking, entre outros. Weber trata da inviabilidade de se conhecer a realidade em toda a sua infinitude de possibilidades. Daí a idéia de que a verdade é sempre incompleta, posto que está relacionada à parcela, ou parcelas, escolhidas pelo cientista para investigação. Por essa razão a rejeição às leis gerais, que buscam descrever as regularidades da realidade, como se esta pudesse ser explicada em sua globalidade. Elster, seguindo esse princípio, sistematiza a observação e apresenta as explicações do fenômeno social fazendo uso da metáfora das peças e engrenagens. No entanto, faltam peças, de modo que o próprio autor aponta as quantas limitações e dificuldades para a elucidação de vários fatos observáveis. Entre eles, pode ser citada a dificuldade de explicar, de modo satisfatório, a orientação da ação individual, por exemplo, pelas normas sociais (Elster, 1990). Por que, indaga-se, muitas vezes, as pessoas escolhem orientar suas ações na direção de se auto-prejudicarem? No entanto, o percurso de Elster para enfrentar essa “incompletude” do conhecimento sobre a verdade, e a complexidade da realidade social, parece diferir da atitude de Weber, em

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especial no que se refere à delimitação do objeto de estudo das ciências sociais e suas especificidades. Ainda que Elster procure delinear a especificidade das ciências sociais no contexto amplo da produção de pensamento científico, ante as limitações percebidas para explicar aspectos dos fatos sociais observados, e a complexidade de tais fatos, constrói um pensamento que não necessariamente se preocupa com a congruência lógica do conjunto teórico enquanto ciência social propriamente dita, desde que haja eficácia na explicação. Assim, busca conceitos e procedimentos de outras áreas do conhecimento, em especial na psicologia, vez que ela está voltada para explicar o comportamento individual humano, o mesmo comportamento individual que interessa a Elster para explicar as ações no contexto social, por considerar que a unidade elementar da vida social é a ação humana individual. Por outro lado, a racionalidade, conforme pensada por Weber, está presente na obra de Elster, traduzida na sua forma instrumental, ou seja, guiada pelo resultado da ação, enquanto processo no qual as pessoas decidem fazer o que acreditam que as levará a obter o melhor resultado global ou melhor recompensa minimizando seus custos. O homem racional elsteriano, diferentemente do homem weberiano, faz suas escolhas no tempo presente, no espaço físico e social em que se encontra, orientado para resultados definidos, buscando minimizar seus custos. O que requer que este indivíduo privilegie as informações do tempo presente para suas escolhas atuais. O passado é conhecido mas já não se pode interferir nele. Pode-se, sim, exercer influência sobre futuro, que, no entanto, é desconhecido: aí reside a incerteza quanto às escolhas que os indivíduos fazem no decorrer de suas ações, e o risco de se incorrer em erro ao se atribuir excessivo valor aos eventos passados. Nesse sentido, esse homem pode ser considerado não-histórico. Ou seja, Elster apresenta seu indivíduo racional agindo num contexto de interação que não leva em consideração a história – dimensão presente em Weber, bem como em Marx.

À guisa de conclusão O individualismo é uma categoria central na obra de Jon Elster, estando presente também no pensamento de Max Weber, bem como, num sentido normativo, no de Karl Marx. No entanto, ao que a leitura indica, Elster busca esse conceito na obra de Max Weber, desde a qual realiza sua análise crítica da obra de Marx. Ao mesmo tempo, fica evidenciado que a análise da sociedade a partir do indivíduo e suas interações que podem ser percebidas em suas linhas de pensamento, incluídas as idéias de igualdade e de liberdade, parece ter em Tocqueville o seu precursor, desde a radiografia que faz da sociedade americana, ao seu tempo, analisando a

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passagem da sociedade aristocrática, em que o sentido de coletivo se sobrepõe ao indivíduo, à sociedade democrática, em que cada indivíduo “se basta”. Na visão de Tocqueville, o individualismo é perverso, podendo redundar no despotismo. Segundo o autor, a saída encontrada pelo povo americano é a organização das “instituições livres”. O indivíduo aprende que pode buscar soluções para problemas e necessidades suas, muitas vezes comuns a outros indivíduos, por meio da negociação, da cooperação em associações que congreguem indivíduos, poucos ou muitos, mas com interesses comuns. Com base nessa linha de pensamento, talvez se possa discutir a questão proposta por Jon Elster para as ciências sociais, tendo como ponto de referência o homem de Hobbes: porque não estamos no estado de natureza? A mais, se é verdade que Elster busca apoiar sua teoria do indivíduo em alguns princípios da teoria de Marx, embora seja considerado representante do neomarxismo, ou do marxismo analítico, seu pensamento parece estar muito mais apoiado na teoria weberiana, além de outras possíveis influências de pensadores que não constituíram matéria deste trabalho, a exemplo de Durkheim, Merton, Talcot Parsons. Essas influências merecem, por certo, análise posterior, compatível com o seu peso e importância para a melhor compreensão da obra desse autor.

Bibliografia referencial COHN, Gabriel (org.). Max Weber: sociologia. São Paulo: Ática. 1982 ELSTER, Jon. Marx, hoje. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989 (a). . Ulisses y las sirenas. México: Fondo de Cultura Económica, 1989 (b). . “Racionalidade e normas sociais”, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 5, nº 12, novembro/1990. Pp. 55-69. . Peças e engrenagens das ciências sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. KOCKA, Jürgen. “Objeto, conceito e interesse”. in GERTZ René E. (org.). Max Weber e Karl Marx. São Paulo: Hucitec. 1997. LÖWITH, Karl. “Max Weber e Karl Marx”. in GERTZ René E. (org.). Max Weber e Karl Marx. São Paulo: Hucitec. 1997. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994. . “Figuras do marxismo weberiano” CNRS/Paris. In Weber et Marx. Actuel Marx n. 11; Paris: PUF, 1995. p. 83 – 94.

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Outras referências www.geocities.com/hmelberg/elster/elster.htm http://home.sol.no/~hmelberg/els1b.htm.

Citação deste trabalho: MARTINS, Alice Fátima. Aspectos do pensamento de Karl Marx e Max Weber na obra Peças e Engrenagens das Ciências Sociais, de Jon Elster. Pós (Brasília), v. IX, p. 15-28, 2005.

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