ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIAIS DA FORMAÇÃO DO ROMANCE EM PAÍSES DA PERIFERIA DO CAPITALISMO

May 31, 2017 | Autor: R. Bittencourt | Categoria: Literatura, História, Romance, Ideologia, Dependencia
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8/4/2016

Bittencourt

LL JOURNAL, VOL. 5, NÚM. 2 (2010)

ASPECTOS HISTÓRICOS E SOCIAIS DA FORMAÇÃO DO ROMANCE EM PAÍSES DA PERIFERIA DO CAPITALISMO

     

  Rodrigo do Prado Bittencourt Universidade Estadual de Campinas 

Investigar a ascensão do romance passa necessariamente por debater quais os critérios para julgar a qualidade de uma obra literária. Isso porque em seu surgimento, o gênero romanesco como um todo foi atacado como de baixa qualidade literária e, mesmo  depois  de  se  firmar  e  dominar  o  mercado  literário,  penetrar  na Academia  e  conquistar  intelectuais,  parte  das  obras romanescas ainda recebe os mesmo rótulos que recebiam as que inauguraram o gênero. O romance surge por meio do folhetim na França do século XIX. Embora suas origens primevas possam nos remeter ao século XVIII, na Inglaterra, Alemanha (Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, é de 1774) e na própria França, é no XIX que ele vai realmente ganhar contornos definidos. Ele aparece como expressão do ideário burguês, buscando se aproveitar da ampla vendagem,  agora  possibilitada  pelo  desenvolvimento  tipográfico  e  do  maior  número  de  alfabetizados,  e  valorizando  o individualismo, a originalidade e o sentimentalismo. O romance, em sua origem, se liga ao Romantismo. Aos poucos esse gênero foi se difundido por outros países, alcançando Brasil e Portugal por volta de 1840. Em Portugal, ele se firmará em 1850 e, no Brasil, em 1860. Essa importação, entretanto, não se dará na forma de uma simples cópia. O romance se ligava a um universo de valores ateus ou protestantes e Portugal e Brasil eram fortemente católicos, na época. Os enredos e a linguagem serão, assim, adaptados e as traduções nem sempre serão fiéis ao livro original, retirando ou acrescentando coisas conforme o gosto do público local. Isso não apenas por uma questão de valores, mas também de vendas. A adaptação não se dá apenas na forma romanesca, mas na ideologia das obras. Mesmo com a presença de semelhanças, há que se pensar que havia muitas diferenças entre as realidades sociais de Portugal ou Brasil e as da França, centro da produção romanesca da época e país hegemônico culturalmente, em relação aos outros dois. Assim, basta ver que um romance que se passa  numa  cidade  grande  e  desenvolvida,  com  inúmeras  formas  diferentes  de  trabalho  e  amplo  operariado  era  possível  na França ou na Inglaterra, mas não no Brasil. Bem como a presença de escravos nos romances brasileiros não se justificaria num romance francês. A França, devido a seu poder econômico (abundância de tipografias e capitais), social (público alfabetizado e grande número de produtores culturais especializados, no caso, escritores) e político­cultural (língua francesa tida como língua culta e usada nas relações  diplomáticas  e  comerciais;  valorização  da  arte,  da  ciência  e  da  filosofia  francesas  sobre  as  dos  países  periféricos  ), constituía um empecilho para a produção de outros países. Como com qualquer outra mercadoria outrora importada, o produtor nacional deve provar que a sua é superior, mais barata ou mais adequada às necessidades do consumidor que a estrangeira. Assim, os romancistas portugueses tiveram que concorrer com os romances franceses trazidos para dentro de Portugal e os brasileiros  tinham  de  concorrer  com  os  franceses  e  portugueses.  Os  romances  franceses  poderiam  representar  uma  forte concorrência, seja traduzidos, seja em seu próprio idioma, sendo que o francês era falado por grande parte da intelectualidade ocidental  da  época,  não  importando  de  que  país  ela  fosse.  Estabelecer­se  como  produtor  cultural  de  um  país  periférico,  por isso, era muito difícil e foram poucos os que conseguiram viver apenas de sua arte. É  preciso  salientar  a  influência  de  tais  aspectos  sociais  para  o  desenvolvimento  da  Literatura,  pois  ela  não  se  afasta  das realidades humanas, mas delas vive. Moretti (13) ressalta isso, ao apresentar sua reflexão sobre a Crítica Literária. Para ele, ela não  pode  continuar  sendo  uma  história  do  extraordinário  e  incomum,  mas  deve  se  focar  sobre  o  recorrente,  sobre  o  que  é sistêmico e regular. O romance não se constitui como gênero aceito e difundido apenas por causa dos considerados "grandes escritores romanescos", mas também por causa daqueles escritores classificados como "medíocres", desconhecidos da História e do grande público e dos que conquistaram o grande público, mas são considerados "escritores comerciais", "sem qualidade". Tudo isso para não falar no papel do público, dos editores, das escolas e da universidade para a consolidação do gênero. Afinal, ninguém publica algo com a intenção de que aquilo não seja lido. As escolhas do público, por sua vez, influenciam e são influenciadas  pela  valorização  feita  pela  universidade  ou  pela  escola.  Para  Moretti  (156),  ao  contrário  do  que  geralmente  se pensa,  escolas  e  universidades  apenas  consolidaram  e  ratificaram  o  que  já  era  sucesso  entre  o  público  leitor:  "...o  equívoco nasce da ideia errada de que o canône novelístico é uma criação da escola (e da universidade). Isso é falso; levou gerações para  a  escola  'aceitar'  o  romance  e,  mesmo  então,  a  escola  simplesmente  adotou  aqueles  textos  que  já  haviam  sido selecionados pelo mercado (com algumas exceções)." Assim,  uma  História  da  Literatura  não  pode  se  afastar  ou  prescindir  de  conhecimentos  da  História  das  Tipografias  ou  da Alfabetização, pois uma obra literária precisa de meios técnicos para ser composta e de um público para ser lida e não cair no esquecimento. Moretti (13) afirma que a ascensão do romance tem relação, essencialmente, com duas coisas: http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/rt/printerFriendly/653/803

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1) Os aspectos históricos­sociais do grupo que o consome, notadamente a ascensão da burguesia e dos valores individualistas; 2) Uma oferta considerável de obras do gênero, modificando o modo como se lê (de uma leitura repetitiva, e por vezes coletiva, de uma mesma obra à leitura uma única vez de vários livros). A  História  do  Romance  intercruza,  assim,  a  História  da  Burguesia,  da  produção  e  do  consumo  de  arte  voltados  para  ela. Algumas  características  internas  do  gênero  evidenciam  essa  ligação.  Uma  delas  é  a  presença  da  ação  do  tempo  sobre  as personagens,  típica  do  romance.  Em  uma  obra  não  romanesca  como  A  Demanda  do  Santo  Graal  (Megale,  2008),  Galaaz continua o mesmo, não importa quanto tempo passe. Já o romance incorpora a transitoriedade e há transformações de ordem moral  e  na  personalidade  das  personagens. Assim,  a  Laura  de  O  filho  do  pescador  irá  se  transformar,  ao  descobrir  que  seu marido estava vivo e que o caçador amado era seu filho; de perversa assassina e traidora, se tornará uma mulher virtuosa e entrará para um convento. A mudança se coaduna com os ideias burgueses de transformação da sociedade ainda semi­aristocrata e semi­mercantilista, com resquícios do Antigo Regime, numa sociedade plenamente capitalista e liberal. A mudança é um valor a ser pregado pela burguesia  para  vencer  os  ideias  aristocráticos  de  valorização  da  origem  e  permanência  e  defender  a  mobilidade  social,  não apenas  para  assegurar  a  justificação  ideológica  e  o  reconhecimento  social  e  político  de  seu  poder  econômico,  como  para transmitir ao proletário a ilusão de que ele também tem acesso à mobilidade e que pode ascender socialmente. Com a sua ascensão, a burguesia vai conseguir, com o tempo e muita luta (por que não dizer?) política, a introdução de livros romanescos  no  Cânone  "Ocidental."  Há  que  se  lembrar  que  a  formação  deste  é  extremamente  política:  livros formadores/consolidadores de idiomas nacionais com muitos falantes no Ocidente (Divina Comédia, Lusíadas, Dom Quixote...), defensores  do  ideário  burguês  (Os  sofrimentos  do  jovem  Werther,  Madame  Bovary...)  e  de  países  hegemônicos  cultural  e politicamente (França, Inglaterra) sempre terão algum lugar no cânone. A entrada do romance nesse cânone representa uma vitória burguesa e é sintoma de uma sociedade diferente da do Antigo Regime, mais próxima de um capitalismo desenvolvido. Os  editores  de  romance,  em  seus  primórdios,  usavam  a  estratégia  de  produzir  obras  baratas  em  grande  quantidade  para lucrarem mais. Elas, porém, nem sempre chegavam às casas dos leitores. Isso porque mais comum que comprar um romance era aluga­lo de uma biblioteca circulante paga ou mesmo alugar um gabinete de leitura dentro dessa biblioteca, onde se leria em paz os livros por ela oferecidos. Analisando os registros dessas bibliotecas comerciais, Moretti (2003) percebe uma grande homogeneidade de leituras, mesmo variando de região para região. As particularidades locais se apagam e todos os lugares leem a mesma coisa. Enquanto isso, as publicações se centralizam cada vez mais nas capitais. Esse processo acompanha os de outras mercadorias dentro  do  capitalismo  em  desenvolvimento  no  século  XIX.  Ele  concentra  a  produção  cada  vez  mais  em  torno  de  grandes indústrias  e  difunde  sua  produção  para  mercados  cada  vez  mais  amplos,  "engolindo"  os  pequenos  concorrentes  locais  e proletarizando­os, tornando a sociedade cada vez mais desigual e centralizada. Ao menos é o que afirma Marx, em O Capital. E assim  como  as  fábricas  inglesas  contratavam  mulheres  para  serem  operárias,  por  estas  aceitarem  receber  um  salário  menor que os dos homens, o romance, quando ainda desprestigiado, se destacou dentre os outros gêneros literários por incorporar cada  vez  mais  mulheres  na  sua  produção  e  consumo,  o  que  serviu  para  que  ele  fosse  ainda  mais  depreciado,  naquele momento. Quando, porém, esse gênero passa a ser reconhecido, as mulheres escritoras vão desaparecendo e quase nenhuma é  lembrada  dentre  os  mais  importantes  escritores  de  romance.  Vê­se  que  a  incorporação  da  mulher  se  liga  mais  a  uma estratégia de acumulação de capital ­ obtendo o mesmo resultado que com trabalhadores homens, mas com menor custo – que com  uma  pretensa  vocação  democrática  do  romance.  Por  que  os  editores  deixam  de  publicar  textos  de  mulheres  quando  o romance ganha status de obra válida artisticamente? Quando se pensa em relações internacionais, é preciso pensar num certo "imperialismo cultural": os romancistas portugueses e brasileiros, por exemplo, tinham de escrever para um público acostumado a ler romances franceses e ingleses. Eles próprios, porém,  liam  as  obras  estrangeiras  com  frequência. A  fórmula  de  sucesso  de  vendagens  na  França  passa  a  ser  adotada  em outros  países;  adaptada,  porém.  O  oposto  não  acontece:  dificilmente  um  escritor  de  um  país  periférico  dentro  do  capitalismo mundial terá sucesso num país hegemônico, mesmo que publique traduções de seus livros lá ou escreva diretamente no idioma hegemônico. Mesmo sua classificação dentro do cenário cultural se dará em comparação com o que há nos países poderosos e não  por  si  próprio.  Desse  modo,  Guimarães  Rosa,  por  exemplo,  é  visto  por  muitos,  dentro  e  fora  do  Brasil,  como  um  "Joyce Brasileiro" e não como ele em si, com suas particularidades e idiossincrasias. As classificações entre escritor de países hegemônicos e subalternos e entre obras de qualidade e a chamada "subliteratura" muito  prejudica  a  avaliação  crítica  do  cenário  artístico­cultural.  Tanto  o  preconceito  quanto  o  elogio  podem  ser  danosos. Depreciar  uma  obra  e  dizer  que  o  que  há  de  bom  nela  talvez  tenha  sido  escrito  sem  que  o  autor  tivesse  consciência  do  que estava fazendo pode nos impedir de analisar imparcial e criticamente um texto. Quem pode ter consciência das consequências de todos os seus atos? Pior ainda: quem pode dizer com certeza se tal autor tinha ou não consciência do que estava fazendo? Talvez nem ele! E isso vale tanto para escritores "de qualidade" quanto para os "escritores ruins". Se a depreciação de uma obra pode nos levar a não lê­la, o elogio também. Uma obra alardeada como muito superior a tudo mais que já se escreveu ou se tem escrito no momento assusta o leitor e pode fazer com que ele não queria lê­la, por vê­la como "difícil" ou "tediosa". Além do que, a crítica que denigre uma obra, recusando a ver seus pontos positivos e seu valor, pode enaltecer tanto outra que a faça parecer caída do céu, descontextualizando­a, numa espécie de análise a­histórica e ideológica. Para dar um exemplo, tomemos outra vez o caso de Guimarães Rosa. Este escritor já foi chamado de "gênio", "mago" e outras coisas do tipo, o que, segundo Bolle (17) tem tolhido a crítica de uma análise imparcial e realista. Para este, tomar a qualidade e profundidade da obra como dadas a priori têm impedido que a crítica de situar a obra de Rosa em seu contexto e fazer uma análise científica dela.

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"Uma  grande  obra"  não  saiu  apenas  das  mãos  do  escritor,  mas  é  fruto  de  todo  um  desenvolvimento  social  complexo  que colocou  o  artista  dentro  de  um  processo  de  produção/circulação/consumo/reprodução  de  bens  simbólicos,  econômicos  e culturais,  e,  portanto,  políticos  e  históricos,  além  de  estéticos,  que  confere  legitimidade  a  determinadas  produções  e  nega  a outras. O que difere Rosa de Alexandre Dumas, por exemplo? O fato de um ser "gênio" e o outro um "escritor de sub­literatura"? Ou  será  que  cada  um  deles  se  situou  em  uma  posição  diferente  dentro  das  relações  sócio­históricas  de  seu  meio  e correspondeu, de acordo com esse seu posicionamento, a diferentes demandas artísticas? Tentar responder essas perguntas é perceber  a  obra  em  seu  contexto  histórico  e  que  diferentes  obras  podem  nele  ocupar  posições  diferentes,  devido  às possibilidades inúmeras de estratégias de inserção social. É preciso perceber essas possibilidades distintas de inserção para avaliar o sucesso ou o fracasso da obra em sua tentativa de se consolidar. Isso implica em dizer que nem todos escrevem pelos mesmos  motivos,  nem  toda  obra,  portanto,  busca  atingir  as  mesmas  metas,  o  que  implica  em  uma  multiplicidade  de possibilidades de objetivos para as obras e, consequentemente, uma multiplicidade de critérios para julgar essas obras. Livros com  objetivos  diferentes  devem  ser  julgados  com  critérios  diferentes.  Não  se  deve  julgar  um  livro  literário  e  um  manual  de agronomia com os mesmos critérios, pois ambos se destinam a aplicações diferentes e devem ter competências distintas para atingir seus objetivos. Ora, será que somos ingênuos o suficiente para pensarmos que todos os livros literários são escritos com os mesmos objetivos?! Será que é possível estabelecer um único critério para julgar seu valor? Ou será que questões de classe e ideologia têm influenciado nossos julgamentos? A  Estética  não  se  descola  das  realidades  humanas,  mas  delas  faz  parte.  Assim,  deve  leva­las  em  consideração.  Numa realidade multifacetada de obras, multifacetada deve ser a Estética. Tal amplitude permite­nos avaliar o valor estético de uma obra parnasiana e uma que se coloque radicalmente contra o Parnasianismo, isso sem hierarquiza­las como boas ou ruins, mas apenas  como  diferentes.  Grande  preconceito,  porém,  se  instaura  contra  algumas  obras  de  sucesso,  acusadas  de  não  serem "sérias", ou "profundas". Argumenta­se que elas almejam apenas o sucesso e nada contribuem para a arte. Disse, a respeito disso, Schopenhauer (56): "Pois é como se uma maldição pesasse sobre o dinheiro: todo autor se torna um escritor ruim assim que escreve qualquer coisa em função do lucro. As melhores obra dos grandes homens são todas provenientes da época em que eles tinham de escrever ou sem ganhar nada, ou por honorários muito reduzidos. Nesse caso, confirma­se o provérbio espanhol: honra y provecho no caben em um saco." Porém, todos, de alguma forma, buscam o sucesso. Não importa se essa é uma busca por sucesso imediato ou a longo prazo, se por um sucesso mais ligado ao dinheiro ou outro, mais próximo do status. Classificar uma obra como valiosa pela estratégia que ela traça para obter sucesso é usar de uma categoria externa à obra ­ sua aceitação nesse ou naquele círculo, agora ou em determinado momento ­ para julgar sua qualidade. Como bem mostra Bourdieu, em As regras da arte (1996), a atuação abnegada do artista que defende "a arte pela arte" e não busca  retorno  financeiro  e  simbólico  imediato  não  exclui  sua  inserção  num  processo  de  satisfação  econômica  e  simbólica  a longo prazo, mais lento, porém mais duradouro e revestido de maior legitimidade dentro do sistema simbólico­cultural. De modo que  a  abnegação  apenas  mascara,  consciente  ou  inconscientemente,  um  investimento  diferenciado  que  acumulará  capital simbólico ao longo do tempo para posteriormente revertê­lo em capital econômico de modo continuado e constante. Guimarães Rosa  está  mais  próximo  desse  padrão  de  uma  arte  "abnegada"  que,  embora  pareça  se  esquecer  do tempo e  até  negar  sua historicidade, não deixa de se inserir nas esferas econômicas, ainda em ciclos mais longos de produção e consumo; Dumas se aproxima  do  artista  que  atende  demandas  imediatas,  sendo  rapidamente  recompensado  economicamente,  ainda  que desprezado pelos círculos intelectuais. O que não significa que cada um deles traçou sua estratégia conscientemente; um dos aspectos que garante eficácia à ideologia é justamente ser percebida como realidade independente e não como justificação do sistema econômico­cultural no qual se insere. Essas diferentes inserções sociais da produção artística, não diminui nem acrescenta nada ao "valor", à "qualidade", da obra literária  desses  escritores.  Julgar  tal  coisa  compete  ao  domínio  da  Estética  e  a  análise  sociológica  da  produção  da  arte  não interfere na sua apreciação. O que se faz aqui é justamente um resgate da Estética enquanto ramo de conhecimento autônomo e não um mera reprodutora da ideologia dominante. Reconhecer esses diferentes caminhos de inserção social que uma obra pode  tomar  sem  impingir  nisso  juízo  de  valor  é  justamente  criticar  a  penetração  de  considerações  ideológicas  no  domínio  da Estética.  Buscar  o  sucesso  imediato  não  faz  com  que  uma  obra  seja  necessariamente  "má";  tampouco  buscar  agradar  a intelectualidade legitimadora não faz uma obra ser "boa". É preciso refletir então sobre o que faz uma obra ser considerada boa, sobre qual o bem contido nela que a distingue das demais. Ora o "bom" é relativo, ele depende do ponto de vista de quem o postula. Até o mal pode parecer bom para quem o faz, pode lhe trazer gozo. Esse julgamento se enviesa pela posição tomada pelo sujeito. Assim, é preciso se questionar sobre os sujeitos do campo artístico e sua atuação frente a essas classificações de "bom" e "ruim". A grosso modo, segundo Bourdieu (1996), podemos ver dois públicos formados por grupos extremamente heterogêneos entre si que costumam adotar posturas díspares: os consumidores que buscam "entretenimento" e os que buscam a "arte". Deve­se perceber que essa divisão não é estanque, mas  que  muitas  pessoas  podem  hora  fazer  parte  de  um  grupo,  hora  de  outro.  Julgar  o  que  é  "bom"  em  Literatura,  portanto, passa por julgar o que é "bom" para cada um desses grupos, os mais importantes, devido a seu tamanho e poder, dentre os seus consumidores. Os  leitores  que  buscam  "entretenimento"  seriam  aqueles  ligados  a  obras  de  sucesso  imediato  e  a  autores  desprezados  pela intelectualidade, ainda que – ou talvez porque (sic!) ­ de grande sucesso de vendas; a estes se ligaria autores como Dumas. Os leitores  que  buscam  a  "arte"  seriam  os  ligados  a  obras  reconhecidas  como  válidas  pela  intelectualidade,  ainda  que desconhecidas do grande público – e às vezes essa pouca divulgação até serve para dar mais charme ao leitor dessas obras, tido, então, como erudito – com alta legitimidade e vendas que continuam a ocorrer por um longo período de tempo, ainda que menores que a dos grandes sucessos do momento; a estes se ligam Guimarães Rosa e outros. Ambos os grupos vão adotar como critérios de valor para as obras, conscientemente ou não, a adequação delas a seu conjunto de valores e visão de mundo, pois como já se disse, a definição do objeto passa pelo ponto de vista do sujeito. Há  obras,  entretanto,  que  conseguem  ser  ao  mesmo  tempo  uma  coisa  e  outra;  ter  penetração  nas  duas  categorias.  De  todo modo,  essa  divisão  não  deixa  de  ser  útil  para  pensarmos  em  duas  coisas:  na  injustificada  oposição  entre  "arte  séria"  e "entretenimento", que só pode ser explicada enquanto fruto da ideologia dominante, e o papel da recepção (do público leitor, http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/rt/printerFriendly/653/803

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dos críticos, da mídia, das escolas, das editoras...) na valoração da obra literária. Assim, a Crítica e a História Literárias têm se debruçado apenas sobre os autores que buscam a "arte séria", desprezando os autores  que  produzem  "entretenimento".  Isso  se  dá  porque  esses  ramos  do  conhecimento  são  armas  da  intelectualidade  na disputa  por  poder  com  o  grande  público  –  o  do  "entretenimento".  Esses  grupos  disputam  o  poder  sobre  o  capital  simbólico  e econômico  existente  em  forma  de  livros.  Isso  se  dá  por  uma  razão  muito  simples:  ninguém  quer  gastar  dinheiro,  tempo  e esforço mental para ler um livro e depois ver essa obra sendo menosprezada por outrem. Ainda mais importante, o leitor que se identifica com uma obra não vê com bons olhos os que a detratam. Lutas por poder, então, vão se consolidar e moldar o campo literário, bem como o fazem com os campos político, econômico e social. Analisar  as  disputas  de  poder  na  significação  social  e  cultural  de  uma  obra  é  essencial  para  entendê­la  de  modo  imparcial  e científico. Desse modo, para estudar a obra e o autor, se faz necessário pensar as relações de poder que a envolvem. No caso de Rosa, há um singular empoderamento do discurso do autor, que cresce e o consolida como distinto e único, por ser dono de um saber que é só seu: o como fazer sua obra. Quanto mais sua obra é tida como singular, maior seu poder. Quanto mais banal ela for, menos importa saber como fazê­la. Ora, essa qualificação de "singular" e "banal", "boa" e "ruim", depende do sujeito que a faz. Qualquer que seja a sua escolha, será uma tomada de posição na luta pelo poder e conferirá ou não poder ao autor da obra  e  aos  outros  membros  do  grupo  que  a  ele  se  ligam  (outros  leitores,  tradutores,  editores,  críticos,  imprensa...).  Esse empoderamento  não  precisa  do  aval  do  autor  e  pode  acontecer  até  mesmo  à  revelia  dele  e  sua  legitimidade  depende  do contexto, das relações que estão sendo travadas: ele é legítimo frente a escritores de massa de qualquer lugar do mundo, mas não será quando colocar um escritor de um país periférico frente a "um grande escritor" de um país hegemônico. As relações antecedem os termos. É por esses fatores que a apreciação de uma obra deve ser vista como um fato social, como a construção coletiva de um "valor estético",  o  que  é  um  bem  simbólico;  bem  esse  que  se  transforma  em  valor  econômico  e  social.  Como produção/circulação/consumo/reprodução de bens simbólicos no seio de uma sociedade, a obra literária é antes de tudo uma construção coletiva. Ela só tem valor enquanto a coletividade lho confere. Uma obra não se liga apenas ao "mundo das obras de arte", ela se liga a tudo que há de humano ao redor de si. Geralmente, quando se fala das influências notadas na obra de um escritor, se diz de outros escritores que teriam sido lidos por este  e  imitados  de  uma  ou  outra  forma.  Essa,  porém,  não  é  a  única  influência  que  recebe  uma  obra  de  arte.  Partir  desse raciocínio  é  pensar  que  os  livros  são  um  domínio  à  parte,  independente  do  mundo  dos  seres  humanos  e  que  se  regem  por regras  próprias.  O  que  se  assemelha  a  dizer  que  o  autor  é  apenas  alguém  inspirado  por  uma  musa,  ou  qualquer  outra divindade, um receptáculo dessa ação divina que não a compreende e perde o domínio sobre si, extasiado. Foi justamente esse o  argumento  de  Íon  diante  de  Sócrates  (Platão,  2007),  para  justificar  sua  não  compreensão  do  texto  homérico  que frequentemente recitava. Ao que o filósofo respondeu, com toda a ironia, que Íon não poderia, pois, ser considerado um artista. Nem apenas inspiração divina, nem imunidade a tudo aquilo que não for Literatura. Assim como não vemos uma máscara banto do século XVII apenas como produção do aldeião x, y ou z, mas como expressão de toda a cultura banto, da qual o artista faz parte,  também  devemos  ver  uma  obra  de  arte  ocidental  como  produção  individual,  sim,  mas  também  coletiva.  Poderia  se argumentar que os artistas banto fazem máscaras sempre iguais e que por isso são expressão da cultura e da coletividade e não  dele;  suas  obras  são  imitações  de  modelos  antigos,  por  isso  não  têm  individualidade.  Ora,  os  Árcades  imitavam  os clássicos  gregos  e  nem  por  isso  alguém  confunde  Marília  de  Dirceu  com A  Odisséia.  Tampouco  podemos  negar  que  nossa visão de que as obras das culturas alheias nos parecem iguais se dá por não dispormos do conhecimento e da iniciação cultural necessárias para saber quais os elementos simbólicos daquela cultura estão em jogo na obra e como ela os relaciona (Geertz, 1997). Assim também um banto do século XVII não iniciado na cultura ocidental acharia pouca ou nenhuma diferença entre as obras de El Greco e Rafael Sanzio, embora essas diferenças nos pareçam óbvias. A arte demanda uma iniciação nos elementos com que trabalha para poder ser compreendida e admirada, é o que se chama muitas vezes de "a educação do gosto". Mesmo um ocidental não iniciado pode ter dificuldades para diferenciar as obras de diferentes escolas artísticas e para criticar o que lhe é apresentado, se valendo de componentes ideológicos (estar num museu importante,  a  legitimidade  dada  por  um  círculo  de  intelectuais...)  para  julgar  o  valor  estético  daquilo  que  vê,  lê  ou  ouve.  Isso mostra  que  arte  é  um  jogo  de  relações  com  elementos  e  seu  valor  estético  está  em  fazer  essas  relações  dentro  de  uma determinada gramática ou não. Ou seja, seu valor é socialmente determinado, na medida em que os elementos que trabalha são  socialmente  dados.  Um  exemplo  simples:  é  notório  o  valor  que  teve  o  surgimento  de  novos  pigmentos  na  dinâmica  de criação dos pintores ao longo dos séculos. Seria impossível para um pintor do século IV a. C. realizar a mesma obra que um do século XIX, que dispunha de uma gama muito maior de opções de cor e a "gramática" que analisa um determinado quadro e as relações que ele estabelece com os elementos disponíveis têm de levar isso em conta. Um quadro que nos pareça escuro e sombrio  pode  passar  a  ser  considerado  colorido,  se  se  leva  em  conta  que  o  pintor  usou  muitas  das  cores  que  dispunha  na época, ainda que para a atualidade essa gama pareça limitada. Assim, o valor estético não pode ser totalmente independente do contexto histórico e social. Geertz chega a dizer que "a definição de arte nunca é intra­estética" (146). Isso não diz respeito, porém, apenas à particularidades técnica, mas também a dimensões sociais. Como mostrou Elias (1995), a Mozart foi impossível ter a liberdade que outros artistas, posteriores a ele, tiveram, devido às condições sociais de sua época. Ele foi obrigado a se subjugar durante muito tempo a um patrono e a fazer o tipo de música que a este agradava. Ainda que pudesse compor para si obras que respeitassem seu gosto pessoal, tinha de se adequar a padrões sociais e se esforçar por agradar  gente  que  nem  sempre  pensava  como  ele  a  respeito  de  música,  o  que  certamente  influenciou  decisivamente,  no mínimo, essa parte de sua produção, além de lhe tirar o tempo necessário para compor do jeito que queria. A  obediência  às  regras  sociais,  à  gramática  que  ordena  os  elementos  do  jogo  de  relações  da  arte,  nem  sempre  opera  no sentido  de  uma  ordenação  clássica  e  tradicional  dos  elementos  da  obra.  Às  vezes  pode  acontecer  exatamente  o  contrário: artistas que tenham um pendor para o clássico podem ser marginalizados em épocas e lugares em que a "regra seja quebrar as regras" e inovar nas formas e nos padrões estilísticos. De qualquer modo, o artista joga com o que a sociedade e a cultura lhe dão. O pintor terá de usar os pigmentos conhecidos de sua época e local; o músico se adequar ao mercado consumidor que quer atingir. http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/rt/printerFriendly/653/803

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Ignorar  isso  na  produção  literária  é  ignorar  sua  presença  na  sociedade  e  a  dinâmica  de  sua  obra  no  seio  o  entendimento  do papel  da  recepção  na  leitura  de  sua  obra.  Em  outras  palavras,  um  Proust  não  seria  considerado  um  bom  escritor  se  ele  não atendesse a desejos e anseios de um determinado grupo, pequeno ou não, conhecedor de sua obra. Um outro grupo receptor implicaria  em  um  outro  julgamento  estético  e  é  necessário  refletir  sobre  isso  para  entender  melhor  a  obra  em  si  e  sua penetração nos círculos eruditos da sociedade em questão e sua posterior disseminação em direção aos outros grupos. Vê­se, pois, que a definição de "bom escritor" se liga ao poder do grupo erudito, consolidado na universidade, na alta burocracia escolar (os formadores do currículo escolar), nas academias (Academia Brasileira de Letras e outras do gênero) e onde mais possam  se  encontrar  aqueles  que  por  seu  saber,  e  consequentemente,  poder  impõe  um  ponto  de  vista  ideológico  do  que  é legítimo ou não artisticamente. Reproduzir essas categorias implica em aceitar a ideologia desse grupo, sem questionar a luta social  que  aí  se  engendra.  É  uma  questão  de  classe:  para  se  consolidar,  este  grupo,  ligado  à  burguesia,  teve  de  atacar  os padrões de arte do grupo de quem tomou o poder, ligado à aristocracia. Se um dia, a burguesia cair, o grupo que tomar seu lugar, terá de lutar contra os valores por ela defendidos e, consequentemente, com seu padrão de arte. Essa oposição, porém, não é total: embora, pouco se fale em Racine ou Corneille, muito próximos do ideal aristocrático suplantado pela burguesia, não se nega seu valor, embora ele seja considerado menor que os dos autores afeitos aos ideais burgueses. Tampouco, Homero, Virgílio, ou Dante tenham sido deixados de lado. Isso porque a oposição entre a classe emergente e a detentora do poder não gera uma destruição total de nenhuma das duas, mas uma síntese dos elementos presentes nas duas classes. Ou seja, trata­se de uma relação dialética.

Bibliografia  

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