ASPECTOS POLÊMICOS DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC/2002

June 8, 2017 | Autor: Guilherme Reinig | Categoria: Succession Law, Direito Civil, Direito das Sucessões
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ASPECTOS POLÊMICOS DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO A inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002

ASPECTOS POLÊMICOS DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC/2002 Revista dos Tribunais | vol. 931 | p. 117 | Mai / 2013DTR\2013\2713 Guilherme Henrique Lima Reinig Mestre e Doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (FDUSP). Advogado. Área do Direito: Civil Resumo: O presente artigo examina a constitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, que cuida da sucessão legítima do companheiro. Enfrenta-se, primeiramente, o sentido da proteção que o art. 226, § 3.º, da CF, confere à união estável. Após breves considerações sobre o regime sucessório do cônjuge e sobre a evolução legislativa dos direitos sucessórios do companheiro, o artigo cuida das críticas dirigidas ao art. 1.790 do CC e suas consequências quanto à constitucionalidade da norma. Por fim, propõe a aplicação do usufruto legal e do direito real de habitação previstos nas Leis 8.971/1994 e 9.278/1996. Palavras-chave: União estavel - Sucessão do companheiro - Art. 1.790 do CC/2002 Inconstitucionalidade - Usufruto legal - Direito real de habitação. Abstract: The present article examines the constitutionality of art. 1.790 of the Civil Code, which regulates the hereditary succession of "common-law husband or wife". It interprets the meaning of the protection that art. 226, § 3.º, of the Constitution confers to "commonlaw marriage". After describing the rules applicable to hereditary succession in case of civil marriage and the legislative evolution relating to legal succession rights of consorts married without license or ceremony, the present article criticizes art. 1.790 of the Civil Code and analyses if this rule is constitutional. Finally it proposes the application of legal usufruct and real right to habitation. Keywords: "Common-law marriage" - Hereditary succession - Art. 1.790 of the Civil Code Unconstitutionality - Legal usufruct - Real right to habitation. Sumário: 1.APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA - 2.O SENTIDO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA UNIÃO ESTÁVEL - 3.A SUCESSÃO DO CÔNJUGE: PANORAMA GERAL - 4.A SUCESSÃO DO COMPANHEIRO: DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO - 5.CRÍTICAS AO ART. 1.790 - 6.A SOLUÇÃO APLICÁVEL À SUCESSÃO DO COMPANHEIRO - 7.CONSIDERAÇÕES FINAIS - 8.BIBLIOGRAFIA 1. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA A disciplina dos direitos sucessórios do companheiro pelo Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 é um dos temas que mais têm gerado controvérsias e inquietações entre os civilistas. Além disso, o momento é propício para novas reflexões, pois a matéria encontra-se em análise no STJ em razão de incidente de inconstitucionalidade suscitado por sua 4.ª Turma.1 Ainda que se decida por não conhecer da arguição, os debates iniciados na corte superior evidenciam a relevância prática da discussão relativa ao regramento contido no art. 1.790 do CC/2002 (LGL\2002\400): “Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”. O artigo tem sido alvo de críticas2 e muitos autores, seguidos por alguns julgados, propugnam, neste Página 1

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diapasão, por sua inconstitucionalidade, afirmando tratar-se de um retrocesso incompatível como o art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3), que reconhece a união estável como entidade familiar.3 Neste sentido, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná decidiu por maioria que: “a distinção relativa aos direitos sucessórios dos companheiros viola frontalmente o princípio da igualdade material, uma vez que confere tratamento desigual àqueles que, casados ou não, mantiveram relação de afeto e companheirismo durante certo período de tempo, tendo contribuído diretamente para o desenvolvimento econômico da entidade familiar”.4 Além disso, o Código, ao contrário do que fez em relação ao cônjuge (art. 1.831), não previu o direito real de habitação do companheiro sobrevivo, aspecto também criticado pela doutrina. Para enfrentar o tema é primeiramente necessário definir o sentido da proteção constitucional da união estável. Superado este problema, é preciso fazer breve menção à situação sucessória do cônjuge, a qual tem sido utilizada pela doutrina como base referencial da discussão sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790. Impende, outrossim, tratar da evolução da disciplina legal dos direitos sucessórios do companheiro para, somente então, apontar as críticas ao dispositivo em questão, verificando se elas conduzem ou não à inconstitucionalidade da norma. Antes, porém, de se passar à análise dos aspectos mencionados, é preciso ressaltar que o Código, ao contrário do que fez em relação ao cônjuge (art. 1.831), não previu o direito real de habitação do companheiro sobrevivo, aspecto também criticado pela doutrina e que possui relevância direta para a questão da constitucionalidade do novo regime sucessório do companheiro. 2. O SENTIDO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA UNIÃO ESTÁVEL Foi lenta a evolução da proteção jurídica do companheiro no Direito brasileiro. Segundo leciona Álvaro Villaça de Azevedo, o Código Civil de 1916 (LGL\1916\1) “não regulamentou o concubinato, não o proibiu, mas a ele se refere, sempre, procurando defender o instituto do casamento ou reproduzindo sanções da velha legislação”.5 No entanto, ainda na primeira metade do século XX algumas leis esparsas e a jurisprudência começaram a reconhecer certos efeitos jurídicos às uniões de fato. Houve principalmente na Infortunística e no Direito Previdenciário, ramos mais afeitos à realidade social e ao conceito de dependência econômica, a edição de disposições legais para tutelar a companheira desamparada pela morte de seu consorte. Ao largo do desenvolvimento legislativo, os tribunais passaram a reconhecer certos efeitos patrimoniais em favor da então denominada concubina6 com base no Direito das Obrigações. Nesta linha, algumas cortes começaram a admitir pedidos formulados por concubinas para ressarcirem-se dos serviços prestados ao companheiro. Posteriormente, os tribunais estenderam às uniões de fato a construção pretoriana desenvolvida com base nos casos de imigrantes italianos oficialmente casados sob o regime de separação de bens, conferindo à companheira o direito de partilhar do patrimônio amealhado pelo casal mediante esforço comum.7 Esta solução, pautada no conceito de sociedade de fato, culminou na edição da Súmula 380 (MIX\2010\2104) do STF: “Súmula 380. Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Contudo, não houve propriamente um reconhecimento jurídico das uniões livres, cuja proteção dava-se “à margem da família constituída”.8 Em verdade, aquelas eram consideradas tão somente um “manancial de fatos que podem acarretar consequências favoráveis a justas pretensões da mulher” 9 e não o próprio fundamento da tutela conferida aos companheiros. Neste sentido, Edgar de Moura Bittencourt10 assinala que: “O abandono impiedoso da companheira de longos anos não lhe dá o direito de reclamar coisa alguma pelo concubinato, mas, por força da partilha dos bens adquiridos pelo trabalho comum ou pela indenização dos serviços prestados. Nada há com o concubinato. Concubina ou não a mulher teria a mesma proteção”. Esta explicação, dirigida à proteção pretoriana desenvolvida no âmbito do Direito das Obrigações, aplica-se também à tutela concedida pelo legislador por meio de normas de Direito Previdenciário. Segundo Adahyl Lourenço Dias:11 Página 2

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“Aquele conceito de rigor puritano e de invulnerabilidade, de que cogita o direito civil a favor da mulher casada, mesmo separada do lar conjugal, perde terreno ao alcançar a órbita do direito previdenciário. Neste, não é a legalidade ou ilegalidade da união que vem para melhorar ou piorar a condição no armazenamento das vantagens, mas a circunstância de fato, que cria e alimenta uma conjuntura que o direito é forçado a levar ao campo de sua legitimidade. Se o direito civil se preocupa com o que legitima, o previdenciário pouco importa se há ou não legitimidade”. O mesmo também pode ser dito em relação a outros âmbitos, como o fiscal ou o das locações prediais urbanas etc., nos quais predominava a ideia de dependência econômica e não propriamente de proteção a uma espécie de família ou entidade familiar. Todavia, alguns autores sustentam que o ingresso das uniões livres no Direito de Família se deu ainda em momento anterior à Constituição Federal de 1988. Neste sentido, Gustavo Tepedino12 afirma que “o legislador especial e, paulatinamente, a jurisprudência passaram a considera-lo não só do ponto de vista das relações obrigacionais interpostas, tendo-se, ao contrário, em conta as relações de afeto e de solidariedade levadas a cabo pelos companheiros”. De fato, percebia-se a necessidade de alçar a união estável à condição de entidade familiar, tutelável não apenas mediatamente como mero “manancial de fatos” no qual incidem efeitos no âmbito obrigacional, previdenciário, acidentário etc., mas como verdadeiro instituto de Direito de Família. Sem embargo, o entendimento então prevalecente era que o Direito positivo não reconhecia as uniões livres como espécie de família. Por exemplo, não se admitia qualquer discussão sobre a existência de direito a alimentos entre companheiros,13 embora em determinadas situações os tribunais chegassem a resultados equivalentes mediante a concessão de indenização por serviços prestados. Portanto, foi preciso que o constituinte consolidasse o desenvolvimento iniciado há décadas pela jurisprudência e pela legislação esparsa, evitando, dessa forma, qualquer espécie de estagnação ou mesmo retrocesso no processo de reconhecimento da união estável como espécie de entidade familiar. O art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3) consiste, pois, num marco da evolução histórica da proteção da união estável no Brasil14 ao dispor que: “Art. 226 (…) § 3.º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. O dispositivo rompeu as últimas resistências ao reconhecimento da união estável como entidade familiar. Esta passou definitivamente a ser tutelável pelas normas de Direito de Família e não apenas no âmbito obrigacional, previdenciário etc. Ainda assim, alguns autores insistiram na tese de ser o casamento o único expediente legal hábil para a constituição de família,15 o que demonstra que a evolução enfim “imposta” pela Constituição de 1988 não seria necessariamente alcançada através do desenvolvimento doutrinário, jurisprudencial ou legislativo. É este o contexto que informou o reconhecimento constitucional da união estável como entidade familiar.16 Era necessário selar o caminho até então percorrido e consolidar o fundamento para uma consequente ampliação dos direitos até então conquistados pelos companheiros. Eis a verdadeira razão da proteção constitucional da união estável. Embora ambas as espécies de união – a matrimonial e a extramatrimonial – sejam igualmente legítimas, não houve a equiparação da união estável ao casamento. Evidentemente não se pode deixar de atribuir ao companheiro disciplina legal suficiente e adequada à tutela da “comunhão de vida e de interesses” que funda e legitima a existência da união estável. Foi este, por exemplo, o objetivo almejado pelas Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 e pelos tribunais quando deparados com determinadas situações em que as leis infraconstitucionais não dispunham de solução satisfatória à proteção da união estável como entidade familiar.17 No entanto, não há no art. 226, § 3.º, qualquer indicação de equiparação entre união estável e casamento: “(…) a Constituição Federal (LGL\1988\3) não estimula a proliferação de uniões extramatrimoniais, porquanto o ideal de família ainda é aquela vinculada formalmente, com a publicidade inerente ao processo anterior à própria celebração, e durante a manutenção do vínculo. O estímulo, expresso no texto constitucional, se dá quanto à constituição de famílias matrimoniais, originalmente ou, por força de conversão”.18

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O casamento continua a ser a referência estrutural da união estável, embora deva ser ressaltado que a preferência do constituinte pela união matrimonial não se relaciona a um juízo de primazia axiológica. O tratamento diferenciado justifica-se em razão da maior certeza e segurança conferida pelo casamento. O critério é meramente formal e fundamenta-se no princípio da segurança jurídica, não ocorrendo uma depreciação moral da união estável como entidade familiar de segunda linha. O casamento pressupõe a realização de um processo de habilitação, seus efeitos resultam diretamente da celebração da solenidade e sua prova é realizada pela simples conferência da certidão do registro. Portanto, nada mais lógico que o Estado o prefira à união estável, caracterizada pela informalidade. A união informal, apesar de não implicar descrédito algum à legitimidade da família assim constituída, pode causar incerteza no próprio âmbito familiar, já que muitas vezes sequer os consortes estão seguros se vivem ou não em união estável, e também nas relações que estes travem conjunta ou isoladamente com terceiros19 ou até mesmo com o Estado.20 É por isto que a Constituição Federal (LGL\1988\3) impõe a facilitação da conversão da união estável em casamento. Não se trata de disposição sem sentido prático. O legislador deve remover os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejam se casar porque a formalização da relação confere maior certeza e segurança jurídica às relações sociais encetadas pelos conviventes. Mesmo que a união estável não possa ser considerada um “um rito de passagem”, merecendo tutela autônoma em relação ao casamento, o seu reconhecimento constitucional não tem o condão de promover a equiparação dos institutos. Conforme leciona Heloisa Helena Barboza, existisse tal identidade, inócua seria a determinação do § 3.º do art. 226 da Lei Maior.21 De fato, não haveria motivo de ordem prática para que os companheiros requeressem a conversão, uma vez que já desfrutariam da mesma situação daqueles unidos em laço matrimonial. Ainda segundo a autora, a equiparação conduziria a um absurdo: “se a entidade familiar gera os efeitos do casamento, esses deveriam ser aceitos também em relação a que se constitui da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes!”.22 Por fim, é importante fazer uma ressalva quanto ao entendimento, defendido por alguns autores, de ser vedado ao legislador diferenciar efeitos que digam respeito ao conteúdo material das uniões matrimoniais e extramatrimoniais. Segundo esta exegese, “a distinção entre casamento e união estável se põe no plano das consequências e efeitos extrínsecos, que derivem da publicidade inerente e apriorística que o casamento ostenta, de sua vez oriunda da solenidade, da formalidade que lhe é obrigatoriamente afeta”.23 Nesta linha, as diferenças se limitariam a aspectos extrínsecos da relação familiar, como a emancipação pelo casamento (art. 5.º, parágrafo único, II) e a necessidade de outorga conjugal para alienar ou gravar bem imóvel (art. 1.647, I).24 Contudo, não se vislumbra no art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3), vedação a que o legislador ordinário institua tratamento diferenciado entre o casamento e a união estável em relação a determinados aspectos materiais ou intrínsecos da relação familiar. Caso contrário, ter-se-ia que reconhecer a inconstitucionalidade Leis 8.978/1994 e 9.278/1996 quanto à disciplina do regime de bens na união estável, uma vez que o tratamento deveria ter sido o mesmo conferido ao casamento pelo Código Civil de 1916 (LGL\1916\1), então em vigor.25 Entretanto, não há notícia de que os tribunais tenham acolhido esta solução. Além disso, a oposição efeitos intrínsecos/efeitos extrínsecos não serve como delimitação segura do que pode ou não sofrer tratamento distinto em relação à união estável e ao casamento. Aqueles que defendem esta dicotomia geralmente se valem da lição de Gustavo Tepedino, o qual se utiliza da distinção entre casamento como ato jurídico solene e como relação familiar como ponto de partida para analisar os efeitos próprios e imediatos do matrimônio e aqueles derivados das relações familiares. No entanto, o autor não leva a distinção a extremos, cogitando da possibilidade de tratamento diverso a aspectos de evidente natureza material ou interna. Por exemplo, ao cuidar do regime de bens na união estável afirma que “não se coaduna com o sistema jurídico brasileiro a presunção de patrimônio comum nas entidades familiares de fato” e, linhas abaixo, menciona a existência de divergência doutrinária sobre a interpretação do art. 1.725 do CC/2002 (LGL\2002\400). E mesmo sobre as regras sucessórias o citado jurista chega a considerar que “com o matrimônio, sabe-se com toda segurança os legitimados à sucessão dos cônjuges”, referindo-se à opinião de Arnoldo Wald no sentido de a união estável não produzir necessariamente os mesmos efeitos sucessórios do casamento.26 Em verdade, o valor metodológico da distinção realizada pelo jurista reside em servir como possível Página 4

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critério para a interpretação de dispositivos que em princípio seriam aplicáveis somente às uniões matrimoniais.27 Cite-se, por exemplo, o art. 1.565, § 2.º, que, ao tratar do livre planejamento familiar, não se refere à união estável,28 ou o art. 12, parágrafo único, que não menciona o companheiro sobrevivo como legitimado para requerer as medidas necessárias para cessar ameaça ou lesão a direito de personalidade do falecido. Cuida-se de hipóteses em que houve descuido por parte do legislador, que em verdade não pretendia restringir a incidência da regra ao casamento, ou de normas anteriores ao advento da Constituição Federal (LGL\1988\3), as quais muitas vezes necessitam ser reinterpretadas com base no novo status atribuído à união estável. No entanto, se ficar claro que a intenção do legislador foi conferir tratamento diferenciado à união estável, não poderá o interprete sustentar a inconstitucionalidade da norma com base numa equiparação material não prevista no texto constitucional. Deverá, em verdade, verificar se a norma infraconstitucional conferiu proteção suficiente ao atendimento do escopo do art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). Por fim, caso a distinção entre união estável e casamento se cingisse aos efeitos extrínsecos da relação familiar, não haveria qualquer estímulo à formalização da relação, conforme previsto no art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). Por exemplo, em regra os casais não se decidem pela união formal ou informal em razão da exigência de anuência conjugal nos termos do art. 1.647, I. De fato, não são os reflexos jurídicos em relação a terceiros que verdadeiramente influem na decisão dos consortes pela união formal ou informal, mas sim o conteúdo das relações pessoais e patrimoniais que exsurgirão entre ambos como cônjuges ou companheiros. Destarte, é correto o entendimento acolhido pelo TJSP, o qual, ao apreciar a constitucionalidade do art. 1.790 do CC, concluiu que “a Constituição da República (LGL\1988\3) não equiparou a união estável ao casamento e ou entidades familiares, apenas facilitou sua conversão”.29 Confira-se, neste sentido, o seguinte excerto retirado da declaração de voto proferida naquela ocasião pelo Des. Walter de Almeida Guilherme: “A união estável é reconhecida como entidade familiar, sim, para efeito de proteção do Estado. Mas, não é equivalente ao casamento, tanto que o legislador constituinte propugna a edição de lei que facilite sua conversão em casamento. É possível que a equiparação, para alguns, seja mais justa. E, para outros, não. Mas o que importa é que a Constituição não promoveu a equivalência. Se casamento e união estável estivessem em pé de igualdade, não teria o legislador constituinte instado o ordinário a facilitar a conversão da segunda no primeiro”. Descabe, com efeito, declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC com base na suposta equiparação constitucional da união estável ao casamento. Todavia, é necessário analisar a questão sob outra perspectiva. É preciso indagar se as regras previstas pelo Código Civil (LGL\2002\400) para a sucessão do companheiro sobrevivo conferem-lhe ou não proteção adequada ao objetivo constitucional de proteção à união estável como entidade familiar. Não se trata de perseguir uma desnecessária equalização da situação sucessória do companheiro à do cônjuge, mas sim de verificar se a disciplina do art. 1.790 deixa “lacunas” ou causa distorções que a maculam com o vício da inconstitucionalidade. 3. A SUCESSÃO DO CÔNJUGE: PANORAMA GERAL Antes, porém, de tratar da sucessão do companheiro e de seus aspectos polêmicos, é necessário fazer uma abordagem geral da sucessão legítima do cônjuge, até porque discussões relativas à constitucionalidade do art. 1.790 do CC têm se centrado na desigualdade da disciplina das matérias pelo legislador infraconstitucional. No regime inicialmente previsto no Código Civil de 1916 (LGL\1916\1), o cônjuge era considerado herdeiro facultativo e ocupava a terceira classe da ordem da vocação hereditária, preferindo aos colaterais (art. 1.603, III).30 O Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121, de 27.08.1962), seguindo a tendência de fortalecimento da situação do cônjuge sobrevivente,31 alterou a redação do art. 1.611 do CC/1916 (LGL\1916\1), cujos §§ 1.º e 2.º passaram a prever, respectivamente, o usufruto vidual e o direito real de habitação do cônjuge sobrevivente: “Art. 1.611. (…). § 1.º O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver Página 5

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filho dêste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do de cujus. § 2.º Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar”. O cônjuge viúvo, desde que o regime do casamento não fosse o da comunhão universal, tinha direito, enquanto durasse a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houvesse filhos deste ou do casal, ou à metade, se não houvesse filhos, mas sobrevivessem ascendentes do de cujus (art. 1.611, § 1.º). Se, por outro lado, o regime do casamento fosse o da comunhão universal, afastava-se o usufruto vidual, assegurando-se, porém, ao cônjuge supérstite o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que fosse o único bem daquela natureza a inventariar (art. 1.611, § 2.º). O Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 manteve o cônjuge na terceira classe da ordem de vocação hereditária. No entanto, alçou-o à categoria de herdeiro necessário (art. 1.845)32 e determinou sua concorrência com os descendentes e ascendentes nos seguintes termos: “Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais”. Deste modo, não há mais o usufruto vidual. O cônjuge sobrevivente concorre em propriedade com os descendentes e ascendentes do autor da herança. Para a primeira hipótese, é necessário verificar o regime de bens do casamento. Não haverá concorrência se o regime for o da comunhão universal ou o da separação obrigatória.33 Por outro lado, sempre haverá concorrência no regime da separação convencional, embora exista entendimento minoritário em sentido contrário.34 Em relação ao regime da comunhão parcial, o cônjuge supérstite somente sucederá se o falecido possuísse bens particulares, hipótese em que a concorrência restringe-se a tais bens. Por fim, o legislador não mencionou o regime da participação final nos aquestos, hipótese para a qual se defende a aplicação da solução prevista para o regime da comunhão parcial. Estas são as conclusões acolhidas na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho de Estudos Judiciários da Justiça Federal: “Enunciado 270 – Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”. Ressalte-se que o regime de bens é irrelevante para a hipótese de concorrência com ascendente(s). 35 O cônjuge supérstite sucede independentemente do regime de bens adotado pelo casal e mesmo nos casos de separação obrigatória (art. 1.641). Por sua vez, o direito real de habitação encontra-se previsto no art. 1.831: “Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”. Foram duas as modificações em relação ao texto do art. 1.611, § 2.º, do CC/1916 (LGL\1916\1). Em Página 6

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primeiro lugar, o novo Código não limita o direito real de habitação ao período de viuvez do cônjuge sobrevivente. Consequentemente, o posterior casamento ou a posterior constituição de união estável não extingue o benefício.36 Além disso, não há mais a restrição ao regime da comunhão universal: o direito real de habitação é cabível seja qual for o regime adotado pelos cônjuges. São estas, em síntese, as principais observações sobre a sucessão do cônjuge no Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 e que diretamente se relacionam com as críticas tecidas pela doutrina à disciplina conferida pelo legislador à sucessão do companheiro. 4. A SUCESSÃO DO COMPANHEIRO: DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO O primeiro diploma legal a tratar da sucessão do companheiro no Direito brasileiro foi a Lei 8.971/1994, cujo art. 2.º estabeleceu o convivente sobrevivo na terceira classe sucessória, preferindo aos colaterais sucessíveis, e lhe assegurou, quando em concorrência com descendente(s) ou ascendente(s) do falecido, o usufruto legal, respectivamente, da quarta parte ou da metade dos bens do acervo hereditário: “Art. 2.º As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições: I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos destes ou comuns; II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; III – na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança”. A solução era paralela àquela então vigente para o cônjuge, sendo que o STJ entendeu não ter a Lei 8.971/1994 alçado o companheiro à qualidade de herdeiro necessário.37 A Lei 9.278/1996, que veio regular o § 3.º do art. 226 da CF (LGL\1988\3), complementou a proteção sucessória do companheiro. Neste sentido, decidiu-se que “o advento da Lei 9.278/1996 não revogou o art. 2.º da Lei 8.971/1994, que regulou o direito da companheira à herança de seu falecido companheiro, reconhecida a união estável”.38 Seu art. 7.º, parágrafo único, previu o direito real de habitação em favor do consorte sobrevivo: “Art. 7.º, parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”. O usufruto legal e o direito real de habitação previstos nas Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 não apresentavam as restrições contidas nos §§ 1.º e 2.º do art. 1.611 do CC/1916 (LGL\1916\1). Pelo regime do Código Civil de 1916 (LGL\1916\1), o cônjuge não poderia cumular o usufruto vidual com o direito real de habitação. Além disso, o art. 1.611, § 2.º, do CC/1916 (LGL\1916\1), ao cuidar do direito real de habitação do cônjuge supérstite, exigia que se tratasse do único bem de natureza residencial a inventariar. As leis que tratam da sucessão do companheiro não previram estas limitações. No entanto, a doutrina e a jurisprudência cuidaram em remover estas diferenças, conferindo tratamento igualitário ao cônjuge com base na “cláusula de maior favorecimento” ( Mestbegünstigungsklausel).39 Com o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 o problema se inverte. A questão que se coloca agora consiste em saber se o regramento adotado pela lei ofende o art. 226, § 3.º, da Constituição Federal (LGL\1988\3). Como visto acima, este dispositivo não equiparou a união estável ao casamento. Entretanto, o Código Civil (LGL\2002\400) confere em alguns pontos tratamento injusto ao companheiro sobrevivo. Deixa-o sem qualquer proteção em determinadas situações e em outras chega a restringir seus direitos em benefício dos colaterais sucessíveis do autor da herança. Os retrocessos em relação ao regramento contido nas Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 são evidentes, chegando alguns autores a invocar a “cláusula de proibição de retrocesso”. De fato, as falhas do art. 1.790 do CC são graves e colocam em xeque a conformidade deste dispositivo com a proteção exigida pelo art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). Página 7

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5. CRÍTICAS AO ART. 1.790 5.1 A localização do dispositivo A primeira crítica que se faz ao art. 1.790 diz respeito à sua localização. Ele se encontra nas disposições gerais do Título I do Livro do Direito das Sucessões. Não se trata, com efeito, de disposição relativa ao tema da sucessão em geral. O natural seria que a matéria do art. 1.790 fosse disciplinada no capítulo da ordem da vocação hereditária, juntamente com o art. 1.829. Neste sentido, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka40 afirma que “trata-se de verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável, motivo pelo qual deveria estar situada no capítulo referente à ordem da vocação hereditária”. Entretanto, a localização do art. 1.790 não resultou de mero deslize ou descuido do legislador de 2002 em relação à disciplina da matéria, explicando-se pelo seu nítido objetivo de conferir um tratamento distinto para as figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivente. Nesta linha, o relatório final ao projeto do qual originou o Código Civil (LGL\2002\400) é claro em consignar que “as diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõem um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta”.41 Fica claro, portanto, que o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 optou por um regime sucessório mais favorável ao cônjuge, sendo o próprio distanciamento topográfico do art. 1.790 em relação às regras sobre a ordem da vocação hereditária um sinal evidente de que o legislador infraconstitucional considera o regramento da sucessão do companheiro sobrevivente um regime sucessório de “segunda ordem”. Embora criticável, isoladamente isto não justifica a declaração de inconstitucionalidade da norma. O fato, porém, é que a localização do dispositivo carece de justifica de ordem técnica, assistindo razão às críticas a ela dirigida. Observe-se que no Anteprojeto apresentado em 1975 pela Comissão de Juristas não havia qualquer dispositivo sobre a sucessão do companheiro, o mesmo ocorrendo com o Projeto aprovado, com emendas, em 1984 pela Câmara dos Deputados.42 Quando tramitava no Senado e ainda antes do advento da Constituição Federal de 1988, o Senador Nélson Carneiro, apresentou a Emenda 358, baseando-se no art. 668 do Projeto Orlando Gomes. Após subemendas sugeridas pelo relator-geral, Senador Josaphat Marinho, o texto foi aprovado pelo Senado com a seguinte redação: “Art. 1.802. Na vigência da união estável, a companheira, ou o companheiro, participará da sucessão do outro, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parente sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”. Ao retornar à Câmara dos Deputados em 16.12.1997 por força do disposto no art. 65, parágrafo único, da Constituição Federal (LGL\1988\3), o Projeto sofreu nova alteração atinente à regra da sucessão do companheiro. O Deputado Ricardo Fiúza, relator-geral na Câmara, apresentou proposição que modificou a redação do caput do dispositivo, inserindo-se a locução “quanto aos bens adquiridos na vigência da união estável”. Foi esta a versão final da qual resultou o texto do art. 1.790 do Código Civil (LGL\2002\400). Verifica-se, portanto, que o dispositivo origina-se de um momento anterior à própria Constituição Federal (LGL\1988\3), o que, todavia, não legitima desconsiderar a perspectiva afinal acolhida pelo texto aprovado em 2002. Isto é fundamental do ponto de vista interpretativo, pois em princípio é com base no valor acolhido pelo legislador infraconstitucional – e não naquele que subjetivamente considera ser o melhor – que o interprete deverá solucionar eventuais dúvidas quanto à interpretação de determinados dispositivos. No entanto, alguns autores, visando adequar o Código Civil Página 8

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(LGL\2002\400) à interpretação que fazem do art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3), distorcem a mens legis das regras infraconstitucionais e, sem o dizer expressamente, acabam por reconhecer sua inconstitucionalidade. 5.2 O conteúdo do dispositivo A primeira crítica ao conteúdo do art. 1.790 dirige-se ao seu caput, que delimita a participação sucessória do companheiro aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável.43 Isso pode gerar duas espécies de injustiças, uma em relação ao próprio companheiro sobrevivente, e outra em relação aos descendentes ou ascendentes do de cujus, que poderão se ver numa situação menos favorável do que aquela em que se encontrariam se o casal fosse casado. Em relação ao primeiro aspecto, vale conferir a crítica tecida por Zeno Veloso: “Essa restrição da incidência do direito sucessório do companheiro sobrevivente aos bens adquiridos onerosamente pelo de cujus na vigência da união estável não tem nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época em que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro se este não adquiriu (onerosamente!) outros bens durante o tempo da convivência. Ficará essa mulher – se for pobre – literalmente desamparada, a não ser que o falecido, vencendo as superstições que rodeiam o assunto, tivesse feito um testamento que a beneficiasse”.44 De fato, a inserção da locução “bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável” no texto do qual resultou o art. 1.790 acabou por desproteger o companheiro sobrevivente naquelas situações em que este geralmente mais necessita da tutela sucessória. O caput do artigo não resguarda qualquer direito sobre o patrimônio particular do falecido, deixando um vazio para um universo de situações frequentes na vida real em que o companheiro, apesar de ter vivido com um consorte abastado, ver-se-á sem qualquer espécie de amparo patrimonial: a ausência de bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, além de excluir a possibilidade de meação pelo regime de bens, afastar-lhe-á a tutela sucessória. Infelizmente, o dispositivo permite que muitas mulheres de origem humilde que vivem ou viviam naquela condição reencontrem-se com a miséria, ficando à mercê da boa vontade dos familiares daquele que, até a sua morte, lhe ofereceu condições materiais para o conforto da vida. Poder-se-ia argumentar que restaria ao companheiro sobrevivente a possibilidade ajuizar ação de alimentos em face dos herdeiros, o que lhe garantiria ao menos uma existência digna. Porém, existe forte corrente jurisprudencial no sentido de que “o dever de prestar alimentos somente transmite-se à sucessão quando já existente, ou, quando, no curso do processo, ocorre o falecimento do alimentante”.45 Esta interpretação do art. 1.700 do CC já foi acolhida em julgado do STJ46 e encontra amparo na doutrina.47 De qualquer forma, a medida seria apenas um paliativo para um problema que deve ser solucionado pelas regras do Direito das Sucessões. Além de a prestação alimentícia vincular-se ao binômio necessidade-possibilidade, haveria grande dificuldade quando o ajuizamento da ação ocorresse em momento posterior ao encerramento do inventário. De outro lado, há situações inversas. Ao mesmo tempo em que o art. 1.790 deixa sem proteção aqueles casos em que o companheiro mais necessita da tutela sucessória, esta é conferida como um reforço desnecessário à participação do sobrevivente nos bens comuns do casal. Além da partilha decorrente do regime legal de bens, o convivente sobrevivo receberá uma quota hereditária relativa à meação do de cujus. Na hipótese, portanto, de um casal que viveu em união estável anos a fio e amealhou patrimônio comum considerável sem que cada um tenha deixado bens particulares, o sobrevivente, além de receber metade de todo o patrimônio a título de meação, concorrerá a título sucessório com os descendentes do hereditando em relação à outra metade, numa situação mais benéfica do que a do cônjuge supérstite. Suponha-se, por exemplo, que o casal possuísse um patrimônio de R$ 1.200.000,00, constituído somente de bens comuns, e que o de cujus, além de deixar sua companheira, houvesse também um filho com outra mulher. Aplicando-se o art. 1.790, I, a companheira sobreviva ficaria com R$ 600.000,00 a título de meação e receberia 1/3 da outra metade, ou seja, R$ 200.000,00, totalizando R$ 800.000,00. O descendente, por sua vez, receberia os R$ 400.000,00 restantes. Se os consortes Página 9

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fossem casados também pelo regime legal, incidiria a regra do art. 1.829, I, c/c o art. 1.832: o cônjuge supérstite ficaria apenas com a meação, ou seja, R$ 600.000,00, recebendo o filho o restante a título sucessório, ou seja, R$ 600.000,00. Entretanto, o STJ, ao analisar caso parelho, afirmou não ser “possível dizer, aprioristicamente e com as vistas voltadas apenas para as regras de sucessão, que a união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, porquanto o casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é difícil”.48 Sem embargo, o fato é que a sucessão do companheiro nestas hipóteses extrapola as razões históricas e sociais que levaram à evolução da proteção da união estável. Sempre se pugnou pela ampliação da tutela sucessória ao companheiro com base no argumento de este não poder ser deixado ao desamparo após a morte de seu convivente. Contudo, na situação ora em comento concedeu-se mais direito do que o necessário, conferindo ao companheirismo tratamento mais favorável que ao casamento, conquanto restrito a uma hipótese específica. Ainda que não se trate de distorção prejudicial ao companheiro sobrevivente, este problema reforça as críticas dirigidas ao art. 1.790 e corrobora a tese de inconstitucionalidade. A segunda crítica ao conteúdo do art. 1.790 diz respeito ao seu inc. III, o qual determina que, se o companheiro sobrevivo concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança. Uma vez que os descendentes do autor da herança já foram mencionados nos incs. I e II, o inc. III aplica-se indistintamente aos ascendentes e aos colaterais até o quarto grau. Contudo, é necessário abordar as hipóteses separadamente. Em relação à concorrência com os ascendentes, a matéria era regulada no art. 2.º da Lei 8.971/1994, de acordo com o qual o companheiro sobrevivente receberia o usufruto da metade da herança quanto inexistisse descendente do falecido, mas este houvesse deixado ascendente. A solução era parelha àquela do cônjuge, conforme previsto no art. 1.611, § 1.º, do CC/1916 (LGL\1916\1). No entanto, o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 alterou a regra, o que fez em relação tanto ao cônjuge quanto ao companheiro. No tocante ao primeiro, regulou a matéria no art. 1.837, dispondo que, “concorrendo com ascendente em 1.º grau, ao cônjuge tocará 1/3 (um terço) da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau”. Consequentemente, quando o cônjuge sobrevivente concorrer com os pais do de cujus, receberá 1/3 (um terço) da herança. Se concorrer apenas com o pai ou com a mãe, receberá a metade, o mesmo ocorrendo se concorrer com ascendentes de maior grau, ainda que sejam dois ou mais. Relembre-se que no caso do cônjuge a concorrência com ascendente(s) do hereditando dá-se em relação a todo o acervo hereditário, não se distinguindo bens particulares de comuns. O companheiro, por sua vez, quando concorrer com ascendente(s) do autor da herança sempre receberá 1/3 dos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Enquanto o cônjuge concorre sobre todo o acervo hereditário, aplica-se ao companheiro a restrição do art. 1.790, já criticada acima. Além disso, sua quota sempre se limitará à terça parte, enquanto o cônjuge recebe a metade da herança quando o falecido houver deixado somente um ascendente de primeiro grau ou ascendentes de grau maior. Percebe-se, portanto, que a posição do cônjuge é francamente melhor do que a do companheiro quando em concorrência com os ascendentes do autor da herança. Todavia, este aspecto, embora também criticável, não justifica a inconstitucionalidade da norma, pois a Constituição Federal (LGL\1988\3) não equipara a união estável ao casamento. De qualquer forma, houve um retrocesso em comparação ao regime da Lei 8.971/1994. Embora com o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 o companheiro tenha passado a concorrer em propriedade com os ascendentes do autor da herança, antes ele recebia o usufruto da metade de todo o acervo hereditário e não apenas a terça parte incidente sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. O segundo aspecto da crítica ao art. 1.790, III, do CC, diz respeito à concorrência com os colaterais sucessíveis. Com o advento da Lei 8.971/1994, o companheiro passou a ocupar a terceira posição na ordem da Página 10

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vocação hereditária, apensar de não ter havido mudança do texto do art. 1.603 do CC/1916 (LGL\1916\1), cujo inc. III continuou a mencionar apenas o cônjuge sobrevivente. Entretanto, o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 mudou este cenário, em prejuízo à situação sucessória do companheiro sobrevivo. Segundo o art. 1.790, III, este não mais prefere aos colaterais sucessíveis. Da mesma forma que ocorre quando em concorrência com os ascendentes, ele terá direito a um terço dos bens que o de cujus adquiriu onerosamente na vigência da união estável. O dispositivo afastou-se mais uma vez da solução conferida ao cônjuge supérstite, ao qual se manteve a preferência em relação aos colaterais (art. 1.829, inc. III). São severas as críticas tecidas pela doutrina sobre este ponto: “Imaginar que um sobrinho do morto, um primo-irmão ou um tio-avô terão mais direitos que a companheira de uma vida causa certo espanto. Note-se que, diversamente do que ocorre com o cônjuge supérstite, que herda a herança como um todo, havendo apenas parentes colaterais até 4º grau, o companheiro sobrevivo concorrerá e dividirá a herança com estes. Na opinião destes autores, trata-se de um flagrante retrocesso, uma vez que a Lei 8.971/1994 garantia aos companheiros o direito de recolher a totalidade da herança caso o falecido deixasse apenas colaterais (art. 2.º, III)”.49 Clóvis Bevilaqua, ao comentar o art. 1.603 do CC/1916 (LGL\1916\1), afirmou que “os cônjuges constituem os elementos primordiais da família, e a comunhão de vida e de interesses, em que devem viver, exige que, dissolvida a sociedade conjugal, por morte de um deles, não se considere o sobrevivente um estranho, pois nelle se concentram ainda, affectos e tradições, que apertam os laços de família”.50 Esta ideia, defendida numa época em que vigia uma concepção matrimonialista de família e, consequentemente, ainda não se cogitava na proteção das uniões de fato, deve ser atualizada para os valores entabulados na Constituição Federal (LGL\1988\3). Observe-se que Clóvis Bevilaqua se socorria do argumento da “comunhão de vida e de interesses” para sustentar que o cônjuge supérstite deveria participar já das duas primeiras classes de sucessíveis.51 Maior ainda é a injustiça quando o legislador, em retrocesso à legislação até então vigente, esquece-se que no companheiro “se concentram, ainda, affectos e tradições, que apertam os laços de família” e favorece aqueles nos quais geralmente já se enfraquece e muitas vezes se desaparece o sentimento de unidade de família. Conforme conclui Sílvio Rodrigues:52 “Nada justifica colocar-se o companheiro sobrevivente numa posição tão acanhada e bisonha na sucessão da pessoa com quem viveu pública, contínua e duradouramente, constituindo família, que merece tanto reconhecimento e apreço, e que é tão digna quanto a família fundada no casamento”. A terceira crítica volta-se ao teor do inc. IV do art. 1.790, segundo o qual “não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”. O problema, em verdade, é de ordem hermenêutica, pois em regra os incisos devem ser lidos com base no previsto em seu caput53 e o caput do art. 1.790 determina que a sucessão do companheiro sobrevivente se limitará aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Em princípio, portanto, a “totalidade da herança” a que se refere o inc. IV diz respeito ao acervo sucessível nos termos do caput. Em consequência, caso o autor da herança não deixe parentes sucessíveis o companheiro teria direito a todos os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, devolvendo-se ao Estado o restante do acervo hereditário. No entanto, esta interpretação não é sustentável do ponto de vista teleológico e sistemático. Quando o legislador refere-se à “totalidade da herança” a expressão não é empregada no sentido em que os termos “quota” ou “herança” foram utilizados nos incs. I e III, respectivamente. Embora a redação do inc. IV devesse ser mais clara, o sentido e o escopo do emprego daquela expressão encontra-se totalmente desvinculado do teor do caput do art. 1.790, o que decorre do cotejo com outros dispositivos legais. Ademais, seria incoerente admitir a vacância da herança quando ainda existente herdeiro sucessível. O problema, em verdade, foi de técnica de redação legislativa. Do ponto de vista sistemático, impõe-se o ajuste do sentido literal da norma ao seu espírito, porquanto o art. 1.844 dispõe expressamente que, “não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado a herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal” (destaque nosso). Não se pode aceitar a perspectiva inversa, segundo a qual é o art. 1.844 que deve ser interpretado de acordo com o art. 1.790, IV, e não o contrário.54 Ela contradiz Página 11

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a teleologia que informa todo o Direito das Sucessões: a devolução da herança ao Estado só se justifica quando encontrar-se o sentimento de família assas enfraquecido. Valendo-se mais uma vez da lição de Clóvis Bevilaqua; “em substituição desse sentimento, há o de pátria, o de solidariedade nacional, que se reflete no direito hereditário com a sucessão do Estado”.55 Sendo esta a ideia que informa a matéria, a harmonização não deve ser feita em benefício da suposta correlação entre o inc. IV e o caput do art. 1.790 e em desfavor do texto do art. 1.844 e da valoração que informa as regras da vacância da herança. Esta terceira crítica resolve-se, portanto, no plano da interpretação das normas do Código Civil (LGL\2002\400) de 2002, não sendo, portanto, determinante para a questão da inconstitucionalidade do art. 1.790. De qualquer forma, é mais um aspecto negativo da criticável disciplina adotada pela Lei 10.406/2002 no que cuida da sucessão do companheiro. Por outro lado, há também uma quarta crítica, que, contudo, não diz respeito diretamente ao conteúdo do art. 1.790, mas a uma omissão do Código na disciplina da matéria. O art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.287/1996, previa, também em condições muito parecidas com as do cônjuge (art. 1.611, § 2.º, do CC/1916 (LGL\1916\1)), o direito real de habitação do companheiro sobrevivente: “Art. 7.º (…) Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”. O dispositivo possuía caráter assistencial. O legislador pretendeu evitar que o companheiro sobrevivo ficasse na dependência da caridade dos familiares do ator da herança,56 garantindo-lhe a moradia.57 Entretanto, o Código Civil (LGL\2002\400) de 2002 somente menciona o direito real de habitação do cônjuge supérstite (art. 1.832), não repetindo a regra do art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996. Apesar da omissão, parte da doutrina defende a manutenção deste direito no sistema do Código Civil (LGL\2002\400) de 2002.58 Esta tese foi acolhida na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho de Estudos Judiciários da Justiça Federal no período de 11 a 13.09.2002, aprovando-se proposta de enunciado elaborada por Gustavo Tepedino, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Ana Luiza Maia Nevares:59 “Enunciado 117 – Art. 1.831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei 9.278/1996, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6.º, caput, da CF/1988 (LGL\1988\3)”. A supressão legal do direito real de habitação representa um enorme retrocesso, pois ele consiste num instrumento de proteção aos membros da família. Trata-se de uma proteção mínima, de evidente cunho assistencial, na medida em que assegura ao companheiro sobrevivente a continuidade na residência familiar. No entanto, os argumentos utilizados no enunciado não devem ser aceitos. Houve sim a revogação do art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996, pelo Código Civil (LGL\2002\400) de 2002. Da leitura do art. 1.790 em cotejo com o art. 1.829, bem como do art. 1.845, que não menciona o companheiro como herdeiro necessário, verifica-se que a intenção do legislador foi conferir tutela mais abrangente ao cônjuge, favorecendo-o em relação ao companheiro. Esta valoração é confirmada pela própria localização do art. 1.790 e também pelo histórico da aprovação do Código Civil (LGL\2002\400) de 2002. As conclusões do relatório final do projeto que lhe deu origem são emblemáticas neste sentido: “As diretrizes imprimidas à elaboração do Projeto, fiéis nesse ponto às regras constitucionais e legais vigorantes, aconselham ou, melhor dizendo, impõem um tratamento diversificado, no plano sucessório, das figuras do cônjuge supérstite e do companheiro sobrevivo, notadamente se ocorrer qualquer superposição ou confusão de direitos à sucessão aberta. Impossibilitado que seja um tratamento igualitário, inclusive por descaracterizar tanto a união estável – enquanto instituição-meio – quanto o casamento – enquanto instituição-fim – na conformidade do preceito constitucional. A natureza tutelar da união estável constitui, na verdade, uma parcial correção da desigualdade Página 12

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reconhecida no plano social e familiar, desde que atentemos ser o casamento mais estável do que a estabilidade da convivência duradoura. (…) Tomamos assim como diretrizes básicas, na caracterização dos direitos sucessórios do cônjuge e do convivente, a prevalência da relação matrimonial em confronto como relacionamento estável”.60 Não se trata, portanto, de mero esquecimento do legislador. A valoração subjacente às normas e à sistemática do Código deixa claro que o legislador de 2002 tomou como pressuposto a desigualdade entre casamento e união estável. Por este motivo, parte da doutrina fala, acertadamente, de um “silêncio eloquente” (beredtes Schweigen), ou seja, “de uma exclusão pensada e deliberada”.61 É isto, com efeito, o que decorre da teleologia da lei. Dessa forma, inobstante a injustiça da solução seguida pelo Código Civil (LGL\2002\400), não há dúvida de que do ponto de vista infraconstitucional o art. 1.790 regulou toda a sucessão do companheiro, sendo incompatível com o art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996, incidindo aqui o disposto no art. 2.º, § 1.º, da LINDB: “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Pela mesma razão, não há se falar em lacuna e, logo, em aplicação analógica do art. 1.832 do CC/2002 (LGL\2002\400). Segundo Claus-Wilhelm Canaris:62 “Para se constatar uma lacuna, é necessário comprovar que a ausência de um (determinado) regramento não é apenas percebida como subjetivamente insatisfatória por aquele que investiga ou aplica o Direito, mas do ponto de vista do ordenamento total represente objetivamente uma incompletude contrária ao sistema (planwidrige Unvollständigkeit); pois sua vontade e não só o sentimento jurídico é o critério decisivo para a delimitação entre um vício e uma lacuna”. De fato, a ausência de previsão de direito real de habitação para o companheiro sobrevivo não contraria o sistema do Código Civil (LGL\2002\400). O tratamento desigual entre casamento e união neste aspecto encontra-se em sintonia com a valoração que informa as regras do regime sucessório instituído pelo legislador de 2002. Em verdade, a questão se resume a verificar se existe contrariedade em relação ao art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). Os valores constitucionais também são relevantes para a constatação de lacunas, mas é preciso não confundir os casos solucionáveis através do processo analógico daqueles que exigem uma análise da perspectiva da constitucionalidade da disciplina infra constitucional. A omissão do legislador infraconstitucional foi consciente e intencional. Não se trata de uma lacuna ( Lücke). Há, em princípio, um vício (Fehler) de política legislativa, desde que a análise cinja-se ao ponto de vista infraconstitucional. Sob o prisma constitucional, a omissão representa uma ofensa ao disposto no art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3), e reforça a tese da inconstitucionalidade da disciplina sucessória do companheiro segundo o novo Código Civil (LGL\2002\400). Com base numa metodologia clara e consistente, a inexistência de norma legal dispondo sobre o direto real de habitação para o companheiro sobrevivo é um problema que se resolve pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 e não pelo recurso à analogia ou à suposta não revogação do art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996. 5.3 A inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 Estas críticas demonstram que o tratamento conferido pelo Código Civil (LGL\2002\400) à sucessão do companheiro não garante a proteção indispensável ao atendimento do escopo do art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). O vício de inconstitucionalidade resulta da insuficiência da tutela conferida ao companheiro sobrevivo, que em muitas hipóteses ficará sem o amparo necessário à continuidade de uma vida digna e em condições próximas ou ao menos não muito distantes daquela em que vivia com o de cujus. A disciplina do Código Civil (LGL\2002\400), além de representar um retrocesso em relação às Leis 8.971/1994 e 9.278/1996, não assegura uma proteção mínima ao companheiro sobrevivo. Em determinadas situações, notadamente naquelas em que inexiste meação, aquele sequer terá direito a continuar na residência familiar, quanto menos a receber uma parte dos bens deixados pelo autor da herança, evitando que a morte deste o conduza (ou reconduza) à pobreza e ao desamparo. Não se cuida de um problema de equiparação da união estável ao casamento, o que não encontra Página 13

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apoio no texto constitucional, mas de assegurar àquela uma proteção mínima e suficientemente abrangente. A restrição contida no caput do art. 1.790 do CC, o lamentável retrocesso relativo à concorrência do companheiro sobrevivente com os colaterais do companheiro e a ausência da garantia mínima do direito real de habitação representaram uma significativa redução da proteção sucessória conferida ao companheiro, deixando “lacunas” incompatíveis com o objetivo de proteção insculpido no art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). De fato, as falhas da nova disciplina sucessória são tão graves que o consorte sobrevivente (e não raro pobre), mesmo diante de considerável patrimônio amealhado pelo falecido, muitas vezes se encontrará sem amparo algum e abandonado à miséria. É este lamentável retrocesso, e não a violação a uma suposta equiparação constitucional da união estável ao casamento, que conduz à inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC. Este diploma legal deveria ter observado o patamar mínimo de proteção já alcançado pelas Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 e que atendia ao escopo do art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). 6. A SOLUÇÃO APLICÁVEL À SUCESSÃO DO COMPANHEIRO Pressuposta a inconstitucionalidade do art. 1.790, resta saber quais normas deverão ser aplicadas à sucessão do companheiro. De forma diversa do correntemente defendido pelos partidários da tese da inconstitucionalidade, esta não resulta da ofensa a uma suposta equiparação constitucional da união estável ao casamento, mas sim da ausência de uma proteção sucessória mínima e suficientemente abrangente. Em outras palavras, não é a opção do legislador por privilegiar o cônjuge em relação ao companheiro que ofende o art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3), mas a sua falha em assegurar a este uma tutela sucessória satisfatória e condizente com a evolução histórica da proteção da união estável. Desta forma, a solução lógica não consiste em aplicar analogicamente as regras relativas à sucessão do cônjuge previstas no Código Civil (LGL\2002\400). Além de a Constituição não exigir tal equivalência, isto contrariaria a valoração perfilhada pelo legislador de 2002. Em verdade, o preenchimento do “vazio” resultante da declaração da inconstitucionalidade do art. 1.790 deve ser realizado conforme a mens legis do Código, que não equiparou a situação sucessória do companheiro à do cônjuge. A solução reside em reconhecer que os arts. 2.º da Lei 8.971/1994 e 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996, não foram revogados pelo Código Civil (LGL\2002\400) de 2002. Estas normas garantem uma proteção satisfatória ao companheiro sobrevivo, sem, contudo, equipará-lo à situação do cônjuge, o que contrariaria o espírito do legislador de 2002. Sua permanência no ordenamento jurídico resulta da própria declaração da inconstitucionalidade do art. 1.790, o qual almejava regular inteiramente a matéria (art. 2.º, § 1.º, LINDB). Neste sentido, Marcelo Passamani Machado63 afirma que: “um fenômeno semelhante à repristinação ocorre quando um determinado juízo reconhece a inconstitucionalidade e pronuncia a nulidade absoluta de uma norma que revogou outra. Sim, porque, num primeiro momento, poderia parecer que essa decisão de inconstitucionalidade teria o condão de restaurar a eficácia da lei revogada. Mas não é exatamente isso que ocorre. Na verdade, se a sanção atribuída à norma inconstitucional for a de nulidade absoluta, forçosa será a conclusão de que a lei declarada inconstitucional não produziu qualquer efeito, nem mesmo o de revogar a lei anterior. Assim, não haveria que se falar em restauração da eficácia de uma lei, mas sim em mero reconhecimento judicial de que tal lei nunca chegou a ser revogada, reconhecimento esse que possui como consequência um efeito que poderia ser denominado ‘repristinatório’”. Além disso, o reconhecimento da inconstitucionalidade de todo o texto do art. 1790 e a consequente aplicação das regras vigentes até o advento do novo Código Civil (LGL\2002\400) é melhor que o “decotamento” daquele dispositivo. A aplicação integral das regras sucessórias das Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 evita que o interprete distorça a mens legis, arvorando-se na função de legislador. Não se deve simplesmente extirpar a locução “quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável” contida no caput e considerar o inc. III total ou parcialmente inconstitucional, o que, além de não abordar diretamente o problema do Direito real de habitação, transbordaria os limites da função judicante. Tais modificações fragmentariam o dispositivo, transformando totalmente o seu sentido originário. Poder-se-ia criticar esta solução, afirmando-se que a aplicação dos dispositivos das Leis 8.971/1994 e 9.278/1996 seria menos favorável ao companheiro em determinadas situações. Por exemplo, quando em concorrência com um descendente comum receberia apenas o usufruto relativo a um Página 14

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quarto do acervo hereditário, assegurado o direito real de habitação. Todavia, pelo art. 1.790, I, do CC, o companheiro sobrevivo sucederia como proprietário na metade do patrimônio. No entanto, é preferível abandonar inteiramente o dispositivo a fragmentá-lo, numa ilação que não encontra qualquer apoio no Direito positivo. Ademais, as desvantagens pontuais decorrentes da aplicação dos diplomas de 1994 e 1996 são compensadas pela garantia de uma proteção mínima e mais abrangente, o que efetivamente atende ao escopo do art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3). Além de lhe ser vedado substituir a valoração acolhida pelo legislador infraconstitucional (a qual não contraria a Constituição), o interprete não pode desvirtuar o sentido originalmente instituído pela regra eivada de inconstitucionalidade, inovando no ordenamento jurídico de forma totalmente desvinculada do sentido original da lei. Se os contornos básicos da regra malsinada não se coadunam com a norma suprema, como é o caso do caput do art. 1.790, a inconstitucionalidade alcança todo o seu texto e não apenas aqueles excertos que o interprete entende inconvenientes. Por fim, é importante fazer uma ressalva. O companheiro não foi elencado no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845). Poder-se-ia sustentar que toda a argumentação até então expendida para justificar uma maior proteção sucessória do companheiro iria por água abaixo caso não se lhe atribuísse tal qualidade. Contudo, dada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC e a consequente aplicação do art. 2.º da Lei 8.971/1994 e do art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996, a questão se desloca para a interpretação destes dispositivos. Por exemplo, João Baptista Villela,64 ao cuidar do art. 2.º da Lei 8.971/1994, defende que, “diante da imperatividade formal e da incondicionalidade absoluta sob que os direitos sucessórios dos companheiros vêm afirmados, não há como negar aos respectivos titulares a condição de herdeiros por força de lei e não por vontade presumida do de cujus. Ou seja, não está no poder do sucedendo excluir da herança o companheiro, desde que concorram os requisitos da Lei”. Todavia, esta questão não precisa ser enfrentada neste momento, já que ela não interfere diretamente na inconstitucionalidade do art. 1.790. De qualquer forma, vale lembrar que o STJ possui precedentes em sentido contrário ao entendimento esposado pelo citado jurista.65 Além disso, alguns autores ressaltam que a união estável pressupõe uma maior liberdade do casal, ainda que a custo de algumas garantias. Afirma-se, com efeito, que “a diferença hoje entre o casamento civil e a união estável restou fundamentalmente em que o cônjuge é herdeiro necessário e o companheiro não o é”. 66 Neste sentido, talvez seja legítimo e necessário que a legislação possibilite aos indivíduos optar por uma forma de constituição familiar em que se possa afastar por testamento seu consorte da sucessão hereditária, evitando-se certas situações que podem acarretar sérios inconvenientes práticos e familiares. Basta imaginar os casos cada vez mais frequentes de “famílias recompostas”, em que cada convivente ou cônjuge traz filhos de relações anteriores. Pode ser de interesse de cada genitor assegurar que, em caso de morte, sua herança seja ao final destinada apenas aos seus descendentes, não correndo o risco de que seja “desviada” por via de seu consorte aos descendentes deste. De qualquer forma, mesmo que se entenda pela impossibilidade de o sucedendo afastar o usufruto legal ou mesmo o direito real de habitação, existe outra vantagem na aplicação da Lei 8.971/1994. Diferentemente da solução seguida pelo Código Civil (LGL\2002\400), com a morte do companheiro sobrevivo os bens por este recebidos em usufruto retornarão necessariamente aos descendentes do falecido que mantinham a nu-propriedade sobre aqueles. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC e a consequente aplicação dos arts. 2.º da Lei 8.971/1994 e 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996, é a única solução que, além de atender ao art. 226, § 3.º, da CF (LGL\1988\3), não desconsidera a valoração subjacente às normas do diploma legal de 2002 e encontra respaldo no ordenamento jurídico. Deste modo, garante-se à proteção necessária ao companheiro sobrevivente, afastando-se as principais falhas da disciplina sucessória contida no art. 1.790. Enquanto o legislador infraconstitucional não editar novo regramento, esta é a única solução que atende tanto à técnica quanto à justiça. 8. BIBLIOGRAFIA

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1 STJ, Arguição de Inconstitucionalidade no REsp 1135354/PB, 4.ª T., j. 24.05.2011, v.u., rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 02.06.2011. O incidente foi suscitado em relação aos incs. III e IV do art. 1.790. Até a finalização deste artigo, três Ministros haviam proferido voto: o relator do incidente, Min. Luis Felipe Salomão, votou pelo seu acolhimento; o Min. Cesar Asfor Rocha, pela improcedência da arguição, e o Min. Teori Albino Zavascki pelo seu não conhecimento. O julgamento foi suspenso em 06.06.2012 em razão de pedido de vista do Min. Felix Fischer. 2 Por exemplo, Sílvio Rodrigues afirma que, “o Código Civil (LGL\2002\400) regulou o direito sucessório dos companheiros com enorme redução, com dureza imensa, de forma tão encolhida, tímida e estrita, que se apresenta em completo divórcio com as aspirações sociais, as expectativas da comunidade jurídica e com o desenvolvimento de nosso direito sobre a questão” (Direito civil. 26. ed. rev. e atual. por Zeno Veloso. São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 7 – Direito das Sucessões, p. 117). Na mesma linha, Zeno Veloso assevera que “(…) o novo Código Civil (LGL\2002\400) promove um recuo notável. O panorama foi alterado, radicalmente. Deu-se um grande salto para trás. Colocou-se o companheiro em posição infinitamente inferior com relação à que ostenta o cônjuge” (Do direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). Direito de família e o novo Código Civil (LGL\2002\400). Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 232). 3 Neste sentido cf., por exemplo, DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. São Paulo: Ed. RT, 2008. p. 181. 4 TJPR, IDI 536.589-9/01, Órgão Especial, j. 04.12.2009, rel. Des. Sérgio Arenhart. Em sentido contrário, cf. TJSP, Arguição de Inconstitucionalidade 0359133-51.2010.8.26.0000, Órgão Especial, j. 14.09.2011, rel. Des. Cauduro Padin; TJSP, Arguição de Inconstitucionalidade 0434423-72.2010.8.26.0000, Órgão Especial, j. 14.09.2011, rel. Des. Cauduro Padin. 5 Estatuto da família de fato. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 197. 6 Quanto à mudança do emprego terminológico da palavra “concubinato”, PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 16-17, explica que, “antes de ter sentido técnico-jurídico, esse termo é a indicação de um modo de vida ou um estado, a marca de um (pré)conceito que vem se formando ao longo do tempo. Nomear uma mulher de concubina é, ainda, socialmente uma ofensa. É como se referir à sua conduta moral e sexual de forma negativa. (…) o legislador parece querer expurgar a carga de preconceito sobre a palavra concubinato, substituindo-a, na Constituição de 1988, pela expressão ‘união estável’”. 7 Para o direito italiano o regime legal era o da separação de bens, o que ensejou um problema Página 17

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prático em relação aos casais de imigrantes italianos. Em geral, todo o acervo patrimonial amealhado mediante o esforço comum encontrava-se, por razões culturais, em nome do varão. Com a morte deste, o cônjuge virago via-se desamparado, pois todo o patrimônio haurido destinar-se-ia aos descendentes do falecido. Para evitar esta injustiça, as cortes brasileiras conferiram ao cônjuge sobrevivente o direito de partilhar do patrimônio amealhado pelo casal mediante esforço comum, solução posteriormente estendida à concubina. Neste sentido, cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2001. p. 301. 8 Cf. decisão do STF citada por BITTENCOURT, Edgar de Moura. Concubinato. 2. ed. São Paulo: Universitária de Direito, 1980. p. 23: “O concubinato, embora à margem da família constituída, nasce das circunstâncias imperiosas da vivência social, e gera interesses que a moral não repele e só se não concilia como fato gerador de direito se, em suas consequências, entra em choque com situações jurídicas já constituídas à sombra da lei” (DJU 05.12.1963, p. 1.256 do apenso ao n. 222). 9 BITTENCOURT, Edgar de Moura. Op. cit., p. 11. 10 Idem, ibidem. 11 A concubina e o direito brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 243. 12 Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundadas no matrimônio, p. 400. In: ______. Temas de direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 393-418. O autor identifica três fases da evolução do tratamento legislativo e jurisprudencial das entidades familiares. A primeira tem início com a rejeição pura e simples do concubinato, culminando com sua assimilação pela jurisprudência no âmbito do direito obrigacional. Na segunda fase, em que a proteção se estende principalmente às leis acidentárias e previdenciárias, já haveria, segundo o autor, “o ingresso do concubinato no direito de família”. A terceira fase, por fim, inicia-se com a tutela constitucional das uniões estáveis. 13 Cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 375-379. 14 Em sentido semelhante cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 36. 15 Por exemplo, BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 54, defendeu, mesmo após a Constituição de 1988, que “as uniões fora do casamento, mesmo quando estáveis, não têm o condão de legitimar a constituição de núcleo familiar, dadas a insubmissão ao regime próprio, a dissolubilidade absoluta do relacionamento e a submissão à simples vontade dos partícipes” (destaque nosso). Em outro excerto ressaltou: “sob regime diverso do da família, encontra-se, como anotamos, a entidade ou unidade familiar, resultante de união ou de filiação livres, ou seja, originadas sem ou fora do casamento e com o alcance ditado por suas próprias limitações (Constituição, art. 226, § 3.º). Derivada, de início, de concubinato – ou união estável entre homem e mulher sem casamento – a assim denominada entidade familiar, pela Constituição vigente, se forma e se funda sob premissas diversas, produzindo, ademais, efeitos outros, que com a natureza e com os fins do Direito de Família se não compadecem. (…) Daí, a sua submissão ao Direito comum, pessoal ou obrigacional, conforme o caso, respeitados, apenas os liames de filiação, com as restrições próprias, e os direito da mulher, assegurados a nível legal, na legislação assistencial e jurisprudencial, de cunho patrimonial, na defesa da respectiva personalidade” (idem, p. 60). 16 Em sentido contrário cf. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de famílias. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2006. p. 146. 17 Por exemplo, o STJ estendeu o direito à percepção de alimentos às hipóteses de dissolução da união estável ocorrida em momento anterior à Lei 8.971/1994: “a união estável entre homem e mulher, independentemente do casamento, pode determinar a estipulação de alimentos ao companheiro necessitado, ainda que o rompimento desse vínculo tenha ocorrido anteriormente à vigência da Lei 8.971/94, que regulamentou o art. 226, § 3.º, da Constituição Federal (LGL\1988\3)” (REsp 605.205/BA, 3.ª T., j. 26.08.2004, v.u., rel. Min. Castro Filho, DJ 20.09.2004, p. 292). 18 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 79. Página 18

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19 Por exemplo, um problema relacionado à ausência de formalidade, diz respeito à necessidade ou não de autorização do companheiro na hipótese de venda de imóvel. O TJSP já decidiu que “a união estável não exige outorga uxória do convivente para a alienação de bem imóvel. E assim é porque, conforme entendimento jurisprudencial predominante, a união estável geralmente é de difícil identificação, e por isso, a necessidade de outorga instalaria o verdadeiro caos nas relações negociais envolvendo compra e venda de imóvel, já que por certo sofreria o terceiro contratante com a anulação pleiteada pelo convivente que desconhecia a alienação” (ApCiv 679.174-4/5, 4.ª Câm. de Direito Privado, j. 29.10.2009. v.u., rel. Des. Maia da Cunha). Na mesma linha: TJSP, ApCiv 396.100-4/6-00, 2.ª Câm. de Direito Privado, j. 15.04.2008, v.u., rel. Des. Ariovaldo Santini Teodoro; TJSP, Ap. 9250865-12.2008.8.26.0000, 8.ª Câm. de Direito Privado, j. 18.04.2012, v.u., rel. Des. Luiz Ambra. 20 Cite-se, por exemplo, a maior probabilidade de incertezas – e, consequentemente, de injustiças – quando o companheiro necessita demonstrar sua situação para fins previdenciários. A título ilustrativo, cf. TRF-3.ª Reg., ApCiv 1189966, 8.ª T., j. 19.11.2007, rel. Des. Vera Jucovsky, DJU 20.02.2008, em que prevaleceram os votos dos Desembargadores Marianina Galante e Newton De Lucca quanto à inexistência de prova da união estável: “Previdenciário. Auxílio-reclusão. Companheira. União estável não comprovada. Requisitos não satisfeitos. I – O benefício de auxílio-reclusão é devido aos dependentes do recluso no momento do recolhimento à prisão. II – Aplicação do art. 80 da Lei 8.213/1991, regulamentada pelo Dec. 3.048/1999, arts. 116 a 119. III – Cuidando-se de companheiro é preciso verificar a continuidade da vida em comum. IV – Documentos juntados indicam endereços da autora e do recluso diversos e não houve esclarecimento sobre a referida diversidade. V – O único documento que comprova a condição de companheira da autora é a carteira expedida pela penitenciária de Mirandópolis, de 21.02.2005, posterior à reclusão, que se deu, inicialmente em 17.09.2003. VI – As provas produzidas não deixam clara a alegada convivência more uxório entre a requerente e o recluso, o que coloca em dúvida a presunção da dependência econômica. VII – Não comprovado o preenchimento dos requisitos legais para concessão do benefício, o direito que persegue a autora não merece ser reconhecido. VIII – Recurso da autora improvido”. Cite-se, também, a dificuldade de fixação de alimentos provisórios nestes casos. Neste sentido, João Baptista Villela assinala que, “se a ação é proposta com base no parentesco ou em outro título de obrigação alimentar, dispõe o juiz, ao menos, de uma causa potencial para a condenação initio litis. Na ação entre companheiros, ao contrário, inspirada antes em fatos que em direito, pode falecer qualquer indício pré-constituído em que a autoridade pudesse vislumbrar o fumus boni juris” (Alimentos e sucessão entre companheiros: apontamentos críticos sobre a Lei n. 8.971/94. Repertório IOB Jurisprudência 7/117). Sobre o tema: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 524-530. 21 Família – Casamento – União estável: conceitos e efeitos à luz da Constituição de 1988, p. 133. Revista da Faculdade de Direito (UERJ), vol. 1, n. 1, p. 123-137. Outrossim, vale transcrever excerto do voto proferido pelo Des. Barbosa Moreira em acórdão muito citado pela doutrina: “Ao admitir-se tal equiparação, teria desaparecido por completo a diferença entre a ‘união estável’ não formalizada e o vínculo matrimonial. Isso, porém, é insustentável à luz do próprio texto: se as duas figuras estivessem igualadas, não faria sentido estabelecer que a lei deve facilitar a conversão da ‘união estável’ em casamento. Não é possível converter uma coisa em outra, a menos que sejam desiguais: se já são iguais, é desnecessária – inconcebível – a conversão” (TJRJ, Ap 1.123/911, 5.ª Câm., j. 06.08.1991, v.u., COAD, n. 16, 1992, ref. 5607, citado, dentre outros, por: CAHALI, Francisco José. União estável e alimentos entre companheiros. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 16, o qual segue o mesmo entendimento; LEITE, Eduardo de Oliveira. O concubinato frente à nova Constituição: hesitações e certezas. In: PINTO, Teresa Arruda Alvim (coord.). Repertório de jurisprudência e doutrina sobre direito de família: aspectos constitucionais, civis e processuais. São Paulo: Ed. RT, 1993. p. 98). 22 Idem, ibidem. 23 GODOY, Claudio Luiz Bueno. Efeitos pessoais da união estável. In: CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu et al (coord). Direito de família no novo milênio: estudo em homenagem ao Professor Álvaro Villaça de Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010. p. 330: “Não se há de diferenciar efeitos que digam respeito, de maneira direta, com o conteúdo material dessas uniões. Se pautadas pelo mesmo valor, se funcionalizadas ao mesmo fim, tais distinções não parecem possíveis. Seria, afinal, Página 19

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conceber famílias de diverso peso, e não apenas com diversa constituição”. 24 Neste sentido, o citado autor afirma o seguinte: “a questão, porém, está em compreender até que ponto pode o legislador construir regimes diferenciados para disciplinar essas relações. Pode assentar diverso dever de mútua assistência? Pode, como fez o CC, determinar diferente direito sucessório? Tem-se que a resposta seja, desenganadamente, negativa. Não se há de diferenciar efeitos que digam, de maneira direta, com o conteúdo material dessas uniões. Se pautadas pelo mesmo valor, se funcionalizadas ao mesmo fim, tais distinções não parecem possíveis. Seria, afinal, conceber famílias de diverso peso, e não apenas com diversa constituição” (idem, p. 330-331). 25 O art. 3.º da Lei 8.971/1994 dispunha o seguinte: “quando os bens deixados pelo(a) autor(a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do(a) companheiro(a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens”. Por sua vez, o art. 5.º, caput, da Lei 9.278/1996 rezava: “os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito”. Da leitura dos dispositivos verifica-se a existência de diferenças quando em comparação com o regime da comunhão parcial então disciplinado no art. 269 e ss. do CC/1916 (LGL\1916\1). Além da discussão referente à “colaboração comum”, basta mencionar que os bens adquiridos por fato eventual sempre entram na comunhão segundo o art. 271, II, do CC/1916 (LGL\1916\1). 26 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 412-416, o qual ainda afirma: “Quanto à união estável, há regras próprias para a sucessão hereditária, conforme o disposto no art. 2.º da Lei 8.971/1994, art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996 e art. 1.790 do CC/2002 (LGL\2002\400)”. 27 Parece ter sido este o escopo de Gustavo Tepedino ao se valer da distinção acima referida. Tudo indica que sua intenção não é vedar ao legislador qualquer espécie de distinção quanto aos efeitos materiais da união estável em relação ao casamento, mas apontar parâmetros para a interpretação de dispositivo legais cujo texto em princípio não abrangeria a união estável. De fato, o autor afirma que: “trata-se de identificar a ratio das normas que se pretende interpretar. Quando informadas por princípios relativos à solenidade do casamento, não há que se estendê-las às entidades familiares extramatrimoniais. Quando informadas por princípios próprios da convivência familiar, vinculada à solidariedade dos seus componentes, aí, sim, indubitavelmente, a não aplicação de tais regras contraria o ditame constitucional” (op. cit., p. 408). 28 O Enunciado 99 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho de Estudos Judiciários da Justiça Federal, dispõe que: “o art. 1.565, § 2.º, do Código Civil (LGL\2002\400) não é norma destinada apenas às pessoas casadas, mas também aos casais que vivem em companheirismo, nos termos do art. 226, caput, §§ 3.º e 7.º, da Constituição Federal de 1988, e não revogou o disposto na Lei 9.263/1996”. 29 TJSP, Arguição de Inconstitucionalidade 0359133-51.2010.8.26.0000, Órgão Especial, j. 14.09.2011, rel. Des. Cauduro Padin (cf. também TJSP, Arguição de Inconstitucionalidade 0434423-72.2010.8.26.0000, Órgão Especial, j. 14.09.2011, rel. Des. Cauduro Padin). 30 Este é o princípio adotado pelo ordenamento brasileiro desde a Lei Afonso Penna (Dec. 1.839, de 31.12.1907), que colocou o cônjuge sobrevivente adiante dos colaterais na ordem de vocação hereditária. 31 Por meio do Dec.-lei 3.200, de 19.04.1941, o legislador procurou beneficiar a mulher brasileira casada com estrangeiro, quando o regime de bens fosse outro que não o da comunhão, conferindo-lhe, neste caso, o usufruto vitalício de parte dos bens deixados por seu marido. Nesta mesma linha, o art. 3.º da Lei 883, de 21.10.1949, determinou que, concorrendo o cônjuge com o filho adulterino de seu consorte, reconhecido na forma daquele diploma legal, teria direito à metade dos bens da herança, se o falecido não houvesse deixado testamento. 32 Porém, existem situações em que o cônjuge supérstite não é chamado à sucessão legítima. Cf., em especial, o art. 1.830: “somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do Página 20

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sobrevivente”. 33 Anote-se que a referência ao art. 1.640, parágrafo único, está errada. As hipóteses em que o regime da separação é obrigatória encontram-se em verdade no art. 1.641. 34 Defendendo a posição majoritária cf. MALUF, Carlos Alberto Dabus. A sucessão do cônjuge sobrevivente casado no regime da separação convencional de bens. In: NUNES, João B. A. de Vilhena (coord.). Família e sucessões: reflexões atuais. Curitiba: Juruá, 2009. p. 371-380. Todavia, o STJ já decidiu em sentido contrário ao entendimento predominante na doutrina (STJ, REsp 992749/MS, 3.ª T., j. 01.12.2009, rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 05.02.2010). Sobre o tema cf. SILVA, Regina Beatriz da. Regime de separação de bens convencional e obrigatória. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Questões controvertidas no novo Código Civil (LGL\2002\400). São Paulo: Método, 2004. vol. 2. 35 Mário Luiz Delgado observa que “grande parte da doutrina vem sustentando que o novo Código Civil (LGL\2002\400) teria vinculado, necessariamente, o direito sucessório do cônjuge sobrevivente ao regime matrimonial de bens pactuado”. Em acertada crítica a esta interpretação esclarece que “o regime de bens só influi no direito de concorrência do cônjuge com os descendentes e nada mais. Os demais direitos sucessórios do cônjuge não possuem qualquer vinculação com regime de bens” (Controvérsias na sucessão do cônjuge e do convivente. In: ______ (coord.). Questões controvertidas no direito de família e das sucessões: série grandes temas de direito privado. São Paulo: Método, 2005. vol. 3, p. 431). 36 Embora o art. 1.831 do CC/2002 (LGL\2002\400) não determine expressamente que o direito real de habitação será assegurado enquanto o cônjuge supérstite viver, como o fazia o art. 1.611, § 2.º, do CC/1916 (LGL\1916\1), não houve nenhuma modificação neste sentido, pois ao direito real de habitação aplicam-se as disposições relativas ao usufruto (art. 1.416), dentre as quais aquela que determina sua extinção “pela renúncia ou morte do usufrutuário” (art. 1.410, I). 37 Cf. STJ, REsp 191393/SP, 3.ª T., j. 20.08.2001, rel. Min. Waldemar Zveiter, rel. p/ acórdão Min. Ari Pargendler, DJ 29.10.2001, p. 201: “se não houver herdeiros necessários (ascendentes ou descendentes), o companheiro pode, em testamento, dispor livremente de seus bens; a companheira só tem o direito de reclamar a meação, não o direito que resultaria da condição de herdeira”. No mesmo sentido: “Agravo regimental – Agravo de instrumento – Sucessão testamentária – Lei 8.971/1994 – Perda do objeto do recurso por força de decisão que determinou o registro e inscrição do testamento. 1 – Pretende a agravante, em verdade, é que se desconsidere o testamento deixado por seu companheiro, ao argumento de que com a Lei 8.971/1994, a sucessão seria legítima e não testamentária. Contudo, tal não sucede posto que o referido diploma legal não institui a companheira como herdeira necessária, mas apenas a inclui na ordem da sucessão legítima ao lado do cônjuge sobrevivente. II – Perda do objeto do recurso por força de decisão que determinou o registro e inscrição do testamento. Ademais, ressalta-se que está em vias de processamento, nesta Corte, outro recurso interposto da decisão referida no acórdão. III – Agravo Regimental desprovido” (STJ, AgRg no Ag 169771/SP, 3.ª T., j. 22.09.1998, rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 09.11.1998, p. 95). Há, no entanto, entendimento doutrinário minoritário em sentido oposto (cf. NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 143). 38 STJ, REsp 418365/SP, 3.ª T., j. 21.11.2002, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, v.u., DJ 28.04.2003, p. 198. 39 Como bem observa Sílvio Rodrigues, “nem os maiores defensores do reconhecimento da união estável ousaram pretender que a situação jurídica dos companheiros fosse melhor do que a dos cônjuges, o que, além de não ser razoável, nem conveniente, ou justo fere a Constituição” (op. cit., p. 117). Ao analisar o art. 2.º da Lei 8.971/1994, João Baptista Villela defendeu que “o único meio de chegar a uma interpretação constitucionalmente conforme é ter como alterada a posição relativa dos casados por modo a que tenham os mesmos direitos dos companheiros entre si. Portanto, a situação descrita no ar. 2º, I e II, deve considerar-se estendida a todos os que estão formalmente casados, qualquer que seja o seu regime de bens. Trata-se de uma típica aplicação, em direito interno, da chamada Meistbegünstigungsklausel ou ‘cláusula de maior favorecimento’, usual no comércio internacional” (op. cit., p. 117). Página 21

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40 Comentários ao Código Civil (LGL\2002\400). 2. ed. Saraiva: São Paulo, 2007. vol. 20, p. 54. 41 Relatório geral da Comissão Especial do Código (02.05.2000), p. 44. 42 VELOSO, Zeno. Op. cit., p. 230. 43 Vale ressaltar que a dicção legal não restringe a sucessão aos bens que integrarem a meação do casal, não havendo uma relação necessária entre meação e bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Neste sentido cf. VELOSO, Zeno. Direito sucessório do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 169-170. É possível que o casal afaste o regime legal optando por outro, mas “o fato de o contrato entre os companheiros ter alterado a relação patrimonial existente entre eles não altera a regra sucessória prevista no art. 1.790” (TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2011. vol. 6 – Direito das Sucessões, p. 237). No entanto, não é usual que os companheiros celebrem contrato de convivência, aplicando-se as regras do regime da comunhão parcial de bens. 44 Direito sucessório… cit., p. 173. 45 TJRS, ApCiv 70031054265, 7.ª Cam. Civ., j. 14.10.2009, v.u., rel. Des. José Conrado Kurtz de Souza, DJ 12.10.2009. Em sentido contrário: TJSP, ApCiv 622.8 64-4/2-00, 1.ª Câm. de Direito Privado, j. 31.03.2009, v.u., rel. Des. De Santi Ribeiro: “é possível a transmissão não só da dívida deixada pelo alimentante falecido, mas também da própria obrigação alimentar, nos termos do já mencionado art. 1.700 do CC”. 46 STJ, EDcl no AgRg no Ag 1352511/MT, 4.ª T., j. 24.05.2911, v.u, rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe 01.06.2011: “havendo condenação prévia do autor da herança, há obrigação de prestar alimentos e esta se transmite aos herdeiros. Inexistente a condenação, não há por que falar em transmissão do dever jurídico de alimentar, em razão do seu caráter personalíssimo e, portanto, intransmissível”. 47 Cf. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 415: “esses alimentos transmissíveis são somente aqueles já firmados em decisão judicial ou decorrentes de ação já proposta quando da morte do alimentante”. 48 STJ, REsp 1.117.563/SP, 3.ª T., j. 17.11.2009, v.u., rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 06.04.2010. 49 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Op. cit., p. 251. No mesmo sentido: “Conforme mostramos, na legislação anterior ao Código Civil (LGL\2002\400) vigente (Lei 8.971/1994), e copiando a solução dada ao cônjuge, se o falecido não deixava descendentes nem ascendentes, o companheiro sobrevivente ficava com toda a herança, excluindo os parentes colaterais. Eis que chega o novo Código Civil (LGL\2002\400), e o art. 1.790, III, determina que o companheiro vai concorrer com os colaterais sucessíveis, ou seja, até o quarto grau. Mas não ficou só nisso o legislador (…). Para sintetizar, numa expressão, o que penso dessa norma, afirmo: é inacreditável!” (VELOSO, Zeno. Direito sucessório… cit., p. 178). 50 Código Civil (LGL\2002\400) dos Estados Unidos do Brasil. Edição histórica. Rio de Janeiro: Rio, 1976. vol. 2, p. 795. 51 Antes, portanto, do advento do Estatuto da Mulher Casada. 52 Op. cit., p. 119. 53 “O caput é a unidade básica da disposição, o núcleo do artigo, contendo a substância da norma, a regra geral, o princípio a respeito do assunto tratado. Os parágrafos, incisos e alíneas são desdobramentos do caput, divisões do artigo, que desenvolvem, restringem, explicitam a regra principal, da qual, obviamente, dependem” (RODRIGUES, Sílvio. Op. cit., p. 118). 54 CARVALHO NETO, Inacio de. Direito sucessório do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Método, 2007. p. 191-192: “(…) a herança será parcialmente vacante se, mesmo havendo Página 22

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companheiro, não tiver o de cujus deixado outros herdeiros, deixando, contudo, bens anteriores à união estável ou adquiridos a título gratuito. Não socorre a redação do art. 1.844, que deve ser interpretado em consonância com o caput do art. 1.790”. 55 Op. cit., p. 795. 56 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17. ed. rev. e atual. por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2009. vol. 5 – Direito de Família, p. 579. 57 Em vista desta finalidade, já se indeferiu a concessão da proteção quando o companheiro sobrevivente era proprietário de imóvel residencial que poderia lhe suprir a necessidade de moradia (TJRJ, ApCiv. 2001.001.22222, 18.ª Câm. Civ., j. 07.03.2002, v.u., rel. Des. José de Samuel Marques: “União Estável. Meação e deferimento de direito real de habitação. Impossibilidade. (…). O direito real de habitação, sendo o Apelante proprietário de imóvel residencial que pode suprir-lhe a necessidade de moradia, não merece acolhimento sua pretensão. Recurso não provido”). O julgado é citado por NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 154, n. 271. 58 Neste sentido: VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 158; NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 177. 59 Cf. NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 177. 60 Relatório geral da Comissão Especial do Código, p. 44. 61 VELOSO, Zeno. Direito sucessório… cit., p. 162. 62 Die Feststellung Von Lücken im Gesetz: eine methodologische Studie über Voraussetzungen und Grenzen der richterlichen Rechtsfortbildung praeter legem. 2. ed. Berlin: Duncker e Humblot, 1983. p. 73: “um die Lücke festzustellen, gilt es zu beweisen, daß Fehlen einer (bestimmten) Regelung nicht nur vom Rechtssuchenden oder –anwendenden subjektiv als ungefriedgend empfunden wird, sondern vom Standpunkt der Gesamtrechtsordnung aus objektiv eine planwidrige Unvollständigkeit darstellt; denn deren Wille und nicht das Rechtsgefühl ist das maßgebliche Kriterium für die Abgrenzung von Fehler und Lücke” (trad. livre). 63 Controle de constitucionalidade das leis: efeitos de suas decisões. Dissertação (Mestrado), São Paulo, Faculdade de Direito da USP, 2008. p. 194. 64 Op. cit., p. 116. No mesmo sentido cf. NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 146. 65 Cf. nota de rodapé no item 4 supra. 66 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 74.

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