Aspectos teórico-literários em \" Quem disser o contrário é porque tem razão \" , de Mário de Carvalho

May 22, 2017 | Autor: V. Fino | Categoria: Literatura Portuguesa, Teoria da literatura, Escrita Criativa
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Aspectos teórico-literários em “Quem disser o contrário é porque tem razão”, de Mário de Carvalho

Vicente Vivaldo Figueira Fino Évora Janeiro/2017

Índice

Nota Introdutória .............................................................................................................. 3 1- Da Arte Poética à Teoria da Literatura – um breve resumo ......................................... 4 2- Os “manuais” de escrita e a Teoria da Literatura: o caso de Quem disser o contrário é porque tem razão, de Mário de Carvalho ....................................................................... 15

3- Considerações finais ................................................................................................... 25

Bibliografia ..................................................................................................................... 26

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Nota Introdutória

Abordando uma obra cuja interpretação poderá passar por um conceito geral de “manual” de escrita, entendemos constituir-se de suma importância elaborar uma revisão do caminho traçado pela crítica literária ao longo dos séculos. Será, portanto, a partir de uma formulação evolutiva dos estudos literários – que de forma generalizada, e até bem dentro do século XVIII, viam a luz sob a “especialização” entendida como arte poética, no sentido em que os tratados do género trabalhavam, sobretudo, sob o texto poético – que elaboraremos uma análise a “Quem disser o contrário é porque tem razão”, de Mário de Carvalho. Tal análise, forçosamente relevando os aspectos teórico-literários, não obviará a que sobre a mesma possa incidir uma interpretação que se estenderá à natureza primária da obra, que entendemos ser próxima à de um manual de escrita, com a particularidade de reflectir sobre as questões teóricas de um texto literário. Será nossa intenção perceber os aspectos da criação literária sobre os quais existe maior implicação do autor e relacionálos com as diferentes correntes teóricas. Tentaremos, igualmente, perceber a viabilidade de no futuro a Teoria da Literatura poder acercar-se a obras deste género, onde avultam os exemplos práticos conseguindo, devido a essa característica, alcançar um número maior de leitores e, quiçá, aproximar o leitor “comum” das questões teóricas do texto literário.

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1- Da Arte Poética à Teoria da Literatura – um breve resumo “E também é certo que o pensamento sobre a literatura surge após a literatura. As gerações sucessivas de bardos, alguns geniais, que foram compondo, citando, ampliando e corrigindo a Ilíada e a Odisseia, certamente não teriam à vista um conjunto de regras de escrita.”1

Desde a antiguidade que o Homem sente necessidade de “explicar” os textos que ele próprio vai criando. Ainda longe do que é hoje entendido como teoria literária, as primeiras leituras críticas incidiam, maioritariamente, sobre os textos poéticos e dramáticos, numa perspectiva de entendimento comum à filosofia. São disso exemplo os vários textos de Platão, desde o Íon - ainda que numa abordagem analítica geral e resumida – até à República, considerado o primeiro texto que ousa debruçar-se sobre a literatura com uma aquidade e detalhe que não havia sido feito até então. Todavia, a leitura crítica, ou a tentativa de estabelecer um cânone da escrita literária, era indissociável da perspectiva filosófica de leitura de um texto. A filosofia andava a par com toda a interpretação que se fazia da literatura e das artes: a epistemologia da análise literária entroncava na filosofia, essa arte de pensar e explicar a generalidade das coisas, sem a qual não seria possível entender a invectiva que contra os poetas Platão lançou. A literatura incidia sobre os mais variados quadrantes da sociedade e os poetas, por se assemelharem tanto aos deuses, tornavam-se temidos, levando a que Platão tivesse escrito em a República: “- Assim, parece que se um homem capaz de assumir todas as formas e de imitar todas as coisas chegasse à nossa Cidade, trazendo consigo os poemas que desejava exibir, prostar-nosíamos diante dele, adorando-o como um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-íamos que não há entre nós, na nossa Cidade, homens dessa espécie, e que nem sequer é licíto que existam, e enviá-lo-íamos para outra Cidade, após lhe

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CARVALHO, Mário de, Quem disser o contrário é porque tem razão, Porto, Porto Editora, 2014 (p. 116)

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termos derramado mirra sobre a cabeça e de o termos coroado de grinaldas.”2

A poesia – aqui com uma acepção lata de literatura – lidava com questões que a poderiam tornar imoral, como a beleza e a fealdade, ou o bem e o mal, e como tal o poeta assumia-se como um desafiador das leis dos deuses, e alguém que a tal papel ousasse asemelhar-se-ia a um deus, algo moralmente inaceitável. Mais adiante, e no mesmo texto, Platão inferioriza a arte que o poeta faz, referindo-se à mesma nos seguintes termos: “Por conseguinte, a arte de imitar está bem distante da verdade e, se tudo pode executar é, ao que parece, pelo facto de ela não atingir senão uma pequena parte de cada coisa, que não passa de uma aparição. (…) porquanto estes poetas3 só representam fantasmas e não seres reais; ou se há algo de valioso no que eles dizem, e se, na realidade, os bons poetas conhecem as coisas sobre as quais, a maioria dos homens supõe que eles falam bem.”4

A poesia atinge, segundo o filósofo, uma ínfima parte da realidade, almeja, como tal, chegar o mais próximo possível da realidade mas não conseguindo mais do que um simples arranhar da superfície real. Mas o poeta intenta iludir, e consegui-lo-á se estivermos perante incautos inocentes que se deixem levar pelo embalo encantatório da literatura, e era nessa possibilidade que residia o perigo para Platão. Ou seja, mais do que uma preocupação em “teorizar” a literatura, a Platão preocupava-o a capacidade de iludir que à mesma reconhecia, e era essa possível ilusão que o grego queria ver desconstruida; para tal, nada melhor do que afastá-la da realidade, relegando-a para o campo da arte inverosímil.

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PLATÃO, República, Oeiras, Guimarães editores, 2010 (p. 112) Platão refere-se aos poetas trágicos. 4 PLATÃO, op. cit., (pp. 394-395) 3

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Uma leitura radicalmente diferente irá fazer Aristóteles, na sua ars poetica, uma obra fundamental e, em inúmeros casos, fundadora de aspectos do texto literário que a teoria da literatura viria a problematizar. A Arte Poética de Aristóteles assume uma perspectiva epistemológica diferente da de Platão: a criação literária deixava de ser compreendida à luz da filosofia e passava a constitui-se como um problema per si. É dessa forma que a literatura é entendida por Aristóteles, como uma arte cujos preceitos, encontrando-se repetidamente nos três géneros que o filósofo assume como referentes – dramático, épico e lírico -, são passíveis de ser entendidos, relevando os que, no seu entender, melhor operam na arte textual. Sendo a tragédia a composição poética que Aristóteles determina como superior, no que diz respeito à influência que o texto exerce sobre o actor que o representa5, é a partir desse género que irá definir os critérios a que um bom poeta trágico deverá atentar: são eles, sobretudo, a mimesis (imitação), a catharsis (o efeito catártico, a purga) e a anagnorisis (reconhecimento, verosimilhança). Grande parte destes termos irão ser largamente discutidos e teorizados, aliás, se há um elogio que podemos fazer à Poética de Aristóteles é que talvez ela levante mais problemas do que propriamente os resolve, e daí a sua importência para os estudos literários posteriores. No que diz respeito ao primeiro conceito (mimesis), quiçá o mais problemático, não é novidade no filósofo Estagirita, ele vem de Platão, como nos mostra Eudoro de Sousa: “A palavra (imitação) recebeu-a Aristóteles, não se sabe de quem, por intermédio de Platão, rejeitando, todavia, a dialéctica da essência e da aparência, que estruturara o conceito platónico-socrático de “imitação” artística.”6 A imitação, em Aristóteles, consiste numa interiorização daquilo que se imita, do que é imitado, assumindo assim o poeta uma posição transcendente em relação ao imitado que era, defende Eudoro de Sousa, a natureza. Mas o conceito de mimesis levanta problemas complexos, sobretudo comparando-o com o que é apresentado por Platão em República, como refere Maria Helena da Rocha Pereira, para quem a defesa que este fazia do

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“Na verdade, dizem que a epopeia é para espectadores distintos, «que» dispensam completamente os gestos, e a tragédia para espectadores vulgares. (…) a acusação é feita não à arte do poeta mas do actor. (…) Além disso, a tragédia, tal como a epopeia, mesmo sem nenhum movimento produz o seu efeito próprio: de facto, a sua qualidade é visível através da leitura. (…) E depois, é melhor porque tem tudo o que a epopeia tem, e tem ainda um elemento que não é de menos importância, como a música [e o espectáculo], através dos quais se produzem os mais vivos prazeres.” in ARISTÓTELES, Poética, Lisboa, Gulbenkian, 2011, (pp. 104-105) 6 SOUSA, Eudoro de, “Introdução à Poética de Aristóteles” in Poética, Lisboa, INCM, 2003 (p. 89)

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conceito mimético o afastava da natureza e, como tal, da verdade. Contudo, o estudo do efeito mimético de um texto literário, analisado pela teoria literária actual, não se afasta em nada do que é conceptualizado por Aristóteles, assumindo-se como o factor distintivo da sua Poética. Não será despiciendo referir a importância de outras obras do Estagirita, que ombreiam em relevância com a Poética, como será o caso da Retórica e, até, da Política. Num período em que a diferenciação entre poética e retórica era ténue – ou praticamente inexistente -, é nesta última que encontraremos bastantes dados a acrescentar à análise que Aristóteles faz do texto literário devido, em grande parte, à necessária assimilação que o “bom” poeta de uma e outra fará - algo que se iria verificar com semelhante acuidade no período renascentista, embora num plano mais exacto, uma vez que os textos circulavam em maior quantidade (e qualidade), o que contribuía para a sua preservação. Não obstante a sua inquestionável importância para os estudos literários, a Poética será, segundo nos parece – e defendido pela maioria dos tradutores e comentadores da mesma -, uma introdução ou uma série de capítulos de uma obra que seria mais extensa, até porque há passagens que deixam adivinhar ser esta o resultado de uma série de apontamentos transmitidos aos seus alunos.7 A civilização romana legar-nos-ia a Pistola ad Pisones, de Horácio, uma obra constituída por 476 versos, cujo conceito formal a distanciaria das anteriores e iria inaugurar uma prática que se estenderia à actualidade. Neste caso, já não é o pensador que se coloca perante o texto literário e o teoriza, mas o escritor que, em forma de carta, e dirigindo-se aos seus leitores ou aos jovens escritores, reflecte sobre a sua obra, dando conselhos sobre questões teóricas. Rosado Fernandes, na introdução à Arte Poética de Horácio, exemplifica a complexidade estrutural conceptualizada na obra do poeta romano, assumindo uma posição quanto à mesma, não sem antes resumir a exegese da epistola:

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Veja-se, para uma compreensão dos problemas pelos quais terão passado as diferentes versões do

texto, o pequeno estudo que Eudoro de Sousa dedica ao tema, na “Introdução” à Poética, (p. 32).

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“Cremos, por nossa parte, que na A. P. há um pouco de tudo o que se defende nestas opiniões8 sem, no entanto admitirmos que seja um tratado. A verdade é que o poeta dá preceitos, mas não os dá todos, fazendo, pelo contrário, uma selecção daqueles que melhor conhece e de que mais gosta e, não se submetendo, deste modo, à ordem dos manuais escolares de retórica que, porventura, serviriam de introdução à arte da poesia. No entanto ele introduz os leitores, sem qualquer intento escolar, na verdadeira essência da poesia.”9 Ou seja, ao contrário de Aristóteles, na Arte Poética de Horácio há uma clara preocupação com o que o escritor – é nesse papel que teremos de perceber o lugar do autor na referida obra – crê ser o mais importante advindo da sua experiência. É um legado prático que fica para a posteridade, lançando um olhar à “oficina” do poeta. Não acresce, cremos, em nada os problemas que a obra do Estagirita levantara, ainda que traga de novo à discussão alguns desses pontos. Realce para as várias traduções que em Portugal foram sendo feitas ao longo da época do Renascimento, até finais do Iluminismo, e cujos comentários enriqueceram a interpretação da obra, adaptando-a aos preceitos da época mas nunca deixando de lhe incutir a importância devida. Até à época do Renascimento português (séc. XVI) não se conhecem “tratados” poéticos de relevância teórica, sobretudo se atentarmos aos escassíssimos casos ocorridos em solo lusitano. Entendendo a problemática envolvente à criação das línguas locais – falando em concreto da Península Ibérica – não é difícil perceber que as composições poéticas mesclavam dialectos que resultavam da forte miscigenação cultural. Numa sociedade fortemente religiosa, era a partir de textos desta índole que, em excertos pueris, eram trazidas à luz questões teórico-literárias. O trívio medieval, que consistia no ensino da gramática, dialéctica e retórica, destacava aspectos de um texto literário relacionados com a temática religiosa:

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Trata-se das opiniões dos teóricos que Rosado Fernandes enumera e que revelam posições divergentes

em relação à obra. Sendo relevantes para o estudo da Epistola, cremos não ser necessário levar a cabo uma enumeração dessas opiniões no estudo aqui elaborado. 9

ROSADO FERNANDES, R. M. “Introdução” à Arte Poética de Horácio, Lisboa. Gulbenkian, 2012 (p. 28)

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“Uma história das teorias literárias deveria tentar discernir o funcionamento teórico destas místicas globais, como a da luz e do número durante a Idade Média, nas suas conexões mais específicas com a literatura. Este objectivo, contudo, não pode levar muito longe. Talvez não fosse muito provável que estas filosofias alimentassem qualquer código específico do literato (uma Arte horaciana) ou do filósofo da literatura (uma Poética). (…) É uma tradição de conteúdo literário, e pode ser descrita, aproximadamente, em listas de substantivos, adjectivos e verbos referentes a luz, brilho e beleza radiante.”10 A retórica ganhava um alento que andara perdido nos cinco ou seis séculos anteriores à Idade Média, mas agora, inserida no trívio medieval, assumia uma intensificação da tendência formalista e artificialista, numa diminuição das tendências clássicas da retórica literária. A obra Genealogia Deorum11, de Bocaccio, é um exemplo claro da hegemonia religiosa que imperava sobre qualquer tentativa “independente” de análise literária. Segundo o autor, a teologia poderia ser interpretada como tendo sido a prática poética de Deus, uma vez que nela se encontram aspectos comuns aos da poesia. Defende-o baseando-se em Aristóteles, que teria afirmado terem sido os poetas os primeiros a escrever teologia12. Como tal, a poesia é teologia e a teologia é também poesia. Ora, detendo-nos nesta (polémica) defesa, não será difícil perceber a postura medieval perante a criação poética, reforçada pela mudança de paradigma na interpretação das questões formais de um texto. A Epistola ad Pisones é unanimemente consultada e alvo de cópias que circulavam manuscritas, mas o mesmo não se poderá dizer da Poética de Aristóteles, algo apenas compreendido pelo afastamento que a poética medieval revela em relação ao período grego. O século XV trará a invenção que mudará definitivamente a transmissão textual: com a imprensa, o texto sofre uma disseminação esmagadora, tornando a função do copista praticamente obsoleta, ainda que a mesma se mantenha constante durante, pelo menos, mais dois séculos. O livro impresso substituía os enormes códices manuscritos que os grandes senhores, e sobretudo a Igreja, preservavam em lugares húmidos e escuros, 10

K., William et al, Crítica Literária, breve história, Lisboa, Gulbenkian, 1971 (p. 174) Obra constituída por 15 livros, que Giovanni Boccaccio (1313-1375) escreveu até ao fim da vida, versando sobre aspectos da mitologia grega numa perspectiva filosófico-religiosa. 12 K. William, op. cit., pp. 187-188. 11

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apenas protegidos pelo pergaminho que os cobria, impotentes contra a corrosão que a acidez da tinta provocava no papel. A impressão traria enormes vantagens, mas os custos de mandar imprimir uma obra estavam ao alcance de um número ínfimo de pessoas. Contudo, a verdade é que a circulação de obras impressas foi uma realidade, impulsionada pelos humanistas que de Itália se faziam ouvir, uma postura que acabaria por contagiar a Península Ibérica. Com ele voltava o interesse pelas obras da antiguidade clássica, com os seus modelos profusamente copiados. A Poética de Aristóteles ganha novo alento com as inúmeras traduções: nenhum outro texto teóricoliterário teve um número tão alto de impressões e traduções, basta dizer que a primeira tradução latina completa aparece em 1498 – período ainda incunabular -, da autoria de Giogio Valla, seguindo-se a primeira impressão do texto em grego, no ano de 1508, e a primeira tradução para italiano no ano de 1549, por Bernardo Segni. Mas mais do que relevar a importância das traduções da obra do Estagirita, importa reforçar o papel primordial dos comentários de que as mesmas se faziam acompanhar. Partindo de uma interpretação à luz dos preceitos que voltavam a ganhar relevo com o humanismo cultural, os tradutores – que em muitos casos eram, eles próprios, poetas com obra publicada – deixaram-nos textos de verdadeira análise poética, não se ficando pelo simples comentário à obra, sujeitando-a a diferentes leituras e em certos casos rebatendo alguns dos pontos mais polémicos ali defendidos. Assim aconteceu nos países cujo desenvolvimento económico o permitia, nos quais podemos incluir Portugal que vivia a época dourada dos Descobrimentos. É também nesta altura que aparecem os primeiros textos de análise poética, não sendo, contudo, fácil distingui-los de matérias afins, como (novamente) a Retórica13, a Dialéctica e a Gramática, disciplina que começava a impor-se necessariamente derivado às questões linguísticas, depois da supremacia do latim, e incrementada pelo entusiasmo generalizado em torno das Humanidades.

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Aníbal Pinto de Castro refere o seguinte: “Sem deixar de lhe imprimir um cunho literário bem vincado, o Humanismo faz da Retórica, ligando-a estreitamente à invenção dialéctica, a base de um método novo de filosofar que, desejoso de abandonar a especulação abstracta, procura aproximar-se da realidade humana através da comunicação, para tratar problemas actuais de índole moral, política, religiosa ou mesmo filosófica” in Retórica e Teorização Literária em Portugal: do Humanismo ao Neoclassicismo, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973 (p. 18)

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A Poética assumia igualmente um papel importante no ensino e, aliada à Retórica, constituíam-se como as matérias capazes de fazer esquecer a secura da escolástica medieval. E se em termos políticos a Ibéria como território uno não era bem vista, o mesmo já não se poderá afirmar das relações culturais que daí advieram, para mais se atentarmos no facto de ser este o período de ouro da nação vizinha. Era de Espanha que vinham algumas das obras mais importantes da análise poética, obras essas que eram adaptadas por autores portugueses. Assim aconteceu com a Rhetorica ecclesiastica de Fr. Luís de Granada (1504-1588), obra que rivalizava com a de Cipriano Soares, De Arte Rhetorica, adoptada pela Companhia de Jesus no ensino dos seus colégios. Contudo, é na obra de Luis de Granada que iremos encontrar as primeiras defesas do que se constituirá como as características da oratória barroca, transpostas mais tarde pelo Padre Francisco de Mendoça, ingressado nos jesuítas em 1581, prestando um contributo inestimável para o papel que a Companhia teve – maior do que qualquer outra ordem religiosa – na oratória barroca peninsular. Na defesa da “sua” Retórica, o Padre Francisco, através das posições adoptadas na sua aplicação prática, destacava a importância do delectare em prol do docere, abrindo, dessa forma, uma via para a entrada do deleite barroco. Mas seria a Nova arte de conceitos14 de Francisco Leitão Ferreira (1667-1735) que elevaria a criação barroca ao patamar da consagração e ao seu reconhecimento, auxiliada pelo Sistema retórico de Lourenço Botelho Sotomaior (1671-1738) e, sobretudo, pelo reconhecimento intelectual dos autores, ambos ligados à Academia Real da História Portuguesa. Fortemente influenciado pela obra de Manuel Tesauro (15921675), Cannocchiale aristotelico (1654), Ferreira escreveu aquela que é unanimemente considerada a obra teórica que melhor representa esse período de inventiva agudeza como o do Barroco. Há, inclusive, longos excertos da obra que mais não são do que uma adaptação da obra do italiano, facto compreensível à luz da cultura da época onde as questões autorais não tinham os “direitos” que têm na actualidade. Repare-se que entre a impressão de uma e de outra distaram 61 anos, e se à discussão trouxermos Baltasar Gracián (1601-1658), com o seu Arte de ingenio, tratado de la agudeza, então teremos de acrescentar mais doze anos, uma vez que a obra do espanhol foi pela primeira vez impressa no ano 1642.

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A primeira parte da obra seria impressa em 1718 e a segunda parte em 1721

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Este “atraso” na reacção à edição das obras espanhola e italiana é compreensível, uma vez que as primeiras obras literárias de características barrocas tiveram uma produção bastante tardia comparativamente com aqueles dois países, embora não tenha necessariamente acontecido o mesmo em relação à Retórica barroca, que atingiu o cume com os sermões do padre jesuíta António Vieira. Leitão Ferreira teceu fortes críticas à defesa que Gracián faz do conceito de agudeza, sobretudo a que aquele defendia nos aspectos retóricos, uma vez que no caso da poesia as coisas já eram diferentes, sendo bastantes as passagens em que, à imagem do que aconteceu com Tesauro, Ferreira praticamente transcreve passagens da obra do jesuíta espanhol. Mas não foram estes os únicos visados: o mesmo sucede com Boileau, Muratori, Pallavicino ou Girolamo Vida, todos com obras de teorização poética, sendo que o primeiro e o último dos nomes referidos foram autores com reconhecimento bastante além das fronteiras dos seus países. Apenas 25 anos depois da obra de Leitão Ferreira – obra que, recorde-se, estabeleceu a técnica barroca na criação poética -, é lançada uma obra, escrita sob o pseudónimo de Barbadinho da Congregação de Itália, que iria colocar em questão não só o processo inventivo tão assossiado ao Barroco, como todo o método de ensino que a Companhia de Jesus mantinha há dois séculos: em 1746 é impresso o Verdadeiro método de estudar, escrito por Luís António Verney (1713-1792) sob a protecção do pseudónimo que o abrigava de polémicas com os jesuítas. Verney era um oratoriano, educado em colégios italianos e com uma perspectiva radicalmente diferente do método de ensino que vigorava em Portugal, abrangendo uma quantidade significativa de matérias, nelas incluindo a Retórica, a Filosofia e a Poética. Aníbal Pinto de Castro refere-se ao seu aparecimento nestes modos: “A publicação do Verdadeiro método de estudar, envolvida pelo misterioso atractivo do anonimato e reveladora de tão impiedosas críticas, desencadeou, na pacatez da vida cultural portuguesa de Setecentos, uma agitada polémica, através da qual as ideias apresentadas por Luís António Verney se completam ou esclarecem, muitas vezes por contraste, alargando sempre

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mais o âmbito do movimento de renovação que preconizavam e imprimindo-lhe uma marcha mais rápida”15

O Iluminismo português tinha na obra de Verney o seu representante teórico, reforçado pela vaga de estrangeirados que a sociedade portuguesa recebia vinda de países como França, Alemanha ou Itália, já fortemente imbuídos no espírito científico cartesiano. No entanto, o Séc. XVIII em Portugal é de grande variedade e riqueza no que diz respeito às artes poéticas, e é comum coexistirem obras de um antagonismo indisfarçável. É o caso, apenas para mencionarmos um dos exemplos mais óbvios, da Arte Poética de Francisco de Pina e Melo (1695- ca. 1765), impressa em 1765, ou seja, 19 anos depois da obra de Verney, e onde é ainda visível a influência barroca, mormente no que respeita aos aspectos interpretativos da metáfora, bastante próximos dos defendidos por Francisco Leitão Ferreira. Contudo, não deixa de ser, em grande parte, uma obra neoclassicista e influenciada pelas poéticas que se iam escrevendo em França, onde o autor residiu boa parte da sua vida. A prática inaugurada por Horácio – o escritor dirigindo-se ao leitor dissertando sobre aspectos da teorização e criação literária -, ainda que um pouco disseminada nos séculos do Renascimento, volta a ganhar adeptos no séc. XIX fruto, em grande parte, do romantismo literário e das características indutoras do autoconhecimento nos escritores seus praticantes. O Homem redescobre-se. O autor ganha uma voz própria, deixando de se ater aos preceitos dos clássicos antigos, e a literatura é a arte “perfeita” para dar largas à introspecção e ao reavivar dos sentimentos. A História da Literatura assume-se como uma forte disciplina dos estudos literários, apoiada na noção de ciclos de continuidade/ruptura por que as literaturas passavam e começam a surgir os primeiros estudos que olhavam para a literatura isoladamente, isto é, já não como uma disciplina de estudo universitário mas como uma arte independente. O século XIX é fundamental como indutor do estudo teórico tal como o conhecemos hoje, e as diferentes escolas de crítica literária que se foram formando, sobretudo na 2ª metade do século, deram o derradeiro mote para a constituição da disciplina de Teoria da Literatura. No entanto, é nosso entendimento que o maior esforço a que se chegou no

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PINTO DE CASTRO, op. cit., p. 441

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que diz respeito à concretização e definição da disciplina está relacionado com a definição (ou tentativa de) da literariedade, da autoria dos formalistas russos. Isolar e reconhecer na linguagem literária características que a tornavam única foi fundamental para a autonomia da escrita literária, deixando de existir a proximidade entre esta e a Retórica, até porque a última vinha perdendo o fôlego desde o início do século, deixando de fazer sentido perante uma criação artística como a do Romantismo. Reunidos em dois volumes com o título de Teoria da Literatura, os breves ensaios que os constituem tratam diversos aspectos do texto literário, concentrando o seu foco em características delimitadas do mesmo, algo que dificilmente acontecia com as artes poéticas dos períodos anteriores que mostravam uma preocupação geral pelo texto, raramente indo mais além da explicação do uso metafórico. Praticamente em concomitância surgia o neocriticísmo, nos Estados Unidos da América, onde um conjunto de teóricos, alguns com obra de ficção publicada, defendia que as atenções deviam focar-se em exclusivo no texto e no que o mesmo “dizia”, não existindo qualquer espaço para aspectos biográficos. O texto prevalecia sobre o autor, e só aquele poderia ser alvo de análise. Concordando que o texto se constitui, verdadeiramente, como o foco primário de análise, não será possível, ainda assim, ignorar as relações autor/obra que em inúmeros casos – e a modernidade na literatura só veio reforçar essa relação – são tão evidentes que as tornam intrinsecamente parte uma da outra. Também a linguística, cientificamente impulsionada pelos estudos de Ferdinand de Saussure (1857-1913), se assumia como uma ciência autónoma, e esse facto teve impacto numa miscigenação dos estudos linguístico-literários, reforçados pelo grupo linguístico de Praga, que procedia a uma análise com ênfase na estrutura da obra, passando a ser definidos como estruturalistas. Tudo isto se passava nos inícios do séc. XX, num altura em que os movimentos artísticos modernistas se disseminavam um pouco por toda a Europa. Contudo, os estudos levados a cabo pelas correntes teóricoliterárias que temos vindo a apresentar incidiam maioritariamente sobre textos do realismo literário, compreensivelmente uma fonte mais “teorizável” dadas as características pouco moldáveis dos mesmos. Em Portugal editavam-se pequenos estudos teórico-literários, mas só nos anos 50 do século XX, com a edição da Teoria da Literatura de Aguiar e Silva, se deu a 14

consagração definitiva da teoria literária enquanto disciplina. Obra marcante e uma referência nos estudos académicos em torno da literatura, constituindo-se não só como um manual de grande utilidade para os alunos, mas também como uma ferramenta necessária para os professores, e várias edições depois – com “apenas” alguns retoques – continua a ser “a” Teoria da Literatura em Portugal.

2- Os “manuais” de escrita e a Teoria da Literatura: o caso de Quem disser o contrário é porque tem razão, de Mário de Carvalho

A escrita criativa chegou a Portugal tardiamente se compararmos com a tradição anglosaxónica, onde se assumiu há anos não só como uma forte disciplina no currículo da maioria dos alunos de letras, mas também como matéria sobre a qual passaram a ministrar-se cursos superiores, à imagem das “nossas” licenciaturas. A prática de se contratarem escritores para leccionarem com bastante regularidade – em alguns casos de forma efectiva – esta disciplina nas universidades norte-americanas e inglesas (sobretudo nas primeiras) já vem de longe, e é cada vez mais natural assistirmos à ida de alunos para aquelas universidades em busca de um maior conhecimento na arte da escrita. Por cá, a prática sempre foi vista com desconfiança por todos os que apenas a conseguiam entender como uma receita para a escrita de ficção, não percebendo – ou não querendo perceber – que a utilidade dos vários workshops ou formações vão bem mais além do “simples” formar escritores de ficção. Nos dias de hoje estas formações são procuradas por uma panóplia de profissionais de áreas díspares como a publicidade, o jornalismo ou o marketing, até ao comum dos mortais que, tendo interesse e gosto pela escrita, procura uma forma de a tornar mais apelativa, aprendendo, em grande parte, com escritores com obra publicada. 15

O primeiro manual de escrita que conhecemos, de um autor português – existem traduções de manuais de escrita estrangeiros, dos anos 80 e 90 do século XX -, foi publicado em 2001, da autoria de Cristina Norton, com o título Os Mecanismos da Escrita Criativa. Não foi obra que conheceu grande sucesso, havendo notícia de apenas uma edição, talvez não pela qualidade da obra (sobre a qual pouco poderemos dizer, uma vez que o conhecimento que temos da mesma é superficial) mas antes pelo facto de ter sido editada numa altura em que a disciplina dava os primeiros passos, ainda revestidos de enorme cepticismo. Terá sido importante, certamente, para a crescente procura e para desmistificar uma ideia que continuava, em grande parte, a colher adeptos junto da classe literária: ou seja, eram os escritores – sobretudo os mais consagrados no panorama literário português – quem continuava a mostrar um total descaso pela escrita criativa e, em alguns casos, não lhe reconhecendo sequer qualquer utilidade prática. Ora porque defendiam que a criatividade pouco tinha que ver com a escrita, ou, quando tinha, não se resolvia com exercícios práticos – entendendo-a como um acto “iluminado” intermitente e sobre o qual pouco ou nada estaria nas mãos do escritor, servindo-lhe apenas a esperança de se ver ungido por acto divino -, ora porque a escrita de ficção, por mais criativo que fosse o indivíduo, teria no seu processo muitas variáveis dificeis de entender, quanto mais de explicar, e não raro “nasciam” com a pessoa. A nível académico, parece-nos, a disciplina apenas não teve maior notoriedade fruto da crise pela qual passavam as Humanidades, tendo conseguido, ainda assim – meritoriamente -, “chamar” alunos de outras áreas científicas que não a Literatura. Para tal terão contribuído outras obras que foram sendo lançadas, de entre as quais destacamos as de Luís Carmelo, Manual de Escrita Criativa, editada em 2005 – obra com qualidade suficiente para nela encontrarmos alguns aspectos teóricos mais desenvolvidos -, e também a de João de Mancelos, Introdução à Escrita Criativa, de 2009 – com várias edições posteriores -, verdadeiro porta-estandarte e acérrimo defensor do ensino da escrita criativa em Portugal. Depois destas destacamos os nomes de Pedro Sena-Lino e de Margarida Fonseca Santos que, no caso da escritora, assumiu um papel educador, tendo lançado um manual de escrita para todas as idades. Praticamente dezasseis anos passados sobre a edição do manual de Cristina Norton, a escrita criativa conquistou o seu lugar na sociedade portuguesa e é leccionada um pouco por todo o país, quer em formações pontuais, quer em escolas que a apresentam sob 16

várias sub-disciplinas, utilizadas consoante as pretensões dos alunos. Ora, tamanha “disseminação” trouxe, compreensivelmente, um aproveitamento económico da parte de formadores que, em muitos casos, pouco (ou nenhum) reconhecimento tinham no campo literário, não se lhes conhecendo qualquer mérito na arte da criação literária, levando a que os desconfiados que sempre olharam de viés a disciplina tivessem, mais do que nunca, motivos para a desdizerem. Os exercícios cada vez menos comprometidos com os aspectos teóricos do texto – absolutamente fundamentais para a sua compreensão – e mais interessados no facilitismo e na busca utópica da receita milagrosa criadora do génio literário em muito contribuíram para o abrandamento que se tem registado nos anos mais recentes na procura destas formações. Os escritores, esses, continuam a situar-se num dos lados da barricada: há os que não se lhes conhece qualquer opinião em relação ao tema – adoptando uma postura de completa ignorância em relação à escrita criativa – e os outros que, comprometidos com os aspectos que acham fundamentais na criação literária, dão o devido valor à disciplina sem, no entanto, ressalvarem a necessidade de, quiçá, fazerem daquela uma aprendizagem que envolva algum grau de “seriedade” e cientificidade. É o caso de Mário de Carvalho, um dos grandes escritores portugueses contemporâneos, com vastíssima obra publicada e de inegável valor linguístico-literário. Também um crítico do facilitismo em que a disciplina caiu e dos exercícios “mágicos” que usualmente são defendidos pelos formadores de escrita criativa. Perante o estado da arte, o escritor decidiu, em boa hora, publicar uma obra afim aos manuais de esfrita mais sérios que conhecemos. Talvez seja redutor chamar a Quem disser o contrário… um manual de escrita, ele é muito mais do isso: é uma obra onde, à imagem da Epistola ad Pisones inaugurada por Horácio – em que o escritor fala ao leitor -, Mário de Carvalho (MdC) disserta sobre os processos (e procedimentos) da escrita de ficção, focando-se na sua experiência como escritor, sem nunca abrir mão dos aspectos teóricoliterários. Cuidadosamente organizada em pequenos capítulos, ordenados de acordo com os diferentes aspectos do texto literário, consegue abordar pormenores do acto criativo, ilustrados com exemplos da Teoria da Literatura, não deixando de abordar correntes teóricas que o autor crê serem pertinentes para o caso. São esses os aspectos sobre os quais nos debruçaremos mais pormenorizadamente.

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O autor adverte, logo a abrir, que o “(…) livro não é um trabalho académico” mas antes a reunião de “(…) observações empíricas surgidas da experiência escrita, da memória do autor e duma ou outra consulta em segunda mão.”16 Não pretendendo ser uma obra académica, não se alinha, ainda assim, com os manuais de escrita que conhecemos, desde logo pela partilha de experiências que, no caso de MdC, são valiosíssimas, mas também pelo tom que será “(…) coloquial, mesmo familiar (…) 17”, muito próximo do tom irónico que reconhecemos no autor. A criação literária não vive (é unânime) sem a prática exaustiva e aturada da leitura, e como tal é necessário estabelecer um cânone de leituras que vá de encontro à pretensão de quem encara a disciplina com o intuito de a “dominar”. Mas a discussão em torno do cânone literário é (bastante) mais antiga do que aquela que aqui trazemos, com a agravante da problemática que advém da possibilidade de cada nação ter o seu próprio cânone. É, aliás, um factor relevante não só para os estudos literários do país mas também, e em termos mais práticos, para o aspirante a escritor. MdC assim o entende, exemplificando com Fernão Lopes, Gil Vicente, Camilo Castelo Branco ou Machado de Assis, autores que não vêmos no cânone que Harold Bloom definiu como ocidental18, sendo todo ele construído em torno de um autor inglês (Shakespeare) - tornando-o fortemente anglo-saxónico -, mas que figurariam, certamente, num “(…) cânone insofismável (e incontornável, para usar o vocabulário mais corrente) da literatura em português”19. Mas além da compreensão que um cânone literário poderá auxiliar a alcançar para o escritor em potência, há também a possibilidade, nada irrelevante, diz-nos MdC, de contactar com as obras de Umberto Eco, George Steiner, James Wood ou o próprio Bloom, no caso dos estrangeiros ou, falando dos portugueses, Óscar Lopes, António José Saraiva, Vitor Aguiar e Silva, Carlos Reis, etc. Ou seja, estão lançadas as bases para que a obra que analisamos se veja implicada numa evidente apetência pela valorização das relações entre a teoria e a criação literárias. E são estas leituras, complementariamente às leituras de ficção, que irão sedimentar os conhecimentos 16

CARVALHO, Mário de, Quem disser o contrário é porque tem razão, Porto, Porto editora, 2014 (p. 11). Doravante as citações da obra serão identificadas com a sigla QDC, seguida do número da página de onde a citação foi retirada. 17 QDC, p. 12 18 BLOOM, Harold, O Cânone Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2011 (originalmente publicado em 1994). 19 QDC, p. 23

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necessários para atingir alguns dos objectivos que o escritor amador almeja atingir. E não é de somenos importância a leitura do clássico que possa parecer – ao mais incauto dos aspirantes – “fossilizado” no tempo histórico de alguns séculos: “Sem dúvida que lemos uma tragédia grega com um espírito muito distanciado do seu autor e dos espectadores de então. Mas o grande mistério está em que essa tragédia continua a produzir sentido nos dias de hoje, tendo nós perdido muitas das suas referências e acrescentado outras, insuspeitadas para os gregos da Antiguidade.”20 Nada que Jorge Luis Borges não nos tivesse já ensinado com o perspicaz Pierre Menard, autor do Dom Quixote, mas nunca é demais recordar que a experiência de leitura de um leitor contemporâneo sujeita uma obra clássica a leituras que seriam impossíveis de ser realizadas por um leitor que vivesse na mesma época dessa obra, pelo simples facto de ter acumulado e tomado contacto com uma maior variedade de obras literárias. O que nos leva à questão da estética da recepção, disciplina da Teoria da Literatura que teve grande desenvolvimento nos anos 60 do século XX em universidades alemãs, e que aliada à teoria da semiótica não descura a existência de um horizonte de expectativas21. Segundo MdC, “na recepção de uma obra, intervém não apenas aquilo a que se chama vivência, incluindo o leque de experiências literárias juvenis, mas o próprio temperamento pessoal.”22 Em toda esta acepção da leitura de uma obra literária está intrínseco o papel do leitor: o sucesso da transmissão de uma mensagem implica a existência de um emissor e um receptor, sendo que a forma como a mesma é apreendida pelo receptor (leitor) determina o foco de estudo da estética da

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QDC, p. 32

21 Expressão que Hans Robert Jauss tornou comum nos anos 70 e 80 consiste em entender “(…) o

modo como nos situamos e apreendemos o mundo a partir de um ponto de vista subjectivo; o horizonte de expectativas é uma característica fundamental de todas as situações interpretativas, dizendo respeito a uma espécie de fatalismo que acompanhará qualquer ponto de vista face à visão que temos do mundo: quando interpretamos, possuimos já um conjunto de crenças, de princípios assimilados e ideias aprendidas que limitam desde logo a liberdade total do acto interpretativo; por outras palavras, quando lemos um texto literário, o nosso horizonte de expectativas actua como a nossa memória literária feita de todas as leituras e aquisições culturais realizadas desde sempre.” in CEIA, Carlos, E-Dicionário de Termos Literários, “Horizonte de expectativas (ERWARTUNGSHORIZONT)” – consultado dia 21-01-2017 22 QDC, p. 34

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recepção literária, em função do horizonte de expectativas desse mesmo receptor. Uma vez mais, e para tornar comum a nomenclatura teórico-literária, MdC fala num “leitor ideal”, aquele por cujo texto literário é assumido empiricamente, e que pode assumir diferentes designações – o autor dá o exemplo de Umberto Eco que no seu “obrigatório” Lector in Fabula designa-o por leitor modelo, leitor semântico ou leitor semiótico. A verdade é que só o leitor torna o texto possível, mas a noção de que se dará inevitavelmente um encontro entre determinado texto e o seu leitor é bem diferente de se definir com exactidão um leitor modelo para o qual se escreve: “Quem escreve à medida do leitor que pretende lisonjear fica dentro dessa medida”23, alerta-nos MdC. Contudo, “(…) o público leitor (…) com o qual [o autor] dialoga implícita e/ou explicitamente, nunca é, nem pode ser, um auditório imtemporal e universal (…)” 24 É um ponto fulcral, este, para entendermos a complexidade que implica a criação de um texto literário e o sistema operativo que com este funciona. Será, porventura, o assumir da primeira desilusão que o incauto pretendente a escritor terá na leitura de Quem disser o contrário…, uma vez que a interiorização de um determinado leitor durante o processso criativo não será tarefa fácil. Ainda assim, MdC deixa um conselho: “O autor deve criar o leitor que mereça. Um leitor criativo é muito mais gratificante do que um consumidor passivo e estéril.”25 O leitor ideal não será, necessariamente, o leitor real ou empírico, ele será, isso sim, um elemento vital para o próprio texto, uma vez que o mesmo é construído – ou deve ser – tendo em conta a sua existência. Assim, quanto maiores forem as divergências entre o leitor ideal que determinado escritor cria e os hipotéticos leitores da sua obra, os leitores reais existirão em menor número devido à complexidade inerente à descodificação do texto por parte destes. Definidas as principais questões em torno do conceito de leitor, MdC avança para os aspectos estruturais do texto narrativo, aspectos esses que Aristóteles abordou na sua Arte Poética, obra de grande relevância na concepção teórica do autor que abordamos. É o próprio autor que nos revela que “os comentários de Aristóteles sobre a tragédia são ainda hoje de tal oportunidade em relação a matérias conexas com a narrativa ficional que é impraticável passar de largo.”26 Numa referência aos termos elucidativos das características do texto narrativo que Aristóteles ensaia na sua obra, MdC alerta para a 23

QDC, p. 45 AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de, Teoria da Literatura, Lisboa, Almedina, 2000 (pp. 308-309) 25 QDC, p. 46 26 Idem, p. 54 24

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similitude da análise da tragédia com a de um texto narrativo e do desenho evolutivo das personagens e do desenrolar da acção. E não é gratuita a alusão ao Estagirita uma vez que, diz-nos o autor, na ausência de “(…) cooperação dos processos inconsciente ou subconscientes (…)”27, o escritor em potência não perde nada em delinear uma estrutura que sustente a possibilidade de um texto que se quer firme durante o processo evolutivo. Para tal, não será gratuita uma leitura da Arte Poética de que temos vindo a falar, sobretudo no que à estrutura “ideal” diz respeito; e Aristóteles defendia a necessidade de se estruturar o enredo “(…) de tal maneira que quem ouvir a sequência dos acontecimentos, mesmo sem os ver, se arrepie de temor e sinta compaixão pelo que aconteceu.”28 Este será um aspecto fundamental na construção de um texto, e por muito que o potencial escritor dele tente escapar – procurando atalhos que com maior rapidez e facilidade o levem ao objectivo – jamais um texto mal estruturado sobreviverá sem “(…) pontos de apoio que se organizem em sequência. A literatura é uma arte da duração e não há que fugir a isso.”29 O trabalho que Propp30 desenvolveu na análise de algumas dezenas de contos da literatura russa fez despoletar a interpretação estrutural do texto narrativo. Segundo ele, havia invariantes comuns aos diferentes contos analisados e sem as quais não seria possível sustentar um texto: Propp designou essas invariantes como funções, e ainda que posteriormente tenham sido realizados outros estudos sobre esta questão, os resultados finais não se afastaram significativamente da análise propiana. Ou seja, há acções que desempenham um papel fulcral no desenvolvimento do texto narrativo, embora existam em quantidade limitada, e não é fácil (nem conveniente para os formalistas) que as consigamos evitar, e é precisamente dessa dificuldade que nos fala MdC. Uma vez encontrada a estrutura mais adequada às pretensões do escritor, há que pensar na acção: o que é e como se dá o tiro de partida. O autor dá-nos vários exemplos de parágrafos iniciais de obras que se tornaram “imortais” pelos incipits, mas logo acrescenta que não raro esse fulgor inicial se vai perdendo. A dificuldade reside na definição do que é e do que não é relevante:

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QDC, p. 56 ARISTÓTELES, Arte Poética, Lisboa, Gulbenkian, 2011 (p. 63) 29 QDC, p. 57 30 Vladimir Propp (1895-1970) fazia parte do grupo de teóricos posteriormente denominados de estruturalistas e teve a seu cargo a análise dos componentes dos contos clássicos russos, chegando à conclusão aqui apresentada. 28

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“Tomando uma sequência de acontecimentos, com certa ligação lógica, vamos arquitectá-los e seriá-los duma maneira própria e única.

Seleccionamos

uns

factos,

omitimos

outros,

acrescentamos mais alguns, de acordo com certo arco sequencial, mais tenso ou mais livre, mais aberto ou mais fechado, num tom mais carregado ou mais ligeiro, mais demorado ou célere, mais vago ou pormenorizado.”31 Segundo o conceito narratológico, a acção é o resultado do desenvolvimento dos eventos singulares, sendo o trabalho que sobre os mesmos é realizado o factor que irá definir se uma obra é mais aberta ou mais fechada, dependendo também se estamos perante um conto – onde a acção existirá de uma forma mais circuncrita – ou um romance – onde poderão existir várias acções operando em simultâneo. Ainda dentro do mesmo género – o romance, por exemplo – a acção sofre influências de acordo com o sub-género escolhido. Assim, “se um romance policial pode exigir uma representação pontual e minuciosa das acções, já um romance psicológico (…) tenderá a subalternizar a componente factual e objectiva das acções.”32, o que pode obrigar a uma flutuação constante da acção, independentemente do género que escolhamos e do sub-género a que nos afeiçoaremos. Transportando todas estas acepções da narrativa para a denominada literatura pós-moderna tudo se complica. A “moderna” literatura, que tudo complica e discute, pode nem concordar com a acção que se auto-impõe no desenvolvimento da narração: para estes, um texto narrativo pode nem ter princípio, meio e fim, desde que, segundo MdC – e voltando ao que atrás ficou exposto – se tenha em mente um modelo de leitor. Mas por mais voltas que à acção sejam permitidas, um relato com o qual o leitor não se identifique, sobre o qual este mesmo leitor não consiga definir uma homogeneidade passível de ser vivida pelo comum dos mortais, jamais almejará atingir o sucesso. A literatura, já dizia Aristóteles, é imitação da vida: no fundo, estamos a falar de verosimilhança, palavra que ocorre na obra do Estagirita em diversas situações. Aristóteles entendia que a verosimilhança deveria ser uma constante em todos os aspectos da criação literária: a extensão do texto deveria estar de acordo com o que é verosímil, a estrutura definir-se-ia em função da verosimilhança e as acções, essas, 31 32

QDC, p. 104 REIS, Carlos et all, Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina, 2000 (p. 17)

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seriam mais ou menos verosímeis de acordo com o género pelo qual se enveredava.33 Serve este de exemplo para MdC, na breve exposição que faz das questões intrínsecas à verosimilhança, recordando, também, que “(…) há acontecimentos da vida real que não são verosímeis.”34 Uma vez mais, e tendo sempre em mente a existência do leitor empírico, a verosimilhança ater-se-á às pretensões do potencial escritor, ou seja, este trabalhará os aspectos do verosímil em função da persuasão que estabeleceu para o “seu” leitor. Do lado do leitor estará a suspensão da descrença, nesse pacto ficcional que se estabelece entre o escritor (emissor) e o leitor (receptor); só dessa forma haverá legibilidade na mensagem. São as personagens que trabalham directamente com a verosimilhança: é através dos seus actos – nos quais podemos crer mais, ou menos – que analisamos até que ponto é o texto verosímil. Como tal, MdC recorda-nos as possibilidades no que à criação das personagens diz respeito: por um lado a personagem plana, sobre a qual cedo se percebe que nenhuma circunstância do texto a fará mudar ou desviará do seu caminho, por outro a personagem redonda35, a desafiante que sofre cambiantes de acordo com as do próprio texto e onde é possível verificar uma profundidade psicológica mais difícil de atingir no primeiro caso. Depois de uma breve passagem pelos diferentes tipos de narrador (homodiegético, heterodiegético e pluri-diegético), sobre os quais a narratologia tem desenvolvido um trabalho aturado, MdC dispensa um espaço considerável à (eterna) questão da definição de linguagem literária, tema ao qual os formalistas russos dedicaram especial atenção, sendo a estes atribuída a criação de uma definição para aquela: a literariedade. Não se pense, contudo, que a discussão apenas surgiu no século XIX, porque já Aristóteles a abordava – ainda que em modos diferentes – na sua obra, referindo que “por linguagem embelezada entendo a que tem ritmo, harmonia e canto (…)”36, colocando-a, desta forma, bastante próxima da música – o que aliás acontece com a definição de poesia que 33

Segundo Aristóteles, “(…) a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível de acordo com o princípio de verosimilhança e da necessidade. O historiador e o poeta não diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro em verso (…). Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer.”, in ARISTÓTELES, op cit., p. 54 34 QDC, p. 123 35 Aguiar e Silva denomina-as também de personagens modeladas, às quais “(…) o romancista tem de consagrar uma atenção vigilante, esforçando-se por caracterizá-las sob diversos aspectos. Ao traço recorrente próprio das personagens planas, corresponde a multiplicidade de traços peculiar das personagens redondas.” in op cit., p. 710 36 ARISTÓTELES, op. cit., p. 48

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o Estagirita alcança, aconselhando para aquela os preceitos desta. Para MdC, a questão tem tudo a ver com uma aturada escolha das palavras, o que se compreende se tivermos em conta que em “Quem disser o contrário…” o texto narrativo tem toda a exclusividade. É uma discussão que se mantém corrente, embora a Teoria da Literatura a tenha, de certa forma, relegado para o campo das discussões inconclusivas. Importa, mais do que explicitar o conceito ou percebê-lo à luz da teoria, fazer referência às palavras que lhe dedica MdC. Segundo este, abordar o conceito de literariedade é colocar-mo-nos “(…) de novo à beira do abismo.”37, e perante discussões do género, nada como um dito clássico, no caso uma citação da Epistola de Horácio, para quem o conceito se tornaria claro a partir do momento em que o escritor conseguisse dizer a novidade utilizando palavras correntes, o que só seria possível apreender pelo contexto. É esse o entendimento de MdC ao dizer que “(…) todas as palavras de um texto literário são tão essenciais ao tecido que a alteração ou deslocação de cada uma modifica o alcance de todas (…)”38 Ou seja, a “tal” linguagem literária, que se define pelo maior ou menor alcance da literariedade, atinge-se pelas partes em função do todo: a escolha do vocabulário obedecerá, necessariamente, ao objectivo que se pretende alcançar com o texto, o que nos leva à discussão (quase) inicial da definição de um leitor ideal. Também a literariedade está implicada em todo o processo de escrita, desde o primeiro momento – em que o autor delinea uma estrutura, tendo em conta um objectivo previamente estabelecido – até à palavra final do texto. Chklovski, outro formalista russo, levou a questão da literariedade a outro nível, não sendo possível, parece-nos, entender aquela sem a devida análise ao conceito por ele criado: o processo de singularização, ou estranhamento. Para o teórico russo, “a imagem poética é um dos meios de criar uma impressão máxima.”39, isto é, atentar à possibilidade de conter numa palavra – ou expressão – um significado tão abrangente quanto possível, algo que, segundo o mesmo autor, será inatingível no discurso quotidiano uma vez que este sofre um processo de automatização. MdC relaciona este processo com a concepção aristotélica da metáfora, algo que também Chklovski, de certa forma, acaba por fazer ao referir que para Aristóteles “(…) a língua poética deve ter um carácter estranho, surpreendente; na prática, é muitas vezes uma língua estranha.”40

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QDC, p. 222 Idem, p. 223 39 CHKLOVSKI, Vladimir, A Arte como Processo, in “Teoria da Literatura-I”, S.l., Edições 70, 1978, (p. 99) 40 Idem, p. 116 38

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3- Considerações Finais Tal como a discussão da literariedade é antiga, também o “segredo” da escrita vem sendo perseguido desde a Antiguidade. Talvez a crítica literária tenha contribuído para uma aproximação à ideia de que é possível atingir um conhecimento suficiente para almejar o “Santo Graal” da criação literária. Com esta obra, à qual nos parece extremamente tentador chamar de “manual”, Mário de Carvalho aproxima-se corajosamente das Artes Poéticas e da Teoria da Literatura, ao jeito de Horácio, como quem fala ao discípulo sobre as dificuldades e segredos do seu acto criativo. Não raro ouvimos, ou lemos, os escritores referirem que só a própria obra literária está apta a desvendar os aspectos da criação, e será ali, algures entre a linguagem e o enredo, que se encontram os exemplos. No século XVII, o exemplo literário servia de ensinamento para a vida, em obras que reavivavam o quotidiano, escondendo dos censores o deslumbre da linguagem literária sob a capa do delectare horaciano. Hoje, assumindo que os censores passarão, na pior das hipóteses, pelos críticos literários, que substituem a fogueira daqueles séculos pelas estrelas que enfeitam as páginas dos jornais, a arte no manejo da literariedade – através do processo que Chklovski teorizou –, e depois de períodos em que a realidade era, sem dúvida, bastante mais “real”, tornou-se no objectivo último da criação literária. Na obra que analisámos, também Mário de Carvalho lhe atribui um papel de destaque na composição de um texto tendo como finalidade a designação de literário. Para este, é nesse conceito de desfamiliarização, ou estranhamento, que reside “(…) o segredo, o «abre-te, Sésamo» da criação literária. Fazer com que as coisas sejam outras, como se sentidas pela primeira vez, únicas e especiais, tocadas de mistério e assombro, de riso ou reflexão, para o que é necessário dar-lhes uma nova luz.”41 Entendemos que muita da Teoria da Literatura que conhecemos passará, no futuro, por obras como esta, onde as questões práticas da criação andam a par com as teóricas.

41

QDC, p. 275

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Bibliografia

- AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de, Teoria da Literatura, Lisboa, Almedina, 2000 - ARISTÓTELES, Poética, Lisboa, INCM, 2003; tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa - ARISTÓTELES, Poética, Lisboa, Gulbenkian, 2011; prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira; tradução e notas de Ana Maria Valente - CARVALHO, Mário de, Quem Disser o Contrário é Porque tem Razão, Porto, Porto Editora, 2014 -

CEIA,

Carlos,

Estruturalismo

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CEIA, Carlos, Horizonte de expectativas (ERWARTUNGSHORIZONT) in “E-

Dicionário de termos literários”, (http://edtl.fcsh.unl.pt/) – consultado dia 21-01-2017 - CHKLOVSKI, Vladimir, A Arte como Processo, in “Teoria da Literatura-I”, S.l., Edições 70, 1978 - HORÁCIO, Arte Poética, Lisboa, Gulbenkian, 2012; introdução, tradução e comentário de R. M. Rosado Fernandes - K., William et al, Crítica Literária, breve história, Lisboa, Gulbenkian, 1971; prefácio de Eduardo Lourenço - PINTO DE CASTRO, Aníbal, Retórica e Teorização Literária em Portugal: do Humanismo ao Neoclassicismo, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973 - PLATÃO, República, Oeiras, Guimarães Editores, 2010 - REIS, Carlos et all, Dicionário de Narratologia, Coimbra, Almedina, 2000

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