Aspetos morfológicos da articulação com a frente de água em Lisboa

May 29, 2017 | Autor: Rita Ochoa | Categoria: Urban Morphology, Urban Waterfronts, Architecture and Public Spaces
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Descrição do Produto

PNUM 2016

REDE LUSÓFONA DE MORFOLOGIA URBANA

Centro Cultural Vila Flor, Guimarães Julho 15-16, 2016 PORTUGUESE

OS ESPAÇOS DA MORFOLOGIA URBANA

ATAS DA 5ª CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DA REDE LUSÓFONA DE MORFOLOGIA URBANA

LANGUAGE NETWORK of URBAN MORPHOLOGY

PNUM 2016 V Conferência Rede Lusófona de Morfologia Urbana Portuguese-language Network of Urban Morphology

Os Espaços da Morfologia Urbana 15 - 16 Julho 2016 Centro Cultural Vila Flor Guimarães, Portugal

PNUM 2016 1

Entidades Organizadoras

Universidade do Minho Escola de Arquitectura

Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais

Parceiros

Este trabalho tem o apoio financeiro do Projeto Lab2PT- Laboratório de Paisagens, Património e Território AUR/04509 e da FCT através de fundos nacionais e quando aplicável do cofinanciamento do FEDER, no âmbito dos novos acordos de parceria PT2020 e COMPETE 2020 – POCI-01-0145-FEDER-007528. PNUM 2016 2

PNUM 2016 V Conferência Rede Lusófona de Morfologia Urbana Portuguese-language Network of Urban Morphology Coordenação geral Jorge Correia Miguel Bandeira

Comissão Científica Teresa Marat-Mendes (Presidente), ISCTE Instituto Universitário de Lisboa Eneida Souza Mendonça, Universidade Federal do Espírito Santo Frederico de Holanda, Universidade de Brasília Jorge Correia, Universidade do Minho Miguel Bandeira, Universidade do Minho Nuno Norte Pinto, University of Manchester Stäel Pereira da Costa, Universidade Federal de Minhas Gerais Vítor Oliveira, Universidade do Porto

Comissão Organizadora (Universidade do Minho) Cidália Silva Ivo Oliveira Jorge Correia Maria José Caldeira Maria Manuel Oliveira Miguel Bandeira

Entidades organizadoras Escola de Arquitectura da Universidade do Minho Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho Lab2PT Laboratório de Paisagens, Património e Território CEGOT Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território

Secretariado Lab2PT

http://pnum2016.weebly.com PNUM 2016 3

‘Os Espaços da Morfologia Urbana’

Atas da 5ª Conferência Internacional da Rede Lusófona de Morfologia Urbana, PNUM 2016

E-book Editor Jorge Correia Miguel Bandeira

Coordenação de conteúdos Sandra Barbosa

Coordenação gráfica Ivo Oliveira

Edição Escola de Arquitectura da Universidade do Minho Lab2PT Laboratório de Paisagens, Património e Território

ISBN 978-989-99484-6-4 PNUM 2016 4

Bem-vindos ao PNUM 2016 em Guimarães! A Rede Lusófona de Morfologia Urbana / Portuguese-language Network of Urban Morphology (PNUM) apresenta a sua quinta conferência internacional. Depois das edições no Porto, Lisboa, Coimbra e Brasília, em 2016 a Universidade do Minho e o PNUM lançam como tema geral ‘Os Espaços da Morfologia Urbana’ nas suas diferentes dimensões de investigação, ensino e prática. Entre os dias 15 e 16 de Julho de 2016, pretende-se fomentar um fórum inclusivo dos diversos agentes que participam no estudo, compreensão e discussão das múltiplas aplicações da morfologia urbana na esfera no universo lusófono. A cidade de Guimarães proporciona a todos os participantes um cenário ideal para as temáticas propostas, oferendo no seu palimpsesto urbano marcas identitárias da sua formação medieval, evolução moderna, iluminista e liberal, bem como das mais recentes requalificações de espaço publico e reabilitação do seu tecido construído. Classificada como Património da Humanidade e recentemente protagonista da Capital Europeia da Cultura 2012, a cidade complementa os trabalhos de índole científica que se promoveram nas salas do Centro Cultural Vila Flor. A preparação para o PNUM 2016 iniciou-se logo após a reunião em Brasília, um ano antes, estruturando-se em torno de nove eixos temáticos, a saber: 1. História da forma urbana; 2. Heranças patrimoniais e regeneração urbana; 3. Teoria da morfologia urbana; 4. Da cidade ao território; 5. Práticas e experiências didácticas; 6. Métodos e técnicas; 7. Agentes e processos de transformação; 8. Do plano ao projecto; 9. Espaço público e transformações recentes. A resposta à chamada para resumos foi muito encorajadora e uma selecção cuidada foi levada a cabo pela Comissão Científica. Os resumos aceites foram convidados a apresentar a sua comunicação em Guimarães, bem como a submeter o artigo completo para publicação nestas atas. Sendo opcional, publicam-se aqui todas as submissões voluntárias dos autores, organizadas por temas. O conteúdo de cada artigo é da total e exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), incluindo direitos de imagem quando aplicável. Constitui-se como um repositório parcial das vinte e sete sessões que conformaram a conferência. O PNUM 2016 manifesta o seu profundo reconhecimento a todos os que contribuíram para a sua realização, desde logo as suas comissões científica e organizadora, os monitores de sala e o secretariado. O agradecimento estendese institucionalmente às entidades organizadoras - Escola de Arquitectura da Universidade do Minho; Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho; Lab2PT Laboratório de Paisagens, Património e Território; CEGOT Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território - bem como aos parceiros: Município de Guimarães; Museu de Alberto Sampaio e Fundação para a Ciência e Tecnologia. Pessoalmente, o PNUM 2016 deixa uma palavra de gratidão aos professores Renato Leão Rego e Teresa V. Heitor, pela disponibilidade e excelência das suas palestras principais, bem como a João Cabeleira, Joel Dinis, Anabela Portilha e equipa do CCVF, e Lurdes Catalino e equipa da Abreu. Por fim, o agradecimento maior vai para todos os participantes que proporcionaram dois dias de intensa troca, comunicação e discussão em torno dos temas da morfologia urbana. Muito obrigado pela participação no PNUM 2016! Jorge Correia Miguel Bandeira Coordenadores PNUM 2016 PNUM 2016 5

SUMÁRIO 13

1. História da forma urbana

15

O Pátio da Minha Cidade: Da antiguidade clássica ao contexto urbano atual. Mariana Neto

27

O papel das vias romanas na formação e desenvolvimento periférico da cidade de Braga, desde a época romana até à atualidade. Maria do Carmo Ribeiro, Manuela Martins

39

A Viagem de Cósimo III de Médicis. Imagem da cidade portuguesa de seiscentos, o caso de Santarém. João Cabeleira

51

Paisagem Urbana do Núcleo de Povoamento da Ilha de Santa Catarina através de Representações Artísticas dos Viajantes. Marcia R. Escorteganha

63

Implantação insular franciscana portuguesa antes do Brasil colonial: Funchal e Ponta Delgada. Isabel Norton

79

A Morfologia Urbana das Vilas termais do Norte de Portugal: Gerês, Vizela, Pedras Salgadas. Isabel Matias

91

Tecido urbano em crise: leituras de São João del-Rei / MG (1930 - 1945). Mariana Souza, Adriana Nascimento

103

A rua de trás. Flavia Botechia

113

A Cidade Interrompida: o processo de planeamento da cidade de Alcobaça, 1889-1957. Silvia Di Salvatore, Ana Tostões

127

Geo-morfo-evolução de Setúbal e Évora: paralelismos e diversidades. Manuela Tomé, Maria Tereno, Maria Monteiro

141

Vilas e cidades no Brasil Colônia. Lívia Vierno

151

As Formas do urbano na cidade histórica em Galícia. Xose Lois Martínez Suárez

165

Desenho e circunstância. Mário Bonito: Bairro de Moradias Económicas da Cooperativa O Lar Familiar. Helder Casal Ribeiro

177

Encontrar o futuro na história. O Plano de Urbanização de Guimarães (Fernando Távora, 1982). Eduardo Fernandes

189

Cidades Limitadas? Análise Configuracional de Assentamentos Urbanos Murados. Marlysse Rocha, Valério Medeiros, Monica Gondim

203

2. Heranças patrimoniais e regeneração urbana

205

Ofícios e Rios: uma análise da regeneração urbana nos bairros Olarias e Poti Velho em Teresina – Piauí. Ana Falcão, Ingred Sampaio, Vitória Alencar, Karenina Matos, Wilza Lopes

215

Intervenção em centro urbano tombado buscando critérios estéticos para preservar a sua ambiência histórica. Fernanda Vierno

227

Casa do Barro: Memória Viva da Olaria no Telhado, freguesia do Fundão. Rúben de Matos PNUM 2016 6

235

O Mercado Público de Laguna: Uma inserção atemporal na inconstância da Urbanidade. Tueilon de Oliveira

247

Regeneração e re-funcionalização. Perspetivando o futuro do(s) território(s) ribeirinho(s) de Lisboa. Ana Nevado

259

Morfologia urbana na zona ocidental intramuros da cidade de Évora (séc. XIII-XXI): do património à malha urbana. Maria Monteiro, Maria Tereno, Marízia Pereira

269

Perspectivas urbano-paisagísticas de uma cidade ribeirinha na Amazônia: a presença do rio e dos espaços livres públicos no desenho da paisagem e da morfologia urbana de Afuá/PA. Vera Tângari, Rubens Andrade, Pedro Mergulhão

281

3. Teoria da morfologia urbana

283

“The grand manner”: a rede axial barroca e a concepção da forma urbana na Escola Francesa de Urbanismo. Ivvy Pessôa Quintella

295

Morfologia, atractores e vida social. O impacto do espaço físico no modo como usamos a cidade: o caso do Bairro de Alvalade. Micaela Raposo, Luís Santos, Rafael Ferreira, Hugo Brito, Sara Eloy

307

Fundamentos de Morfologia Urbana. Staël de Alvarenga Pereira Costa, Maria Manoela Gimmler Netto

317

Limite Difuso. Sines, o Processo de Infraestruturação Industrial Andreia M. Tavares, Paulo Tormenta Pinto

327

Leituras Morfotipológicas e os IGT`s. Filipa Corais

345

Análise Morfológica quanto à Consolidação da Praça XV de Novembro na Paisagem Urbana de Florianópolis- Brasil. Marcia R. Escorteganha, Gilberto S. Yunes

361

4. Da cidade ao território

363

Aspetos morfológicos da articulação com a frente de água em Lisboa. Rita Ochoa

375

Favela como padrão de ocupação e produção habitacional. Eber Marzulo

385

Crescimento Periférico e Periurbano em Itabirito-MG, Estudo de caso do Vetor Leste. Alfio Conti, Débora Meirelles

395

O processo de difusão urbana no espaço perimetropolitano de Belo Horizonte, o estudo de caso do espaço regional entre Itabirito e Ouro Preto. Alfio Conti, María Florencia Sosa, Amanda Andrade

409

Mudança do ambiente térmico em Guimarães (1984-2014): o impacte da urbanização difusa. Catarina Pinheiro, Maria Manuela Laranjeira, Miguel Bandeira

417

A Dança das Densidades no Contexto do Crescimento Urbano. Maria do Rosário Jorge, Luís Vicente Baptista, João Pedro Nunes, Nuno Neves

427

Implementação do estatuto das cidades em Cabo Verde: desafios e propostas de solução. Simão Varela

435

Cidades do Litoral em Rede. Paraná (Brasil) e Algarve (Portugal) Jussara Silva, Mafalda Pacheco, Teresa Heitor

445

Mobilidade acelerada: o hinterland entre Sines e Madrid. João Teixeira, Paulo Tormenta Pinto PNUM 2016 7

455

5. Práticas e experiências didáticas

457

Aplicação do método das escolas inglesa e italiana de morfologia urbana na análise das cidades históricas de Minas Gerais: o caso de Tiradentes. Larissa Bertu, Renata Pedrosa, Maria Cristina Teixeira, Marieta Maciel, Natália Achcar

467

Transformação de um Vazio Urbano Romano numa Nova Urbanidade para Romanina. Tiago Rente, Alexandra Saraiva

477

Além dos muros da Universidade: Intervenção urbana como forma de inclusão social - O caso da Comunidade da Margem da Linha em Campos dos Goytacazes/RJ. Antonio Godoy, Clarisse Luna, Carolina Barreto, Daniela de Oliveira, Danielly Aliprandi, Fagner Oliveira

489

A Cidade como experimentação criativa. Experimentação criativa um contributo para a literacia urbana. Mafalda Pacheco, Patrícia Lourenço, Teresa Heitor

497

A Abordagem tipo-morfológica da Escola Muratoriana. Xose Suarez, Armando Fernandes, Adriana Vieira, Fernanda Gorghi

507

Análise e modelagem da morfologia urbana em um contexto de Conservação Urbana. Fabiano Diniz, Ana Rita Sá Carneiro, Raphael Melo, Danielle Rocha

519

As formas da cidade compacta: Investigação arquitetônica sobre quarteirão existente. Maria L. A. Sanvitto, Claudia P. C. Cabral

529

6. Métodos e técnicas

531

Técnicas Morfológicas do Projeto Urbano. Paolo Marcolin

543

Oficinas de morfologia urbana em cidades brasileiras. Silvio Macedo e Francine Sakata

557

Análise da Lacunaridade Urbana em Cidades Brasileiras de Médio Porte. João Silva Júnior, Mauro Barros Filho, Jade Brito

571

Espaço e vida urbana no Distrito Federal. Ana Paula Barros, Juliana Alvim

579

As Relações Determinantes entre Urbanidade e Forma Urbana. Samira Elias Silva, José Nuno Beirão, Carlos Dias Coelho

589

Como o espaço pode influenciar a rápida decisão sobre os percursos a tomar: o caso do Estádio Universitário de Lisboa. Tomás Amaral, Joana Sequeira, Renata Sousa, Sara Eloy

599

Morfologia e Urbanidade em Margens de Corpos d’Água Urbanos. Michelle Benedet, Carlos Faggin

609

A configuração das bordas metropolitanas da cidade de Curitiba/Brasil. Luciana Capistrano, Letícia Pacheco, Priscila Dill, Jussara Silva

619

Análise configuracional da cidade de Sines. Contribuições para a sustentabilidade do planeamento urbano e território. Bárbara Lopes, Rosália Guerreiro

629

Contributo da sintaxe espacial para uma metodologia de reconstrução virtual do património arquitetónico. O sítio da Esperança como caso de estudo. Ana Gil, Ana Tomé

641

Instrumentos cartográficos no acompanhamento das modificações do uso do solo e no controle dos impactos ambientais: influências no planejamento territorial do Distrito Federal – DF - Brasil. Marly Santos da Silva

655

A Reinterpretação do Movimento Moderno em Lúcio Costa e a sua Influência na Renovação Arquitetônica Lusitana na Primeira Metade do Séc. XX. Edgard Oliveira, Larissa Bertu, Stael Pereira Costa, Maria Netto

667

O inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa e a Antropologia: um caso de transversalidade metodológica. Teresa Marat-Mendes, Maria Amélia Cabrita PNUM 2016 8

679

Crescimento Urbano: Relações críticas entre sistemas de serviços urbanos, consumidores e seus reflexos no crescimento da cidade. Decio Bevilacqua, Romulo Krafta

689

Tecido urbano do Distrito da Mooca. Um estudo de tipos. Adilson Macedo, Maria Isabel Imbronito

703

(Cidade) Real: Estudo do processo de formação do Bairro Alto das Mercês, São João del-Rei/MG. Marcelo Silva, Adriana Nascimento

713

7. Agentes e processos de transformação

715

Apropriação dos Espaços Livres e Agentes Transformadores em Vargem Grande - Rio de Janeiro/RJ. Julia R. Bahiana, Victória F. R. Carvalho, Nathália R. B.Costa, Vera R. Tângari

727

Na fonte das cidades, as águas e as pessoas: a experiência do projeto Parque Capibaribe no bairro das Graças (Recife, Brasil). Fabiano Diniz, Danielle Rocha, Werther Ferraz e Anna Karina Alencar

737

Reconhecimento e Categorização Tipológica dos sistemas de Espaços Livres. O Estudo de Caso de Guaratia – RJ. Mariana Moreira, Bruno Mendonça, Vera Tângari

751

Sistema de espaços livres e urbanidade em uma cidade média brasileira: Araguari, Minas Gerais. Lucas de Oliveira, Eugenio Queiroga

761

Repensando a cidade informal: a regulação da forma urbana e suas repercussões Socioespaciais. Mariana Costa Lima

771

Algumas considerações sobre o papel do Desenho Urbano na evolução e controlo dos tecidos urbanos: Bairro Alto, um caso de estudo. Beatriz Ribeiro, Teresa Marat-Mendes

785

Estrutura morfológica da grande cidade brasileira. Eugenio Queiroga, Silvio Macedo

795

A rua Primeiro de março e a centralidade na cidade do Rio de Janeiro: Uma análise urbanística. Leonardo Pereira

805

Transformação na Forma Urbana Brasileira – Estudo de Dois Centros Urbanos. Rafael Pegoraro, Silvio Macedo

817

Cidade como Universidade, Universidade como Cidade: A morfologia do recinto universitário. Luísa Cannas da Silva, Teresa Heitor

827

Algumas questões teóricas sobre a produção imobiliária privada urbana. Hugo Louro e Silva, Candido Malta Campos

835

Morfologia e Propriedades Topo-Geométricas dos Condomínios Horizontais da Cidade de João Pessoa, Brasil. Alexandre Castro, Anneliese Lira, Paulo Vítor Freitas

849

A cidade entre edifícios. Reflexão sobre meio século de mudanças num conjunto habitacional modernista. Jorge Gonçalves, Luís Carvalho, João Rafael

859

A produção do espaço urbano de Toledo-PR a partir da instalação do Frigorífico Pioneiro S/A: aspectos do planejamento municipal. Sabine Campos, Sílvia Pereira

871

Brasília: Paisagem Urbana Contemporânea. Sidney Vieira Carvalho

883

O uso de novos meios nos processos de planejamento urbano participativo. Daniel Cardoso, Vítor Meneses

895

Gestão Pública, Planejamento Urbano e Desigualdade Socioespacial em Salvador/ Bahia – Brasil. Joilson Cruz da Silva PNUM 2016 9

907

O desenvolvimento dos caminhos-de-ferro em Portugal e no Brasil: Uma análise comparativa e morfológica dos territórios atravessados por estas infraestruturas. Inês Isidoro, Teresa Marat-Mendes, Vera Regina Tângari

919

Os processos de transformação urbana em Campos dos Goytacazes/RJ: desdobramentos do Programa Habitacional Morar Feliz. Aline Rangel, Antônio Godoy, Daniela de Oliveira, Danielly Aliprandi, Fagner Oliveira, Lucas França

931

Vilas Piscatórias Algarvias Análise da Evolução Urbana. Sofia Ribeiro, Teresa Heitor

945

Processo de produção e transformação da forma urbana em cidades costeiras brasileiras. Denio Benfatti; Vera Tângari

957

O processo de transformação da vila de pescadores da Praia do Forte. Ariadne Silva, Gabriella Faria, Márcia Mello

965

As narrativas de uma paisagem: da urbanística de colina à verticalização do centro histórico de Vitória (Brasil). Martha Campos, Fabiano Dias

983

8. Do plano ao projecto

985

Do plano à prática: a realidade do transporte cicloviário em Teresina, Piauí. Amanda Luz, Ylana Oliveira, Karenina Matos, Wilza Lopes

997

A integração de métodos de zoneamento no desenvolvimento de parâmetros de desenho urbano para a agricultura urbana. Natália Lemos, Emília Rutkowski, Evandro Monteiro

1011

Densidade, Dispersão e Forma Urbana: Dimensões e Limites da Sustentabilidade Habitacional no Brasil. Geovany J. A. da Silva, Samira Elias Silva, Carlos Alejandro Nome

1023

Outorga onerosa e o avanço do papel da administração pública nas novas legislações urbanas no Brasil: estudo de caso em São Paulo e Belo Horizonte. Rafael Araújo, Maria Cristina Teixeira

1031

Análise Espacial do Grande Conjunto de Alvalade: O Planeado e o Construído. Israel Guarda, Valério de Medeiros

1045

Uma Avenida Moderna: planos e projetos de Alberto Pessoa para a Infante Santo. Tiago Farinha, Ana Tostões

1057

Forma e Utopia. Os lugares modernos da Arrábida e da Afurada nas expansões urbanas entre Porto e Gaia. Diana Almeida Silva

1077

O projeto como planejamento - Estudos e Relatórios de Impacto de Vizinhança na Cidade do Rio de Janeiro. Andrea Queiroz Rego

1087

Desconstrução da paisagem tecnológica até ao solo natural no Vale do Ave. André Chaves

1097

9. Espaço público e transformações recentes

1099

A qualidade socioambiental dos espaços públicos em bairros habitacionais. Karla Conde, Silvia Pina

1111

Aportar à Beira-rio: o contributo do novo Museu dos Coches a Belém. Nuno Tavares da Costa

1121

Projeto de espaço público: um processo de mediação. Requalificação do Centro Cívico da Vila das Taipas. Marta Labastida, Joel Dinis, Marisa Fernandes PNUM 2016 10

1131

Da Cidade à Metápole: os Efeitos da Configuração Territorial e da Morfologia Urbana nos Espaços Públicos e na Vida Urbana. Milton Esteves Jr., Maria Candelária Lacherre, Claudia Emperatriz Diaz Garcia

1143

Os espaços livres públicos e a forma urbana no Vetor Oeste da Região Metropolitana de Belo Horizonte/MG – Brasil. Marieta Maciel, Natália Achcar, Mirelli Medeiros, Priscila Schiavo, Mariana Lima, Renata Ribeiro

1155

A Cidade sustentável como produto do marketing territorial. Soluções de mobilidade urbana no caso do Porto Maravilha – Rio de Janeiro. Maria do Carmo Bezerra, Laysa Abchiche, Artur Rocci

1169

Da estrada carroçável ao boulevard: a Avenida Frei Serafim como principal eixo viário da cidade deTeresina, Piauí, Brasil. Amanda Miranda, Sandra Medeiros, Karenina Matos, Wilza Lopes

1179

Avaliação dos Desempenhos das Formas Urbanas e dos Modos de Uso e Apropriações dos Espaços Públicos Gerados pela Implantação das Estações de Metrô do Município de São Paulo. Kazuo Nakano, Paulo Ferrara Filho, Helena Degreas, Paula Katakura

1189

Espaço Urbano, Pessoas e suas Relações. Ainara Fialho, César Guglielmelli, Gabriel Santos, Maxwell Rodrigues, Sarah Pinheiro, Stela Gomes, Thaiza Alves, Luciana Resende

1197

Padrões Espaciais e Vida Pública: Contributo para o estudo de gentrificação no Bairro Alto. Juliana Inácio, Rosália Guerreiro

1207

O Papel do espaço público na era digital e sua contribuição para a sociabilidade. José de Souza Gomes Júnior, Laini de Souza Santos

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1. História da forma urbana

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O Pátio da Minha Cidade Da antiguidade clássica ao contexto urbano atual Mariana Neto

ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa Avenida das Forças Armadas Edifício ISCTE 1649-026 Lisboa, Portugal, Telefone/fax: 00 351 210 464 031 [email protected]

 Resumo A multiplicidade formal e a possível variação de escala, permite ao pátio responder a diferentes necessidades programáticas, assim como criar espaços de transição entre diferentes realidades – interior/exterior. Este ensaio recai sobre a evolução e adaptação deste elemento ao longo da história, com o intuito de compreender a relação do mesmo com a cidade contemporânea, em particular com a cidade de Lisboa. O pátio é um elemento primordial na história da arquitetura, desde a antiguidade até à idade moderna. Segundo Antón Capitel (2005)1, é também a base de um verdadeiro sistema de composição, o suporte de uma forma de projetar tão universal como variado. Tanto como modo de habitar, quanto como sistema, o pátio pode definir-se como um arquétipo sistemático e versátil, capaz de albergar uma grande quantidade de usos, formas, tamanhos, estilos e características diferentes. Para Werner Blaser (2004)2, o pátio foi criado com o propósito de isolar o Homem do mundo exterior, hostil e desconhecido, porém, sem perder as características/factores naturais. Este ocupa o lugar central e aberto da casa em oposição aos outros espaços fechados que o cercam. A sua forma em planta não é fixa: pode ser quadrado, circular, retângular ou curvo; tão pouco as suas dimensões estão definidas. Todavia, a sua extensão está delimitada pela proporção que deve existir com os muros que o definem. António Baptista Coelho defende ainda que a capacidade de compactação urbana e de agregação das habitações desenvolvidas em torno de pátios parece ser uma arma, bem atual e interessante, no aprofundamento de uma estratégica de densificação urbana, tratando-se de um caminho que não sacrifica as fundamentais privacidades domésticas, e sendo também um caminho claramente associável ao desenvolvimento de tipologias habitacionais intermediárias, entre o unifamiliar e o multifamiliar. Inúmeros arquitetos estudaram a morfologia e a evolução do pátio porém, este elemento não vive exclusivamente para si próprio, a sua relação com a cidade é constante.

 Palavras-chave: pátio; vazio; cidade



Capitel (1947-) é arquiteto catedrático no Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura de Madrid (ETSAM). É autor de inúmeros estudos sobre arquitetura moderna. Entre eles, Arquitectura española 1939-1992 (1995). Arquitectura europea y americana después de las vanguardias (1996). Alvar Aalto proyecto e método (1999). Las columnas de Mies (2004). Las formas ilusórias en lá arquitectura moderna (2004) e La arquitectura del pátio (2005). Atualmente é diretor da revista COAM. In http://ggili.com/es/autores/anton-capitel

Antón

Werner Blaser (1924-) nasceu em Basle, Suiça, é um publicitário, arquiteto e designer de equipamento que sofreu influências de arquitetos como Alvar Aaalto e Ludwig Mies van der Rohe e da arquitetura clássica chinesa e japonesa. Tem artigos publicados sobre arquitetura, design e cultura ilustrados por fotógrafos estrangeiros, in https://br.pinterest.com/loefflergmbh/werner-blaser/

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Capítulo 1 | Conceito de Pátio Podemos entender a palavra pátio como um espaço aberto frente a um edifício (pátio de honra) ou compreendido no interior do edifício. Este é ladeado, geralmente rodeado de arcadas, servindo de passeio. Parte de terreno descoberto que, situado no centro de um complexo arquitectónico, serve para iluminar e arejar os recintos internos. 3

O pátio é um elemento primordial na história da arquitetura, desde a antiguidade até à idade moderna. Segundo Antón Capitel (2004), é também a base de um verdadeiro sistema de composição, o suporte de uma forma de projetar tão universal como variado. Tanto como modo de habitar, quanto como sistema, o pátio pode definir-se como um arquétipo sistemático e versátil, capaz de albergar uma grande quantidade de usos, formas, tamanhos, estilos e características diferentes. O seu nascimento está ligado a climas secos e solarengos, próprios das terras das civilizações da antiguidade, lá alcançou uma condição muito diversa desde a casa modesta ao palácio.

Antón Capitel (2004) afirma que o pátio é um espaço de paz e reconhecimento que, estando sujeito às condições climatéricas e físicas, como o decorrer dos dias e das estações, protege contudo o Homem, do espaço exterior onde jaz o desconhecido e o hostil.

Para Luiz Alves (2005)4, podemos dividir o conceito de pátio em dois tipos de espaço, o interno - espaço descoberto, envolvido pelo corpo de um ou vários edifícios – e o externo – espaço descoberto, anexo a um edifício. Em ambos os casos, é um elemento limitado fisicamente por paredes ou muros, descoberto, desnudo, relacionando-se diretamente com a abóbada celeste e, com todas as manifestações climáticas.

Para Werner Blaser (2005), o pátio foi criado com o propósito do mundo exterior, hostil desconhecido, porém, sem perder as características/factores naturais: a luz, a noite/dia, o calor/frio e a chuva. Este ocupa o lugar central e aberto da casa em oposição aos outros espaços fechados que o cercam. A sua forma em planta não é fixa: pode ser quadrado, circular, retângular ou curvo; tão pouco as suas dimensões estão definidas. Todavia, a sua extensão está delimitada pela proporção que deve existir com os muros que o definem. Existem pátios para diversas funcionalidades: o pátio ajardinado, o pátio fábrica, o pátio de escola, claustros, entre outros. Estas nomenclaturas evidenciam a evolução de usos do pátio.

 (Calado;

Silva, 2005)

Luiz Augustos dos Reis-Alves, arquiteto e urbanista, mestre em arquitetura na área de Conforto Ambiental (PROARQ/FAU/UFRJ), doutorado em Arquitetura e investigador na EAT/GRECO (Ecole d’Arqchitecture de Toulouse/Groupe de Recherche Environmente Conception/ França). In http://vitruvius.com.br/read/arquitextos/06.063/436

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Norbert Schoenauer (2000)5 define o pátio como o coração da casa urbana oriental. Para a cultura chinesa é uma “oferenda do céu”, fonte que proporciona luz, ar e água da chuva à habitação. O conceito da casapátio foi redescoberto por alguns arquitetos modernos, constituindo um exemplo a seguir tanto no uso do solo como na conservação da energia e na definição hierárquica das ruas, pois proporciona uma identificação mais íntima com a comunidade residente, e é um modelo urbano compacto que não desperdiça espaço resultando em distâncias pedonais razoáveis e numa densidade adequada a um eficaz sistema de transportes. Segundo o mesmo autor, as civilizações orientais, milhares de anos mais antigas que as ocidentais, evoluíram, através de um longo processo de ensaio e erro, até algumas soluções de desenho habitacional urbano que deram resultados positivos ao longo de muito tempo. Soluções que podem ser adoptadas no cenário urbano ocidental, com a garantia de terem sido viáveis durante pelo menos 6000 anos.

António Baptista Coelho (2010)6 refere que a capacidade de compactação urbana e de agregação das habitações desenvolvidas em torno de pátios parece ser uma arma, bem atual e interessante, no aprofundamento de uma estratégica densificação urbana, tratando-se de um caminho que não sacrifica as fundamentais privacidades domésticas, e sendo também um caminho claramente associável ao desenvolvimento de tipologias habitacionais intermediárias, entre o unifamiliar e o multifamiliar, numa estimulante transfiguração da ideia da casa-pátio, para soluções mutuamente sobrepostas e diversificadamente imbricadas.

Capítulo 2 | Pátio: origem e tipologias A tipologia pátio existe há milhares de anos desde os assentamentos neolíticos. Inicialmente, o pátio, era usado como uma barreira protetora contra as adversidades climáticas e também como esconderijo, evitando assim ataques animais. Sendo uma das formas primordiais da arquitetura, o pátio tem sido relevante para todos os tipos de edifícios, sejam residenciais, comerciais, institucionais ou industriais. No entanto, esta tipologia tem sido utilizada maioritariamente em edifícios residenciais.

Segundo Hinrichs Oliver, Schoenaeur e Sullivan em “The Historic Evolution Of Courtyard” (1989), assumese que a primeira forma arquitectónica de pátio surgiu, simultaneamente, nos acampamentos das tribos nómadas e nas moradias das primeiras comunidades agrícolas. As habitações das quatro civilizações mais 

Norbert Schoenaeuer (1923-2001), professor e arquiteto, dedicou a sua carreira à evolução e desenvolvimento do design de habitação. Graduou-se mestre em arquitetura na faculdade McGill University em Montreal. A sua publicação mais importante intitula-se, 6000 Years of Housing publicada em 1981, o livro foi adaptado e republicado mais tarde por W. W. Norton. In http://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/norbert-schoenauer/  António Baptista Coelho licenciou-se em Arquitetura em 1979, pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, em 1985, doutorou-se em Arquitetura, pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. É fundador e Presidente do Grupo Habitar, é editor da revista na Infohabitar, é Vice presidente (n.e.) da Nova Habitação Cooperativa (NHC), desde Janeiro de 2006, foi Chefe do Núcleo de Arquitetura e Urbanismo do LNEC desde Janeiro de 2002 até 2013 e, atualmente, é diretor da Universidade da Beira Interior (UBI). In http://livraria.lnec.pt/fichs/v_COELHO_A_Baptista.pdf 5

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antigas da Mesopotâmia, Indus Valley, Egito e China, bem como as habitações do período clássico grecoromano, são a prova de que o pátio é tudo menos um resultado de uma época da história arquitetura, de uma região ou de simples condições climáticas.

De acordo com os mesmo autores, no contexto da Grécia Antiga, as casas mais primitivas albergavam uma estrutura doméstica muito simples, de origem popular, a sua única abertura de fachada era o vão da porta, sendo que a única luz da habitação provinha do pátio, um espaço exterior privado. A casa era cega por uma questão de segurança e o pátio assumia-se metaforicamente como jardim do Éden – o paraíso. Tanto a casa grega como a casa romana caracterizavam-se pela organização em torno de um pátio sobre o qual se abriam os aposentos o que simultaneamente permitia que se restringissem as aberturas para o exterior. Este efeito confere privacidade e segurança com um caráter introvertido. Esta mesma razão levou a que, no nosso século, particularmente no período que decorre entre as grandes guerras, a tipologia viesse a surgir novamente como a melhor resposta para a segurança e privacidade, surgindo como um elemento de defesa a rapidez de execução, economia de esforços e meios, usando-se inclusive elementos pré-fabricados.7

Este espaço exterior assumiu um papel de destaque na sociedade, era utilizado como um meio natural de climatização, espaço sagrado, de reunião, de vigília e de confecção de refeições. Todas estas atividades têm em comum a necessidade de proteção ou de privacidade e, foi essa a raão pela qual se manteve a morfologia do pátio interno.

Antiguidade Clássica É aceite que, a partir do século VIII a.C., formaram-se na Grécia Antiga diversas cidades independentes e cada uma delas desenvolveu o seu próprio sistema governamental, as suas leis, o seu calendário, a sua moeda. Essas cidades eram chamadas de Pólis – Cidade Estado.

Segundo Schoeneaur (1989), no período Helénico, época que sucede ao Oriente Antigo, as zonas residenciais são caracterizadas por um crescimento orgânico, ou seja, desordenado e acelerado da cidade. A concepção do plano hipodómico, plano urbano de malha ortogonal, no qual se cruzam ângulos rectos que definem quarteirões regulares de tamanho igual, veio transformar os distritos residenciais, permitindo uma melhor organização das cidades estado e consequentemente uma evolução positiva no modo de habitar da sociedade. A cultura grega manteve as características simples, com um modelo de casa-pátio semelhante ao protótipo da casa Mesopotâmica, porém maior e mais adornado, consequente de um nível

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(Silveira, 1999).

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de sofisticação mais elevado relativamente ao povo Sumério. um espaço central, de forma a proteger os interiores, numa época de instabilidade, em que a paz e a guerra se fazem sentir simultaneamente.

De acordo com o mesmo autor, com o aperfeiçoamento desta tipologia, nasce o conceito de megaron – grande sala retângular, existente nos antigos palácios micénicos, caracterizada por estar rodeada de colunas e possuir uma ladeira mais ou menos centralizada –, herdado da cultura Micénica. A evolução deste elemento traduz-se na disposição de colunas à volta de toda uma área interior, a descoberto do edifício. Assim, surge o conceito de peristilo. Um peristilo assemelha-se a um corredor coberto e circundante, aberto lateralmente através de uma ou mais fiadas de colunas, característica típica dos templos gregos. Apesar de este espaço ser um elemento comum nas casas helénicas, existem exemplos de habitações gregas com pátios internos mais simples como é o caso da Casa Colorida de Olynthos (Figura 1).           

  

 Figura 1. Planta da Casa Colorida de Olynthos. Disponível em: http://slideplayer.com.br/16/4870839/slides/slide_8.jpg

 Segundo Schoenauer (1989), a casa típica Romana, Domus, deriva de uma combinação da casa Etrusca com átrio e da casa Grega com peristilo. O protótipo da habitação Etrusca era caracterizado por uma planta axial com um hall central com uma pequena claraboia. Esta abertura, que talvez fosse uma abertura para a saída de fumo é provável que se tenha desenvolvido e se tenha tornado eventualmente num pátio. A Domus era a residência urbana das famílias abastadas da Roma Antiga. Pertenciam às famílias patrícias, proprietárias das habitações mais sumptuosas e também das casas da plebe, onde habitavam comerciantes e artesãos romanos.

Do que foi referido anteriormente pode concluir-se que a tipologia pátio teve origens remotas, esteve associada aos primeiros planos de cidade, assumindo um papel primordial na organização do espaço PNUM 2016 19

público e privado. Atravessou diversas culturas como a grega e a romana, e, apesar de ter sido utilizado em épocas diferentes nunca perdeu a sua essência introvertida, mais ou menos ornamentada. O pátio surge sempre como elemento organizador de espaço que, visa proteger as pessoas das ameaças exteriores.

Idade Média e Renascimento Durante a Idade Média e o Renascimento podemos encontrar o claustro como uma evolução dos pátios da Idade Clássica. Assim, segundo Borges (1988), Inspirado no pátio e no Fórum Romano, surgiu um novo elemento na arquitetura, o claustro que, foi essencialmente importante para as catedrais, mosteiros, hospitais e casas senhoriais. Esta nova tipologia nasceu também para responder a um problema funcional relacionado com o fornecimento de luz e arejamento de um vasto espaço interior, para além de servir como centro de distribuição. O significado de Claustrum evoluiu para caracterizar uma porção de espaço semiexterior que, num edifício, fecha uma área interna ao ar livre. No entanto, continuou a assumir um valor simbólico como centro e coração da vida monástica sendo por isso lugar de investimento estético.

O claustro assume-se como o centro de toda a estrutura monástica, como uma força centrípeta e ordenadora, (…) em volta da qual se congregam todos os restantes elementos necessários para que a vida religiosa siga o seu curso regular. Resulta da “influência dos pátios abertos com pórticos e casas de habitação em redor, existentes nas vilas rústicas.8

Derivado, remotamente, do peristilo grecoromano, pode dizer-se que o claustro nasceu no seio do mundo mediterrânico como espaço funcional a um tempo aberto e fechado, mas carregado de valores de civilização por via de duas tradições culturais: a muçulmana e a cristã.9

Segundo Capitel (2005), as variantes em planta do claustro não vão para além de rectângulos e quadrados com arcos, colunas ou pilares. O claustro inclui um pátio, normalmente ocupado por um jardim e muitas vezes possuindo um lago ou uma fonte, é morfologicamente lido como uma subtração de massa e não como uma adição de espaço. Desta forma, este elemento mantém uma certa constância formal evidenciada pela repetição de módulos, colunas ou arcos e os correspondentes vazios entre eles. Entre os rectângulos e os quadrados, podem-se identificar duas variantes, com número de colunas par ou ímpar, sendo que o último implica que uma coluna ocupe o eixo de simetria de cada fachada para o pátio.

 (Borges, 1988, 34) (Correia, 1991, 273) 

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De acordo com o mesmo autor, os hospitais tardomedievais ou renascentistas, podem considerer-se dentro da composição claustral. A sala dos doentes é o espaço primordial do edifício, em forma de cruz, com o altar no cruzamento, permitindo que os doentes pudessem ser vigiados de qualquer ponto. Uma cruz de grandes braços amplos, formando quarto ângulos côncavos, adequada a receber quarto claustros. É no periodo Renascentista que o pátio ocupa o lugar de maior destaque na organização da casa, como é o caso dos palácios. O palácio, e o seu pátio central, adquirem uma regularidade geométrica elementar, definindo-se em condições de axialidade, simetria e modularidade. Maioritariamente, foram concebidos tendo como base o quadrado, cubos sólidos, de tendência horizontal e com não mais de três pisos.

Época Moderna Foi no século XVIII que se iniciou a substituição do antigo sistema projetual – o qual visava uma organização em torno em torno de um pátio ou claustro – por outro que, inspirado nos antecedentes maneiristas palladianos, se consolidou nas escolas de arquitetura, como é exemplo a Beaux Arts, e por consequência, se expandiu por todo o mundo. Todavia, em Espanha principalmente, o antigo conceito de casa-pátio tradicional perdurou até fins do século XIX.

Segundo Capitel (2005), no século XX houve uma grande transformação na forma de pensar a arquitetura, o aparecimento do movimento moderno trouxe consigo a procura de uma arquitetura mais simples e pura, apoiada no estudo de exemplos classicistas tradicionais. A revolução moderna insurge-se contra o sistema académico predominante da altura, e não contra os sistemas arqueológicos clássicos e tradicionais que, serviriam como referencias para uma nova arquitetura. O pátio como elemento organizador de espaço deixou de ocupar uma posição central no pensamento dos arquitetos. Porém, contra o que se pensaria, este elemento perdurou e transformou-se noutra coisa completamente diferente do que havia sido e, ainda apesar da sua utilização minoritária, ganhou uma nova vida.

Le Corbusier10 Le Corbusier foi o primeiro, em 1922 com o projeto das Immeuble Villas, a agregar volumetricamente a casa-pátio em altura, transgredindo a sua condição essencial de ligação vertical com o céu, projetou



Le Corbusier (1887-19965), com o nome Charles-Édouard Jeanneret, arquiteto e urbanista suíço, considerado a figura mais importante da arquitectura moderna. Fez parte da primeira geração da ainda intitulada International School of Architecture. Como pintor , ajudou a fundar o movimento purista, uma corrente derivada do cubusmo, nos anos 20. Publicou numerosos artigos na revista francesa “L’Esprit Noveau”. Em concordância com os avanços industriais da época, Corbusier repensa a funcionalidade e utilidade da habitação criando o coceito “machine à habiter” – uma máquina de habitar. Definiiu a arquitetura como o jogo correto e magnifico dos volumes sob a luz, fundamentalmente na utilizaçãoo de novos materiais como o betão armado e as grandes superfícies em vidro. Uma das suas preocupações constantes foi a necessidade de uma nova planificaçãoo urbana, mais adequada à vida moderna. Foi o autor do Plano Obus, para reurbanizar Argel, e de todo o planeamento de Chandigarh. In http://educação.uol.com.br/biografias/le-corbusier.html

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unidades de habitação coletiva distribuídas por dois pisos, integrando-se num pátio que, ao contrário do tradicional, se abre lateralmente para o exterior. No projeto da Villa Savoye (Poissy França, 1928-1929) (Figura 2) existe um volume, um paralelepípedo que contém a casa em L, é elevado em pilotis fazendo do terraço uma parte interna da casa e libertandoo do terreno. A continuidade que existe com os espaços interiores e a delimitação do espaço, definida pelas paredes do próprio edifício, altera o conceito de pátio, transformando-o num terraço elevado sobre a paisagem.

Neste caso, Le Corbusier propõe substituir o telhado tradicional por pátios e terraços colocados nos últimos pisos dos edifícios. Desta forma, o pátio deixa de existir no solo e passa para a parte superior do edifício.  

Figura 2. Villa Savoye. Disponível em: http://www.evermotion.org/vbulletin

 Mies Van der Rohe11  Foi a partir dos anos trinta que o arquiteto Mies Van der Rohe se começa a distinguir dos interesses dos seus contemporâneos que, desenvolviam tipologias de baixo custo de forma estandardizada.



Ludwig Mies Van der Rohe (1886-1969) foi, provavelmente, um dos mais influentes arquitetos da primeira metade do século xx. É considerado, juntamente com Walter Groupius e Le Corbusier, um dos mestres mundiais da Arquitetura Moderna. Desde o princípio da sua carreira, influenciado pelos estudos do holandês Stijil, desenvolveu uma conceção arquitetónica de linhas puras. Mies abriu o seu próprio atelier em 1912, em Berlim. Com Groupius, criou em 1919 a Bauhaus, em Weimar – Alemanha, com o objetivo de formar, pelo trabalho de equipa, artesãoes, escultores, pintores e arquitetos para as tarefas de desenhar e criar novos produtos industriais. Em 1930, assume a direção da escola, nessa época instalada em Berlim, após uma passagem por Dessau, permanecendo no cargo até 1933, quando a escola foi fechada pelo regime Nazi. Deixou a Alemanha em 1937, partindo para os Estados Unidos e radicando-se em Chicago. Tornou-se, no ano seguinte, diretor do Instituto de Tecnologia de Ilinois e acabou criando as bases da moderna cidade de Chicago, construída em aço e vidro, quando projetou, no “International Style”, o edifício do Federal Building. O rigor das proporções, a valorização da infra-estrutura como elemento estético, e a precisão do detalhe foram os três princípios que nortearam a sua criação. O estilo ascético de Van der Rohe era reafirmado pela expressão que costumava utilizar como justificaçãoo do funcionalismo dos seus projetos: “less is more”. In http://home.fa.ulisboa.pt/ãl005433/biografia.html

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Segundo Inaki Abalos, a ideia de individualizar um sistema, operando com poucas variáveis ligadas entre si é uma questão importante no projeto da “Casa com três pátios” (1934), onde o mais importante é a experiência teórica. A casa em forma de T, dispõe-se transversalmente no terreno, originando três pátios: o principal de maior dimensão, através do qual se introduz na casa, e dois de menor dimensão. Esta habitação reflete a visão de Mies para o que deveria ser a arquitetura da sua época, uma estrutura minimalista reduzida à pele e ao esqueleto do edifício, o espaço devia ser ordenado de forma clara, simples e fluida, proporcionando a liberdade na utilização.

Para Abalos (2002), o programa escolhido para esta habitação é singular, o interior é idealizado para um único habitante, um anacoreta, possuía as condições essenciais a uma existência civilizada. O exterior evidencia a ideia de um interior completamente privado em relação ao espaço público, à rua e aos vizinhos, através de um muro perimetral.

Pere Joan Ravetllat (2013) defende ainda que, as casas-pátio de Mies e a organização das casas pompeianas estão relacionadas. Os espaços da “Casa com três pátios” são determinados e qualificados através da sua inter-relação, assim como nas antigas casas romanas onde os espaços internos são definidos pela relação estabelecida com o atrium e o peristilo.   

Figura 3. Planta da Casa com três patios. Disponível em: http://3.bp.blogspot.com/

   Á medida que a arquitetura moderna foi evoluindo, o pátio foi-se também libertando das suas condições originais, através de novas técnicas de construção, novos materiais, novos usos e novos hábitos culturais. O pátio deixou de ser um elemento de climas quentes e secos, a sua fácil exportação por todo o mundo permitiu-lhe chegar ao Norte da Europa. Este pátio revitalizado que possui características modernas, baseadas nas condições e premissas tipológicas de uma mudança de unidade arquitectónica básica, deixa de ser um edifício isolado e passa a ser parte integrante de um conjunto construtivo. Contudo, as premissas originais do pátio mantêm-se, adaptando-se à época moderna, na representação da qualidade espacial e a relação como mundo exterior, melhorando a qualidade de vida em zonas urbanas tanto no interior quanto PNUM 2016 23

no exterior, proporcionando uma habitabilidade mais natural no meio urbano, onde a construção é mais densificada.

Capítulo 3 | Conclusão O patio é um dos elementos mais antigos da arquitetura e surge para responder às necessidades da vida em comunidade. Por questões de protecção, privacidade e conforto, o patio foi essencial na criação das primeiras cidades. Actualmente, estes “vazios urbanos” continuam a ser fundamentas para construção e organização da cidade. Porém, para compreender e estudar uma parte da cidade, como é o caso do pátio, é necessário compreender o seu todo, os seus mecanismos funcionais e formais. Para José Lamas “a arquitectura sempre teve como objectivos a criação do mais propício ambiente à vida humana, e o seu contributo coloca-se a diferentes níveis (...), sendo por isso mesmo de difícil delimitação” (Lamas, 2007: 22). É, por isso, necessário perceber a relação que existe entre a arquitetura e a cidade, como fizeram: Aldo Rossi em Arquitectura da Cidade e Nuno Portas em Cidade como Arquitectura. Assim, Segundo Rossi, A cidade, na sua vastidão e na sua beleza, é uma criação nascida de numerosos e diferentes momentos de formação; a unidade destes momentos é a unidade urbana no seu conjunto; a possibilidade de ler a cidade como continuidade reside no seu proeminente carácter formal e espacial. (...) A cidade é vista como uma grande obra, individualizável na forma e no espaço, mas esta obra pode ser apreendida através dos seus trechos, dos seus diferentes momentos.12

Desta forma, considerando a cidade e a arquitetura um todo, pode-se admitir que as suas formas são indissociáveis da ocupação do espaço e da vida em comunidade, influenciando a vida social, tanto a nível de comportamento quanto de bem-estar.

(...) em causa é a qualidade urbana, ou seja, a expressão em espaço da vida quotidiana, então teremos de (re)inventar o processo, partindo da vida associada, das relações sociais, da experiência dos indivíduos, (...) e certamente que uma outra cidade renasce, a partir de dentro, e se estrutura (isto é, tece-se de relações entre as coisas, não de coisas). Recuperando uma personalização perdida pela contiguidade dos espaços habitáveis. 13

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(Rossi, 2001,85-86) (Portas, 2011,188)

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Seguindo esta premissa de retomar a tradição urbanística formal, através da recuperação de elementos da cidade tradicional (a rua, a praça), atribui-se um novo sentido à cidade, ocupando estes locais com mais pessoas, locais esses que atualmente são identificados como vazios urbanos no imenso contexto da cidade, dando-lhes um sentido e integrando-os num sistema mais alargado de conhecimento do que foi a cidade antiga e do que é a cidade contemporânea, as suas morfologias e processos de formação, experimentando novos conceitos, métodos e programas.  Capítulo 4 | Referências Bibliográficas

Abalos I (2002) La Buena Vida: Visita Guiada a Las Casas de La Modernidad, Gustavo Gili, Barcelona. Alves L (2005) O que é o pátio interno? Obtido em 5 de Abril de 2016, de Vitruvius : http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.063/436 Blaser W (1997) Patios. 5000 Años de Evolución desde la Antigüedad Hasta Nuestros Dias, Gustavo Gili, Barcelona. Borges N (1998) Arquitectura Monástica Portuguesa na Época Moderna, (Notas de uma investigação), Museu, Porto, IV série, nº 7. Capitel A (2005) La arquitectura del pátio, Gustavo Gili, Barcelona. Coelho A B (2010) Sobre a casa-pátio: elementos de enquadramento, Infohabitar, no 283. Consultado em http://infohabitar.blogspot.com/2010/01/sobre-casa-patio-elementos-de.html. Correia J (1991) “A Importância dos Colégios universitários na definição das tipologias dos claustros portugueses”, in Actos do Congresso História da Universidade, Coimbra. Ravetllat P (2013) Atrios y Peristilos. Las Casas Patio de Mies. Patio y Casa, DPA (Documents de Projetctes D’Arquitectura), Ediciones UPC, Barcelona. Lamas J (2000) Morfologia Urbana e Desenho da Cidade, 2a Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Portas N (2001) A cidade como Arquitectura. Rossi A (2001) A Arquitectura da Cidade. Schoeneaur N (2000) 6000 years of Housing,Revised and Expanded Edition, W.W.Norton and Company, New York, London. Silveira  (1999) A casa-pátio de Goa, 2a edição, FAUP publicações, Porto.

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O papel das vias romanas na formação e desenvolvimento periférico da cidade de Braga, desde a época romana até à atualidade1 Maria do Carmo Ribeiro, Manuela Martins Lab2PT, Unidade de Arqueologia, Departamento de História, Instituto de Ciências Socais, Universidade do Minho Braga, Telefone: 965161073 [email protected]; [email protected]

Resumo O presente trabalho pretende analisar o impacto que as vias romanas tiveram na morfologia que caracterizou a periferia urbana da cidade de Braga, desde a sua fundação, no período romano, até à atualidade. Através do cruzamento dos resultados obtidos na investigação arqueológica e histórica, bem como na utilização de uma metodologia de análise que privilegia abordagens regressivas, é atualmente possível propor um traçado aproximado das vias que subsidiavam a cidade de Braga no período romano, verificar a sua reutilização ao longo dos tempos e avaliar o papel que desempenharam no crescimento periférico da cidade desde a Idade Média até à época contemporânea. Pretende-se, desde modo, através do cruzamento dos vários tipos de informação, nomeadamente os dados arqueológicos, as fontes escritas e a cartografia e iconografia históricas, analisar as consequências de tipo morfológico decorrentes da longa ocupação dos primitivos caminhos periféricos de Braga, avaliando as sucessivas alterações na fisionomia do plano urbano, no sistema viário, bem como no tipo de parcelamento e uso do solo que lhe está associado.

Palavras-chave Braga, cidade e periferia, morfologia urbana, vias romanas

Introdução Entre os elementos estruturais dos espaços urbanos os caminhos constituem um dos componentes que apresentam uma maior tendência para se conservarem. Em muitos casos, e independentemente da sua morfologia original, as cidades romanas acabaram por ser rodeadas por muralhas, convertendo-se as vias que partiam das suas portas em eixos organizadores do seu crescimento periférico. Na realidade, um dos modos característicos da expansão das cidades está associado à progressiva urbanização da rede de caminhos periféricos preexistentes, na maior parte dos casos de origem romana. Este tipo de crescimento desenvolveu-se de forma natural e orgânica em diferentes momentos históricos, sendo característico do período medieval e moderno, respondendo às próprias necessidades de cada cidade (Capel, 2002). Assim aconteceu com Braga, cidade que tem vindo a ser objeto de vários estudos que documentam como as vias de origem romana se perpetuaram no espaço urbano, dentro e fora das muralhas e condicionaram a evolução morfológica da cidade até à atualidade (Ribeiro, 2008; Martins e Ribeiro, 2013).



1 Este trabalho tem o apoio financeiro do Projeto Lab2PT- Laboratório de Paisagens, Património e Território AUR/04509 e da FCT através de fundos nacionais e quando aplicável do cofinanciamento do FEDER, no âmbito dos novos acordos de parceria PT2020 e COMPETE 2020 – POCI-01-0145-FEDER-007528.



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Neste trabalho pretendemos analisar o caso do crescimento periférico de Braga na longa duração e o papel desempenhado pelo sistema viário romano nesse processo. Na prática, procuraremos demonstrar como as vias que ligavam Bracara Augusta às restantes cidades romanas da Hispânia foram reutilizadas desde a Idade Média e como se constituíram em eixos estruturantes da paisagem urbana até à época contemporânea. Pretende-se avaliar as consecutivas transformações na fisionomia do plano urbano da cidade, do seu sistema viário, bem como do tipo de parcelamento e uso do solo que lhe está associado. Para tal iremos privilegiar uma metodologia de análise regressiva, através do cruzamento dos vários tipos de fontes disponíveis, designadamente os dados arqueológicos, a cartografia e iconografia histórica, assim como as fontes escritas. 2. Fontes e metodologia de abordagem A interpretação da morfologia da cidade romana de Bracara Augusta, designadamente das vias periféricas que a subsidiavam, tem sido viabilizada pelos resultados dos trabalhos arqueológicos que, desde há cerca de 40 anos, têm vindo a ser desenvolvidos em Braga e na sua periferia (Martins et alii, 2013). Entre os dados arqueológicos mais importantes para este estudo destacam-se aqueles que permitiram definir o perímetro da muralha romana, bem como o local onde se situavam as suas portas, os traçados das vias e as áreas de necrópoles que se localizavam nas suas imediações (Lemos, 2002; Carvalho, 2008). Ainda para o período romano destaca-se a representação iconográfica da cidade quinhentista, conhecida por mapa de Braunio, produzido em 1594, que possui anotações e observações relativas a alguns locais da cidade romana, identificando algumas vias, assim como o local do fórum romano e a localização de algumas necrópoles. O mapa de Braunio constitui-se, igualmente, como uma importante fonte para analisar a morfologia da cidade de Braga e a sua periferia nos inícios da época moderna (Figura 1). Para documentar a urbanização medieval destacam-se as fontes escritas, nomeadamente os documentos produzidos com fins administrativos pela instituição religiosa bracarense, que, apesar de fornecerem informação indireta, permitem extrair dados relevantes relacionados com os diferentes espaços urbanos (Ribeiro, 2008). A cartografia histórica constitui igualmente um poderoso instrumento para documentar as características da cidade durante as épocas moderna e contemporânea, com destaque para o conhecido Mapa das Ruas de Braga (MRB) (Bandeira, 2000), onde se encontram desenhadas as fachadas das casas que faceavam algumas ruas em meados do século XVIII. Merecem igualmente destaque as primeiras representações cartográficas realizadas por engenheiros militares, datadas do século XIX, principalmente a planta topográfica de 1883/852, que constituem documentos preciosos sobre a topografia da cidade



2 Planta à escala 1/500, composta por 32 folhas, pertencente à Câmara Municipal de Braga, instituição a quem agradecemos a sua cedência em formato digital. Esta planta foi recentemente publicada por Miguel Bandeira (2015).



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 anteriormente às grandes transformações do espaço urbano bracarense realizadas na segunda metade daquele século (Bandeira, 2001).

 )LJXUDMapa de Braunio ( 1594)

O cruzamento das diferentes fontes referidas permite analisar a morfologia da cidade de Braga em distintos períodos cronológicos. Para o efeito recorremos a uma metodologia de análise regressiva, que tem por base a cartografia dos finais do século XIX. A sucessiva subtração dos elementos correspondentes às diferentes cronologias documentadas permitiu elaborar plantas representativas das diferentes épocas de crescimento periférico da cidade, desde a época romana até à contemporânea. 3. Evolução urbana de Braga: das vias romanas às ruas contemporâneas 3.1 As vias romanas As origens de Braga remontam ao período romano, quando foi fundada a cidade de Bracara Augusta, por volta dos anos 16/15 a.C. Estrategicamente implantada no território, a cidade possuía um plano ortogonal e encontrava-se ligada a outras importantes cidades hispânicas por um conjunto de itinerários principais, que começaram a ser construídos ainda no tempo de Augusto. Esta primitiva rede viária foi reforçada e consolidada na época flávia com a construção da Via Nova (via XVIII) e da via que ligava a cidade a Emerita Augusta, capital da Lusitânia (Carvalho, 2008). A cidade seria ainda subsidiada por vias secundárias, eventualmente traçadas sobre caminhos proto-históricos, que a ligavam a outros centros urbanos de menor estatuto, designadamente às capitais de civitates (Martins, 1995). Das seis vias principais que convergiam para a cidade cinco delas são mencionadas no Itinerário de Antonino, designadamente as vias XVI, XVII, XVIII, XIX e a via XX per loca marítima (Carvalho, 2008). A sexta via aparece documentada no Mapa de Braunio como ligando a cidade de Braga a Guimarães e corresponde à via Bracara-Emerita. O Mapa de Braunio assinala igualmente o local das vias XVIII e XVI. Nas margens das vias principais localizavam-se as necrópoles romanas arqueologicamente conhecidas, santuários e villae suburbanas, que funcionavam como extensões da cidade no território (Martins e Delgado, 1989/90; Martins et alii, 2012).



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A definição exata do trajeto dos itinerários romanos principais, sobretudo na periferia imediata de Bracara Augusta, bem como o local onde estas se ligariam à cidade, tem sido ensaiada por vários autores graças à restituição da morfologia da muralha que passou a cercar a cidade nos finais do século III/inícios do século IV, bem como à identificação de alguns troços das vias, nomeadamente da via XVII e XVIII (Carvalho, 2008). A área cercada pela muralha romana ocuparia cerca de 48 hectares, sendo possível propor uma restituição da mesma que contemplaria as seis portas, que permitiam a ligação às respetivas vias principais (Ribeiro, 2008) (Figura 2).

Figura 2O núcleo urbano de Braga e a sua articulação com o território entre os séculos V e IX

A via XIX, que ligava Bracara Augusta a Lucus Augusti (Lugo), passando por Limia (Ponte de Lima) e Tude (Tui), tinha início na parte norte da cidade, enquanto a via XVIII, também designada de Via Nova, iniciava-se a nordeste, permitindo a ligação a Asturica Augusta (Astorga). Com base no local onde a via XVIII aparece assinalada no mapa de Braunio, em dados epigráficos e nas escavações realizadas na atual avenida Central, podemos admitir que o seu trajeto pode estar fossilizado nas atuais ruas de Janes, dos Chãos e de S. Vicente. Sob esta via passaria, com grande probabilidade um dos aquedutos de abastecimento de água, captada na atual zona das Sete Fontes (Martins e Ribeiro 2012). Já a via XVII, iniciava o seu trajeto no lado nascente, seguindo pela atual Rua do Raio, assegurando a ligação a Asturica Augusta, por Aquae Flaviae (Chaves). A comprovação deste traçado, sobretudo na parte em que se ligava à porta da muralha, foi possível graças às escavações realizadas no antigo edifício dos CTT (Martins et alii, 2010).



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Na parte sul da cidade tinha inicio a via XVI que se dirigia a Olisipo (Lisboa), passando por Cale (Porto), enquanto na parte ocidental deveria ser feita a ligação à via per loca maritima, ou Via XX, que articulava a cidade com o litoral, seguindo para Lugo. Segundo as anotações do Mapa de Braunio a sudoeste da cidade encontrava-se a saída para Cale, num caminho que se direciona para sul e que, portanto, se ligaria à via XVI. Este caminho tinha origem no fórum, seguindo para oeste, pela atual rua de S. Sebastião, correspondente ao decumano máximo ocidental da cidade romana, no final do qual existiria um entroncamento de caminhos, seguindo um para sul, com ligação à via XVI e outro para oeste, correspondente à via per loca marítima (Carvalho, 2008). O traçado da via Bracara-Emerita é o mais problemático, admitindo-se a sua saída por sudeste. Referida no Mapa de Braunio sabemos que esta via chegava às portas da cidade passando a ponte de Guimarães, seguindo aproximadamente o trajeto da atual Avenida da Liberdade, invertendo posteriormente no sentido do hospital, pela rua dos Granjinhos, desembocando na via XVII, através da qual se ligaria à cidade. 3.2 Caminhos e ruas medievais A partir do século VII assiste-se ao surgimento de pequenos aglomerados urbanos na periferia urbana, associado à construção de basílicas cemiteriais, erguidas sobre antigas necrópoles e junto das principais vias romanas que ligavam Braga ao restante território. Entre estes aglomerados populacionais destacamse o de S. Pedro de Maximinos, no local do anfiteatro romano, no entroncamento entre as vias XVI e XX que saíam pela porta ocidental da cidade; o de S. Vicente, a nordeste, junto da via XVIII e o de S. Vítor, nas margens da via XVII (Ribeiro, 2009/2010). Estes primitivos núcleos, associados ao culto martirial, darão origem às paróquias medievais da área suburbana (Fig. 2) (Fontes et alii, 2010). Muito embora as fontes disponíveis não permitam documentar com precisão o período que medeia entre as invasões muçulmanas e a revitalização da cidade de Braga, com a consagração da Sé, em 1112, é possível conjeturar que a cidade se concentrou e amuralhou no quadrante nordeste da cidade romana, reutilizando a norte parte da muralha romana que foi articulada com uma nova cerca, documentada arqueologicamente. A nova cidade englobaria agora uma área de 30 hectares (Martins e Ribeiro, 2013). A partir do século XII surgem referências documentais que comprovam o crescimento do pequeno burgo medieval para norte e nordeste seguindo a direção das vias XIX e XVIII, entretanto transformadas em caminhos rurais periféricos. Referimo-nos, concretamente, às medievais rua de Janes e rua Nova, importando destacar que as mesmas foram englobadas pela nova muralha medieval que viria a ser construída no século XIV, que incluiu o castelo, o paço arquiepiscopal e uma extensa área por urbanizar, onde se localizavam maioritariamente propriedades rurais do arcebispo (Ribeiro, 2008).



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 A rua Nova, correspondente ao início da via XIX (Braga-Lugo), asseguraria na Idade Média a ligação aos importantes núcleos de S. Frutuoso e de Dume. A sugestão de que o seu traçado seguiria pela Rua da Cónega, atravessando as propriedades do Cabido, é hoje controverso, sendo mais plausível que a mesma tenha origem medieval. As referências documentais atestam que aquela rua já estaria urbanizada nos finais do século XIV, tendo sido destruídas 16 casas3, aquando da invasão da cidade pelas tropas castelhanas (Ribeiro, 2008)4. Para além das ruas mencionadas, importa destacar igualmente a rua da Corredoira, a rua dos Chãos, e a Rua de Maximinos, localizadas na periferia da cidade, importantes na estrutura urbana periférica de Braga durante a Idade Média (Figura 3).

 Figura 3 Plano urbano de Braga (séculos IX-XIII)

A Rua da Corredoira, que corria no espaço onde atualmente se localiza a avenida Central, permitia estabelecer a ligação da cidade com a paróquia suburbana de S. Vítor, aparecendo referida em documentos de 1161, como “vinea de Corredoira”5, o que remete para o carácter rural dos terrenos cruzados pelo caminho. A partir de 1261, encontramos já a referência explícita à rua da Corredoira6, que



Arquivo Distrital de Braga, 1º Livro do Tombo do Cabido, fls. 134. A cidade de Braga, segundo o cronista Fernão Lopes, foi ocupada e devastada pelas tropas de Henrique de Trastâmara, futuro rei Henrique II de Castela (Lopes, 1895/1896). 5 Liber Fidei, fólios 131v-132, doc. 486 (Costa, 1978, tomo II 230-231) 6 Pergaminhos da Confraria de São João do Souto, nº7 (Marques, 1982 71-20). 3 4



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 estaria ainda pouco urbanizada, atendendo às referências do século XVI, que analisaremos adiante. Com o alargamento da muralha e a construção do castelo, nos inícios do século XIV, esta rua passará a unir a porta da muralha de São João do Souto à Igreja de S. Vítor. Tal como já referido, a rua dos Chãos ligava a cidade à paróquia suburbana de S. Vicente, segundo o traçado da antiga via XVIII. Apesar das referências documentais remeterem para uma artéria pouco urbanizada7, ainda nos inícios do século XIII, esta situação será progressivamente alterada ao longo dos séculos seguintes como comprova a referência à destruição de trinta e quatro casas existentes nesta artéria8, aquando da incursão castelhana nos finais do século XIV9. Outra importante artéria extramuros era a rua de Maximinos que ligaria a porta ocidental da cerca medieval à Igreja de S. Pedro de Maximinos, acompanhando, pelo exterior, o traçado da anterior muralha romana, indo entroncar com as vias romanas per loca marítima e XVI (Porto-Lisboa). Esta artéria poderá ter a sua génese num caminho desenvolvido no Baixo-Império, como via de circulação exterior da parte poente da fortificação romana. Na Idade Média constituiu um importante eixo de desenvolvimento urbano, permitindo uma ligação privilegiada entre a rua da fachada principal da Sé – Rua dos Burgueses – e a saída para o Porto (Ribeiro, 2008). O nível de urbanização desta artéria no século XIV pode ser conjeturado pela circunstância de ter conhecido a destruição de 29 casas10, como resultado do ataque das tropas castelhanas. Ao longo dos séculos seguintes Braga irá continuar o desenvolvimento periférico encetado anteriormente, ao longo dos traçados das antigas vias romanas ou em ruas que permitiam a ligação àqueles caminhos. 3.3 Parcelamento e urbanização na Idade Moderna e Contemporânea O desenvolvimento periférico da cidade a partir do século XVI irá ser potencializado pela abertura de novos rossios, ou “campos”, mandados abrir pelo arcebispo D. Diogo de Sousa, localizados extramuros, nas proximidades das portas da muralha medieval, designadamente os rossios de Santa Ana11, dos Remédios, das Carvalheiras, das Hortas e da Vinha (MauricLo 2000). A abertura destes espaços irão simultaneamente dinamizar estas zonas bem como os caminhos que a eles se ligavam. Entre as vias suburbanas mais importantes que sofreram um marcado processo de urbanização a partir da época Moderna destacam-se: a rua dos Chãos; o conjunto do campo de Santa Ana, campo e calçada



Arquivo Distrital de Braga, Gaveta 1 das Propriedades do Cabido, fl. 20, datado de 1219, onde se refere a compra de herdades nos Chãos, ou lugar dos Chãos. 8 Arquivo Distrital de Braga, 1º Livro do Tombo do Cabido, fls. 133 a 133v. 9 A cidade de Braga, segundo o cronista medieval Fernão Lopes, foi ocupada e devastada pelas tropas de Henrique de Trastâmara, futuro rei Henrique II de Castela (Lopes 1895-1896). 10 Arquivo Distrital de Braga, 1º Livro do Tombo do Cabido, fol. 134. 11 Arquivo Distrital de Braga, Registo Geral, livro 330, fl. 331, onde se lê: “Primeiramente mandou fazer o Resjo de sanctana o qual era todo cheo de vinhas e arvores, nem hy mais espaço nem campo sahindo da Porta do Souto pera Sancta maria a Branca”, publicado por Maurício 2000, vol. II298. 7



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 da Senhora-a-Branca e da Régua, até à igreja de S. Victor; a artéria formada pela rua das Águas e a rua da Ponte de Guimarães, correspondente à atual avenida da Liberdade; a rua dos Pelames; a via formada pela rua de S. Miguel-o-Anjo, a rua da Cruz de Pedra e a rua Direita e a rua das Cónegas (Figura 4).

Figura 4 Crescimento periférico de Braga na época Moderna



Grosso modo, trata-se de ruas que tiveram a sua génese nas antigas vias romanas ou que se abriram para permitir a ligação entre elas, como é o caso das ruas de S. Miguel-o-Anjo, Cruz de Pedra e da rua Direita, correspondentes à medieval rua de Maximinos. Estamos perante uma grande artéria que já se encontraria bastante urbanizada no século XVI, circunstância que terá levado à fragmentação da sua designação. No século XVIII apresenta, na sua parte nascente, parcelas construídas de várias dimensões, com predomínio de casas médias e grandes, enquanto a parte ocidental, de morfologia irregular, é constituída maioritariamente por pequenas parcelas estreitas e alongadas (AA.VV, 1989-91). A fisionomia e o parcelamento destas ruas mantêm-se praticamente inalterados até ao século XIX, muito embora a urbanização deste sector da cidade no século XX não tenha permitido senão a conservação de alguns pequenos troços. A urbanização da via formada pelo conjunto do rossio de Santa Ana, campo e Calçada da Senhora-aBranca e rua da Régua, até à Igreja de S. Victor, foi potenciada pela abertura do mencionado rossio, correspondente atualmente à avenida Central, onde foi exumada uma necrópole associada à via XVIII ou Via Nova, na parte ocidental e onde na Idade Média corria a rua da Corredoira. Ao longo dos séculos XVII



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 e XVIII esta artéria foi sendo sucessivamente urbanizada e preenchida com alguns grandes edifícios de estilo barroco. A parte nascente, correspondente à calçada e campo da Senhora-a-Branca e rua da Régua, até à Igreja de S. Victor, atual rua de S. Vítor, terá uma origem romana, correspondente ao traçado da antiga via XVII (Braga-Astorga). A sua fisionomia e parcelamento, bem visíveis na planta topográfica do século XIX, denotam a sua génese, resultante de um caminho que foi sendo paulatinamente urbanizando, através da constituição de pequenas parcelas, edificadas apenas na parte junto à rua, com compridos quintais que se alongam para o interior dos quarteirões. A criação deste grande espaço veio impulsionar o desenvolvimento da cidade para nascente, potenciando o aparecimento de um conjunto significativo de novas ruas perpendiculares, bem como a urbanização até Gualtar, na continuidade da anterior via romana. A fazer fé representação no Mapa de Braunio, a Rua dos Chãos encontrava-se já praticamente toda urbanizada até à Igreja de S. Vicente nos finais do século XVI. Esta rua apresenta um traçado irregular e um parcelamento constituído maioritariamente por pequenas parcelas estreitas e alongadas e por edifícios modestos, como se pode observar na planta topográfica de 1883/84. Devido à sua extensão, bem como à abertura de novas ruas que para ela convergiam, esta rua foi subdividida, no século XVIII, em rua dos Chãos de Baixo e rua dos Chãos de Cima, conhecendo, igualmente, a introdução de alguns edifícios de maiores dimensões, com fachadas mais ornamentadas de estilo burguês, construídos na época barroca (AA.VV, 1989-91). Nos finais do século XIX a rua dos Chãos de Cima passará a designar-se por rua de S. Vicente. Atualmente a fisionomia, o parcelamento e o edificado desta artéria encontram-se completamente alterados na parte sul da mesma, devido à sua regularização e alargamento realizados já no século XX. De igual modo, a sua parte norte foi objeto de algumas intervenções, mantendo-se, todavia, como uma rua estreita, onde se encontram misturadas parcelas de diferentes dimensões, assim como construções modernas, conservando ainda algumas pequenas casas com a tipologia original (Ribeiro, 2008). A abertura do rossio de Santa Ana terá igualmente potenciado a urbanização da artéria formada pela rua das Águas e a rua da Ponte de Guimarães. Apesar de já se encontrarem completamente urbanizadas no século XVI, será sobretudo ao longo do século XVII e XVIII que que se constituem como um dos eixos comerciais mais importantes da cidade, nomeadamente a parte correspondente à rua das Águas (AA.VV, 1989-91). A rua da Ponte de Guimarães terá a sua origem na via romana que ligaria a Guimarães, pelo

quadrante sudeste da cidade, constituindo na Idade Média o eixo viário de entrada na cidade para quem procedia de Guimarães. No século XVI apresentava um elevado número de construções rurais até à ponte de São João, denotando a sua origem muito anterior à rua das Águas. Durante os séculos seguintes vai encher-se de pequenas casas, apresentando uma fisionomia e um parcelamento muito típico das vias suburbanas, bem representados na planta topográfica de 1883/84. No século XX, quer a rua das Águas, quer a rua da Ponte de Guimarães foram alargadas e regularizadas, circunstância que alterou completamente a fisionomia do seu traçado original e respetivo edificado (Ribeiro, 2008).



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A rua de Pelames, correspondente à atual Rua de S. Geraldo, corre no sentido N/S deve ter tido a sua génese na Idade Média, pois rompe com a orientação da malha romana, assegurando a ligação aos tanques de curtumes que existiriam junto ao rio (Ribeiro e Melo, 2014). Nos finais do século XVI ambos os lados da rua estavam já edificados, apresentando no século XVIII um traçado mais regular na parte norte, com parcelas de maiores dimensões e casas de melhor qualidade, algumas ainda existentes, misturadas com casas pequenas. A parte sul da rua, apresenta uma fisionomia mais irregular, em virtude da sua própria ruralidade e do facto das construções se adaptarem de forma espontânea ao seu trajeto. No século XVIII apresentava construções de pequena dimensão, na maior parte terreiras ou com um só piso, típicas das zonas suburbanas (AA.VV, 1989-91). Atualmente esta parte da Rua dos Pelames encontra-se bastante descaracterizada em virtude das alterações ocorridas na segunda metade do século XX, posteriores à abertura da Av. Imaculada Conceição (Ribeiro, 2008). A rua das Cónegas, atual rua da Boavista, deverá ter uma génese medieval, permitindo ligar a rua Nova, que na Idade Moderna conhece o designativo de rua do Campo, à Igreja e Convento de S. Francisco, em Real, onde, no século VII, havia sido erigido o convento e o mausoléu de Frutuoso (Fontes, 2009). A partir do século XVII esta via constitui provavelmente a maior artéria suburbana da cidade, apresentando um parcelamento constituído maioritariamente por pequenas parcelas, estreitas e alongadas, semelhante ao das artérias que ligavam a cidade às paróquias suburbanas, já referidas (AA.VV, 1989-91). Atualmente, a parte inicial da Rua da Boavista quase desapareceu, encontrando-se fragmentada pelas novas ruas abertas no século XX, conservando-se, apenas, alguns pequenos troços originais, sobretudo em Real. A urbanização destas vias irá conferir à cidade um plano radial, com um tipo de parcelamento bastante característico, designado de parcelamento gótico, em resultado da sua formação junto aos caminhos, bem evidente nos séculos XVIII e XIX, bem como nalguns setores do plano urbano da cidade atual. Breves considerações finais O traçado das principais vias romanas que partiam de Braga pode ser aferido através de um estudo regressivo que teve como base a cartografia a planta topográfica do 1883/4, à qual foi possível subtrair os elementos construtivos, designadamente vias e parcelas com origem nos períodos históricos anteriores àquela data. Assim, foi possível constatar que a rede viária romana desempenhou um papel estruturante na organização da cidade alto medieval, bem como das suas áreas periféricas, algumas das quais foram posteriormente incluídas na cidade tardo medieval, moderna e contemporânea. A urbanização dos antigos caminhos romanos foi progressiva e resultou de um complexo conjunto de fatores que resultou na sua conversão em ruas. Para além da acessibilidade do solo, importa referir que a urbanização desses caminhos corresponde a um processo mais ou menos contínuo, iniciado na Antiguidade Tardia, com a fundação de basílicas paleocristãs em S. Vítor, S. Vicente ou S. Pedro de



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 Maximinos e a posterior instalação de aglomerados populacionais nas suas imediações, mas também com a emergência de núcleos industrias, na periferia urbana, como aconteceu com os pelames na Idade Média. O crescimento posterior da cidade resultou na integração destes elementos periféricos na área urbana, consolidado em momentos distintos, com particular relevância para o século XVIII e XIX, quando se iniciou a fase de crescimento urbano mais intenso, que afetou, sobretudo, a área suburbana. Neste crescimento ao longo dos caminhos periféricos, encontramos o predomínio pequena parcela, estreita e desenvolvida em profundidade, destinada preferencialmente ao uso residencial, edificada na parte anexa à rua, mas destinada ao cultivo e a anexos nos fundos. As parcelas de maiores dimensões puderam albergar conventos, igrejas e complexos artesanais ou casas apalaçadas. Nos últimos séculos, assiste-se à propensão para ampliar e regularizar os caminhos e ruas suburbanas através de normas de alinhamento, do preenchimento intersticial das áreas livres não construídas, da abertura de ruas transversais e da delimitação de quarteirões e de acessos aos edifícios. Estas alterações tiveram obviamente consequências inevitáveis ao nível da morfologia anterior, muito embora algumas das suas características, possam ainda ser recuperadas. Referências bibliográficas AA.VV. (1989-91) Mapa das Ruas de Braga, 2 volumes, Arquivo Distrital de Braga/Universidade do Minho e Companhia IBM Portuguesa, Braga. Bandeira M S M (2000) O espaço urbano de Braga em meados do século XVIII, Edições Afrontamento, Porto. Bandeira M S M (2001) O Espaço Urbano de Braga – a cidade entre os finais do Antigo Regime ao advento da II República, tese de doutoramento policopiada, Universidade do Minho, Braga. Bandeira M S M (2015) Planta topográfica da cidade de Braga de Francisque Goullard (1883/84), Câmara Municipal de Braga, Braga. Capel H (2002) La morfología de las ciudades, Vol. I - Sociedad, cultura y paisaje urbano, Ediciones del Serbal. Barcelona. Carvalho H P (2008) O povoamento romano na fachada ocidental do Conventus Bracarensis, 3 vols, tese de doutoramento policopiada, Universidade do Minho, Braga: http://hdl.handle.net/1822/8755. Costa A J da (1978) Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae, (edição crítica), tomo I e II, Assembleia Distrital de Braga, Braga. Fontes L (2009) O Período Suévico e Visigótico e o Papel da Igreja na Organização do Território, in P Pereira (ed.) Minho. Traços de Identidade, Conselho Cultural da Universidade do Minho, Braga, 272-295. Fontes L, Martins M, Ribeiro M C, Carvalho H P (2010) A cidade de Braga e o seu território nos séculos V-VII, Actas do Congresso Espacios Urbanos en el Occidente Mediterráneo, ss. VI-VIII, Toletum Visigodo, Toledo, 255-262: http://hdl.handle.net/1822/13377. Lemos F S (2002) Bracara Augusta - a grande plataforma viária do Noroeste da Hispânia, Forum, 31, 95-127. Lemos F S (2001) Arredores de Bracara Augusta - escavações arqueológicas na necrópole de S. Vítor, no contexto da via romana Aquae Flaviae, Forum, 29, 9-38. Lopes F (1895/1896) Chronica de el-rei D. Fernando / Fernão Lopes, 3 v, Escriptorio, Lisboa, (Biblioteca de clássicos portugueses). Marques J (1982) Os pergaminhos da Confraria de S. João do Souto da cidade de Braga (1185-1545), Bracara Augusta, Vol. XXXVI (Jan-Dez), 81-82 (94-95), 71-20.



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A Viagem de Cósimo III de Médicis. Imagem da cidade portuguesa de seiscentos, o caso de Santarém. João Cabeleira Lab2pt, Escola de Arquitectura, Universidade do Minho Campus de Azurém, 4800-058 Guimarães, Telefone/fax: +351 253 510 509 - +351 253 510 509 [email protected]

  Resumo Entre 1668 e 1669 o príncipe toscano, Cósimo de Médicis, futuro Grão Duque Cósimo III, empreende uma viagem percorrendo Espanha, Portugal, Irlanda, Inglaterra, Holanda, Flandres e França. Para além do carácter formativo do príncipe, a viagem detém objectivos de reforço dos laços políticos entre as nações chegando até nós documentação escrita e gráfica que permite avaliar a experiência do jovem monarca a par de especificidades das sociedades e lugares com que contactou. Se o diário oficial da viagem, escrito por Lorenzo Magalotti, inclui a descrição dos lugares e das personagens com quem o príncipe contacta, e inclusivamente alguns dos seus diálogos, os registos gráficos de Pier Maria Baldi, conservados na Biblioteca Laurenziana de Florença, revelam uma visão da paisagem urbana (Elvas; Vila Viçosa; Évora; Setúbal; Lisboa; Santarém; Tomar; Coimbra; Porto; Viana, etc.) e rural (Aldeia Galega; Vila Longa; Fonte Coberta; S. Pedro de Rates, etc.) do Portugal de seiscentos. Porém, a visão de Baldi, o qual termina os desenhos em Florença a partir das anotações recolhidas em viagem, não corresponde estritamente a um registo objectivo. Nestas vedute projectam-se paralelamente dados da real vista nos lugares visitados e modelos do quadro cultural de referência do autor, ao mesmo tempo que se detecta o somatório de distintos pontos de vista numa mesma imagem a par de indícios de antecipação estimulados pelo desenho. Advindo daí incongruências na amplitude da veduta, escala e caracterização do representado, pretende-se a partir da veduta de Santarém proceder à identificação dos pontos de vista tomados para a montagem da imagem a par das estruturas representadas visando confrontar a realidade urbana (aquela que nos permite avaliar a imagem da urbe seiscentista) com a introdução de novos factores (averiguando-se ensejos imagéticos). O ensaio explora assim condições da imagem da urbe seiscentista portuguesa, centrando-se num caso particular fixado graficamente por Baldi, ao mesmo tempo que explora as qualidades do desenho inerentes ao género da veduta, nomeadamente daquelas que se balizam entre o registo do real e a projecção de referentes formais externos, a par da montagem de uma imagem global da urbe.

 Palavras-chave Viagem, Baldi, Veduta, Santarém.

Preâmbulo. Tendo em conta a importância da iconografia na restituição histórica da imagem e forma urbana, o estudo pretende desvendar qualidades das vedute de Pier Maria Baldi elaboradas por ocasião do périplo europeu PNUM 2016 39



de Cosimo III de Médicis entre 1668 e 1669. Constituindo-se como documento incontornável no registo da paisagem urbana e rural do Portugal de seiscentos, a veduta de Santarém é tomada como amostra a partir da qual se reconhece o representado (suportado em estudos da forma urbana e inventário arquitectónico, a par dos demais registos gráficos e fotográficos do lugar) e se avaliam propriedades intrínsecas ao desenho (identificação de pontos de vista e opções do autor entre a representação objectiva, construção e espectativas da imagem do lugar, a par da sua contaminação por parte de modelos externos). Um caso a partir do qual se testam princípios metodológicos de análise da imagem e que, de futuro, se poderão alargar à totalidade dos desenhos que documentam a viagem do príncipe toscano em território português permitindo um reconhecimento da paisagem coeva. De facto as vedute de Baldi são um objecto ainda pouco explorado pela historiografia urbana nacional, menos ainda no campo da restituição urbana ou do exame do desenho. Aparte dos estudos de Barata (1933) e Magalhães (2008) sobre este objecto, o primeiro visando relatar o episódio da viagem e o segundo usando a veduta de Coimbra como suporte para a historiografia dos artefactos arquitectónicos que configuram a cidade, nenhum se debruça sobre a avaliação da estrutura urbana representada ou nas propriedades intrínsecas ao desenho ou os seus procedimentos construtivos. Deste modo, urge explorar as potencialidades deste documento como olhar privilegiado, fixado no tempo, para o estudo e avaliação da urbe e suas arquitecturas, assim como, das suas qualidades gráficas face a um género escasso em Portugal.

A viagem de Cósimo III, diários escritos e gráficos. Entre 1668 e 1669 o futuro Grão Duque da Toscana, Cósimo III de Médicis, empreende uma viagem pelo espaço europeu enquadrada no complexo processo de formação do príncipe que assim contacta com os costumes e organização política das nações, além de servir pretensões diplomáticas no reforço de laços políticos e económicos entre o Grão-ducado e as potências europeias. A primeira viagem do príncipe ocorrera em 1664, percorrendo a Emília Romanha, o Véneto e a Lombardia, enquanto numa segunda viagem, entre Outubro de 1667 e Maio de 1668, passa pela Alemanha e Países Baixos1. Posteriormente, na viagem em análise, Cósimo parte de Florença a 18 de Setembro de 1668 em direcção ao Mónaco, desembarcando em Barcelona a 26 de Setembro. Após o périplo por Espanha a comitiva do príncipe toscano entra em Portugal a 10 de Janeiro de 1669, via Elvas, fixando-se em Lisboa de 20 de Janeiro a 18 de Fevereiro, e saindo a 1 de Março do território nacional por Caminha em direcção a

 Ao levantamento destas viagens elaborado por Radulet (2003) o autor elenca a respectiva documentação oficial de cada uma delas.

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Santiago de Compostela.2 Um percurso que se prolonga à Irlanda, Inglaterra, Holanda, Flandres e França chegando a Florença a 29 de Outubro de 1669. 

Figura 1. Itinerário e Vedute do Cartaxo, Santarém, Golegã e Tomar. 



 Na companhia do príncipe desloca-se um séquito de 23 pessoas (um mordomo, um tesoureiro, um copeiro, um sacerdote, médicos, secretários, camareiros, lacaios, cavaleiros, membros da nobreza e diplomatas) de entre as quais destacamos Lorenzo Magalotti que escreve o relato oficial da viagem (expondo o itinerário e apresentando a caracterização dos lugares, das pessoas e dos contactos empreendidos), Pier Maria Baldi que regista graficamente a imagem dos lugares percorridos, além de Filippo Corsini, Jacopo Ciuti e Giovan Battista Gornia que produziram diários pessoais (Radulet 2003). A documentação desenhada e escrita da empresa permite-nos reconhecer o percurso, avaliar a experiência do príncipe (ainda que na terceira pessoa), e as especificidades da sociedade e dos lugares com que contactou. É neste sentido que nos interessam os 126 desenhos de Baldi, de grande formato e em arquivo na Biblioteca Medicea Laurenziana de Florença (ms. Laur. Med. Palat. 123), existindo ainda um espólio de 270 desenhos relativos ao percurso para além da península Ibérica. Porém,deste lote concentremo-nos na veduta da Vila de Santarém (Figura

 Neste percurso entre Elvas e Caminha, a comitiva de Cósimo III passa por Campo Mayor, Vila Viçosa, Estremoz, Venda de Busseiras, Évora, Venda de Patali, Montemor, Venda de Pilhafan, Alandeira, Setúbal, Aldeia Gallega (Montijo), Lisboa, Vila Real d’Alcântara, Belém, Vila Longa, Vila Franca, Cartaxo, Santarém, Golegã, Tomar, Estalagem de Gaita, Ansian, Fonte Coberta, Coimbra, Mealhada, Cerdam, Pinheiro, Porto, Moreira, S. Pedro de Rates e Viana.

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1), antecedida por uma do Cartaxo e precedida por outra da Golegã, correspondentes a pontos de abastecimento e descanso da comitiva também registados por Baldi.  Santarém. Relatos de viagem e iconografia Se os relatos de viagem com descrições da Vila de Santarém são abundantes, conforme individualiza Canavarro (1977)3 a partir de Viajes de Estrangeros por Espanã e Portugal desde los tiempos mas remotos hasta fines del siglo XVI de Mercadal (1952), o mesmo não se poderá afirmar acerca da iconografia produzida. Porventura, a primeira vista conhecida da Vila de Santarém encontra-se numa iluminura de António da Holanda integrada na Genealogia dos Reis de Portugal (1530-34) de Simão Bening (acervo da British Library - Add MS 12531). Mostrando a Vila a partir de oriente, do lado do rio, a iluminura exibe a orografia local e o modo sobre esta assenta e se condiciona a organização de distintos núcleos ribeirinhos (Bairro de Alfange e Bairro da Ribeira ou Vila Baixa), e da vila à cota alta (Alcáçova Velha, Marvila) com as estruturas conventuais periféricas (S. Bento do Monte Iras).4 Por oposição, a panorâmica delineada por Baldi olha para a Vila ribatejana a partir de ocidente colocandose o observador de frente para perímetro muralhado a partir dos espaços abertos no seu exterior, o Chão de Feira, a Carreira dos Cavalos e o Rossio da Amoreira (Figura 2).5 Uma opção que não nos parece alheia ao possível percurso tomado pela comitiva de Cósimo na chegada a Santarém (por terra, através da estrada que proveniente do Cartaxo sobe ao planalto desde o Vale de Santarém até ao Rossio da Amoreira junto à Porta de Manços) ou ainda face à procura de uma visão monumental (mostrando a muralha ocidental atrás da qual se evidencia o grande volume dos antigos paços reais e principais residências nobres) engrandecida pelos grandes espaços deixados em aberto entre o perímetro muralhado e os conjuntos conventuais no seu exterior. De facto, aparte a agitação mercantil da frente ribeirinha, proporcionada pela navegabilidade do rio e acesso directo a Lisboa, são estes os grandes espaços de suporte à vida da vila. Seja pela realização de feiras e mercados junto das suas principais portas, o Chão de Feira junto à porta de Leiria ou o Rossio da  No seu texto o autor transcreve os trechos relativos a Santarém correspondentes aos relatos de AbuAbdallaMohamed-al-Edrisi (séc. XII), Léon de Rosmithal de Blatna (1466), Jerónimo Münzer (1494-95), Gaspar Barreira (1542), Erich Larsato de Steblova (1580-84) e ainda o de Frei Luís de Sousa a partir da sua Primeira parte da História de São Domingos (1623). 4 O mesmo ponto de vista é posteriormente explorado na vista incluída na carta militar da posição de Santarém (1801) pelo Cadete Alfred Wintle, ou ainda na gravura representando a vila após a retirada das tropas francesas a 25 de Março de 1811, de autor anónimo, na gravura publicada no jornal 'O Panorama' de 1839, também anónima, ou a gravura incluída nos 'Estudos Chorographicos, Phisicos e Hidrographicos da Bacia do rio Tejo' (1861) por Manuel José Júlio Guerra. 5 Ainda que sendo um ponto de vista pouco adoptado à apresentação da imagem urbana de Santarém este surgenos, numa posição coincidente mas com menor amplitude num desenho anónimo de 1808, que representa a tomada da vila pelas tropas de Junot, ou ainda, mas de um ponto de vista mais distante, a Imagem da Illustrated London News (1851), representando as tropas luso-britânicas estacionadas na zona do Vale de Santarém, por ocasião da Guerra Peninsular. 3



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Amoreira junto à porta de Manços (ambas com acesso directo à Praça Nova, em torno da qual se organiza o senado municipal, tribunal, cadeia, açougue, etc.) seja pela Carreira dos cavalos para a qual se abrem postigos na muralha, e sobre as quais espreitam sobre as principais residências nobres, a par da agitação proporcionada pela implantação das principais casas mendicantes nos acessos à Vila (conventos de S. Francisco e da Trindade junto à porta de Leiria, convento de S. Domingos frente ao postigo da Carreira, ou ainda o convento das Donas e Hospital do Ordem Terceira de S. Francisco junto à porta de Manços).

Figura 2. Veduta de Santarém, Pier Maria Baldi (1669) com identificação dos principais elementos representados: 1_Ermida/ Albergaria do Santo Espírito (?), reformulada no século XVII; 2_Convento da Trindade (?) fundado em 1208 e remodelado no séc. XVIII; 3_Convento de S. Francisco (1242/1282), corpo gótico e cabeceira moderna (intervenção de Pedro Nunes tinoco em 1635); 4_ Igreja de Nossa Senhora da Piedade, início do estaleiro em 1665 e conclusão da cúpula em 1721; 5_Porta do Chão da Feira/ Canto do Paço; 6_Torre de Menagem do Castelo do Paço (?); 7_Torre dos presos ou Torre Gaiola, base da torre sineira do colégio Jesuíta; 8_Castelo da Vila/Alcáçova Nova, da iniciativa de D. Afonso III é cedido em 1647 à Companhia de Jesus; 9_Paço dos Vasconcelos (?); 10_Paço do Conde de Unhão, séculos XVI e XVII; 11_Igreja de S. Nicolau, (reconstrução após o incêndio de 1600 por Baltazar Álvares); 12_Igreja da Misericórdia (1559-1606); 13_Torre do Conde (?); 14_Igreja de Santa Maria de Marvila (século XVI); 15_Torre de Alpram ou do Relógio do Senado da Câmara (séc. XV); 16_Ermida da Senhora do Bom Sucesso (?); 17_Igreja do Santíssimo Milagre, reconstruída no século XVI e remodelada em 1655; 18_Ermida de Santo Antão (adaptações no séc. XVII); 19_Porta de Leiria; 20_Chão da Feira; 21_Baluarte grande; 22_Sala de Cúria ou Cortes do Paço, convertida em Celeiro e Carpintaria da Companhia; 23_Laranjal do Paço; 24_Baluarte ocidental; 25_Postigo da Carreira; 26_Carreira dos Cavalos; 27_Postigo de Gonçalo Eanes ou de D. Margarida; 28_Porta de Manços; 29_Rossio da Amoreira.



 Detendo desde a idade média um papel activo na vida da Vila, é a partir de finais do século XIX (com a extinção das ordens religiosas e demolição das muralhas), que estes grandes descampados no perímetro da cidade se assumem como centro cívico passando a concentrar-se aí todos os equipamentos públicos e dando lugar a feiras e festas. De facto, do acervo fotográfico do século XIX e inícios do século XX é possível identificar muitos dos elementos representados pela veduta de Baldi, seja pela escassa transformação da frente edificada no alinhamento do perímetro muralhado, seja pela permanência dos complexos conventuais, progressivamente destruídos ou transformados em equipamentos públicos, ao mesmo tempo que se percebe a sua amplitude anterior ao desenho de avenida e jardins concretizados pelo Estado Novo. É precisamente o cruzamento deste acervo visual com a veduta de Baldi que contribuiu para a identificação dos elementos representados e de possíveis pontos de vista geradores do desenho. Porém, este confronto despoleta uma leitura do espaço a dois tempos permitindo identificar e mapear transformações e permanências entre o final do século XVII (1669) e as primeiras décadas do século XX (Figura 3).



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Figura 3. Confronto entre trecho da veduta de Baldi (antigo Paço Real a partir da Carreira dos Cavalos) e fotografia do lugar em inícios do século XX (Colégio Jesuíta a partir do Campo de Sá da Bandeira).



A veduta de Santarém. Representação objectiva versus imaginária. Se os registos de Santarém por Magalotti incidem nos milagres que lhe davam fama, respondendo provavelmente à devoção do príncipe toscano, a veduta de Baldi fixa uma imagem monumental da Vila. No primeiro plano da imagem coloca-se o próprio Baldi de costas voltadas ao observador olhando de frente o objecto do desenho. 6 Uma condição que, relembrando-nos no âmbito nacional o Livro das Fortalezas (150910) em que Duarte d’Armas se faz representar a par do seu escudeiro, serve na linha da tradição italiana à autenticação da autoria da imagem e, potencialmente, comprovar a veracidade do representado: conforme visto por Pier Maria Baldi que aí esteve. Mas será esta imagem/narração uma representação objectiva do real? Ou terá o seu processo de delineação condicionado o visto e o que se dá a ver?

 Esta situação é detectada em muitas das vistas produzidas. No caso da vista de Elvas Baldi surge sentado numa colina de frente para a vila em posição de trabalho, enquanto em Vila Viçosa este se apoia na lápide que serve à identificação do lugar em posse contemplativa. Em Venda de Busseiras vê-se o desenhador a cavalo tentando abrigarse do vento e na Aldeia Galega este parece fugir a pé para se abrigar da chuva eminente. Já no desenho de Vila Franca, Pier Maria encontra-se instalado sobre uma colina no exterior do aglomerado a desenhar sendo, presumivelmente, interrompido pela curiosidade de um transeunte, enquanto na Golegã cruza o caminho com outros caminhantes a quem parece pedir indicações.

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Sabendo que as vedute do álbum de Baldi resultam do redesenho de apontamentos tomados em viagem, já em Florença, estas deterão incongruências face à realidade. De um lado, incongruências consequentes à ordenação e registo de dados, cuja confirmação posterior se tornava impossível. Do outro, a distância temporal, física e cultural que, com certeza, terá condicionado o resultado final das vedute produzidas em Florença e não in loco. Guzmán (2014, 25) aponta, a partir da veduta de Santiago de Compostela, dois atributos colocando em causa a objectividade do desenho de Baldi. A “deformação” do representado, a qual preferiríamos denominar de absurdo perspéctico, já que a imagem global resulta da compilação de anotações produzidas a partir de pontos de vista distintos e certamente sem referenciação a cartografia (seja por falta de tempo do desenhador, mas mais provavelmente à sua inexistência, como em relação ao caso por nós observado), a par de um outro aspecto relativo à “italianização” das formas e arquitecturas representadas, transpondose à veduta referências imagéticas do contexto cultural de origem de Baldi. A primeira característica apontada poderá ser tanto consequente ao modus operandi de Baldi, ou como aponta Guzmán (2014, 25) à sua inexperiência no género das vedute, desconsiderado pela tradição florentina. Porém, nós levantamos outra questão. Serão os absurdos perspécticos detectados, de facto, uma incongruência? Ou, resultarão as ditas incongruências de uma opção consciente por parte do autor que as adopta como estratégia de suporte à dilatação da visual desejada. De facto, parece-nos que concorrem aqui duas circunstâncias. De um lado o desenho como construção e selecção pessoal do autor face ao objecto visto, e por outro a impossibilidade de deter sobre o lugar a representar uma visual ampla o suficiente para o abarcar a partir de um só ponto de vista. Atendendo às particularidades do caso em análise, e ao contrário de circunstâncias como aquelas que permitem a produção das vedute de Évora, Setúbal ou Lisboa (cuja hipótese de uma visão geral é proporcionada pela grande distância do ponto de vista) parece-nos que aqui o desenhador se multiplica entre diferentes de pontos de vista desdobrando/planificando uma visão global do objecto a representar. Só assim, e apesar da amplitude proporcionada pelo planalto que se estende do lado ocidental da vila muralhada, se supere o constrangimento a uma imagem parcelar do objecto ou a uma excessiva distância de modo a respeitar as regras fundamentais do cânone perspéctico. Neste sentido não só a multiplicação de pontos de vista amplia a visão da vila (permitindo a inclusão do máximo de elementos sem os constrangimentos que, por exemplo, ocorrem na fotografia e que detectamos das imagens do acervo recolhido), como, por outro lado, permite reorientar permanentemente o olhar em função da selecção e hierarquização desejada pelo autor. Por outro lado, a denominada “italianização” prender-se-á a distintos factores: de um lado, o léxico gráfico que o desenhador transporta no seu traço condicionando o olhar; e por outro, a hipótese de aculturação contaminando-se os lugares visitados com arquétipos do contexto de origem do autor. Ambas revelam um olhar condicionado pelo contexto da sua formação, ou, porventura, de um olhar nostálgico que remete o



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viajante às suas origens. Mas a par destes podemos ainda apontar necessidades práticas do desenhador que, executando os desenhos finais à distância, se apoia em modelos próximos para colmatar falhas dos seus apontamentos preparatórios no acto de revisão e finalização das vedute. 

Figura 4. Identificação de possível sequência de pontos de vista e respectivos conjuntos vistos sobre Planta Geral da Vila de 1759-80 (IPCC, CA 394). Da esquerda para a direita da veduta: a - conjunto dos conventos de S. Francisco e da Trindade; b – Chão de Feira com porta para a Praça do Paço e Igreja de Nossa Senhora da Piedade; c – conjunto da antiga Alcaçova Nova em processo de transformação em Colégio Jesuíta e Aposentadoria Real; d – Paço dos Condes de Unhão e Torre do Conde; e – Rossio da Amoreira com ermida de Santo Antão e porta de Manços; f – Conjunto em torno da Praça Nova com igreja de Marvila e Torre do Relógio (cabaçeiro). Identificação do percurso de chegada e partida da comitiva de Cósimo III.



 De facto, na veduta de Santarém encontramos estas duas características, tanto a desdobragem/amplificação da visual (Figura 4), como a inclusão de referentes formais externos ao contexto. Porém, para nos determos nestas importa cruzar o desenho de Baldi com a cronologia das construções identificadas (nomeadamente a do Colégio Jesuíta e Aposentadoria Real, da Igreja da Piedade, das Muralhas com respectivas portas e postigos, e dos conventos da Trindade, S. Francisco e S. Domingos), a par das plantas gerais da vila (a Planta Geral da Vila de 1759-80, em depósito no Instituto Português de Cartografia e Cadastro, CA 394) ou



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plantas parciais (sobretudo de conjuntos relevantes como o do Colégio Jesuíta 7 ou dos conventos mendicantes8 externos à muralha). O centro da imagem é dominado pelo volume do antigo Paço Real (entretanto doado à Companhia de Jesus para instalação de Colégio e Aposentadoria Real, cuja construção é balizada entre 1647 e 1711), visto a partir da Carreira dos Cavalos no lugar do Convento de S. Domingos (conjunto e ponto de vista c). À sua direita vê-se imediatamente atrás da muralha as principais casas nobres da Vila das quais se destaca o Paço do Conde de Unhão que incluía antiga torre da muralha (conjunto e ponto de vista d). Porém, à aparente regularidade deste tramo da imagem, são somados outros pontos de vista nos seus extremos: do lado direito procurando ampliar a vista ao Rossio da Amoreira, Ermida de Santo Antão e porta de Manços a par da inclusão do corpo e campanário da Igreja de Marvila e da torre de Alpram, ou do relógio (agregados a partir dos pontos de vista e e f), e à esquerda a porta de Leiria com a igreja de Nossa Senhora da Piedade (conjunto e ponto de vista b) e os conventos de S. Francisco e da Trindade (conjunto e ponto de vista a). Se no primeiro caso a distorção não é significativa, correspondendo os novos pontos de vista à deslocação do desenhador para sul ao longo da Carreira dos Cavalos até ao Rossio da Amoreira, a opção parece decorrer simultaneamente da ampliação do campo visual e da necessidade de referenciar os elementos construtivos da Praça Nova (conjunto F) evidenciando a percepção do centro cívico da urbe, como se de um zoom se tratasse, através da ampliação da escala das construções. Já a segunda situação, do lado esquerdo da imagem, implicaria um total reequacionamento da imagem. Assim, para a representação destes elementos o observador teria de contornar o perímetro da Alcáçova Nova para, a partir do Chão de Feira, olhar de frente para o acesso à praça do Castelo e igreja de Nossa Senhora da Piedade (conjunto B) ao mesmo tempo que posicionando-se no interior do Chão de Feira o observador orienta o olhar para norte (conjunto C). Uma opção presumivelmente simbólica, tanto pelo valor dos conventos da Trindade e de S. Francisco como do Chão de Feira sendo aí que se recebe e vê partir a comitiva do príncipe toscano, ou então um erro de Baldi na associação dos apontamentos recolhidos. Preferíamos equacionar a primeira hipótese, numa tentativa de Baldi dar a ver todo o espaço do Chão de Feira, segundo uma visão a 360º. Uma consideração que evidencia opções do autor que se sobrepõem às regras de uma representação objectiva do espaço. A par desta característica, o fenómeno de italianização, poderá ser detectado a partir da representação da Sala da Curia ou das cortes do antigo Paço real, posteriormente convertida em celeiro e carpintaria do Colégio Jesuíta, a par da representação das vigias em torres da muralha. Se a primeira, da qual não há mais iconografia, detém a aparência de loggia moderna semelhante ao Mercato Nuovo de Florença (154751, por  Deste edifício existem as Planta Velha (c.1648, Arquivo Romano da Companhia de Jesus) e a Planta Nova, ou Planta Primeira do sítio do Collegio da Companhia de Jesus de Santarém (c.1653, Biblioteca Pública de Évora). 8 De estre destas revelou-se importante a Planta dos Edifícios dos Extintos Conventos da Trindade e de S. Francisco de Santarém (1862, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar) 7



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Giovan Battista del Tasso), as torres coincidem na sua imagem com as portas modernas florentinas (c. 1526, por Benvenuto Cellini). Possíveis adendas ao desenho, por integração de motivos formais do contexto de origem do autor do desenho. Porém, no caso da veduta de Santarém poderemos ainda apontar uma terceira característica, coincidente a um dos principais objectivos do desenho de arquitectura, a de antecipação, antevisão, da imagem dos factos projectados (Figura 5). Se no caso da Alcáçova Nova se expõe a desmontagem da torre de menagem e volumes anexos, dando a ver o processo de transformação para aí instalar o colégio dos Jesuítas (cujas obras, apesar da aprovação do projecto pela cúria generalícia de Roma em 1653, se encontravam longe da conclusão), mais relevante é a inclusão do perfil volumétrico da Igreja de Nossa Senhora da Piedade cujo estaleiro, iniciado em 1664 por João Nunes Tinoco, se encontrava ainda distante da conclusão da cúpula, que ocorreria somente em 1721 sob direcção de Jácome Mendes.

Figura 5. Avanços e referências incluidas na Veduta de Baldi

Este facto permite classificar a veduta de Baldi, no âmbito do desenho de arquitectura, incluindo valores de intermediação entre a ideia e a execução material da obra. Uma ideia, a do perfil da cúpula, que poderá ter sido absorvida por Baldi no seu contacto com o estaleiro, ou mesmo com o arquitecto que o dirige, senão mesmo por observação de possíveis desenhos em obra. A veduta assume assim a condição de estado intermédio entre o projecto e a construção. Resta-nos saber apenas quantos mais elementos não poderiam ser um ensaio do desenhador que, sendo também ele arquitecto, integra o seu posicionamento crítico e formal sobre aquilo que vê.

 

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Conclusão. Se por um lado, os desenhos de Pier Maria Baldi constituem um incontornável documento para o reconhecimento da paisagem urbana e rural portuguesa de Seiscentos, por outro, e a partir dos aspectos evidenciados, estas integram pretensões do desenhador/arquitecto que as produz. Assim, e tendo-se rejeitado quaisquer limitações do desenhador, debatemo-nos antes com condicionantes da representação objectiva ou científica do real. Neste sentido as vedute revelam características morfológicas do lugar, a partir de um olhar fixo temporalmente, e amplia-se na selecção operada, seja por questões de narrativa seja para expor hierarquias urbanas, definindo um simulacro da experiência visual da cidade. Pelo que a imagem detém, representação do visto, antevisão do concebido e introdução do acervo formal do desenhador, revela-se a aptidão destas vedute em superar a imagem objectiva do lugar perseguindo ideias de descoberta, antevisão e especulação arquitectónica.

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Paisagem Urbana do Núcleo de Povoamento da Ilha de Santa Catarina através de Representações Artísticas dos Viajantes. Marcia R. Escorteganha Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo-Pós ARQ- Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC Florianópolis -Santa Catarina, Brasil, Telefone: 0 55 4899300633 [email protected]

RESUMO O objetivo deste artigo é analisar as obras de arte produzidas por pintores e gravuristas renomados de expedições científicas, portando a temática sobre a Ilha de Santa Catarina, especificamente, o centro histórico: é o primeiro núcleo de povoamento. Estas obras foram produzidas pelos artistas, que passaram pelo sul da colônia portuguesa, fazendo, assim, o registro da paisagem natural e urbana, que data do século XVIII ao século XX. Ressalta-se que as imagens são inseridas em uma longa tradição de produções pictóricas, interligando arte e conhecimento. Ao fundo das obras, há paisagem e configuração urbana das vilas, implantadas num cenário romantizado ao ver do artista. Primeiramente, a presença desses artistas tinha como escopo, mapear o relevo, os portos e a geografia das novas regiões. Somente, ao final do século XVIII, as missões científicas se multiplicaram, logo, os artistas que participavam destas missões passaram a ter outras funções. Deste modo, para analisar uma imagem, seja ela um desnho ou uma pintura, não se deve ater somente ao iconográfico, mas ao significado; á análise iconográfica. Neste contexto, pauta sobre os registros artísticos, possibilitando identificar, morfologicamente, as transformações urbanísticas que ocorreram na Ilha de Santa Catarina. Este artigo dá maior enfoque à área central, onde se localiza o centro histórico do início do povoamento da Vila de Nossa Senhora do Desterro. Em síntese, este levantamento retrospectivo contribuirá para compreensão das transformações urbanas ocorridas no patrimônio urbanístico e paisagístico da Ilha de Santa Catarina.

Palavras-chave: Análise Iconográfica; Ilha de Santa Catarina, Representação Artística; Retrospectiva Histórica; Paisagem Urbana.

    INTRODUÇÃO

As imagens e cartografia históricas, existentes desde o povoamento das vilas brasileiras, produzidas pelos viajantes das expedições científicas e artísticas, se inserem numa longa tradição de produções pictóricas que combinavam arte e conhecimento. Desta forma, tinham como função reproduzir os espécimes coletados e também as paisagens das regiões visitadas e suas vilas habitadas na época, com a finalidade de identificar lugares e seu contexto, registros e fontes de pesquisa científica. PNUM 2016 51

As obras de artes têm como fundo a paisagem e sua configuração urbana das vilas, implantadas em cenário romantizado com caracterísitcas peculiares. Estas imagens, à maioria, retratam aspectos e características do “Lugar” e de sua configuração urbanística, sendo um instrumento que possibilita avaliações dos espaços urbanos, ou, um componente fundamental à análise da paisagem urbana.

As obras de arte mencionadas têm por temática a paisagem brasileira- a Ilha de Santa Catarina- incluída dentre as obras produzidas pelos artistas, que durante suas viagens, passavam pelo sul da colônia portuguesa, fazendo registro das paisagens natural e urbana, desde o século XVIII.

Neste contexto, insere-se o objetivo deste artigo, analisar as obras de arte, produzidas por pintores e gravuristas renomados de expedições científicas com a temática direcionada à Ilha de Santa Catarina, especificamente, dando maoir enfoque ao primeiro núcleo de povoamento; o centro histórico.

Entre as inúmeras litografias e desenhos produzidos sobre a Ilha, destacam-se os artistas das expedições científicas: Jean Baptiste Debret, Joseph Brüggmann. Ao observar as obras datadas do período das grandes descobertas, feitas por estes artistas, percebe-se a clara representação das regiões, pouco conhecidas aos olhos do velho mundo, que objetivavam mapear o relevo, os portos e a geografia do novo territorio da colônia portuguesa. Ao final do século XVIII, as missões científicas se multiplicaram e os artistas, consequentemente, passaram a ter outras funções, direcionadas ao retrato da topografia e costumes etnográficos. Segundo Rossato (2005,45) “o homem é o resultado de sua cultura e tornam-se periféricos diante da grandeza de uma "natureza ainda selvagem".

Ao analisar uma imagem, seja ela uma pintura, fotografia, ou, filme, não se pode ater àquilo que é visto, mas àquilo que pode significar, em seu contexto material e imaterial. Neste contexto a análise iconográfica destes registros artísticos possibilitam identificar, morfologicamente, as transformações urbanísticas que ocorreram na Ilha de Santa Catarina, principalmente, na área central, onde se localiza o centro histórico de início do povoamento da Vila de Nossa Senhora do Desterro. Este levantamento retrospectivo contribuirá a compreender as transformações urbanas no patrimônio urbanístico e paisagístico da Ilha de Santa Catarina.

1.1 OBJETIVO

Estudar e entender a morfologia urbana através de obras de arte, produzidas por pintores e gravuristas de expedições científicas, sobre a Ilha de Santa Catarina, especificamente, sobre o primeiro núcleo de povoamento- o centro histórico. Valorizando, este local, como elemento resultante da conectividade do espaço da paisagem urbana histórica. PNUM 2016 52

1.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Nos últimos anos, surgiram vários métodos de leitura de paisagem, dentre as quais, se destacam duas: uma que considera o espaço como objeto de observação e análise, vertente mais objetiva sobre a concepção científica de paisagem; e outra há um enfoque no usuário, na percepção de paisagem ao ver do indivíduo, um ponto de vista mais subjetivo.

Neste artigo é feita, uma análise reflexiva, com base na produção artística de maneira analítica, objetiva de percepção iconográfica, compreendendo as seguintes etapas de investigação a partir do estudo da metodologia morfológica: ‡

Levantamento documental: coleta de dados (gráfico, bibliográfico, arquivístico, cartográfico);

‡

Análise reflexiva das obras pictóricas e dos referenciais;

‡

Síntese das informações coletadas: triagem dos pontos relevantes; organização de dados obtidos, elaboração e finalização do texto, conclusos com a divulgação dos resultados obtidos.

1.3 LOCALIZAÇÃO DA ILHA DE SANTA CATARINA

Com base em dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a Ilha de Santa Catarina se situa entre as latitudes 27º25‘ e 27º50‘, na direção NE/SW. A figura 1 representa a localização geográfica da Ilha de Santa Catarina, destacando a área central do município de Florianópolis ao Sul do Brasil (Latitude „-“27º59’75“ e Longitude- 48º54’98“). A justificativa de escolha do estudo de caso, devese às obras de artes dos viajantes do século XVIII e XIX. Seus registros, concentram-se na área central, portanto, com maior frequência, o centro histórico é retratado.

Figura 1. Mapa do Brasil, na sequência, indicação do Estado de Santa Catarina; mapa da área central da Ilha de Santa Catarina com destaque na área central da Ilha de Santa Catarina, marco zero do povoamento. Fonte: Google Earth, 2005 National Geographic Society. PNUM 2016 53

ANÁLISE MORFOLÓGICA DA PRAÇA XV DE NOVEMBRO

Desde o princípio, a história está relacionada à produção de expressões artísticas e imagens. Nesta pesquisa é direcionada às representações pictóricas realizadas pelos viajantes a partir do início do povoamento, período que há impacto sobre a visão de dois mundos e sobre influenciar a formatação e a modulação da história da arte.

As pinturas que naram as cenas paisagísticas em seu mais amplo contexto, captura o aspecto pitoresco peculiar e exótico, através da lente do artista, que interpreta a seu modo. Interpretações, que colaboram com a cartografia brasileira como marco da existência humana, do habitante em relação ao seu habitat. Além de ser um campo fértil de pesquisa morfológica, que captura nas percepções do artista, as mudanças arquitetônicas e urbanísticas.

As missões artísticas impulsionaram o incremento na produção artística, envolvendo múltiplas nacionalidades europeias, que buscavam retratar o novo mundo, aquém mar: dele não havia muitos dados concretos. Coelho (2004, p. 165) afirma que devido a “precariedade” e até a “inexistência de mapas da maior parte das cidades no Brasil tornavam necessárias representações panorâmicas que contribuíssem para uma visão geral da paisagem”. Assim, os artistas viajantes contribuíram à cartografia e á realidade panorâmica das cidades brasileiras. Belluzzo (1996, p 12) se refere a esta questão citando os artistas holandeses em relaçõa à observação, predominantemente, física e científica, onde a imagem da realidade se desvincula e se liberta da religião, fazendo predominar a percepção e o sentimento, [...] a relação que os holandeses estabelecem com a natureza denota regras de uma observação puramente física ou científica, como se poderia dizer de acordo com o entendimento moderno. A nova abordagem da ciência da natureza desenvolve-se em oposição à crença religiosa e sem preocupações morais [...] Não havendo uma intenção na natureza a ser lida pelos homens, eles podem passar a apreender o mundo sensível, que se apresenta como a imagem da realidade. O caminho do conhecimento que conduz à natureza é reduzido aos sentidos. (Belluzo, 1996, 17)

Dentre estes viajantes, o maior incentivador das pinturas paisagísticas foi o naturalista Alexander von Humboldt. Ele publicou, entre 1845 e 1862, quatro volumes do Cosmos, um ensaio que descrevia fisicamente sua visão de Mundo. (Diener; Costa, 2006, 77). Desta forma, influenciou e abriu novos espaços para artistas desenharem e ressaltarem as belezas e encantos das paisagens, vistas durante as expedições científicas, delineando os pressupostos teóricos de muitos viajantes Oitocentistas. Em suas palavras declara que, “[...] acreditamos que a pintura dos países deve brilhar com um esplendor até hoje desconhecido; isto acontecerá quando engenhosos artistas ultrapassem com mais frequência os estreitos limites do Mediterrâneo, se distanciando das costas, e quando PNUM 2016 54

lhes seja dado abarcar a imensa variedade da Natureza nos úmidos vales dos trópicos, com a nativa pureza e frescura da juventude. (Diener; Costa, 2006,77)]

Nesta nova incursão de artistas pelo Mundo, coletando dados e percepções paisagísticas, naturais, urbanas e arqutetônicas, vistas durante suas expedições científicas e artísticas, surgirão interpretações de vários prismas, retratando as paisagens observadas e vividas pelos artistas viajantes, uma vez que, durante o período do século XVIII ao séuclo XIX não existia o registro fotográfico. Segundo Keller (2008, 25), foi “só a partir da segunda metade do século XVIII que a pintura de paisagens começou a emancipar-se, constituindo-se num gênero autônomo no âmbito das categorias tradicionais das artes plásticas”[...] “Nessa hierarquia, a pintura de história – que levava à tela conteúdos com um valor normativo por meio de composições ideais de tipo narrativo – manteve-se sempre como a mais alta expressão”. Belluzzo (1999) denomina de “renascimento dos sentidos”, a ressurgência de informações e registros provenientes da observação direta e de dados provenientes das representações pictoricas dos Viajantes. Neste contexto, serão apresentadas alguns viajantes Oitocentistas, suas respectivas imagens, com o intuito de ilustrar a percepção sobre a Ilha de Santa Catarina, que é o foco deste artigo. A FORMAÇÃO DA VILA DE NOSSA SENHORA DO DESTERRO Ao analisar algumas obras de artistas viajantes, que retratam a formação do núcleo de povoamento da Vila de Nossa Senhora do Desterro, percebe-se a interpretação da vila como era no século XVIII. Para ilustrar a ambiência da formação do núcleo originário do povoamento na Ilha de Santa Catarina, apresentam-se duas gravuras: uma de Charles Landseer de 1824; e outra, de Oscar Canstatt de 1875. Onde, observa-se que os “esquemas perceptivos” destes artistas, são “cristalizados” nas linhas e nos contornos, criando formas construídas pela imigração e observação (Makowiecky, 2010,11). A autora define as obras como sendo o resultado sensorial dos viajantes, O gosto pelo inusitado, desconhecido, foi um convite à aventura e à surpresa da viagem e é inseparável da prática do viajante. A viagem mostra-se um método de tirar o sujeito de seu meio e de experimentar uma outra visão. Com a viagem deixase a rotina e a identidade para trás, para redescobri-las em outra cultura, em meio ao estranhamento que a nova cultura causa em contraste com a própria cultura do viajante. A viagem treina um conhecimento por pontos de vista alternados, desenvolve a capacidade de entrar e sair do assunto, em suma, condiz com a visão de múltiplos pontos de vista, individual e cultural.( Makowiecky,2010, 17) PNUM 2016 55

Figura 2. Imagens das Gravuras de Charles Landseer ( 1799-1879) “Vista da Cidade do Desterro”-1824 e Oscar Canstatt, “Vista de Desterro e seu povo”-1875. Vista da área central da Ilha de Santa Catarina, marco zero do povoamento. Fonte: Corrëa, C (2004) História de Florianópolis-Ilustrada, Ed. Insular, Floiranópolis, 140 e 149.

No início, a região central da Ilha de Santa Catarina era ocupada pelos índios Carijós, pertencentes à nação Tupi – Guarani. Porém, o território de domínio Tupi-Guarani manteve-se até a chegada das primeiras embarcações, Entradas e Bandeiras. Desde o século XVI, todo o litoral catarinense, já recebia embarcações, que eram abastecidas de víveres e água, área importante às tripulações que navegavam, costeando o continente. Este paradouro natural, que se configurou em porto, influenciou na caracterização de início de povoamento. Observa-se nas imagens da figura 2, vista da Baia, em relação à terra firme, a quantidade de barcos na baia sul e aportados, caracterizando a área mais protegida da Baia, que forma o primeiro atracadouro da Vila, que conduzia ao povoado, contornado pela exuberante natureza e picos montanhosos, mostrando o skyline da vila e os desníveis geográficos entre o centro, mais plano em relação ao nível do mar, e no seu entorno imediato a modificação do terreno, que aos poucos, se torna mais acidentado geograficamente.

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O POVOAMENTO E EXPANSÃO DA VILA DE NOSSA SENHORA DO DESTERRO No período seguinte , séculos. XVIII1 e XIX , como observa-se nas aquarelas do artista francês, Jean Baptiste Debret, (Figura 3).

Praça

Figura 3. Aquarelas de Jean Baptiste Debret ( 1768-1848). Plano de la villa de Nuestra Señora del Destierro y sus inmediaciones, capital de la isla de Santa Catarina- (circa de 1827). E “Vista da Vila de Desterro a partir do hospital”, 1827. Fontes: http://www.santa-catarina.co/historia/desterro.htm Copyright © Guia Geográfico-Mapa Histórico de Santa Catarina. Debret J (1954) Viagem Pitoresca ao Brasil, R. de Castro Maya, Paris, prancha 70

A Vila do Desterro e seu casario, retratada de forma realística, ao mesmo tempo em que é romantizada e europeizada, mesmo que paisagem bucólica predomine, atenuando e contribuindo na composição de aspecto mais tropical e colonial à obra, continua como pano de fundo, a paisagem urbana e natural, num cenário idealizado, extremamente organizado, seguindo os conceitos europeus para registrar, assim, de forma documental; as paisagens. Portanto, o artista segue a regra da formação acadêmica francesa, enquadrando-a como “paisagem cenário”: é atribuída à obra uma significação das fortes características realistas que colaboram com a leitura morfológica deste espaço urbano construído. Nas aquarelas de Jean Baptiste Debret (Figura 3) fica evidente a configuração morfológica da Vila, no período previamente citado, ao observar: o posicionamento do espaço urbano, a praça central cercada pelo alinhamento do casario e seu arruamento de traçado, um tanto que, irregular e orgânico, que se estendiam até a borda d’àgua, com a irradiação dos primeiros arruamentos de forma reticulada, aos moldes dos povoamentos ibéricos; espanhóis. À praça central, atribui-se a característica de acolhimento e receptiva, a autora, no século XVIII, temos registros não de pintores, mas de naturalistas de formações diversas. Por serem poucos, destaco os que deixaram registros da cidade ou da fauna e flora, nos relatos de suas expedições. Quase todos os registros dos viajantes foram coletados no livro organizado por Paulo Berger (1984) chamado Ilha de Santa Catarina - Relatos de viajantes estrangeiros (séculos XVIII e XIX). Outros registros foram encontrados na obra de Ana Maria de Moraes Belluzzo (2000), O Brasil dos viajantes e a obra organizada por Aguillar (2000), para a mostra dos 500 anos do Brasil ( Makowiecky,2010, 16).

Segundo

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um campo aberto para os viajantes que ancoravam na baia, fazendo da praça o palco de recepção dos visitantes que ali, atracavam no porto, resultando em uma vila orgânica aos moldes das vilas da idade média. Estes que são estruturados por um “sistema principal, hierarquizado, formado por fases diferentes de crescimento urbano e semelhante áqueles moldes que administram as categorias formais da paisagem urbana”. (Pereira Costa, 2014,10). Mostrando, assim, a configuração orgânica, onde se adaptam à geografia do terreno, como elementos e planos simples com traços característicos, identificados por um padrão de lotes alinhados, de forma padronizada, ao longo dos eixos como fileiras de edifícios, criando massas sinuosas que são acentuadas pelas irregularidades dos terrenos, que se refletem no skyline que contorna as pequenas edificações, adaptando-se às condições geográficas naturais do território “revelando a tendência de uniformizar o ponto focal da rua” (Pereira Costa, 2014, 10), característica marcante, retratada por Krusenstern; figura 4.

Figura 4. “Veduta della città di Nuestra Senhora Del Destero nell’Isola di S. Caterina”- (s/ data atribuída, provavelmetne séc. XVIII). Ed, Italiana V. Rahieri colori, Krusenstern, T.1 Tav.1 Fontes: BERGER, Paulo. Ilha de Santa Catarina- relatos dos Viajantes estrangeiros( séculos XVIII e XIX) . Ed Lunardelli e UFSC. Florianópolis, 1984, 135.

A partir da interpretação do artista ao empregar as características de Vila medieval no espaçamento da Vila de Desterro, traz seu fundo criativo imaginário, baseado em sua cultura e no estilo europeu aplicado. Em contraponto, o artista reafirma a localização do porto e a configuração incial da Igreja, no topo em frente a praça, rodeada pelos casarios e arruamentos irregulares, orgânicos com telhados góticos; aspecto imaginário, com base no conhecimento de vila medieval.

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3.3 PERMANÊNCIA DO ASPECTO BUCÓLICO E ROMÂNTICO DA VILA DE NOSSA SENHORA DO DESTERRO Este aspecto de vila medieval se mantém com algumas modificações substanciais, como pode-se observar na figura 4, quanto ao aumento da população, e consequentemente, a ampliação do casario, configurando uma vila mais robusta, como também, a melhoria na organização espacial urbana e no arruamento que assume cada vez mais um traçado retilíneo. Traçado urbano, este delimitado, pela borda d’água da Baia Sul, que ainda no século XIX, está repleta de embarcações, caso não haviam sido construída a ponte, que congelou a configuração da urbanização interiorana da Ilha de Santa Catarina, conservando sua característica de Vila, proporcionando aos artistas de extrair, em suas obras, a essência da linguagem acadêmica realista, lírica e poética da cidade cenário incrustada nas montanhas e na vegetação exuberante (Figura 5).

Figura 5. “Vista de Desterro”- (circa de 1867) autor Joseph Brügmann. ( 1825-1894) “Vista de Desterro”- (1847) autor Victor Meirelles de Lima Museu Victor Meirelles- IPHAN- Florianópolis. Fonte: GERLACH, Gilberto.Desterro- Ilha de Santa Catarina.Tomo I Florianópolis:Cinema Nossa Senhora do Desterro, 2010 p.305. Museu Victor Meirelles. Disponível em www.museus.gov.br/tag/museu-victor-meirelles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, esta pesquisa com enfoque na análise das obras pictóricas e gravuras dos viajantes apresentou a relação entre as imagens realistas produzidas pelos viajantes, que retrataram de forma sensível e perceptiva, o núcleo originário do povoamento da Ilha de Santa Catarina, durante os séculos XVIII e XIX.

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A partir do objetivo proposto, analisar algumas representações pictóricas feitas pelos viajantes Oitocentistas e elaborar, assim,um texto informativo, para interpretá-las lendo de um ponto de vista morfológico o local em estudo; a área central da Ilha de Santa Catarina.

Em suas viagens, estes desbravadores de novos continentes, buscaram retratar o exotismo e o pitoresco das terras estrangeiras, aliado à inspiração poética e a um caráter descritivo que os fazia representar não só a paisagem, mas também a propiciar informações sobre como era o espaço construído e natural, ao registrar de forma documental o Novo Mundo: seus povos, suas culturas, seus modos de vida. Como descreve Diener e Costa, (2006, 80), sobre o fato de “realizar esboços diante de cenas da Natureza é o único meio de poder pintar – de volta de uma viagem –, o caráter das regiões distantes em vistas acabadas da paisagem”, bem como, os esboços parciais dos lugares, inteiramente, entregues a suas emoções, seja, desenhando, pintando ao ar livre, a vegetação exuberante e suas vilas.

Mesmo sendo imagens interpretativas e perceptivas, criadas a partir do olhar do artista-viajante, o qual empregou seu estilo e interpretação própria, isto não impediu de efetuar a leitura e análise morfológica do núcleo histórico da Ilha de Santa Catarina nos séc. XVIII e XIX. Estas imagens confirmaram que a configuração original manteve as mesmas características por dois séculos, No entanto, houve algumas alterações de alinhamentos e arruamentos. Esta configuração original mantém-se, ainda hoje, seu traçado, apesar das múltiplas intervenções pós década de 1920, com a intensificação do turismo e com o crescimento da especulação imobiliária. O traçado original é perceptível, somente na área central, antiga Vila de Nossa Senhora do Desterro, hoje, cidade de Florianópolis, percebida como paisagem urbana histórica que caracteriza a identidade e a memória ilhoa.

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Debret J B (1954) Voyage pittoresque et historique au Brésil, Tome deuxième. Firmin Didot Frères, 1835b, 31 R. de Castro Maya (org), Paris. Diener P (1996) O catálogo fundamentado da obra de J. M. Rugendas e algumas ideias para a interpretação de seus trabalhos sobre o Brasil, Revista USP, n. 30, São Paulo. Diener P, Costa M (2006) A arte de viajantes: de documentadores a artistas viajantes, Perspectivas de um novo gênero, Revista Porto Arte, v. 15, n. 25, Porto Alegre. Keller, S. B. (2008) A respeito da compreensão da geografia pelos artistas viajantes nos séculos XVIII e XIX. Revista Porto Arte, v. 15, n. 25, Porto Alegre. Makowiecky S (2010) Ilha de Santa Catarina, séculos XVIII e XIX - Artistas viajantes e o estranhamento da paisagem, 1920, Rio de Janeiro, vol. n4, out./dez.Disponível em: . Acessado em 28/04/2016 Pereira Costa S (trad.) (2014) As Paisagens Urbanas Históricas na Inglaterra – um Problema de Geografia Aplicada.Texto do Curso de Extensão “Morfologia Urbana”-Departamento de Urbanismo EA-UFMG, CONZEN, M.R.G. Historical townscapes in Britain: A Problem of applied Geography. The Urban Landscape: Historical Development and Management –Publicado originalmente em House, J.R.W. (Ed) Northern Geographical Essays em distinção a G.H.F, Daysh (Newcastle upon Tyne), Papers by M.R.G. CONZEN, 1981, Academic Press,1966, London, 56-74. Rossato L (2005) Imagens de Santa Catarina: arte e ciência na obra do artista viajante Louis Choris, Revista Brasileira de História. On-line version ISSN 1806-9347, Rev. Bras, Hist. vol.25 no.49, UFRGS/Capes, São Paulo. Disponivel em http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882005000100009 Acessado em 18/04/2016

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Implantação insular franciscana portuguesa antes do Brasil colonial: Funchal e Ponta Delgada. Isabel Norton Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo. Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Bolseira FCT. Via Panorâmica S/N, 4150-755 Porto. Tel.964406374 [email protected]

Resumo O objetivo do presente artigo é estudar a implantação minorita insular portuguesa e a sua influência na estruturação dos núcleos urbanos em que se implantaram, considerando a história institucional e ideológica da Ordem dos Frades Menores e o seu passado urbanístico na Metrópole. A tese de doutoramento em curso visa compreender a implantação capucha do Brasil colonial e, nesse sentido, este estudo tem como intenção compreender se houve entre os territórios madeirenses açorianos e terras de Vera Cruz, continuidade, adaptação, rutura e/ou inovação dos modos e modelos de implantação conventual e a forma como influíram na construção da cidade. Apesar das fundações franciscanas insulares portuguesas não terem sido empreendidas pelo mesmo ramo da mais estrita observância atuante no Brasil colonial, a similitude de contextos urbanos em formação justifica o estudo comparativo. Colocamos a hipótese que as experiências insulares possam ter servido de modelos de referência para as implantações cenobíticas realizadas na América portuguesa, de tal modo que, apesar da variabilidade de contextos a que se adaptaram ou perante a qual inovaram, mantêm traços de identidade/especificidade franciscana. Não podendo tratar todas as implantações minoritas insulares portuguesas que concretizaram o movimento de aproximação com a cidade tratamos dois importantes casos urbanos com fundação anterior aos dois casos brasileiros considerados de São Salvador da Baía (1587) e Paraíba (1589): o convento de São Francisco de Funchal (1440) e o convento da Senhora da Conceição em Ponta Delgada (1525). Com esta amostra pretendemos demonstrar que, contrariamente ao que se sucedia na Metrópole, as distintas circunstâncias históricas e urbanas que marcaram os momentos de implantação minorita nestes territórios, permitiriam aos frades minoritas, jogar com outro tempo, com outras escalas, com um menor número de condicionalismos e com um maior número de possibilidades na escolha do lugar de implantação e na forma de participar no processo de civilizar, ordenar, arrotear e urbanizar as cidades de fundação.

Palavras-chave Implantação minorita; cidade; Madeira; Açores. PNUM 2016 63

Primeiras implantações franciscanas portuguesas fora da Metrópole O caráter missionário e a atividade apostólica de pregação definida e experienciada por São Francisco de Assis para a sua Formula Vitae, incentivava os membros minoritas, desde os primórdios da Ordem, à itinerância pelas "quatro partes do mundo"1 em defesa da dilatação da fé cristã. Na esteira desta missão partem maioritariamente os frades menores das províncias portuguesas da observância e posteriormente da estrita observância2 no movimento dos Descobrimentos lusitanos iniciado em 1415 com a conquista de Ceuta. A primeira implantação conventual franciscana nos domínios portugueses de Além-Mar acontece no norte de África com a fundação do convento de Santiago de Ceuta em 14203 sobre uma mesquita préexistente. À experiência de Ceuta4, e antes da primeira implantação minorita no Brasil (1585)5, seguiram-se, nos arquipélagos atlânticos, o eremitério funchalense de São João da Ribeira (1440)6, o oratório mariense da vila do Porto (1446)7, o convento de São Francisco em Angra na ilha Terceira (1452)8, o eremitério madeirense de São Bernardino de Câmara dos Lobos (1460)9, o convento de São Francisco no Funchal (1474), o convento da Senhora da Conceição da Praia da Vitória, na Ilha Terceira (1480)10, o convento micaelense de Nossa Senhora do Rosário em Vila Franca do Campo (1501)11, o convento de Nossa

Lisboa Fr. M (1587)(2001) Chronica da Ordem dos Frades Menores do Seraphico Padre Sam Francisco: seu instituidor, & primeiro Ministro Geral, que se pode chamar Vitas Patrum dos Menores (Copilada e tomada dos antigos livros, e memoriaes da Ordem, por Padre frey Marcos de Lisboa, frade Menor da Provincia de Portugal, & Bispo do Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, f.7. 2 Lopes F (sem data) Capuchos, in Verbo Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, Verbo, Lisboa, 1548 3 Amado J (1870) Historia da Egreja Catholica em Portugal, no Brasil e nas possessões portuguezas, Typ. de G. M. Martins, Lisboa, vol. IV, 234. 4 Esta não foi a única fundação africana. A propósito consultar: Soledade Fr. F (1705) Historia Serafica Cronologica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Provincia de Portugal. Tomo III. Refere os seus Progressos em tempo de finquenta & dous annos, do de 1448 até o de 1500, na Officina de Manoe Joseph Lopes Ferreyra, Lisboa, 335–336. 5 Fundação do convento de Nossa Senhora das Neves em Olinda.Conceição, Fr. A (1740) Claustro Franciscano, erecto no dominio da Coroa Portugueza, e estabelecido sobre dezeseis Venerabilissimas Columnas : expoem-se sua origem, e estado presente. A dos seus conventos, e mosteiros, annos de suas Fundações, numero de Hospicios, Prefecturas, Recolhimentos, Parroquiais, e Missoens, dos quaes se dá individual noticia, e do numero de seus Religiosos, Religiosas, Terceiros, e Terceiras, que vivem Collegiadamente, tanto em Portugal, como em Suas Conquistas.., na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, Lisboa Occidental, 77. 6 Esperança Fr. M (1666) Historia Serafica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Provincia de Portvgal.Segvnda Parte.Qve conta os sevs Progressos no Estado de Tres Custodias, principio de Provincia, & Reforma Observante, na Oficina de Antonio Craesbeeck de Mello,Lisboa, 672; Amado J (1870) Op. cit., 233. 7 Andrade A (1980) Dicionário de História da Igreja em Portugal, Resistência, Lisboa, vol. I, 318; Serrão J, Marques A (2005) Nova História da Expansão Portuguesa. A Colonização Atlântica, Editorial Estampa, Lisboa, vol.III, tomo I, 450. 8 Lopes F (1997) Colectânea de Estudos de História e Literatura. Fontes Narrativas e bibliografia Franciscana portuguesa, Academia Portuguesa da História, Lisboa, vol.I, 213. 9 Soledade Fr. F (1705) Op. cit.,169; 10 Conceição Fr. A (1740) Op.cit.,81. 11 Soledade Fr. F (1709) Historia Serafica Chronologica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Provincia de Portugal. Tomo IV. Refere os seus progressos em tempo de sessenta e oyto annos: do de mil & quinhentos & hum até o de mil & quinhentos & sessenta & oito, Na Officina de Manoel, & Joseph Lopes Ferreyra, Lisboa, 4; Lopes F (1997) Op. cit., 139-141; 1

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Senhora do Rosário, na Horta (1522)12, o convento de Nossa Senhora da Conceição em Ponta Delgada (1525)13 e o convento madeirense de Nossa Senhora da Piedade (1527)14 em Santa Cruz. As fundações seráficas ultramarinas continuaram pelos séculos XVI, XVII e XVIII não só pelos arquipélagos, mas também pela Índia15 e outras terras orientais (São Francisco em Cochim, 1518), pelo Brasil (1585) e mais tarde por Cabo Verde16. Os diferentes cenários sociais, culturais e urbanos que marcavam estes territórios de expansão, na época da fundação dos conventos, influenciaram o modo como estes foram implantados: enquanto em África e no Oriente os frades encontraram um território de condicionalismos humanos, urbanos e culturais, nas ilhas atlânticas despovoadas e no Brasil indígena o território em formação possibilitava aos frades minoritas jogar com outro tempo, com outras escalas, com maiores possibilidades na escolha do lugar de implantação e no processo de civilizar, ordenar, arrotear e urbanizar as cidades de fundação. Apesar das fundações franciscanas insulares não terem sido empreendidas pelo mesmo ramo da mais estrita observância17 atuante no Brasil colonial, a similitude de contextos urbanos em formação justifica o estudo comparativo, procurando compreender se houve continuidade, adaptação, rutura e/ou inovação dos modos e modelos de implantação conventual e a forma como influíram na construção da cidade. Não podendo tratar todas as implantações minoritas insulares portuguesas que concretizaram o movimento de aproximação com a cidade antes das implantações de São Salvador da Baía (1587) e Paraíba (1589) no Brasil, tratamos os dois casos que pela dimensão e importância urbana fariam mais sentido comparar: São Francisco de Funchal (1474) e Nossa Senhora da Conceição em Ponta Delgada (1525).

Conceição, Fr. A (1740) Op. cit.,8; Lopes F (1997) Op. cit., 139 Souza N (1986) A arquitectura religiosa de Ponta Delgada nos séculos XVI a XVIII, Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 305-306,187-197. 14 Soledade Fr. F (1709) Op. cit.,85; Sousa B (2005) Ordens Religiosas em Portugal: das Origens a Trento: Guia Histórico, Livros Horizonte, Lisboa, 286–88; Lopes F (1997) Op. cit., 213. 15 Aquando da segunda viagem para a Ìndia, D. Manuel (1427-1527), elege um frade minorita da Província da Regular Observância de Portugal - Frei Henrique Coimbra -, sobretudo pela ligação interpessoal que mantinham, para desempenhar funções de Comissário Apostólico do Governo Eclesiástico da Índia e fundador guardião das primeiras casas missionárias nesse território. 16 Convento fundado pela Província da Piedade em 1661 na Ribeira Grande. Real J (1938) A expansão portuguesa no mundo e as missões religiosas,  I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, Soc. Nac. de Tipografia, Lisboa,17; Lopes F (1997) Op. cit., 170. 17 Da província capucha da mais estrita observância de Santo António de Portugal, partiram os frades que, fundada a nova custódia de Santo António do Brasil, efetivaram a construção dos primeiros conventos neste território. A estas fundações somaram-se outras duas no norte do país diretamente dependentes do Comissariado da Província de Santo António de Portugal. Dos vinte e nove conventos seráficos fundados no Brasil, apenas o convento da Senhora da Piedade em Gurupá não foi fundado por uma custódia ou província descendente da província de Santo António de Portugal. 12 13

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Implantação franciscana no contexto insular português: Madeira e Açores. Franciscanos na Madeira Na Madeira, embora a presença franciscana portuguesa remonte às primeiras expedições de descoberta e povoamento18, ocorridas a partir de 1419-2019 o estabelecimento efetivo só terá ocorrido em meados do século XV. As fundações franciscanas de São João da Ribeira e São Bernardino de Sena de Câmara de Lobos foram os primeiros eremitérios fundados na Madeira. O afastamento geográfico da ilha, o isolamento e a escassez de população propiciou o tipo de implantação eremítica que começava a ser praticada por frades observantes coetaneamente na Metrópole20. A localização do oratório de São João da Ribeira21 no Funchal tomou assento a "quase um quarto de légua do povoado" "na profundeza de um vale" entalado "de uma parte com uma rocha quebrada, da outra com uma ribeira brava, onde ficou tão encovada a casa, que só quando se chegavam muito perto a descobria os olhos"22. Também o eremitério de São Bernardino23 ficava distante "pouco mais de uma milha do lugar de Camara de Lobos"24 escondido desta por uma elevação montanhosa. A estes eremitérios juntaram-se o convento de São Francisco no Funchal, o convento de Nossa Senhora da Piedade, "plantado à vista do mar"25 numa posição sobranceira ao oceano atlântico, a duzentos e cinquenta metros para poente da matriz de Santa Cruz, o convento de São Sebastião da Calheta num

De acordo com o Elucidário Madeirense os franciscanos foram os primeiros sacerdotes a exercerem funções eclesiásticas e paroquiais em diversas capelas criadas na ilha. A sua ação vai ser contudo limitada pela Ordem de Cristo a quem pertencia espiritualmente o arquipélago (1433-1514), acabando esses desentendimentos por levar ao provisório abandono (1459) da comunidade seráfica que se fixa no convento de São Francisco de Xabregas. Meneses C (1921), Elucidário Madeirense, Funchal, vol.I,101, consultado a 30 de Março de 2016 http://www.bprmadeira.org/index_digital.php?IdSeccao=102#D-M. A propósito da presença inaugural dos franciscanos na Madeira consultar: Frutuoso G (1873)(1998) Saudades da terra, Manuscrito, Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ponta Delgada, Livro II, 35; Soledade Fr. F (1705) Op. cit.,26; Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 179. Importante referir que para este território concorreram também frades minoritas de outras nacionalidades: castelhanos, galegos, biscainhos. Ver Esperança Fr. M (1666) Op. cit.,670. 19 Ibidem, 593; Meneses C (1921) Op. cit.,101; Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 175. 20 Segundo Vitor Teixeira a observância portuguesa procurou recuperar no período compreendido entre 1390 e 1446 o tipo de implantação peri urbana do início da implantação em Portugal, não se apresentando, no entanto, tão radicalmente eremítica como a italiana nem tão claustralizada como a francesa. Teixeira V (2004), O Movimento da Observância Franciscana em Portugal (1392-1517). História, Cultura e Património de uma Experiência de Reforma Religiosa, Doutoramento em História, Universidade do Porto, 13,123. 21 Azevedo, C (2000) Dicionário de História Religiosa de Portugal, Circulo de Leitores, Lisboa, vol. II : C-I, 283. 22 Esperança Fr. M (1666) Op. cit.,672. 23 O oratório só em 1480 é transformado em convento pela Província de Portugal. 24 Conceição Fr. A (1740) Op. cit., 8; Lopes F (1997) Op. cit., 85. 25 Soledade Fr. F (1709) Op. cit., 85. 18

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promontório sobre a igreja matriz e o hospício de Nossa Senhora da Porciúncula da Ribeira Brava situado a cinquenta metros para norte da igreja paroquial26, e todos localizados na costa meridional da ilha. Os conventos madeirenses fundados antes de 1584 pertenciam à Província de Portugal (então claustral)27 e foram integrados a partir dessa data na Província Observante de Portugal, sendo em 1702 definitivamente integrados na custódia independente com de São Tiago Menor da Ilha da Madeira28. Convento de São Francisco do Funchal Em 147429, o primitivo cenóbio São João da Ribeira, tão escondido e distante em prejuízo do serviço das confissões, sermões e outros "ministérios da alma", acompanhando a tendência claustral de aproximação com a cidade é, a instâncias do povo, transferido para o centro da povoação30, a um tiro de besta para poente31 do local onde se construiria em 149332 a Sé, ocupando a cerca os terrenos que formam hoje o jardim Municipal33 e se estendiam até à ribeira de São João. Aquando da implantação do convento a vila do Funchal, sede da capitania de mesmo nome34, sofria um incremento demográfico despoletado pela produção açucareira35. O aglomerado, existente desde 142436, desenvolvia-se junto à enseada entre dois núcleos urbanos: o núcleo primitivo que se desenvolvera em torno da igreja de Nossa Senhora do Calhau (1425) e o núcleo de Santa Catarina a poente em torno da capela do mesmo nome (1425)37. No primeiro núcleo, a rua de Santa Maria traçada paralelamente à costa ligava a igreja de Santa Maria do Calhau ao forte de São Tiago; na continuidade desta a poente a rua dos mercadores estruturava o segundo polo e fazia a ligação com o primeiro. Relativamente a estas duas ruas outras foram traçadas paralelamente e perpendicularmente compondo uma trama urbana de certa regularidade geométrica. Em 1471 uma ata camarária38 informava sobre os limites da vila: a poente a ribeira de São João e capela de São Pedro, a norte a capela de Santa Luzia e a residência de João Gonçalves Zarco, e a nascente a extremidade oriental da rua de santa Maria. O cenóbio minorita ficava implantado na extremidade noroeste do segundo núcleo, abaixo da várzea, a poente do campo do Meneses C (1921) Op. cit., 596. Lopes F (1997) Op. cit., 213. 28 Ibidem. 29 Depois de alguns anos de ausência os franciscanos regressam à ilha. Serrão J, Marques A (2005) Op. cit, 181. 30 Vila desde 1451. Meneses C (1921) Op. cit., 662. 31 Frutuoso G (1873)(1998) Op. cit, 47. 32 Meneses C (1921) Op. cit., 737; Meneses C (1921) Elucidário Madeirense, Funchal, vol.III, 521. 33 Meneses C (1921) Elucidário Madeirense, Funchal, vol.II, 235. 34 A Ilha da Madeira encontrava-se dividida em duas capitanias: a do Funchal e de Machico. Porto Santo correspondia à terceira capitana do arquipelago. Meneses C (1921) Elucidário Madeirense, Funchal, vol.I, 469; Serrão J, Marques A (2005) Op. cit, 80. 35 Aragão A (1992) O espirito do lugar. A cidade do Funchal, Pedro Ferreira editor, Lisboa, 22,23,48,50. 36 Carita R (2013) História do Funchal, Associação Académica da Universidade da Madeira, Funchal. 37 Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 174,175,178. 38 Acta de 27 de Julho de 1471. Costa J (1995) Vereações da Câmara Municipal do Funchal - século XV. R.A.M.: S. R.T.C./CEHA, 20 in Andrade L (2010) A Morfologia Urbana da Cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes, Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 58. 26 27

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duque39 e a noroeste da rua dos mercadores ficando assim, à semelhança de implantações franciscanas da Metrópole40, próximo da principal área comercial. Mais tarde, em 149341, com a implantação da sé na extremidade nascente do campo, transformado em praça por D. Manuel e com a implantação nas imediações, da câmara e paço de tabeliães42, este núcleo torna-se no principal centro de vida religiosa e administrativa43. A.Câmara B. Pelourinho C. Alfândega D. Sé E. Mosteiro de Santa Clara F. Recolhimento do Bom Jesus G. Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação H. Mosteiro de Nossa Senhora das Mercês I. Convento Franciscano J. Capela São João da Ribeira K. Capela de São Paulo L. Capela de Stª Catarina M. Igreja de Stª Maria N. Igreja do Corpo Santo O. Igreja e ColégioJesuíta

1. Rua direita 2. Rua de Stª Maria 3. Rua dos Mercadores 4. Rua S. Francisco 5. Campo do duque 6. Fortaleza de S. Lourenço 7. Fortaleza de S. Tiago 8. Ribeira de S. João 9. Ribeira de Stª Luzia 10. Ribeira de S. João Gomes

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Figura 1. Planta da Cidade do Funchal elaborada pelo Brigadeiro Oudinot,1803. Fonte: http://www.dgterritorio.pt/museuvirtual/cart_Madeira_rslt.asp?c=CA539

O convento de São Francisco e a respetiva cerca ao marcarem o limite ocidental da vila obrigaram-na a expandir-se para norte onde em 149244 se implanta o convento de Santa Clara. É nesta zona setentrional da cidade que, nos séculos XVI e XVII, outras congregações religiosas se fixam consolidando o 39 O chão do duque havia sido demarcado em 1485 pelo ouvidor Brás Afonso Correia e o contador Luís de Atouguia. Neste campo ocorriam de acordo com Gaspar Frutuoso corridas de touros. Catedral do Funchal in http://www.monumentos.pt/site/app_pagesuser/SIPA.aspx?id=5015, consultado a 3 de Março de 2016; Frutuoso G (1873)(1998) Op. cit., 57. 40 Como os casos de São Francisco do Porto e Lisboa. 41 Mandada construir por D. Manuel enquanto Senhor da madeira. Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 62. 42 Carita R (1989) História da Madeira, Secretaria Regional da Educação, Juventude e Emprego, Funchal, 215. 43 Estas intervenções urbanísticas levadas a cabo por D. Manuel e a centralização dos vários poderes civis e religiosos nas imediações do convento reforçam a importância que os franciscanos tinham para o monarca. 44 Marques A (1990) Atlas de cidades medievais portuguesas, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova, Lisboa, 95.

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crescimento de eixos urbanos no seguimento da ribeira subindo a encosta (o colégio dos jesuítas (1569)45 e três mosteiros de religiosas: o recolhimento do Bom Jesus, o mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação (1660) e o mosteiro de Nossa Senhora das Mercês (1667), estes dois últimos de clarissas. Porque condicionadas pelos votos de castidade, obediência e clausura, as freiras viviam num espaço mais afastado do centro. O lugar que ocupavam os desaparecidos convento e cerca franciscana, subentende-se ainda na matriz urbana, com a sua substituição pelo jardim municipal. Franciscanos nos Açores Nos Açores também a presença e missionação franciscana46 é dianteira47 face a outras ordens religiosas48 remontando aos primórdios da colonização do arquipélago49 como nos informa Frei Agostinho de Montalverne50. Os primeiros franciscanos, observantes51, constroem um eremitério na ilha de Santa Maria (1446)52, no entanto, tal como sucedeu na Madeira53, o estabelecimento efetivo da Ordem só se concretiza54, nos finais do século XV e ao longo do século XVI com a construção de conventos do ramo claustral55 nas ilhas e vilas de maior povoamento: dois conventos na Terceira (Praia e Angra)56, dois conventos em S. Miguel (Vila Franca do Campo e Ponta Delgada)57, e um no Faial (Horta)58, mas é no século XVII, com o incremento populacional, que se verifica, por todo o arquipélago com exceção da ilha do Corvo, o maior número de fundações conventuais59. Carita R (2013) Colégio dos Jesuítas do Funchal – Memória Histórica, Associação Académica da Universidade da Madeira, Funchal; Carita R (2013) Companhia Jesus na Madeira, Associação Académica da Universidade da Madeira, Funchal. 46 Franciscanos e freires da Ordem de Cristo foram enviados com os primeiros povoadores de acordo com o que estava previsto nas orientações papais e nas do Mestre. Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 493. 47 Lopes F (1997) Op. cit., 139; Sousa B (2005) Op. cit., 311; Esperança Fr. M (1666) Op. cit., 696. 48 A segunda Ordem a estabelecer-se no arquipélago foi a das Clarissas, seguindo-se os frades agostinhos (1516), os jesuítas (1570) e os carmelitas descalços (em meados de seiscentos). Foram fundados também outros recolhimentos que não obedeciam a qualquer regra. Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 461-66; Costa S (2008) Açores : nove ilhas, uma história, Presidência do Governo Regional dos Açores, Ponta Delgada, 226–32. A propósito do estabelecimento da clarissas consultar também: Lopes F (1997) Op. cit., 140. 49 De acordo com o documento de autorização concedida pela coroa ao Infante D. Henrique para o povoamento das sete ilhas data de 1427 a descoberta e 1439 o início do povoamento." Autorização concedida ao Infante D. Henrique para o povoamento das sete ilhas dos Açores de 2 de julho de 1439, Arquivo dos Açores (1980-1984) Ponta Delgada, Universidade dos Açores, vol.I, 5. 50 Montalverne Fr. (1695)(1988) As Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores. Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ponta Delgada, vol. III, 89. 51 Lopes F (1997) Op. cit., 139. 52 Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 495. 53 O mesmo sucedeu no Brasil, na Índia e em Cabo Verde. 54 Ibidem, 508. 55 Soledade Fr. F (1705) Op. cit.,72; Lopes F (1997) Op. cit., 139. 56 Convento de São Francisco ou Nossa Senhora da Guia em Angra (1452) e Nossa Senhora da Conceição na vila da Praia (1480). 57 Convento de Nossa Senhora da Conceição em Ponta Delgada (1525) e o convento de Nossa Senhora do Rosário em Vila Franca do Campo (1501). 58 Convento de Nossa Senhora do Rosário (1522). 59 Convento da Senhora de Guadalupe da Ribeira Grande (1607), Ilha de São Miguel; Convento da Senhora da Vitória ou São Francisco (1607), Vila do Porto, Ilha de Santa Maria; Convento da Senhora dos Anjos da Porciúncula (1609), Vila de Santa Cruz, Ilha Graciosa; Convento da Senhora da Conceição (1620), Vila das Velas, Ilha de São 45

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Os conventos açorianos inicialmente dependentes da Província de Portugal (claustral) passam em 1572 para a jurisdição dos Claustrais da cidade do Porto60 e, com a extinção desta, à da Província dos Algarves. Em 1594, sobre a jurisdição desta última província, é criada a Custódia Açoriana61. Em 164062, em consequência do aumento de conventos, a Custódia é elevada à categoria de Província de São João Evangelista dos Açores com sede no convento franciscano de Angra. O dinamismo das fundações continua e em 1717 a província é fracionada em duas custódias ficando as duas ilhas orientais de Santa Maria e de São Miguel integradas na custódia da Conceição63. Para além do relevante papel na montagem da estrutura eclesiástica dos Açores64 e na formação religiosa e cultural das populações, os franciscanos foram importantes na organização dos espaços urbanos emergentes marcando com os seus conventos a paisagem e estrutura urbana. Convento de Nossa Senhora da Conceição em Ponta Delgada O convento de Nossa Senhora da Conceição de Ponta Delgada foi fundado em 152565 no local da antiga ermida de Nossa Senhora da Conceição situada na extremidade poente da vila, no campo que provavelmente constituía o rossio66 junto à baía. Aquando a solicitação do cenóbio pelos moradores67 o aglomerado, constituído vila desde 149968, desprovido de qualquer residência regular, crescia em importância demográfica, social e económica face à primeira cabeça sede da capitania - Vila Franca. A vila estruturava-se ao longo de um eixo longitudinal e paralelo à baía que ligava os limites nascente - o adro de São Pedro e a calheta - e poente - o campo da vila. No ponto médio em contacto com a frente de mar, no lugar do atravessamento de uma linha de água, a igreja principal (posteriormente substituída pela igreja de São Sebastião) e a praça do porto constituíam o coração da urbe. Paralelamente ao primeiro

Jorge; Convento da Senhora da Conceição (1629), Vila das Lajes, Ilha do Pico; Convento da Senhora da Conceição (1641) ,Vila de Alagoa, Ilha de São Miguel; Convento de São Boaventura (1642), Vila de Santa Cruz, Ilha das Flores; Convento de São Sebastião (1642), Vila de Nordeste, Ilha de São Miguel; Convento de São Roque de Angra (1643), Ilha Terceira; Convento de São Diogo (1650), Vila Nova do Topo, Ilha de São Jorge; Convento de Senhora da Ajuda (1659), Fanais, Ilha de São Miguel; Convento de Santo António da horta (1699), Ilha do Faial; Convento de São Pedro de Alcântara (séc. XVIII), Cais do Pico, Ilha do Pico. Lopes F (1997), Colectânea de Estudos de História e Literatura. Fontes Narrativas e bibliografia Franciscana portuguesa, Academia Portuguesa da História, Lisboa, vol.I, 139-141. 60 Soledade Fr. F (1705) Op. cit., 72; Andrade A (1980), Op. cit., Lisboa, vol.I,318. 61Andrade A (1980) Op. cit.,319; Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 462. 62 Ibidem. 63 Lopes F (1997) Op. cit., 139-140; Serrão J,Marques A (2005) Op. cit., 463. 64 Serrão J, Marques A (2005) Op. cit., 450. 65 Souza N (1986) Op. cit., 305-306. 66 Porto A (2012) Açores: Cidade e Território. Quatro vilas estruturantes, Tese de doutoramento em Arquitetura, Coimbra, 354. 67 Soledade Fr. F (1705) Op. cit., 473. 68 Rodrigues D (1994) Poder Municipal e Oligarquias Urbanas. Ponta Delgada no Século XVII, Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ponta Delgada, 39. PNUM 2016 70

eixo outros se traçaram paralelamente para o interior, primeiro a nascente da sé - rua dos mercadores a da misericórdia - e só depois em direção ao campo.

A.Câmara e cadeia B. Misericórdia C. Alfândega D. Sé E. Convento da Esperança F. Convento de Santo André G. Recohimento de Sant´Ana H. Convento da Graça I. Convento de São João J. Convento Franciscano K. Colégio Jesuíta L. Convento da Conceição M. Igreja de São Pedro

1. Rua da Misericórdia 2. Rua dos Mercadores 3. Rua dos Apóstolos 4. Campo de São Francisco 5. Fortaleza de S. Brás 6. Cais 7. Calheta Pero de Teve

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Figura 2. Planta da cidade de Ponta Delgada.1873 Fonte: Porto A (2012) Açores: Cidade e Território. Quatro vilas estruturantes, Tese de doutoramento em Arquitetura, Coimbra.

Ainda na primeira metade do século XVI69, paralelamente ao primitivo eixo, uma nova rua traçada na ligação das mesmas extremidades urbanas, mas confinante no campo funcionava como cintura e limite norte do espaço urbano. O campo tornara-se o limite de uma das ruas mais importantes o que acentuava 69

Porto A (2012) Op. cit., 355. PNUM 2016 71

a importância dos edifícios que nele se implantavam ou implantariam. Perpendicularmente ao conjunto destas vias paralelas à costa outras ruas dispostas perpendicularmente no sentido sul-norte foram sucessivamente atravessando ligando a marginal com o limite norte da urbe. As fundações franciscanas masculinas e femininas70 implantadas respetivamente no limite poente e norte do campo ajudaram a delinear uma praça que pelas suas dimensões se destacava no contexto da malha urbana existente. Ao longo dos séculos XVI e XVII outras congregações constroem casa regular na cidade e ajudam na consolidação e crescimento da malha urbana definindo simultaneamente o seu perímetro: a implantação do convento jesuíta (1592) no limite setentrional da urbe, a eixo da rua dos Apóstolos71, na latitude do convento de Santo André72 e sobre a terceira via paralela à costa que entretanto se definia, condicionou o crescimento da malha urbana no sentido norte provocando a densificação e a centralização do bairro que lhe ficava a sul73; o mosteiro de São João de Clarissas implantado na rua de São João (1595), o convento de agostinhos inicialmente no arrabalde norte mas posteriormente, transferido para a primeira rua paralela à costa (1618) e por último o mosteiro da Conceição na zona oeste da urbe (1664)74. Conventos de São Salvador e da Paraíba no Brasil Ao analisarmos comparativamente as duas fundações anteriores com as implantações franciscanas de São Salvador e Paraíba no Brasil, verificamos que em todas os cenóbios adquirem grande importância na delineação dos centros urbanos em formação. Em São Salvador o cenóbio capucho, fundado trinta e oito anos depois da fundação da cidade por Tomé de Souza (158775) ficou implantado fora do perímetro urbano inicial da cidade alta, então centro administrativo e político, frente ao colégio jesuíta que desde 155076 se implantara a norte da porta de Santa Catarina77. As disposições das casas jesuíta e franciscana parecem querer traduzir espacialmente o confronto de importância e poder existente entre as duas Ordens religiosas mais significativas deste território. Embora implantadas em posição periférica na relação com o núcleo primitivo, o convento franciscano e respetivo adro marcam juntamente com o colégio e terreiro jesuíta a importância de um Convento da Esperança (1535). Souza N (1986) Op. cit., 209-211. Hoje designada rua Carvalho Araújo. 72 Convento de clarissas fundado anteriormente. 73 Porto A (2012) Op. cit., 384. 74 Porto A (2012) Op. cit., 379-381. 75 Willeke Fr. V (1978) O livro dos guardiães do Convento de São Francisco da Bahia, 1587-1862, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 3. 76 Flexor M (2010) Igrejas e Conventos da Bahia, Iphan / Programa Monumenta, Brasília, v. II,11–36. 77 Excerto da Carta de Padre Manuel Nóbrega a Simão Rodrigues a 9 de Agosto de 1549 revelando as pretensões jesuíticas para a nova implantação in Sampaio T (1949) História da fundação da cidade do Salvador, Tip. Beneditina, Salvador,189. 70 71

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novo centro religioso, que em contraponto com o civil, se desenvolvia para norte. Estas implantações porque concentradas na mesma plataforma, delimitando o espaço público contínuo formado pelas duas praças de maior relevância urbana da cidade estão longe de corresponderem a uma ação fortuita e parecem corresponder à concretização concertada de um desígnio urbano inicial de constituição de um pólo religioso. A. Casa da Câmara e Cadeia B. Casa do Governador C. Igreja de Nossa Senhora da Ajuda D. Santa Casa da Misericórdia (Antigo Hospital das Candeias) E. Sé F. Mosteiro de São Bento G. Convento Carmelita H. Convento Franciscano I. Igreja e Colégio Jesuíta

1. Porta de Stª Catarina 2. Porta de Stª Luzia 3. Praça do palácio 4. Terreiro de Jesus 5. Largo S. Francisco 6. Porto 7. Monte Calvário 8. Rua da Misericórdia 9. Rua direita dos Mercadores 10. Rua do Colégio 11. Ribeiro (Rio de Tripas)

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Figura 3. Planta da Restituição da Bahia, João Teixeira Albernaz, 1631. Fonte: Reis N (2000) Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial, FAPESP, São Paulo.

O convento de Santo António da Paraíba, fundado em 158978, quatro anos depois da fundação da cidade de Filipeia, hoje João Pessoa ficou implantado na extremidade norte da cidade alta. A eixo e em contraponto ao cenóbio capucho no limite sul da cidade situava-se a capela jesuíta de São Gonçalo. As duas Ordens estabeleciam a marcação dos limites urbanos e ditavam a extensão do principal eixo de construção da cidade - a rua direita- o que parece revelar espacial e urbanisticamente a importância que estas congregações detiveram desde o início na construção da cidade e na assistência espiritual dos

Willeke Fr. V (1968) O Livro dos Guardiães do Convento de Santo António da Paraíba, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,16, 258.

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habitantes desta capitania. As fundações praticamente coetâneas da cidade79 e do convento permitiram que o cenóbio assumisse uma posição de destaque na estruturação do núcleo inicial da cidade. A enfatização da presença franciscana no convento de Paraíba é conseguida pelo seu posicionamento estratégico, no enfiamento da rua, precedido por um adro e cruzeiro de dimensões monumentais que destacam a fachada da Igreja. A forma como o convento se posicionou na malha urbana revela que houve uma intenção desta ordem religiosa em assegurar a grande visibilidade da sua casa e comprometer, pela disposição dos elementos, a estruturação do principal núcleo urbano da cidade. 1. Rua do Varadouro 2. Rua Nova 3. Travessa do Carmo 4. Rua Direita

A. Varadouro B. Igreja Matriz C. Mosteiro de São Bento D. Convento Franciscano E. Convento Carmelita F. Capela de São Gonçalo e casa dos Jesuítas G. Casa da Misericórdia

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Figura 4. Afbeelding der Stadt en Fortressen van Parayba - 1635.Claes Jansz Visscher Fonte: Reis N (2000) Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial, FAPESP, São Paulo.

Conclusões A inexistência de uma rede urbana prévia no contexto insular e no Brasil torna o estudo das práticas urbanas franciscanas oportuno. As fundações seráficas destes territórios na generalidade coetâneas com as práticas urbanísticas fundacionais das vilas e cidades onde se implantam assumiam um papel de maior relevância e destaque no núcleo principal tirando partido da condição existente e do maior número de possibilidades para se tornarem urbanamente mais centrais e afirmativas no chão e na imagem das mesmas. Em todos os casos, os cenóbios assumem posições de grande visibilidade e centralidade urbana que se devem, em parte, à importância religiosa da Ordem nestes territórios. Na Metrópole, o contexto histórico encontrado e as préexistências urbanas não permitiram que as implantações minoritas

79 Filha M (2005) De Filipéia à Paraíba. Uma cidade na estratégia de colonização do Brasil. Séculos XVI-XVIII, Doutoramento em História de Arte, Universidade do Porto - Faculdade de Letras.

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assumissem semelhante protagonismo assumindo, por isso, na grande generalidade, localizações e importância mais periférica. Apesar da variabilidade dos quatro contextos analisados as implantações cenobíticas mantêm traços de identidade/especificidade franciscana. Em ambos os casos insulares os conventos implantados, meio século aproximadamente após o início dos respetivos assentamentos, situam-se na extremidade poente demarcando o limite das urbes com estruturas fundacionais semelhantes - um eixo ao longo da costa a partir do qual outros se traçam paralela e perpendicularmente. As Sés, implantadas em posição central dos aglomerados, ficavam em ambos os casos implantadas a eixo nascente dos conventos franciscanos, contudo, enquanto que no Funchal a sua fundação é posterior, na cidade açorina é anterior. A contraposição espacial Sé/convento é em ambos os casos procurada, no entanto, o modo como visualmente e urbanamente comunicam é distinta: no Funchal, os dois edifícios pontuam a extremidade da principal praça da cidade80; em Ponta Delgada, uma rua permite a sua ligação. Tanto na cidade madeirense como na açoriana os conventos ajudam a conformar espaços de praça com distintas configurações geométricas mas com consideráveis dimensões quando analisadas no conjunto da malha urbana. A posterior implantação dos conventos jesuítas, a norte das sés, para além de provocar e condicionar simultaneamente o crescimento urbano vêm redesenhar a geometria do centro simbólico. É curioso denotar que nos casos insulares são implantados a sul dos conventos, entre o cenóbio e o mar, dois redutos defensivos: no Funchal, a fortaleza de Sao Lourenço (1513)81 e em Ponta Delgada, o forte seiscentista de São Brás82. Tal proximidade poderá denunciar as boas características defensivas do lugar ao mesmo tempo que evidencia o papel simbólico do cenóbio na proteção e no apoio defensivo da população local, antes da existência destas estruturas. Enquanto que nos casos de Salvador e do Funchal, os cenóbios juntamente com o colégio e com a Sé, respetivamente, criam centralidades, definindo praças/rótulas de articulação urbana, na Paraíba e em Ponta Delgada, os conventos e adros adjacentes são elementos de remate urbano revelando o dilema franciscano de estar simultaneamente dentro e fora da urbe. O lugar de implantação do convento e o modo como se implanta e ajuda a construir o aglomerado onde se insere está relacionado, em primeiro lugar, com estado de desenvolvimento urbano do mesmo, com as oportunidades e os constrangimentos espaciais e com o papel que a Ordem desenvolve no seio da

Contudo na primeira planta que se conhece do Funchal feita por Mateus Fernandes em 1570 a praça ainda não existia com as configurações que constam na planta de 1803. 81 Carita R (1981) Introdução à arquitetura militar na Madeira, A Fortaleza, Palácio de São Lourenço, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, Funchal,1981, 8. 82 Porto A (2012) Op. cit., 359-367. 80

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população. Perante a variabilidade de contextos, a ordem procurou que a implantação refletisse o seu ideário religioso acabando este por resultar, como verificamos, em escolhas constantes que lhe conferem certa familiaridade.

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A Morfologia Urbana das Vilas termais do Norte de Portugal: Gerês, Vizela, Pedras Salgadas Isabel Matias  Centro de Estudos Arnaldo Araújo (CEAA)/Escola Superior Artística do Porto (ESAP) Largo de S. Domingos 80, 4050-545 Porto, Telefone/fax: (+351) 223392130/ (+(351) 223392135 [email protected]

 Resumo Em Portugal, apesar da quantidade e qualidade dos recursos minero-medicinais serem conhecidos e utilizados desde há muitos séculos, a utilização dos “banhos” e a sua transformação em lugar de estada e permanência, destinado à cura ou ao lazer na maioria das nossas estâncias termais, apenas ocorre a partir do final do século XIX e início do século XX, na sequência da regulamentação da exploração dos recursos minero-medicinais, em vigor a partir de 1892. Analisamos o renascimento do termalismo, numa perspectiva de evolução histórica, desde os projetos dos balneários ao desenho das vilas termais, fazendo uma abordagem ao processo de “construção” das vilas termais até à sua consolidação no Estado Novo. Através de um processo de consolidação urbana, as estâncias deram origem à formação das vilas termais, a partir do final do século XIX e início do século XX. Conhecido o seu factor de localização, investigámos, a partir da formação da estrutura urbana do lugar, a morfologia urbana dos novos territórios projetados, considerando, para tal, como elementos marcantes do território, as características físicas do sítio, as principais acessibilidades e os elementos estruturantes do lugar, que correspondem aos edifícios termais, aos edifícios de alojamento e aos equipamentos de utilização colectiva associados ao espaço termal. Deste modo, pretendemos dar uma perspectiva do desenvolvimento urbano ocorrido, a partir da análise da sua génese, formação e consolidação, constituindo casos de estudo as vilas termais de Vizela, de Pedras Salgadas e do Gerês, localizadas na região Norte do País. A investigação realizada incide numa perspectiva histórica e de análise morfo-tipológica e centra-se na evolução urbana das vilas termais e na forma como elas contribuíram para a criação desses territórios: para a sua imagem e identidade urbanas, para os projetos dos edifícios, dos parques e jardins e, ainda, para os projetos urbanos, concretizados nos planos de urbanização: os instrumentos de planeamento territorial que marcaram o início da prática regular do urbanismo em Portugal. Interessa-nos ainda, compreender o desenvolvimento dos primeiros instrumentos de planeamento, tendo em consideração, nomeadamente, as influências do plano, no desenho da paisagem e na construção do tecido urbano das vilas termais analisadas.

Palavras-chave Palavras-chave: Morfologia Urbana – Turismo – Território – Portugal PNUM 2016 79

Introdução As vilas termais, tendo como origem a existência de um recurso específico e sua exploração, sofreram, ao longo do seu processo de formação urbana, diversas transformações, decorrentes, não só dos investimentos realizados nesses lugares, como também das políticas governamentais e do inerente desenvolvimento sócio-económico das regiões e do país no período de referência. A análise efectuada, inicia-se com uma perspectiva crítica da evolução histórica das condições sócioeconómicas e das políticas nacionais que determinaram, na época contemporânea, o assentamento das vilas termais e desenvolve-se, posteriormente, com o estudo, na região do Norte, das vilas de Caldelas, Vizela, Caldas de S. Jorge, Gerês, Vidago e Pedras Salgadas; na zona Centro, dos casos de Caldas da Felgueira, Luso, Monte Real, Cúria e Monfortinho e, a Sul, do caso das Caldas e de Monchique. Deste modo, a partir da análise cartográfica da génese das vilas termais ou da sua morfogénese, enquanto lugar, compara-se a sua localização e a implantação e distribuição, quer dos elementos significativos do território - cursos de água, curvas de nível, estradas nacionais, linhas do caminho de ferro - quer dos elementos estruturantes do Lugar - edifícios termais, de alojamento e equipamentos e o parque termal, para configurar um todo único inserido na paisagem. Assim, a partir do processo de evolução e consolidação urbana, que está na génese da formação das vilas termais do Norte de Portugal, procedemos à análise detalhada das vilas termais do Norte – Vizela, Caldas do Gerês e Pedras Salgadas – e dos projectos que intervieram directamente e contribuíram para desenhar a paisagem e forma urbanas, definindo, desse modo, a sua identidade. Incluem-se, na análise os projectos dos edifícios, dos parques e jardins, assim como os projectos de grande escala, concretizados nos planos de urbanização então desenvolvidos, instrumentos de planificação territorial que marcam o início da prática regular do urbanismo em Portugal. Cronologicamente, analisa-se o período de 1892 a 1974; em termos de contexto político e sócioeconómico, o período inicia-se com a Revolução Liberal, que marca o começo da Monarquia Constitucional em Portugal, atravessa a 1ª República e a vigência da Ditadura Militar, tendo como pano de fundo o Estado Novo; a data de 1974 marca o fim do regime, e, com ele, o início de novas políticas territoriais e urbanas e sociais que implicam um novo fenómeno urbano, com uma importante implicação nos complexos termais estudados, onde são instalados também, por iniciativa do governo, os portugueses que retornam das antigas colónias.

Antecedentes  Efectivamente, em Portugal, apesar da existência de grande quantidade e da qualidade dos recursos minero-medicinais serem conhecidos e utilizados desde há muitos séculos, a utilização dos “banhos” e a sua transformação em lugar de estada e permanência, destinado à cura ou ao lazer, na maioria das nossas estâncias termais, apenas ocorre a partir do final do século XIX e início do século XX, na sequência da regulamentação da exploração dos recursos minero-medicinais, publicada em 1892. 

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A partir destas premissas, aprofunda-se o conhecimento dos processos de transformação e de configuração urbana das primeiras estâncias nas vilas termais da contemporaneidade. Verificando-se que em todos os balneários - pequenos, grandes, com mais ou menos equipamentos colectivos de recreio e lazer, ou de alojamentos - o que se procura é, em primeiro lugar, um contacto íntimo com a água, sendo os banhos, a estância ou a vila termal, sempre organizados em torno da sua fonte. Comum a todos eles é, também, a procura pelos utentes do contacto com a natureza, pelo que, a presença do Parque termal constitui um atributo imprescindível. O balneário constitui a razão da estrutura do território e está, por isso, na origem do nascimento das vilas termais. A situação, descrita em 1892, refere que, das 340 nascentes de águas minero-medicinais conhecidas no território continental e situadas em 140 localidades diferentes, unicamente 54 são utilizadas em estabelecimentos hidroterapêuticos, os quais, na sua maioria, nem merecem tal denominação. Em apenas 88 das nascentes tinham sido realizadas análises químicas e, dessas, só em 54 águas se fizera uma análise quantitativa, nem sempre completa, nem efectuada segundo os mais rigorosos processos analíticos1.

Do lugar dos banhos às vilas termais

Analisamos, assim, o renascimento do termalismo, numa perspectiva de evolução histórica, desde os simples projectos dos balneários até ao desenho urbano das vilas termais, fazendo, deste modo, uma abordagem ao processo de “construção” das vilas termais até à sua consolidação no Estado Novo. Este conhecimento permite-nos equiparar o valor das primeiras políticas de urbanismo e enunciar a transformação do território operada a nível urbano durante a primeira metade do século XX, considerando o caso de estudo das vilas termais do Norte de Portugal, e caracterizar a sua identidade, produzida a partir da paisagem e da forma urbana produzida. Definimos, assim, as fases de evolução e de desenvolvimento da actividade termal na contemporaneidade, na óptica da sua evolução urbana, nos seguintes períodos: Primeiro período – 1820 – 1891. Período anterior à primeira regulamentação do uso das águas minerais, em que grande parte dos banhos se tomam de forma pouco adequada, habitualmente em barracas, montadas nos locais para o efeito, e no qual se inicia o processo de construção de alguns balneários e se consolida o lugar dos banhos. Na maioria dos lugares, o alojamento é feito em casas particulares, iniciandose, contudo, alguns promotores iniciam a construção de hotéis ou «chalets» e alguns equipamentos colectivos em algumas termas. A administração central, por sua vez, realiza grandes obras públicas, como

 Lopes

A, (1892) Águas Minero-Medicinaes de Portugal, Tipografia da Academia Real das Ciencias, 1892, Lisboa,

437-440.



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estradas, linhas de caminho de ferro, com as respectivas estações, que muito contribuíram para a realização dos investimentos por parte dos promotores privados das termas (Figura 1). Apesar da precariedade dominante, em algumas estâncias termais, introduzem-se melhorias significativas ainda no século XIX que engrandeceram muitas delas. Efectivamente, estas estâncias, para além dos necessários estabelecimento hidroterápicos, seriam dotadas de equipamentos de recreio e lazer, os quais procuravam dar resposta aos novos hábitos sociais e às necessidades de embelezamento e higienização das vilas e cidades; verificando-se, assim, a implementação, ainda no final do século XIX, dos Parques Termais de Vizela, de Pedras Salgadas e de Caldelas. Segundo Período – 1892 – 1933. Período de consolidação das estâncias termais, durante o qual foram construídos a maior parte dos estabelecimento balneoterápicos das estâncias nacionais, e em que se investiu, também, na edificação de hotéis, pensões e equipamentos de recreio, lazer e desporto. Neste período foram igualmente realizadas, nos aglomerados urbanos, importantes obras públicas, ligadas ao embelezamento e arranjo dos espaços públicos e à higiene e saúde públicas, tais como a construção de cemitérios e matadouros, pelo que se considera que nesta época ocorreu um processo de consolidação das Estâncias Termais.

Figura 1. Banhos, condições de habitabilidade, 1ºSHUtRGR 



 A modernização e adequação dos balneários e as melhorias nas estâncias termais far-se-á de forma sistemática, após a entrada em vigor da regulamentação da actividade, em 1894. Nos anos seguintes são construídos novos estabelecimentos, edificam-se novos hotéis e projectam-se diversos equipamentos



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colectivos, destinados ao lazer e recreio. Generalizam-se, assim os parques termais, os Casinos e os equipamentos desportivos como acontece em Melgaço, em Caldelas, nas Pedras Salgadas, em Vidago, nas Caldas do Gerês, nas termas da Cúria ou nas termas dos Cucos. Esta fase, conhecida como a época de ouro do termalismo em Portugal, dá início à constituição das vilas termais, através da fixação da população que aí acorre, muitas vezes por motivos profissionais, e que acaba por aí se estabelecer com a respectiva família. Esse processo, por sua vez, cria a necessidade de construir novos espaços residenciais e novos equipamentos de utilização colectiva. 3º Período – 1934 – 1974. Período de consolidação de algumas estâncias em vilas termais e início da decadência de outras. Neste período inicia-se o processo de elaboração dos instrumentos de gestão do território, os planos gerais de urbanização, numa tentativa de disciplinar a ocupação dos solos e de programar as obras públicas de escala urbana. Este período correspondente a uma nova fase de implementação de obras públicas, considerando-se como o período, por excelência, de desenvolvimento das vilas termais. Será em meados do século XX, período de maior prosperidade económica e durante o qual haverá maior desenvolvimento das infra-estruturas de transportes, que se irá assistir ao desenvolvimento das estâncias termais que, paulatinamente, estruturam os pequenos lugares de formação das estâncias e dão origem às vilas termais do Gerez, de Caldelas, de Vizela, do Vidago, das Pedras Salgadas, do Luso, da Cúria, de Monte Real e de tantas outras, quer de maiores, quer de menores dimensões (Figura 2).

 Figura 2. Projectos e Obras realizadas nas Vilas Termais, 3º período



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Os modelos urbanos: Dos Planos de Melhoramentos e Embelezamento Urbano aos Planos Gerais de Urbanização das Estâncias Termais

A visão de planeamento territorial e a programação da execução das obras públicas ao nível urbano, implementar-se-á a partir de 1934, com a elaboração dos Planos Gerais de Urbanização, que foram assumidos como premissa do ordenamento urbano da generalidade das cidades e vilas e que se destinavam, concomitantemente, a conferir um desenvolvimento harmonioso aos centros de turismo nacionais. A elaboração de planos gerais de urbanização, contudo, apenas se iniciou nas décadas de 40 e 50. Contudo, na maioria das vilas termais analisadas não foram relevantes os resultados a nível do desenho urbano e, consequentemente, não se reflectiram na imagem das vilas termais. As propostas refletem-se, fundamentalmente, numa ou noutra vila termal quanto aos traçados viários, como sucede em Caldelas, nas Pedras Salgadas no Gerês e em Vizela ou quanto ao desenho urbano, como é o caso da Vila de Monfortinho (Figura 3). No entanto, no caso da Vila do Gerês, verificamos que o plano de urbanização de 1969 destruiu a imagem da vila termal do século XX, por força das demolições efectuadas e das propostas funcionais realizadas no centro urbano. Contudo, constata-se que a consolidação urbana das vilas termais se fez mais pela adição dos projetos dos diversos edifícios que compõem o lugar termal, complementados pelas funções necessárias a uma vida urbana, do que por uma acção global de planeamento territorial. 

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Figura 3. Plano de Urbanização de Fonte Santa. Monfortinho. Revisão. 1961. Autoria Arqtº João Aguiar.

 Este processo de desenvolvimento urbano que se inicia com a utilização dos banhos, se transforma em estâncias termais e se consolida em vilas termais, decorrerá ao longo de seis décadas e, fechar-se-á num ciclo de nova precaridade com o encerramento de balneários e hotéis, com a necessidade de efectuar remodelações, em que se verifica, contudo que o desenvolvimento urbano das vilas atingiu o seu expoente, no que se refere à oferta de equipamentos de utilização colectiva, da prestação de serviços e das necessárias condições de infra-estruturação à população.



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Morfo-génese das vilas termais

No que se refere à análise da morfogénese das vilas termais nacionais, verifica-se que a sua localização e implantação dominante se efectua a meia encosta, como é patente nas vilas de Monfortinho, Monte Real, Curia, Vidago ou nas Pedras Salgadas, em vale aluvial ou “vale aberto”; nas vilas do Luso, de Caldas de Felgueira, Vizela ou S. Jorge, em vale fluvial ou “vale encaixado”; localizando-se as restantes no sopé do Monte vale fluvial ou “vale encaixado”, como Caldelas, Gerês e Monchique (Figura 4).   Localização

Implantação

Vilas

Vale fluvial ou  encaixado

Sopé do Monte

&DOGHODV *HUrV





0RQFKLTXH



Meia encosta

/XVR





&DOGDVGH)HOJXHLUD 9L]HOD 6-RUJH

Vale  aluvial/planície  aluvial ou vale  aberto

0RQIRUWLQKR

Meia encosta

0RQWH5HDO &~ULD 3HGUDV6DOJDGDV 9LGDJR





Figura 4. Localização e implantação das vilas termais no território

 Reconhecida assim a importância das características fisíográficas no crescimento e na evolução da forma urbana dos lugares2, e, deste modo, a importância dos factores naturais na orientação do seu crescimento, analisámos a implantação dos elementos estruturantes do lugar e verificámos a sua posição e a sua relação, quer face às acessibilidades, quer relativamente ao tecido urbano, tendo concluído que, do ponto de vista do seu desenvolvimento e forma urbana, as vilas termais se definem em dois tipos morfológicos dominantes, as de desenvolvimento contíguo e as de desenvolvimento integrado. Do primeiro grupo, com estâncias planeadas ou programadas, fazem parte as vilas de Vidago, Pedras Salgadas, Cúria, Monte Real, Monfortinho e, com urbanização espontânea, a vila de Monchique. No segundo grupo, encontram-se as vilas de Vizela, Luso, Caldelas, Felgueira e S. Jorge: todas vilas de desenvolvimento integrado sem planeamento global e, por fim, a Vila do Gerês, a única de desenvolvimento integrado, com planeamento global (Figura 5).

  Ribeiro O, (1975) Estudo Geográfico das aglomerações urbanas em Portugal continental: Notas e recensões, Finisterra, vol. X-19 (separata), 126. 



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Numa leitura mais detalhada das características físicas do território, verifica-se a importância, na composição e estruturação do lugar, da relação com os cursos de águas e, destes, com os Parques Termais. Os elementos naturais ou naturalizados são, sem dúvida, elementos definidores da paisagem urbana e, por esse motivo, caracterizadores da identidade das vilas termais, disso sendo exemplo: a Cúria, as Pedras Salgadas, o Gerês ou Vizela.



Figura 5. Tipificação do desenvolvimento urbano das vilas termais

 



Forma e Paisagem urbana: As vilas termais do Gerês, Vizela e Pedras Salgadas No que se respeita às Vilas Termais do Norte, Vizela, Pedras Salgadas e Gerês, têm na sua génese, épocas e tipos de formação diferenciadas. Concluimos que as diferenças observadas e sistematizadas decorrem, não só das diferentes naturezas dos investimentos e dos projectos implementados - e que identificámos como elementos estruturantes do lugar (humanizado, construído pelo homem) – mas, sobretudo, das diferenças existentes ao nível do sítio, que identificámos como elementos significativos do território. A vila termal de Vizela é, podemos dizê-lo, uma vila do século XIX, com um tipo de um desenvolvimento integrado. Prova disso são o seu Parque das Termas e a sua arquitectura termal, que se incluem, claramente, em movimentos e tendências internacionais desse período. Elemento estruturante do lugar com maior significado na paisagem (urbana) da vila, o Parque das Termas, criado entre 1884 e 1886, por um dos mais famosos jardineiros paisagistas do Porto, Jerónymo Monteiro da Costa, é o primeiro do seu género a ser construído em Portugal. O Parque das Termas, de tendência inglesa, enquadra-se nos tipos de jardins paisagistas da sua época, com apontamentos pitorescos e de sabor romântico, de que são exemplo o Lago dos Cisnes e o pequeno Chalet, destinado a Casa de Chá.



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O desenvolvimento urbano da Vila das Caldas do Gerês ocorreu, fundamentalmente, durante o século XX, a partir da melhoria das suas acessibilidades e da conclusão das obras de modernização dos balneários, no final do século XIX. Será, todavia, no final da década de 20, a partir das intervenções programadas e projectadas por Raul Lino – num projecto urbano desenvolvido para o território das Caldas - que se consolidará a imagem urbana da Vila do Gerês, enquanto principal característica da sua identidade. A vila de Raul Lino gera uma vivência e confere-lhe um ambiente urbano únicos no panorama nacional, onde não é visível segregação ou hierarquização social, a não ser no espaço privado, através da categoria do alojamento frequentado. A estância termal das Pedras Salgadas constitui um exemplo da estância romântica dos finais do século XIX, consolidada no início do século XX e transformada em Vila Termal em meados do século XX. A sua formação, datada do séc. XIX e a inserção no parque, que incluiu no seu interior toda a vida diária, desde o alojamento, até aos momentos de recreio e lazer, passando pelos rituais de utilização da água, constituem as principais características da sua identidade e reflectem o modelo das estâncias termais alemãs. O desenvolvimento da vila é feito a partir de núcleos distintos que se aglutinam e a estância termal está, de início, separada fisicamente do núcleo urbano residencial, no qual se implantam todas as outras funções, actividades e serviços públicos complementares, tais como os CTT, a GNR, a Casa da Junta e os estabelecimentos comerciais e de serviços como o talho, o sapateiro, os cafés ou as agências bancárias. Este distanciamento provoca, de certo modo, uma segregação espacial e social da população na sua vida quotidiana. A primeira vila termal do Norte, Vizela, com génese ainda no século XIX, constitui um tipo de vila com desenvolvimento urbano integrado, tal como a vila termal do Gerês, esta com origem nas primeiras décadas do século XX. De formação posterior, e com um tipo de desenvolvimento contíguo ao espaço termal, a vila de Pedras Salgadas, apenas se forma em meados do século passado.

Conclusões

O processo de modernização dos balneários e das estâncias termais registou, em Portugal, um atraso considerável, relativamente ao ocorrido nos restantes países europeus, nomeadamente em França, na Alemanha, no Reino Unido e em Itália, onde o termalismo contemporâneo é uma realidade desde o século XVIII. As vilas termais formam-se, em França, fundamentalmente na segunda metade do século XIX, apresentando o caso espanhol uma realidade diferente, uma vez que as estâncias termais nunca se desenvolveram como povoações com uma população estável, não tendo por isso constituído vilas termais.



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A análise feita permite-nos encontrar semelhenças entre o desenvolvimento urbano das vilas termais portuguesas, o das vilas termais francesas - mais especificamente nas vilas termais dos Pirinéus franceses3 - e o das estâncias alemãs. As vilas francesas desenvolveram-se a partir do núcleo existente, tendo na sua génese um eixo estruturante que cria uma ligação funcional entre os diversos elementos de composição da estância, como o Casino e o Caminho de Ferro ou o Estabelecimento Termal, gerando uma malha regular e hierarquizada que se consolidou e originou as vilas termais, aproximando-se do modelo definido para as vilas termais portuguesas, com desenvolvimento integrado. A vila do Gerês representa um exemplo de estrutura de desenvolvimento francês, com uma avenida estruturante, do tipo alameda, onde se localizam os principais alojamentos, os hotéis e constitui o centro da vila, ligando os balneários entre si. No entanto, apresenta alguns elementos de composição germânicos como a Colunata, galeria de passeio coberto onde se localiza a buvette e o jardim que lhe dá continuidade. A colunata, constituindo um espaço urbano de remate da vila, confere-lhe um ambiente bucólico e pitoresco, a partir do qual se entra no espaço naturalizado do Parque Tude de Sousa. Por sua vez, as vilas termais alemãs desenvolvem-se, fundamentalmente, a partir da integração das estâncias em parques termais, sendo, por esse motivo, o modelo alemão similar ao das nossas estâncias da Cúria, do Vidago, das Pedras Salgadas e de Melgaço e, em menor escala, de Monte Real, de Monfortinho e de Monchique.  Referências Bibliográficas Acciaiuoli L M (1942) Águas de Portugal em 1940, Ministério da Economia/Direcção Geral de Minas e Serviços Geológicos, Lisboa. Almeida P V (2000) A Arquitectura no Estado Novo, uma leitura crítica. Os Concursos de Sagres, Livros Horizonte, Lisboa. Barros J (1999) Realidade e Ilusão do Turismo Português: das práticas do termalismo à invenção do turismo de saúde, Tese de Doutoramento em Ciências Sociais, Universidade Técnica de Lisboa. Cavaco C, (1979) O Turismo em Portugal: Aspectos Evolutivos e Espaciais, INIC, Lisboa. Caz M (2000) El Água en el Seno de las Águas: La ordenación del espacio balneário en el Cantábrico, Universidad de Valladolid, Valladolid. Chadefaud M (1987) Aux origines du Tourismo dans les pays de l´Adour, Université de Pau, Pau. Girão A (1941) Atlas de Portugal, natural, cartográfico: publicação comemorativa do duplo centenário, Gráfica de Coimbra, Coimbra. Gonçalves F (1981) Urbanística à Duarte Pacheco, Arquitectura, 142, 20-37. Lobo M (1995) Planos de Urbanização. A Época de Duarte Pacheco, DGOTDU/FAUP Publicações, Porto. Lobo S, (2012) Arquitectura e Turismo: Planos e Projectos. As cenografias do lazer na Costa Portuguesa, da 1ª República à Democracia, Tese de Doutoramento, Universidade de Coimbra. Lopes A (1892) Aguas Minero-Medicinaes de Portugal, Tipografia da Academia Real das Sciencias, Lisboa. Marques T (2009) Dos Jardineiros e horticultores do Porto de oitocentos ao modernismo na arquitectura paisagista em Portugal, Tese de Doutoramento, Instituto Superior de Agronomia, Lisboa. Massapina A (2007) O Risco do Arquitecto. Interesse Público e Autonomia da Profissão, ARQCOOP, CRL, Lisboa.

 De acordo com a análise efectuada por Chadefaud M (1987) Aux origines du Tourismo dans les pays de l´Adour, Université de Pau, Pau. 



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Tecido urbano em crise: leituras de São João del-Rei / MG (1930 - 1945) Mariana Souza¹, Adriana Nascimento²  >@'HSDUWDPHQWRGH*HRJUDILD '(*(2  8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGH6mR-RmRGHO5HL 8)6-  5XD6HEDVWLmR&DUYDOKR0DWR]LQKRV6mR-RmRGHO5HL0*%UDVLO 7(/PDULDQDFPV#JPDLOFRP

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  Resumo Ao entendermos que noção de tecido urbano pode ser relacionada ao conceito de ecossistema e, que não se limita à sua compreensão morfológica, segundo a abordagem lefebvriana, trataremos neste artigo da crise da cidade e de seu planejamento no recorte espaço-temporal da delimitação do centro histórico de São João del-Rei, entre 1930 e 1945. Este período temporal está contido parcialmente no período da gestão presidencial de Getúlio Vargas no Brasil, e municipal sob o comando dos prefeitos José do Nascimento Teixeira (1930-1936) e de Antonio das Chagas Viegas (1936-1945). A pesquisa histórica desse recorte temporal foi baseada na análise da fonte historiográfica de dois jornais denominados como O Correio e A tribuna nesse período em análise. Esta pesquisa proporcionou o conhecimento da implementação de obras públicas, a promulgação dos decretos-leis, o alargamento de vias e os equipamentos públicos construídos nesse período. Entender as transformações da cidade a partir da noção de espaço público permite perceber como configuraram a forma urbana existente, segundo lógicas e princípios de época, que quiçá permanecem.

Palavras-chave História; tecido urbano; espaço público; forma urbana; São João del-Rei.

  1.Introdução

Este artigo procura mostrar a discussão de crise (Ribeiro, 2013; Vaz, 2014; Humanes, 2004) da totalidade social devido o estudo de algumas das sucessivas transformações do espaço público (Santos, 1985) e da forma urbana (Panerai, 2013), no recorte espaço-temporal, delimitado pelo centro histórico da cidade de São João del-Rei, no período compreendido entre 1930 e 1945. Este trabalho foi estruturado pela tríplice categorização ação-espaço-tempo (Nascimento, 2009; 2011) procurando responder ao tipo (Rossi, 2001; 

Agradecimentos a FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) por ter subsidiado esta pesquisa.

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Panerai, 2006; Teixeira, 2012) de espaço, de projeto e de transformações realizadas na cidade, enquanto obra pública. A delimitação do centro histórico de São João del- Rei (SJDR) como área de estudo é abordada como um recorte do conjunto urbano definida como abstração relativa ao espaço da cidade e por suas características históricas, temporais e morfológicas. Esta análise perpassa pela compreensão da cidade como criação humana que mesmo apresentando uma estrutura específica de fatos urbanos (Rossi, 2001) não se resume à sua forma, à organização e às funções que corresponde. Em relação ao período histórico no Brasil, o ano de 1930 é considerado o marco do processo de industrialização, assim como de sua primeira ditadura militar. Sob o governo do presidente Getúlio Vargas está também associado ao período da chamada "Revolução de 30", que substitui a "República Velha" governada por duas oligarquias: a de São Paulo e a de Minas Gerais. Esta transição política marca a perda do poder da burguesia agrário-exportadora conforme explicitado abaixo:  "De fato, com a revolução de 1930, uma mudança política fundamental dá ao processo de industrialização a clara primazia na condução da economia brasileira. Finalmente a burguesia agrário-exportadora perde sua hegemonia. O Estado interfere decisivamente na promoção da industrialização através da produção da infra-estrutura (aço, petróleo, rodovia, etc) e de subsídios ao capitalismo industrial e ao desenvolvimento do mercado interno". (Maricato, 1997, 35)

 Em 1940, o Brasil já apresenta maior população urbana do que a rural, com 68% residente na cidade e tal fato deve-se também à mecanização da área rural, que promove o êxodo com a finalidade de tornar a maioria da mão-de-obra agrária em fabril, apoiado no paradigma da "modernidade". Segundo Giddens, o dinamismo da modernidade está relacionado com as seguintes condições: "a separação do tempoespaço, o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe e a apropriação reflexiva do conhecimento" (Giddens,1991, 21). Este período pode também ser sintetizado fruto de uma política de interiorização, conforme o panorama abaixo explicitado:

Na era Vargas (1930-1950), a política de interiorização, denominada “Marcha para o Oeste”, estimulou a migração para a zona rural e favoreceu o surgimento de cidades que receberam parte da população que demandou o interior. Nesse contexto, a pobreza, que antes ocorria apenas em meio rural, passou a ocupar as cidades e representava um obstáculo ao projeto de modernização do governo. (Pierot & Lima, 2014, 6).

 

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O que enfatizamos aqui é que, ainda que a modernização dos modos de produção tenham alguma intenção de se revestir por um discurso desenvolvimentista, suas conseqüências são de transferência da desigualdade e da pobreza orientados do campo para a cidade, e prioridade das coisas em detrimento das pessoas. O projeto nacionalista, dito populista, tem na verdade seus lastros econômicos direcionados ao mercado da época, e não à questão ou função social, que aparecera na Constituição Federal apenas na década de 1980. A cidade nesse cenário tem expostas não apenas diferenças, mas sobretudo suas desigualdades com conseqüências em seu tecido social reflexo no urbano. Para o entendimento do tecido é importante destacarmos os elementos que o constitui e naquilo que o entrelaça nas relações entre o público e o privado, com ênfase nos espaços públicos e também em sua tipologia.

2.Análise Urbana de São João del-Rei no recorte do centro histórico

A pesquisa histórica desse recorte temporal foi baseada na análise da fonte historiográfica de dois jornais denominados como O Correio e A tribuna e proporcionou o conhecimento da implementação de obras públicas, a promulgação dos decretos-leis, o alargamento de vias e os equipamentos públicos construídos no período delimitado. O "Mapa dos equipamentos públicos em São João del- Rei - MG (1930 - 1944)" (Figura 1), situa as ruas do centro histórico e o local onde aconteceram as principais obras desse período. 

Figura 1. Mapa dos equipamentos públicos existentes em São João del- Rei - MG (1930 - 1944).

 

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Conforme relatos de Sobrinho2 (2015), as duas gestões dos prefeitos denominados José do Nascimento Teixeira (1930 -1936) e Antonio das Chagas Viegas (1936 -1945) se destacaram pela função de modernizar o espaço urbano. O primeiro foi responsável pela realização de obras salesianas. O segundo promoveu até 1930 a melhoria da rede de esgotos, implantação de praças com jardins no centro histórico, adquiriu a estátua do Cristo, colocada no alto do bairro Alto das Mercês, expôs emplacamentos na Câmara por meio da Lei Orçamentária de prestação de serviços. Destacamos ainda, neste período, o centenário da cidade com a inauguração de algumas obras em 1938, verificada pela pesquisa nos jornais. Em relação a forma urbana, ocorreram algumas "modernizações" relacionadas às praças localizadas no centro histórico através da retificação várias de ruas e avenidas, conforme Andrade (2013):

No campo urbanístico, o calçamento de São João foi alterado de pé de moleque para paralelepípedo, praças foram implantadas após a demolição de edificações como a Praça Dr. Salatiel, em 1914, Severiano Resende, em 1930, Mercês e dos Andradas, em 1941. Ruas e avenidas foram abertas, largas e retas, como as Avenidas Hermílio Alves e Tiradentes. Outras, já existentes, foram retificadas como a Getúlio Vargas, e a Oswaldo Cruz, em 1945. Esses fatos evidenciam o descaso com a preservação da história e a formação urbana de cidade. (Andrade, 2013, 50)

Em 1940, houve o calçamento da Rua Marechal Bittencourt (atual Marechal Deodoro), da Praça Dr. Salatiel e a construção do equipamento público Hospital das Mercês. Também foram retificados os passeios de vários trechos da Avenida Rui Barbosa (atual Av. Tancredo Neves), do lado do cais e da Praça Francisco Neves (Cintra, 1988). Indagamos se seria possível concluir que houve uma destruição da forma urbana através do conhecimento destas modificações nas vias? Ao considerarmos que nesse período ainda não eram desenvolvidos os conceitos de ambiência urbana, urbanidade e preservação do patrimônio cultural urbano entendemos evitar uma análise anacrônica. No entanto, tais modificações atestam alguns dos procedimentos face a preservação do patrimônio e à sua forma urbana, considerando valores devidos ao sítios históricos, em seu conjunto urbano. Segue:



Foram realizadas entrevistas com o filósofo Antonio Gaio Sobrinho (professor de história da Faculdade Dom Bosco e da antiga Funrei) em 2015.

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(...) as práticas socioespaciais ali desenvolvidas, pelos modos de fazer e saber que constituem o seu conteúdo humano e cultural, proporcionando não apenas a fruição dos espaços e ambiências, mas permitindo outros valores simbólicos e afetivos muitas vezes expressos e reconhecidos como patrimônio imaterial. Assim, pode-se afirmar que os conjuntos urbanos e sítios históricos brasileiros constituem a expressão material da narrativa da aventura da modernidade no território brasileiro. (IPEA, 2010, 776, grifos nossos)

O Largo da Cruz, atualmente constituído por duas praças resultou do incêndio de uma quadra edificada (Sobrinho, 2013), e na qual havia a presença de um pelourinho (Figura 2), demolido sem o conhecimento de data específica. 

  Figura 2. Largo da Cruz em diferentes temporalidades. (Fonte: A esquerda foto em autoria e data do arquivo do Museu Regional de São João del-Rei).

 

 

 Tais mudanças urbanísticas nos espaços urbanos, pro vezes tornados públicos, podem ser relacionadas ao período de transição em que se instaura o paradigma da "modernidade" recriando formas e funções, promovendo reestruturações no espaço e na vida coletiva. É notável que nas fontes e no período estudado a prevalência de "obras públicas" em equipamentos e em infraestrutura estejam concentradas no núcleo central. Contudo, esta centralidade é modificada sobretudo devido ao grande número de retificação das ruas no centro histórico de SJDR. Leme (1999) ao definir o planejamento urbano o apresenta em quatros fases, das quais destacamos as duas primeiras: a primeira denominada por "Planos de embelezamento" de 1875 à 1930 sendo responsável pelo surgimento do planejamento urbano definido confirmado por Villaça (1999); a segunda se refere à "Planos de conjunto" de 1930 à 1965 baseados no planejamento técnico de base científica conforme pontua Leal (2010):

Por volta de 1930, começa-se a dar importância à eficiência que ao longo do século XX foi o discurso que se sobrepôs à questão da beleza. Neste período há priorização das obras de infra-estrutura, sendo a cidade vista como força de produção e reprodução do capital e também dos interesses imobiliários. O planejamento



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urbano brasileiro é assunto de engenheiros, arquitetos e economistas, sociólogos, geógrafos, administradores, advogados, etc. (Leal, 2010, 42, grifos nossos)

Alguns aspectos destas fases podem ser também observadas em SJDR, da primeira destacamos: reformulação de áreas urbanas já existentes; intervenções pontuais; alargamento de vias; implementação de infraestrutura (especialmente de saneamento) e ajardinamento de parques e praças. Da segunda fase destacamos melhorias na rede de abastecimento de água no Bairro Fábricas e saneamento no Bairro do Matozinhos em 1937, e a aquisição de um caminhão para serviços de transporte, pela Prefeitura Municipal, segundo o Decreto-Lei nº 83 de 1944. Contudo, a cidade nesse período é apropriada segundo as forças de produção e reprodução do capital em que apresenta dois valores, de uso para o trabalho, e troca para o capital como objeto de extração de lucro (Maricato, 1997). Tais obras públicas, resultadas do planejamento urbano da época, enfatizam modos e práticas de modernização urbana e que se refletem tanto nos espaços públicos e em suas tipologias, quanto no tecido urbano.

3.O tipo e espaço público

Segundo Panerai (2006), o tipo é um conjunto de partes pertencente ao todo em que se define como um instrumento capaz de distinguir as categorias dos objetos ou fatos, ou seja, é: "um objeto abstrato, construído pela análise, que reúne as propriedades essenciais de uma categoria de objetos reais e permite explicá-las com economia". (Panerai, 2006, 127) A analise tipológica sintetiza a importância de se compreender a forma e o plano da cidade não apenas como um produto do conjunto de construções e vias que possuem a capacidade de produzir um efeito artístico (Choay, 1992), mas também através de relações que contribuem para a apreensão de continuidades e descontinuidades, igualdade, desigualdade, segmentação, fragmentação, unidade e totalidade (Castells, 1983; Espinheira, 2010). Outra categoria relevante em nosso trabalho foi a "obra", que envolve ação e objetos, conforme a leitura geográfica de Santos (1985). A obra ainda sob um viés estético e político envolve as noções de apropriação do tempo, do espaço, do corpo e do desejo. Sendo a cidade considerada como uma obra que se transforma segundo os anseios da sociedade num determinado período histórico, apresentando conseqüências para a sua forma espacial, morfológica e sócio-cultural (Nascimento, 2009). A análise da diversidade de uma obra, quando definida como pública abarca subdivisões acerca de suas tipologias, considerando o tipo como um movimento analítico do urbano com grande proximidade de

 

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essência da arquitetura (Rossi, 2001), contribuindo como um instrumento do conhecimento capaz de orientar a categorização de objetos e/ ou de fatos (Panerai, 2006). A frequente conceituação de espaços públicos3 na história do urbanismo não é realizada de forma rigorosa (Merlin & Choay, 1988), sendo assim definido: "Pode-se considerar o espaço público como a parte de um domínio público não edificado e por uma afetação de uso". (Merlin & Choay, 1988, 273, tradução nossa) O espaço público é social porque é configurado pelas relações de produção e consequentemente do poder (Habermas, 1984; Serpa, 2011), assim como representa o lugar da ação política (Arendt, 2002). Já que não é seletivo, pode ser acessível à todos, independente da classe social que dele se apropria. Este espaço também apresenta conceituações calcadas na sua estrutura física: "O espaço público compreende a totalidade das vias: ruas e vielas, bulevares e avenidas, largo e praças, passeios e esplanadas, cais e pontes, mas também rios e canais, margens e praias". (Panerai, 2006, 79) A interação de grupos num espaço público (ruas, parques, praças e esquinas) no cotidiano, por meio da apropriação e da criação de novas práticas sociais e vivências, promove a construção de novas "práticas culturais" (Carlos, 2010) e é um meio de reflexão de diversidade socioespacial da cidade (Daroda, 2012). Estes espaços também são um palco da ação política e dos movimentos sociais por melhorias urbanas, sociais, entre outras reivindicações, permitindo evocar representatividade (Harvey, 2013). Assim sendo, a dimensão pública se coloca como fundamental para os debates propostos por este trabalho em consonância com reflexões e proposições que correspondam à função social (Brasil, 2001; Nascimento, 2015).

4.Tecido urbano e crise

Ao entendermos que noção de tecido urbano pode ser relacionada ao conceito de ecossistema (Lefebvre, 2008) e, que este não se limita à sua compreensão morfológica, trataremos da análise das obras, eventos e ações públicas que subsidiam a hipótese da crise no tecido urbano no centro histórico de SJDR, com base no recorte estabelecido. Segundo a morfologia urbana, o tecido urbano é formado pela superposição de três conjuntos: a rede de vias, os parcelamentos fundiários e as edificações (Conzen, 1960;Panerai, 2006; Coelho, 2013), e é um importante aspecto físico da organização da cidade construída de forma interdependente ao espaço e ao edificado congregando ações e projetos dos gestores municipais, do Estado e da sociedade. A concentração de obras públicas no centro providas pelas duas gestão municipais trouxe qual tipo de configuração para o tecido urbano? Estas gestões compreendem a relação do planejamento urbano com a função social numa democracia?



Como no original: "On peut considérer l´espace public comme la partie du domaine public non bâti, affectée et par une affectation d' usage". (grifos nossos).

 

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As duas gestões municipais no período em estudo, a de José Nascimento Teixeira e de Antonio das Chagas Viegas, retratam a realização de obras públicas focadas em equipamentos coletivos e de infraestrutura com a função de modernizar o aspecto formal do seu tecido urbano e, nem sempre, da melhor forma, já que desprovidas de fundamentações claras e bem estabelecidas. Esta análise permite inferir que a presença de uma crise no tecido urbano se configura por um planejamento urbano seletivo e por vezes excludente, como um conjunto de ações organizadas e que não visam o conjunto dos habitantes, de atividades,de construções, de equipamentos e dos meios de comunicação sobre a extensão territorial e de forma democrática (Merlin & Choay, 1988). A "crise no tecido urbano" se refere também a crise dos sentidos sociais (Humanes, 2004) no tecido social em sua totalidade que conforme Ribeiro (2013) se remete ao paradigma da civilização capitalista industrial moderna, evidenciada segundo dois parâmetros, o econômico e o antropológico (Vaz, 2014). A crise pela urgência e emergência onde a noção de "público" para todos no tecido emergente (Humanes, 2004) ainda não tinha representatividade evidenciada por essas ações materializadas no tecido urbano apresentadas acima. Lefebvre (2008) nos orienta nesta direção afirmando que a cidade apresenta uma "dupla morfologia" denominada como prático-sensível ou material e social. A cidade apresenta uma linguagem de funcionamento baseada principalmente em instituições como as prefeituras municipais e a mídia local que possuem forte potencial de decisão conforme é evidenciado abaixo:

Neste nível, a cidade se manifesta como um grupo de grupos, com sua dupla morfologia (prático-sensível ou material, de um lado, e social do outro). Ela tem um código de funcionamento centrado ao redor de instituições particulares, tais como a municipalidade com seus serviços e problemas, com seus canais de informação, suas redes, seus poderes de decisão. Sobre este plano se projeta a estrutura social, fato que não exclui os fenômenos próprios à cidade, a uma determinada cidade, e as mais diversas manifestações da vida urbana. (Lefebvre, 2008, 65, grifos nossos)

A análise da cidade sob o enfoque de Lefebvre é correlacionada com a abordagem geográfica, da relação dialética entre a forma e o conteúdo do espaço urbano por meio da dinâmica do aspecto social do/ no espaço urbano, pautada na ideia de espaço inclui o espaço econômico, derivado do processo industrial e do processo ideológico (Santos, 1985). A questão da forma urbana se relaciona com as relações do traçado urbano com o aspecto social determinado pela topografia do relevo e que configura uma organização específica segundo as suas características e modos de ocupação:

"Qualquer espaço em que nos encontremos é fisicamente delimitado, a ponto de estruturarmos sua noção a partir da consciência das relações topológicas e perspectivas entre nosso corpo e as superfícies que realizam a demarcação do espaço

 

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em que estamos. Por tais razões, a característica morfológica é o principal identificador dos espaços socialmente utilizados em geral. Falar em forma urbana ou espaço urbano remete, necessariamente, à abordagem dos processos de organização social na cidade a partir de suas características configurativas". (Holanda, 2000, 10-11, grifos nossos)

Assim, o estudo da cidade permeia o conteúdo do aspecto social e físico da forma urbana presente no tecido urbano, em que evidencia as transformações da cidade a partir da relação entre o público e o privado, neste caso com foco na noção de espaço público, seja este um equipamento coletivo, uma rua ou praça onde as obras configuram a forma urbana existente, segundo lógicas e princípios de época, que quiçá permanecem.

5.Considerações finais

A partir dessa análise é possível inferir a falta de ligação entre a realização de obras públicas com a função social existente no tecido urbano e no período estudado, talvez causada pela ânsia exacerbada em se "modernizar", sem considerar a preservação do patrimônio cultural, a história e/ ou a forma urbana, prenunciando o planejamento e a gestão urbana vigentes na atualidade. E assim, correlacionamos as várias temporalidades da sociedade, presentes no tecido urbano, no sítio histórico de SJDR em que se configura por meio dos processos socioespaciais da inclusão e da exclusão como toda cidade contemporânea presente no sistema capitalista. Também pontuamos que a análise da cidade por meio da história da forma urbana, de seus espaços públicos e dos fatos urbanos, considerando a tipologia como um fenômeno cultural contribui para e com o planejamento urbano, dado que ainda disperso e orientado para áreas privilegiadas e segundo interesses do capital. O entendimento das relações morfológicas, espaciais e culturais seja em SJDR ou noutras cidades revelam a importância da realização de estudos da cidade no sentido de melhores projetos urbanos, em consonância com as duas morfologias, a prático-sensível e a social, presentes no tecido urbano e orientadas ao lugar, ao contexto histórico, às manifestações da vida urbana, às vivências dos indivíduos e aos diferentes tipos e formas de apropriação dos espaços públicos no conjunto urbano.  Referências bibliográficas Arendt H (2002) A Condição Humana, Forense Universitária, Rio de Janeiro. Brasil (2001) Estatuto da Cidade, Câmara dos Deputados, Brasília.

 

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A rua de trás Flavia Botechia Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo Rua Frei Caneca, 812, Consolação, São Paulo, Brasil, Telefone/fax: 00 55 27999624742 [email protected]

Resumo Considerando-se a base teórica da morfologia urbana e “a rua” como elemento principal de análise, o objetivo da pesquisa em desenvolvimento é compreender a morfogênese das ruas na área central urbana recorrendo ao estudo da planta da cidade de Vitória, Espírito Santo, Brasil. Neste artigo, decorrente da pesquisa maior, pretende-se dar ênfase a identificação, formação e transformação da tipologia denominada “rua de trás” (Teixeira, 2012). Para tanto, recorre-se prioritariamente a análise documental cartográfica. Reconhece-se como exemplos hipotéticos deste tipo, ruas localizadas no centro de Vitória, cujas particularidades podem ser estudadas e interpretadas recorrendo a identificação de fases de seu processo de formação através do redesenho e comparação das plantas cadastrais de 1909 e 2007.

Palavras-chave rua; morfogênese; forma urbana; Vitoria

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Introdução Os estudos que se pretende desenvolver amparam-se no referencial teórico e metodológico do campo disciplinar da morfologia urbana que, segundo descreve Anne Moudon (1997), tem como pressuposto básico o fato de que a cidade pode ser lida e analisada pela sua forma física ordinária. Considerando-se esta base teórica e “a rua” como elemento morfológico central da análise, o objetivo da pesquisa maior, em desenvolvimento, é inventariar o processo de morfogênese das ruas. Este tem como recorte territorial os limites da área central urbana de uma cidade brasileira cuja gênese fundacional foi portuguesa recorrendo ao estudo da planta de Vitória, Espírito Santo, Brasil. Neste artigo, pretende-se registrar os resultados dos estudos realizados até o momento, com ênfase ao processo de formação de um tipo específico de rua, aquela denominada por Manuel Teixeira (2012) como “ruas de trás”. Para Teixeira (2012) esta toponímia designa aquelas ruas cuja formação está associada, no caso português, à quarteirões compridos e estreitos, ou, “medievais”. Recorrendo a esta referência bibliográfica e explorando o reconhecimento do objeto empírico, surge uma questão: teriam sido as Ruas do Rosário (Figura 1) e Duque de Caxias, exemplos típicos de “ruas de trás”? Foram assim planejadas?

Figura 1. Perspectiva do lado esquerdo da Rua do Rosário com térreo composto por fundos de comércios. Fonte: autor, 2016.

Esta pergunta aparece porque, conectando o que se lê com o que se observa, observa-se que ao longo do lado esquerdo dessas duas ruas citadas há frequentemente fundos de comércios instalados. O que é perceptível ao pedestre, é consequência da forma de um lote, que possui duas frentes para duas ruas em paralelo, e cuja arquitetura ali implantada, internamente, hierarquiza as duas frentes, ou os dois acessos potenciais. Neste caso o acesso principal das lojas se dá por uma das ruas, ficando a outra relegada ao acesso secundário. Isso quando estes não são inutilizados completamente para acesso a edificação, PNUM 2016 104

sendo vedados. E muitos acessos secundários postos em sequência criam aspectos de uma rua de serviços, ou de fundos. Seria este um vestígio de uma morfologia anterior? Qual importância e como considerar esta tipologia/ morfologia no processo de planejamento urbano? Explicitadas as motivações iniciais, este artigo foi organizado em duas partes. Na primeira, pretende-se entender através de Nestor Goulart Reis (2000), Manuel Teixeira (2012), Carlos Dias Coelho (2013), Sérgio Proença (2014), as características e métricas desta tipologia de ruas, de herança portuguesa, como ou porque surgiram. Com usos, largura, ocupação distintas e próprias, ao longo do tempo e com o adensamento das cidades, as diferenças entre frente e fundos podem ter se diluído ou não. Na segunda parte do artigo, através de um estudo aplicado, apresentam-se os resultados preliminares obtidos com a investigação que se procedeu sobre três ruas localizadas na área central de Vitória. Os resultados mencionados foram obtidos por meio de comparação e interpretação de fontes documentais cartográficas, para avaliação da métrica e forma, e fotográficas, para identificação de usos do pavimento térreo.

A rua de trás ou de serviços A rua, componente predominante do tecido urbano, pode ser definida por “[...] qualquer elemento do espaço público da cidade que constitua um canal ou corredor [...] e que, cumulativamente, cumpra as funções de passagem e suporte do edificado” (Proença, 2014). Este elemento da forma urbana apresenta diversidade tipológica que, como reconhece Kostof (2009), relaciona-se tanto com aspectos métricos quanto com usos, lembrando que a primeira variável é mais persistente no tempo, do que a última. Se no que diz respeito à função, a rua pode ser comercial, residencial, expressa, de lazer; considerando sua origem a rua pode estar relacionada a situação topográfica, iniciativa e propósito, concepção e produção (Proença, 2014). Quanto à concepção, a cidade de origem portuguesa na América possui padrões morfológicos e especificidades no que se refere ao tecido urbano: escolha do sítio para implantação; elementos geradores; hierarquias e elementos de referência; praças, estrutura de quarteirões e loteamento (Teixeira, 2012; Reis, 2000). Ao se deter num ponto específico, Reis (2000) afirma que o esquema tradicional de parcelamento, originário do urbanismo medieval português, persistiu durante todo o período colonial no Brasil, mas foi além: “Ao iniciar o século XVIII, nas vilas e cidades da Colônia, as casas continuavam a se estender em filas contínuas, oferecendo ao observador a mesma aparência de concentração” (Reis, 2000, 152). Passados quinhentos anos desde a fundação das cidades, no caso brasileiro, algumas PNUM 2016 105

destas características coloniais podem ser identificadas nos núcleos centrais urbanos e, embora não tenham se tornado imutáveis, são: [...] elos de continuidade que articulam essas diferentes formas e concepções de cidade nas quais reconhecemos um fundo de permanência ao longo do tempo. São esses elementos de continuidade e de permanência, observados quer na morfologia, quer nos processos de concepção e de desenho, que podemos considerar as invariantes do urbanismo português (Teixeira, 2012, 12)

Quanto a seus aspectos formais, a tipologia denominada “rua de trás”, motivação para formulação deste artigo, pode ser um destes elementos invariantes? Derivada de um dos três tipos fundamentais de estrutura de quarteirão do urbanismo colonial (Figura 2) e do planejamento do traçado urbano de origem portuguesa, a rua de trás foi denominada e identificada por Teixeira (2012) por possuir na hierarquia viária uma função secundária. Esta função secundária era dada a uma função “de serviços” ou abastecimento. Vejamos, pois, as formas e dimensões dos quarteirões e lotes a que esta tipologia de ruas está associada.

Figura 2. Estruturas de quarteirões portugueses: medieval, lotes postos lado a lado, com frente para duas ruas em paralelo (Tipo 1); lotes fundos com fundos (Tipo 2) e lotes com frente para quatro ruas (Tipo 3), identificados na planta de Viana do Castelo - Portugal. Fonte: Manuel Teixeira, 2012.

O primeiro tipo de quarteirão, identificado por Teixeira nas cidades medievais portuguesas planejadas dos séculos XIII e XIV, pode ser descrito por ser estreito, comprido, com lotes distribuídos em paralelo. Nestes, os lotes possuem duas frentes, cada uma voltada para ruas dispostas em paralelo. Por consequência, observa-se uma hierarquia entre as duas frentes/ duas ruas, sendo uma aquela que assume papel de ser a “principal” e outra, secundária ou “de trás”. A rua principal geralmente é a detentora de usos residenciais ou comerciais; a de trás, possui características de uso para abastecimento de mercadorias ou quintais sendo, por sua vez, mais estreitas que as primeiras. Para Teixeira (2012) este é um indicativo de que no lote conviviam usos habitacionais e não habitacionais o que explicaria a existência de uma rua de “serviços”: PNUM 2016 106

A frente do lote, onde se construía a casa, dava para uma rua principal, enquanto a de trás, onde se situava o quintal e alguma construção acessória, dava para uma rua de serviço, secundária. Definia-se dessa forma uma hierarquia de ruas dianteiras, maias largas, e ruas de trás, mais estreitas, que se alternavam (Teixeira, 2012, 8788).

Neste lote estreito e comprido, o quintal era um componente importante ocupando por vezes mais da metade da profundidade. Ainda segundo Teixeira (2012), esta é uma característica rural na organização da cidade e colocava a vegetação, localizada na área privada, em evidência na paisagem. Quanto as proporções entre o lado maior e menor do quarteirão dito ‘medieval’, identificadas por Teixeira especificamente nos casos brasileiros, esta variava em torno de 1:2; 1:1,5, e cada lote teria em média 5,5 a 6,6 metros de testada (este padrão foi observado pelo pesquisador nos três tipos de quarteirão que serão descritos neste artigo, isto em consequência de técnicas construtivas e legislações, correspondendo a medida de 1 palmo a 22 cm). Ao longo de anos, com o adensamento populacional e construtivo dos núcleos urbanos iniciais, as transformações de uso no que se refere à ocupação dos fundos dos lotes, quer seja como quintais, agricultura, serviços, habitação operária ou reserva de mercado procederam ao passo que a forma do lote, no geral, se manteve a mesma. Neste processo transformativo dos usos dos lotes, as ruas de trás (ou de serviços), em alguns casos, também se transformaram passando a assumir um perfil de rua principal. Entretanto, adverte o autor, a diferença hierárquica de origem entre estas ruas pode ser que “seja ainda hoje perceptível na maior parte dos casos” (Teixeira, 2012, 95). O segundo tipo de quarteirão apresenta-se em duas linhas de lotes, dispostos fundos com fundos, e com as frentes voltadas para os dois lados maiores do quarteirão, numa relação de 1:2, entre o lado maior e o menor do parcelamento. Pensando na forma retangular, os dois lados maiores ficariam voltados para as ruas “principais” e os dois menores, para as ruas “transversais”, onde não haviam entradas ou saídas, mas somente a lateral ou muro das edificações. Em suas pesquisas, Teixeira relaciona este tipo com o século XVI quando a densidade de ocupação urbana não mais justificava a existência das ruas de “serviços”. No terceiro tipo de quarteirão, quadrado ou retangular, os lotes são distribuídos com frente para os quatro lados, ou quatro ruas. Neste tipo, o interior do quarteirão não é mais visto a partir do espaço público, ficando completamente envolvido pelas edificações, sempre implantadas na parte da frente do lote. A hierarquia de ruas, considerando este terceiro tipo, apresenta-se mais complexa pois não deriva apenas da distribuição dos lotes mas de outras variáveis como, por exemplo, arquitetura, usos, hierarquias de todo tecido urbano. PNUM 2016 107

Ao estudar as cidades de origem portuguesa, Teixeira (2012) afirma que os três tipos de quarteirão-loteruas representam fases sucessivas no tempo, mas apresentam-se coexistentes nas plantas baixas de parcelamento. Alerta com isso para o fato de que, deste modo, o período morfológico anterior não chegava a ser totalmente substituído pelo posterior.

A rua de trás em Vitória Para análise dos quarteirões e identificação das hipotéticas “ruas de trás” no mapa da cidade de Vitória, considerou-se como fonte cartográfica dois documentos: a primeira planta de cadastro da cidade identificada como “Carta cadastral da cidade de Victoria com as curvas de nível levantada e confeccionada pelo Dr. Augusto Ramos nos annos de 1909 a 1911” e o atual levantamento aerofotogramétrico do município (2007). Estes foram escolhidos por serem o primeiro e o último levantamento do cadastro da cidade com identificação de rua, lote, edifício podendo, portanto, serem comparados. Primeiro, procedeu-se com a digitalização, o georeferenciamento do mapa de 1909 e posterior redesenho do mesmo a fim de identificar no objeto em análise os três tipos de quarteirão do urbanismo colonial (Figura 3), sugeridos por Teixeira, uma vez que a cidade de Vitória foi fundada em 1551 por colonos portugueses. Dos 41 quarteirões representados no levantamento de 1909, 16 unidades foram potencialmente classificados como sendo quarteirão - tipo 1; 10 unidades, do tipo 2; 15 unidades, do tipo 3.

Figura 3. Identificação de quarteirões do tipo 1, na planta de Augusto Ramos (1909). Fonte: autor, 2016.

Nota-se uma predominância de localização do quarteirão medieval, ou do tipo 1, na franja da colina da cidade, e em menor número na cidade alta. Desta pré-seleção de 16 unidades, considerando-se a

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existência de 4 ruas no entorno, reduziu-se para 8 quarteirões que poderiam dar indicativos da localização das “ruas de trás”. Excluíram-se, neste procedimento, os quarteirões com apenas três ruas ao redor como, por exemplo, aqueles localizados junto a água ou na base da curva de nível. Pela implantação (e localização) destes quarteirões na cidade baixa, aqueles indicados pelos números 2; 3; 4; 5; 6 e 8 (Figura 3) possuem forma tendendo ao retângulo, na proporção de 1:3 (exceção feita ao quarteirão 8, com proporção 1:4,5) e lotes com frente entre 5,5 e 8 metros (em média)1. Nestes há um padrão de profundidade de quarteirão em torno de 30 metros e, em alguns destes, identificam-se já na planta de 1909 indícios do início do processo de reparcelamento dos lotes iniciais (subdivide-se a profundidade de 30 metros em dois lotes fundos com fundos de 15 metros). Foram excluídos deste conjunto, o quarteirão 1 pela localização na cidade alta, encabeçado de um lado pela Igreja da Misericórdia e do outro pelo Congresso (Poder Legislativo), e o quarteirão 6 por estar no entorno da Praça Costa Pereira. Esta análise métrica dos quarteirões mostrou-se significativa pois acredita-se, por hipótese, que caso tenham existido exemplares de ‘ruas de trás’ no urbanismo colonial em Vitória, estas estariam no entorno destes quarteirões pré-identificados.

Figura 4. Identificação de ruas que teriam potencial para serem classificadas como ‘ruas de trás’, em função da identificação de quarteirões tipo 1. Fonte: autor, 2016.

Observe-se que estas medidas foram obtidas através de georreferenciamento (com auxílio do programa Q-Gis 2.6.1 Brighton) do mapa histórico, e da ferramenta deste mesmo programa denominada “Medição” (medida linear em metros).

1

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Como segunda variável de análise, procede-se com a medição da largura das duas ruas longitudinais no entorno dos quarteirões de números 2; 3; 4; 5; 6 e 8. Proporcionalmente as ruas mais estreitas identificadas foram as Ruas Dionísio Rosendo, Duque de Caixas e do Rosário (Figura 4; Figura 5), cuja toponímia em relação a 1909 e 2016 não foi alterada. Em relação a implantação topográfica (Proença, 2014), o primeiro exemplo pode ser considerado uma rua de meia encosta e os outros dois, ruas de talvegue. Ruas longitudinais

Largura média da rua

Topografia (Proença, 2014)

mais estreita (metros) Rua Domingos Martins

8,5

Rua de Cumeada

Rua Dionísio Rosendo

3,3/ 4,62

Rua de Meia Encosta

Rua Duque de Caxias

3,7/6,2

Rua de Talvegue

Rua da Alfandega

8,5

Rua de Costa ou Marginal

Rua do Rosário

4,3

Rua de Talvegue

Rua “sem nome” (atual Barão de Itapemirim)

10

Rua de Costa ou Marginal

Rua General Câmara

5

Rua de área aterrada3

Figura 5. Dados métricos hipotéticos sobre as ruas longitudinais pré-identificadas, referente ao ano de 1909. Fonte: autor, 2016.

Considerações finais Para fazer uma identificação e categorização do elemento rua, no caso apresentado, foi fundamental a interpretação da planta da cidade a partir da tipologia de quarteirões. Assim, embora sejam constituintes de dois domínios distintos, no caso da rua a cidade “pública”, e do quarteirão, a cidade “privada”, são ambos elementos do mesmo tecido urbano (Dias Coelho, 2013). Os procedimentos metodológicos realizados, tendo como referencial teórico de base a morfologia urbana, só foram possíveis com redesenho e georreferenciamento de cartografia histórica. Estes precisam ser aperfeiçoados pois foram consideradas as informações métricas bidimensionais constantes no documento, mas ainda há dados de inscrições alfanuméricas que sequer foram buscados. Numa perspectiva da pesquisa maior, ou seja, além da temática deste artigo, tanto toponímias dos logradouros públicos quanto a numeração de identificação dos lotes (pelo menos em alguns deles) podem vir a precisar dados mais completos sobre o cadastro urbano. As ruas em estudo passaram por sucessivas transformações de retificação, inserção de passeios, calçamento, ou mesmo implantação de mobiliário urbano, mas acredita-se por hipótese que a

2 Com 3

caixa de rua irregular, a medida da largura da rua foi tomada em pelo menos dois pontos da quadra. Categoria adicionada pelo autor, 2016. PNUM 2016 110

característica de serem “fundos” pode ter persistido na natureza formal dos lotes que as configuram. O que ainda hoje se manifesta, por exemplo, em trechos onde não há usos principais ao rés do chão, conectados com o passeio público. No caso específico da Rua Dionísio Rosendo esta foi totalmente modificada ao longo do século XX, com demolições de quarteirões inteiros e redesenho do alinhamento. Embora o nome da rua tenha sido mantido. O uso atual de serviços, depósito, carga e descarga ou simplesmente “janela” podem ser a herança mais evidente da forma urbana dos lotes de origem colonial; da morfogênese do traçado. O estudo da morfologia é tanto uma porta aberta para entender o presente através do passado, quanto uma oportunidade para projetar o futuro através das práticas de planejamento urbano. Nesta perspectiva acredita-se que não se pode considerar as ruas da área central da cidade como iguais no processo de planejamento. Tão pouco como somente limites limítrofes de um zoneamento, ou canais de circulação de veículos. Mas deveria se agregar as discussões sobre as ruas de um bairro, características das diversas tipologias existentes como potencialidade para a formulação de cenários de desenvolvimento e zoneamento. Após análise pode-se afirmar que as Ruas do Rosário, Duque de Caxias e parte da Rua Dionísio Rosendo apresentam semelhanças métricas entre si e com a referência ao explicitado pela matriz teórica adotada. Reconhece-se a necessidade de pesquisa em fontes documentais textuais e iconográficas para elucidar os usos existentes à época, confrontando assim as informações métricas obtidas neste momento. Principalmente com auxílio de fotografias. A pesquisa a esta documentação por se encontrar em aberto, aponta os novos caminhos da pesquisa em andamento.

Agradecimentos Este trabalho foi financiado em parte pelo Fundo Mackenzie de Pesquisa e Prefeitura Municipal de Vitória.

Referências bibliográficas Coelho C D (2013) Elementos urbanos. Cadernos de morfologia urbana. Estudos da cidade portuguesa, Argumentum, Lisboa. Espirito Santo (1913) Exposição sobre os negócios do Estado no quatriênio de 1909 a 1912 pelo Exm. Sr. Dr. Jeronymo Monteiro (Presidente do Estado no mesmo período), Vitoria. Kostof S (2009) The city shaped: urban patterns and meanings through History, Thames & Hudson, Londres. Moudon A V (1997) Urban morphology as an emerging interdisciplinary field, Urban Morphology, 1, 3-10.

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Proença S B A (2014) A diversidade da rua na cidade de Lisboa. Morfologia e morfogêneseTese de doutoramento. Faculdade de ArquiteturaUniversidade de Lisboa. Reis N G (2000) Contribuição ao estudo da Evolução urbana no Brasil 1500/ 1720, Pini, São Paulo. Teixeira M T (2012) A forma da cidade de origem portuguesa, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo.

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A Cidade Interrompida: o processo de planeamento da cidade de Alcobaça, 18891957 Silvia Di Salvatore, Ana Tostões ICIST-CERIS, Departamento de Engenharia Civil, Arquitectura e Georecursos, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa Av. Rovisco Pais, 1 [email protected], ana.tostoes@@tecnico.ulisboa.pt

Resumo Com o presente ensaio apresentam-se alguns resultados de um vasto projecto de investigação sobre a transformação urbana da cidade de Alcobaça1, com especial estudo dos reflexos da política urbanística do regime do Estado Novo sobre o processo de planeamento urbano da cidade. A cidade de Alcobaça tem uma história urbana que é um extraordinário caso estudo de desenvolvimento urbano em presença de mosteiros. A origem da povoação deve-se à Abadia de Santa Maria de Alcobaça, de fundação cisterciense, caracterizada por uma natureza profunda e radicalmente arquitectónica e antiurbana 2, articulada na própria ratio funcional e na própria tipologia, aparentemente desvinculada do lugar e da vida comum, forte da sua autarquia e de uma peculiar autonomia económica, deu origem a uma povoação e impôs contínuos condicionamentos a seu desenvolvimento urbano. Os resultados que se apresentam vertem sobre a extraordinária ocupação da abadia a seguir da dissolução das ordens religiosas em 1834 e a instalação de muitos equipamentos no espaço monástico, situação que perdurará até aos anos '30 do século XX. É este o momento em que se abre a parte central da pesquisa: por um lado criam-se as condições que permitem o início do processo de expansão da cidade, por outro, com a instituição do Estado Novo, estabelece-se um quadro institucional e legislativo que irá impor modalidades e tempos em que este processo decorrerá. Com dois importantes Planos de Urbanização nos anos '40 (João Guilherme Faria da Costa) e nos anos '50 (João Filipe Vaz Martins), o caso estudo de Alcobaça permite percorrer passo a passo a política urbanística do Estado Novo. O controverso iter de aprovação e financiamento dos planos terá fortes repercussões sobre a actuação dos instrumentos urbanísticos com graves consequências sobre o desenvolvimento de Alcobaça e de muitos outros centros urbanos portugueses. Palavras-chave História da Cidade, Política Urbanística, Estado Novo, Faria da Costa, Alcobaça

Introdução A cidade de Alcobaça è um caso estudo único e paradigmático de desenvolvimento urbano em Portugal e um extraordinário exemplo de povoação nascida na presença de uma abadia, que teve origem no interior

Di Salvatore S (2012) A Cidade Interrompida: Reflexos da Política Urbanística do Estado Novo no Processo de Planeamento Urbano da Cidade de Alcoabaça, PhD Thesis, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa. 2Guidoni E (1989) Storia dell'Urbanistica, Il Duecento, Bari-Roma, Laterza. 1

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da cerca da poderosa abadia cisterciense de Santa Maria, estrategicamente fundada no século XII na Estremadura, durante o processo de consolidação territorial que, com a progressão da chamada Reconquista, levou à constituição do Reino de Portugal em 1143. A Estremadura é uma região que teve uma importância crucial neste contexto: as condições topográficas favoráveis e a rede de estradas de origem romana permitiram o nascimento de povoações e o estabelecimento de uma rede comercial, um contexto em que Alcobaça teve um papel fundamental3. A Abadia de Alcobaça, o mais imponente complexo abacial cisterciense da península ibérica, feudo de poder económico e territorial, foi um presídio territorial a partir do qual se controlaram vastíssimas terras, e um vivíssimo centro cultural que desde a sua fundação até a dissolução das ordens religiosas em Portugal (1834), atravessou fases de grande prosperidade e profunda decadência. As especiais relações espaciais que se criaram entre abadia e território deram origem a uma povoação que se desenvolveu no interior da cerca abacial até se tornar um organismo autónomo no século XVI, quando o redimensionamento da cerca medieval conferiu independência física à povoação a que foi conferido o foral pelo Rei D. Manuel I (1469-1521). Durante a constituição da povoação de Alcobaça, favorecida pelas intensas acções de atracção de colonos por parte da Abadia e de fixação de população no território, criou-se uma importante rede de associações assistenciais, com a presença da Santa Casa da Misericórdia, que edificou uma igreja (1500) e mais tarde uma albergaria. Ainda existiam uma albergaria e enfermaria, que eram integradas na Abadia e a Gafaria, que segundo a tradição era situada num lugar afastado da povoação, 4 normalmente fora das muralhas e ao longo de caminhos movimentados, frequentados por viandantes aos quais era pedida esmola.5 Neste caso a Gafaria estava a norte da povoação, em terrenos que séculos mais tarde se tornam uma propriedade particular, assumindo a denominação de Quinta da Gafa: a área onde terá lugar o mais importante processo de expansão da vila durante o século XX. No século XVIII define-se o volume do complexo abacial com a última grande edificação. É transformada a frente principal da abadia com a construção da ala sul que duplica o comprimento da fachada principal do mosteiro, que assume assim o aspecto geral de palácio, que ainda persiste na contemporaneidade. Deste período existe um interessante levantamento da povoação executado pelo Tenente Coronel Guilherme Elsden em 1775, que traça a estrutura do núcleo urbano de Alcobaça dando uma indicação sumária do tecido urbano com marcação dos edifícios existentes. O levantamento mostra a nova frente da abadia que se projecta sobre o Rossio onde também é presente a igreja paroquial chamada "Nova", constituída em 1648. O século XIX constituiu um período decisivo para Alcobaça, apresentando importantes eventos preparatórios para a cidade do século XX. Em 1834, com o decreto de Joaquim António Aguiar, que

3Andrade

A (2001) A construção medieval do território, Livros Horizonte, Lisboa. F S C (1999) Origens e formação das misericórdias portuguesas, Livros Horizonte, Lisboa.,338. 5Gonçalves I (1989) O património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Universidade Nova, Fac. de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 390. 4Correia

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extingue todas as ordens religiosas do sexo masculino6 destitui também o mosteiro de Alcobaça, que é incorporado nos bens nacionais e posteriormente concedido à Câmara Municipal de Alcobaça (CMA).7 Os espaços abaciais começaram a ser ocupados em finais da década de '30 com qualquer tipo de equipamento urbano: as repartições camarárias, o teatro, o tribunal, a cadeia, a escola primária, habitações e comércio ocuparão a abadia durante cerca de um século, impondo um extraordinário processo de transformação do seu espaço interior e dos alçados que assumirão o aspecto de frentes urbanas. Os primeiros episódios de expansão urbana em finais do século XIX As últimas duas décadas do século XIX representam um dos momentos charneira que caracterizam o progresso da expansão urbana da vila, com o incremento de novas construções, intervenções no edificado existente e obras de requalificação urbana. Verificam-se dois episódios de planeamento muito importantes na zona a nordeste da abadia e no limite sudoeste da povoação. A intervenção urbanística mais importante teve lugar a nordeste da abadia, onde, em 1889, «é posto em praça para edificações o terreno municipal denominado a Roda»8. Aqui, a abertura de novos arruamentos constituiu o primeiro verdadeiro episódio de expansão da povoação (Figura 1). Em Alcobaça, a construção do Hospital da Misericórdia, terminada em Agosto de 1890, num local deslocado umas centenas de metros do coração da povoação, marca a direcção de desenvolvimento 9, impulsionando a urbanização da envolvente do hospital e a criação das necessárias conexões com o núcleo antigo da vila. Estes novos arruamentos constituíram a malha de crescimento na zona a nordeste da abadia, processo tornado possível com a demolição de parte da antiga cerca da abadia 10 e o estabelecimento da ligação entre o Rossio e o Largo do Chafariz (hoje Praça D. Afonso Henriques), que abriu o canal de desenvolvimento na faixa entre as quintas particulares da Gafa e da Cova da Onça11.

6Diário

da Câmara dos Senhores Deputados, nº7, Acta de 09-07-1860, 72. da Câmara dos Senhores Deputados, nº56, Acta de 15-03-1861, 770. 8Vila Nova B (1940) Alcobaça através do arquivo da sua Câmara Municipal: 1836-1902, Câmara Municipal, Alcobaça, 7. 9Como usualmente acontece nos processos de crescimento da cidade de '800, um grande condicionamento é imposto por aquelas estruturas que por regulamento são colocadas em novos edifícios deslocados dos núcleos urbanos, onde a necessária ligação com a povoação vai adquirir relevância, tornando-se uma directriz essencial ao desenvolvimento urbano. 10Da venda da cerca da Abadia fala-se a partir de 1839 quando num ofício do Ministério do Reino, «Sua Magestade a Rainha houve por bem mandar que no acto da venda da Cêrca do Mosteiro seja imposto ao comprador o ónus e servidão das águas que actualmente têm». Vila Nova, B (1940) Alcobaça através do arquivo, cit., 40. 11Natividade M V (1885) O Mosteiro de Alcobaça: notas históricas, Imp. Progresso, Coimbra, 17. 7Diário

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Figura 1. Mapa Desenvolvimento Urbano Alcobaça, 1890-1914. © Silvia Di Salvatore PNUM 2016 116

Os arruamentos criados formaram um esboço de sistema de quarteirões12, onde se instalaram vários equipamentos: a Praça de Touros13 (1889), em 1907 a escola primária segundo o plano de Adães das Bermudes (1864-1947) e sucessivamente o Cineteatro (1944). No limite leste do canal de desenvolvimento é construído o Cemitério em 1903. Em 1888, na zona antiga da vila14, é realizado o segundo importante sistema de arruamentos desta época que representa o outro importante episódio de intervenção planeada depois do da Roda. Os dois arruamentos realizados15 abrem uma fenda na faixa edificada fronteira à abadia articulando a implantação deste sector no limite sul da povoação. Realizam-se obras de terraplanagem dos arruamentos e as necessárias conexões com a malha urbana existente, com a construção de uma pequena ponte de madeira provisória de atravessamento do rio Baça com ligação ao Rossio16, que será substituída em 191617. Os anos '30 e '40: a aquisição da Quinta da Gafa e o início do processo de planeamento As primeiras três décadas do século XX, os anos que antecedem a aquisição da Quinta da Gafa, por parte da Câmara Municipal de Alcobaça, não se caracterizam por intervenções urbanísticas importantes. A ocupação da abadia durará cerca de um século até começarem as primeiras intervenções de restauro e a consequente necessidade de libertar os espaços abaciais que acontecem com a criação da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais em 1929. Estas circunstâncias coincidirão com a aquisição da nova área de expansão da vila, a Quinta da Gafa em 193218, desencadeando um longo processo de planeamento e de lenta urbanização da área que inicialmente è transformada em parque público com instalação de um campo de futebol e um parque infantil. As intervenções operadas na estrutura urbana de Alcobaça a partir dos anos '30 do século XX reflectem a actuação de uma política de obras públicas surgida com a instauração do regime do Estado Novo, em 193219. Assim, no quadro das acções de melhoramento local do Ministério das Obras Públicas, co-

12Cister: espaços, territórios, paisagens, Actas Colóquio Internacional Alcobaça (2000) Instituto Português do Património Arquitectónico, Lisboa, 559. 13Vila Nova B (1940) O Progresso Urbano da Vila de Alcobaça, Tip. Alcobacense, Alcobaça, 31. 14 O tecido medieval de Alcobaça, constituído por um número muito exíguo de ruas exclusivamente curvilíneas onde a edificação se foi adensando linearmente, crescendo com a comunidade, só no século XIX começou a ser reorganizado dando-se início à construção pensada do espaço urbano, onde vão emergindo componentes geométricas. Os primeiros dois arruamentos rectilíneos traçados são a chamada Rua Nova de São Bernardo (final do século XVIII) e a Travessa da Cadeia (início do século XIX). 15Rua Frei Estevão Martins, a Avenida João de Deus e a Rua David Fonseca. 16Vila Nova B (1940 )Alcobaça através do arquivo, cit., 49. 17Vila Nova B (1940) O progresso urbano, cit., 13. 18Contracto de Aquisição da Quinta da Gafa, 14/06/1932, Biblioteca Municipal de Alcobaça, Caixa 11. 19No arrancar do primeiro mandato ministerial de Oliveira Salazar, no dia 5 de Julho de 1932, no Ministério do Comércio e Comunicações, toma posse engenheiro Duarte Pacheco, passando a Ministro das Obras Públicas e Comunicações (MOPC) dois dias depois, naquela que foi uma reformulação orgânica deste ministério. Vaz Costa S (2012) O país a régua e esquadro, Urbanismo, Arquitectura e Memória na Obra Pública de Duarte Pacheco, IST, Lisboa.

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financiadas pelo Fundo do Desemprego20 é efectuada uma grande intervenção de saneamento urbano com a cobertura de um troço do rio Baça21, que atravessa a povoação a poente da abadia. Esta obra é executada paralelamente a outra importante, o redesenho do Rossio segundo o projecto do arquitecto Tertuliano Lacerda Marques (1883-1942), e a construção do edifício dos Correios e Telefones no lote onde tinha existido a Igreja Nova (demolida em 1915) no Rossio. Entretanto, do outro lado da vila, a Quinta da Gafa, tornada Parque Municipal22, é uma vasta superfície não urbanizada onde a CMA, ao longo de vários anos, chama vários arquitectos a estudar soluções para obras de vários géneros e escalas diferentes. Por um lado são os pequenos equipamentos de recreio como o bar esplanada, o parque infantil, o campo de ténis e o ring de patinagem, cujo projecto fica a cargo do arquitecto Camilo Korrodi (1905-1985) e o campo de futebol, o primeiro equipamento criado na Gafa. Os primeiros arruamentos realizados na área da Quinta da Gafa são os acessos: ambas as intervenções realizam-se contemporaneamente à construção de edifícios de forte presença urbana. O primeiro a ser realizado é a poente, que implicará a construção de uma ponte em correspondência da fábrica da Sociedade de Vinhos e Espumantes Naturais de Alcobaça (1942)23. O outro, em eixo com o antigo portão da quinta (Figura 2), será realizado alguns anos mais tarde e faz parte da regularização dos arruamentos à volta do Cineteatro, construído paralelamente ao eixo do portão em 1944. Entretanto, a grande obra de urbanização da quinta espera as directrizes dum plano cuja elaboração, em 1944, é entregue ao urbanista João Guilherme Faria da Costa (1906-1971).

O Fundo de Desemprego é criado em 1932, Dec. 21699 de 19 de Setembro. O fundo era constituído por contribuições que eram obrigados a versar profissional, empresas, funcionarios e trabalhadores do sector privado, os proprietários de imóveis e fundos urbanos e rústicos. O Órgão que o geria era o Comissariado do Desemprego, canalizando faixas (as menos qualificadas) de desempregados na mão de obra para execução de obras. O fundo era destinado a comparticipar obras de melhoramento urbano e rural, com o implícito fim de controlar e dominar o vasto âmbito das intervenções que eram prementes e urgia executar no país. As comparticipações deste fundo eram aplicadas em obras urbanas, como a pavimentação de ruas, obras de abastecimento hídrico e de saneamento e mais tarde tiveram novas aplicações como em obras de urbanização nas cidades. Diário das Sessões Assembleia Nacional, n.º 132S, Acta de 04-03-1948, 71. 21Actas das Reuniões da CMA, Livro nº41, 29/04/1938, Arquivo Municipal de Alcobaça, 164v. 22Actas das Reuniões da CMA, Livro nº37, 20/05/1932, Arquivo Municipal de Alcobaça, 184r. 23 A obra é dirigida pela Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos e Eléctricos e é pedida a comparticipação pelo Fundo do Desemprego na importância de 40.000 esc., concedida no mês de Junho de 1942. Actas das Reuniões da CMA, Livro n°44, 30/06/1942, Arquivo Municipal de Alcobaça, 18v. 20

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Figura 2. Mapa Desenvolvimento Urbano Alcobaça, 1948-1956. © Silvia Di Salvatore. PNUM 2016 119

O processo de planeamento nos anos '40 e '50: o plano Faria da Costa (1946) e o plano Vaz Martins (1957) Com a elaboração de dois significativos planos de investigação nas décadas de '40 e '50, o caso estudo de Alcobaça permite percorrer passo a passo a política urbanística do regime, com o perverso iter de aprovação e financiamento dos planos que terá graves repercussões sobre a implementação dos instrumentos urbanísticos com graves consequências sobre o desenvolvimento de Alcobaça e profundos reflexos sobre a cidade contemporânea24. O processo de planeamento de Alcobaça, começado com a contratação de Faria da Costa em 1945, foi imediatamente travado pela indisponibilidade de cartografia topográfica da vila25. O plano (Figura 3), elaborado entre 1946 e 1951, estende-se a todo o território urbano com um desenho que se relaciona fortemente com o aglomerado existente e às características morfológicas do terreno. O trabalho centra-se no planeamento da nova área de expansão da vila, no terreno camarário da Quinta da Gafa, e intervém no núcleo existente propondo uma nova lógica de circulação, que favorece também a ligação entre vila existente e vila planeada. Na Quinta da Gafa pretende-se instalar o centro cívico e os principais equipamentos urbanos: as escolas, o mercado, o tribunal, os equipamentos desportivos e áreas residenciais colectivas e uni-familiares. O urbanista quer conferir à vila um desenho urbano singular e reconhecível sendo que a correlação entre os novos traçados e as preexistências é conseguida através de elementos de continuidade e de repetição. Faria da Costa a partir do elemento mais reconhecível e marcante na implantação da cidade de Alcobaça, o edifício do mosteiro, que se destaca pela escala e tipologia, usa uma sua abstracção, a sua superfície planimétrica, para estruturar a Alameda do Mercado na Quinta da Gafa. A forma urbana de Alcobaça, caracterizada e reconhecível pela relação entre o elemento regular da Abadia (mas não regulador enquanto edifício de excepção) e os elementos organicistas dos rios e do edificado adjacente, é interpretada por Faria da Costa e re-proposta no plano com o uso de formas e estruturas urbanas igualmente regulares e organicistas. No plano identificam-se as zonas: colectiva e comercial, residencial, habitação média, habitação económica, espaços livres e equipamentos públicos existentes e projectados,

24Em

1934, abre-se uma nova época para o urbanismo português, a grande viragem legislativa tem lugar pela acção do Ministro das Obras Públicas Duarte Pacheco, com o Decreto-Lei n.º 248021 de 21 de Dezembro de 1934, que define o instrumento Plano Geral de Urbanização e comete aos municípios a obrigação de proceder à sua elaboração e prescreve a obrigação das câmaras promoverem o levantamento de plantas topográficas. Diário do Governo, 1ª Série, Decreto-Lei 24802, de 21 de Dezembro de 1934. 25É com primeira a campanha de voo dos anos '40 que se procede à elaboração de mapas topográficos dos centros populacionais mais importantes e assim também em Alcobaça é realizado o levantamento da primeira planta topográfica da vila. Esta campanha de levantamentos topográficos enquadra-se nas disposições da legislação que em 1934 institui os Planos de Urbanização (Decreto-Lei n.º 24802). A elaboração dos planos dependia dos levantamentos mas as câmaras nem os possuíam nem tinham técnicos para os executarem. A Câmara inclui no orçamento para o ano 1942 a verba destinada a este empreendimento mas só em meados dos anos '40 as cinco folhas do mapa são disponibilizadas permitindo o arranque do processo de planeamento ao abrigo da legislação de 1934. Câmara Municipal de Alcobaça, Gerência de 1944, Alcobaça, Tip. Alcobacense, 1945, 8. Relatório da actividade do Ministério da Obras Públicas no triénio de 1947 a 1949, 171. PNUM 2016 120

Figura 3. Faria da Costa, Vila de Alcobaça, Arranjo e Extensão, escala 1:2000, 1951. © Colecção Particular Família de José João Faria da Costa. PNUM 2016 121

evidenciando-se, entre elas, as escolas pelo carácter nuclear que assumem nos diferentes lugares do território da intervenção, referência clara ao conceito de unidade de vizinhança26.. Por outro lado estão previstos espaços livres de diversos tipos que assumem uma extensão importante do território, tendo uma estrutura quase contínua. Esta integração está claramente relacionada com o modelo da Cidade Jardim. Durante os anos em que o Plano de Urbanização Faria da Costa esteve em revisão na administração central, a CMA começou a executar arruamentos na Quinta da Gafa, de acordo com este projecto27. Em 1953, é emitido o despacho ministerial28, aprovando apenas a parte do plano relativa à Quinta da Gafa, com o pedido de revisão de algumas soluções propostas, que Faria da Costa acabou por não entregar. Por isso, a CMA rescinde o contracto com o urbanista Faria da Costa em 195529 e chama o arquitecto João Filipe Vaz Martins30, que assume a redacção de um novo plano de urbanização, torna-se arquitecto consultor da CMA, redige o projecto de redesenho do Rossio (1957), e desenvolve projectos para alguns equipamentos relevantes para a vila, como o Mercado, o Tribunal e edifícios de habitação. O Anteplano de Urbanização31 Vaz Martins è elaborado em tempo recorde e recebe muitas críticas em sede de apreciação ministerial não sendo aprovado nem implementado. Mesmo assim, Vaz Martins deixa um marco grande no desenho urbano de Alcobaça através das indicações dadas à CMA no momento da sua contratação, quando sugeriu para se construir o Estádio Municipal em terrenos camarários da Quinta da Gafa no lugar onde surgia a Alameda de Faria da Costa. Como podemos observar na fotografia do Levantamento Aéreo de 1957 (Figura 4), o elemento gerador da imagem urbana desta zona da vila, a praça pública civil (Alameda), foi executada em cerca de um terço do planeado mas com os seus limites claramente marcados sendo que o Estádio define a linha limite a nordeste. Esta escolha será condicionante para o sucessivo planeamento desta área e terá repercussões até a cidade contemporânea. De facto, a praça arborizada de Faria da Costa não foi construída mas, 26O

conceito de "unidade de vizinhança" usado por Faria da Costa, é a aplicação de um dos princípios da Cidade Jardim de Ebezener Howard, uma das referências na abordagem ao planeamento do urbanista. Howard, em 1898, propunha a subdivisão da cidade em áreas, ward, de cerca de 5000 habitantes, cada uma das quais devia conter comércio, escolas e outros serviços. Este conceito baseava-se no princípio de colocar no centro do ward os serviços, de maneira a que ficassem próximos das faixas de população que se deslocavam a pé. O princípio não encontrou larga aplicação nas cidades inglesas mas foi posteriormente desenvolvido nos Estados Unidos da América por Clarence Perry, não apenas como solução urbanística mas como princípio sociológico com o objectivo de melhorar a identidade comunitária. Nos anos '40, "unidade de vizinhança" encontra nova aplicação entre os urbanistas ingleses, no Plano da Grande Londres (Abercombrie, 1944) e também é desenvolvido por Le Corbusier no quadro do racionalismo europeu. Morbelli, Guido, Un'introduzione all'Urbanística, Milano, Franco Angeli, 2005, 179. 27Actas das Reuniões da CMA, 30/09/1952, Livro nº51, Arquivo Municipal de Alcobaça, 68r. 28Parecer Relativo ao Anteplano de Urbanização de Alcobaça, nº 2355, 03/02/1953. Arquivo Histórico do Ministério das Obras Publicas, Fundo Pareceres CSOP. 29Actas das Reuniões da CMA, 05/05/1955, Livro nº53, Arquivo Municipal de Alcobaça, 156r. 30Actas das Reuniões da CMA, 13/11/1956, Livro nº55, Arquivo Municipal de Alcobaça, 38r. 31 Assim denominado no seguimento Decreto-Lei nº 35931 de 4 de Novembro de 1946, que introduziu a figura do anteplano de urbanização, cuja instituição, em linhas de princípio, servia para aliviar a pressão consequente de centenas de planos de urbanização sujeitos a aprovação, mas na realidade conferia um valor vinculativo a um instrumento urbanístico correspondente a uma fase preliminar do desenvolvimento de um plano geral de urbanização e expansão, que não difere muito de uma medida preventiva adoptada na área de intervenção do plano. PNUM 2016 122

Figura 4. Fotografia Levantamento Aéreo 1957, pormenor. © Direcção-Geral do Território.

observando imagens aéreas de Alcobaça mais recentes (Figura 5), esta existe no desenho da cidade num modo híbrido que é resultante da não relação entre o parcialmente construído da Alameda (apenas os arruamentos delimitadores de espaço exterior) com o Estádio e o Tribunal, implantados sobre esta. Portanto, a imagem urbana desta zona da cidade não é a resultante do somatório dos dois planos que a definem, é claramente um híbrido, paradigmático da complicada conjuntura que a originou. Conclusão A principal consideração que se pode fazer em conclusão do presente ensaio é que a cidade de Alcobaça pode-se considerar uma cidade "interrompida", pelas interrupções espaciais e temporais que mantiveram o desenvolvimento de Alcobaça suspenso ao longo dos últimos dois séculos. Ao lado das interrupções causadas pelas circunstâncias históricas ligadas à especial origem da povoação, existem outras que foram causadas por conjunturas políticas e económicas que se criaram durante os séculos XIX e XX, em que o processo de planeamento falhou, com as contínuas interrupções do processo e mudanças de PNUM 2016 123

instrumento urbanístico, os planos foram em parte executados fazendo surgir um desenho urbano híbrido em que se sobrepõem partes das cidades ideadas, incidindo profundamente e descaracterizando a imagem urbana. A gestão desequilibrada do território urbano e dos recursos municipais condicionaram as fases de desenvolvimento sucessivo (anos '60 e '70) com impactos ainda visíveis na cidade contemporânea.

Figura 5. Fotografia Aérea Alcobaça, anos '80. © Arquivo Municipal de Alcobaça.

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Geo-morfo-evolução de Setúbal e Évora: paralelismos e diversidades Manuela Tomé¹, Maria do Céu Tereno,² Maria Filomena Monteiro³ ¹ Câmara Municipal de Setúbal SMPCB, Est. de Algeruz, Quartel da CBSS, Telefone/fax: 00 351 265739330 / 00 351 265739348 ² Departamento de Arquitetura, Universidade de Évora Colégio dos Leões, Estrada dos Leões, 7000-208 Évora, Portugal, Tel. 00351266745300 ³ Divisão de Cultura e Património, Câmara Municipal de Évora Praça de Sertório, 7004-506 Évora, Portugal, Tel. 00351266777000 ¹ [email protected], ² [email protected], ³ filomena.monteiro@cm-evora

 Resumo As cidades apresentam no seu desenvolvimento características comuns, embora em cada uma se verifique uma entidade intrínseca e determinada por vários fatores, nomeadamente a morfologia e o desenho urbano. Estes são influenciados pelo processo de instalação da cidade, numa determinada época, com uma posição específica no território funcional e num sítio com características topográficas e geográficas, que irão informar a criação das várias dimensões da configuração urbana; económicas; funcionais; sociológicas; estéticas e simbólicos. Temos, assim, cidades com os seus elementos estruturantes distintos: ruas; praças; quarteirões, equipamentos; edifícios singulares e a arquitetura de caracter corrente, que as distinguem. Analisemos o exemplo das cidades de Setúbal e Évora sob estes aspetos e as suas diferentes configurações morfológicas. A cidade de Setúbal instalou-se numa local que lhe assegurou boas condições naturais de defesa, boa exposição solar, proteção dos ventos, facilidade de recursos económicos assentes nas actividades fluvio-marítimos, condições geográficas de comunicação quer por via terrestre, quer por via fluvial e marítima, através do Oceano Atlântico. A urbe, que beneficiou de grande desenvolvimento no período de ocupação romana, terá sofrido, posteriormente, um período de decadência, tendo sido reocupada com a reconquista cristã. A área urbana inicial foi cercada, no séc. XIV, por uma cintura de muralhas. No séc. XVII a construção da segunda estrutura defensiva, abaluartada, circunscreveu também os arrabaldes e conteve a consolidação urbana até ao final ao séc. XIX. Évora é uma urbe que, remontando a data indeterminada, conserva ainda hoje o seu centro histórico circunscrito por um conjunto notável de muralhas cuja construção remonta à Baixa Idade Média. O desenvolvimento da cidade ocorreu a partir dos eixos que ligavam as principais portas situadas no circuito amuralhado quer o mais antigo que remontava ao período romano-godo quer o seguinte da época medieva, ou o mais recente, o Sistema Vauban do século XVII. O tecido urbano foi-se densificando ao longo dos séculos constatando-se actualmente a existência de espaços urbanos livres no casco histórico de tipologias diversas. No caso de Setúbal o tecido urbano foi sendo formado, com uma forma alongada, sob a orientação de eixos paralelos à linha de costa e o surgimento progressivo de praças, segundo um crescimento orgânico, embora submetido a uma estrutura que seguiu em cada momento os parâmetros organizacionais definidores e geradores da forma urbana. A cidade de Évora teve um desenvolvimento radio-concêntrico que evoluiu prolongando os eixos radiais, interligados através de vias circulares. Palavras-chave Morfologia urbana; cartografia; desenvolvimento urbano; Setúbal; Évora. PNUM 2016 127

Introdução

Considerando que “A cidade, tal como a realidade histórica, nunca é independente das etapas por que passou na sua evolução: é uma actualização dessas etapas e a sua projecção em direcção ao futuro.” (Goitia, 1982, 25) temos cidades com os seus elementos estruturantes distintos, como diversos são os planos que permaneceram ou as transformações diacrónicas.

Neste estudo pretendemos analisar duas cidades portuguesas, Setúbal e Évora, sob o aspecto da génese da sua evolução e características morfológicas que se mostram muito distintas. Observámos o seu percurso de vida, nas suas dimensões material (urbs 1) e social (civitas 2), atendendo às adaptações ao local e às necessidades e ambições das respectivas sociedades, e os seus paralelismos e diversidade.

1. Enquadramento geográfico e ocupação local

Estas duas cidades estão situadas no Sul de Portugal, mas Setúbal está localizada no litoral, na bacia hidrográfica do Sado, junto à foz deste rio, com uma extensa baía, protegida pela cordilheira da Arrábida, com um clima ameno e Évora situa-se no interior do país, numa região com clima predominantemente mais seco e quente, com relevo aplanado. Distam entre si de 85,25 Km, no entanto as respectivas condições geofísicas diferem bastante (Figura 1).

Uma boa “posição” relativamente ao posicionamento com outros núcleos importantes, à escala regional, e também à escala externa, com ligação terrestres e aquáticas, e um “sítio” (Salgueiro, 1992, 149) com características topográficas e geográficas permitiram e facilitaram a implantação física e asseguraram boas condições naturais de defesa e funcionais de Setúbal, que se desenvolveu com as actividades fluviomaritimas e mercantis a partir do seu porto, do Oceano Atlântico e Mar Mediterrâneo. O actual núcleo urbano antigo terá tido o seu início na colina de Santa Maria, com orientação a Poente.

 Deriva de Urbs, que, em

latim, significa um aglomerado com muralha, portanto individualizado do campo circundante e metaforicamente dotado da capacidade de defesa (Salgueiro, 2006, 10). 2 Deriva de Civis, que em grego se refere à comunidade dos cidadãos, dos que tinham acesso à polis, à discussão e à decisão pelo voto na Grécia clássica (Salgueiro, 2006, 10). A Polis era a cidade-estado constituída por um aglomerado urbano e abrangia toda a vida pública de um pequeno território com autonomia. PNUM 2016 128

 Figura 1. Indicação da localização de Setúbal, Évora e Mérida sobre a “NOVA PORTUGALLIAE Tabula …”.

Foi ocupada por vários povos, desde a proto-história, no entanto a cidade de hoje ter-se-á formado com o repovoamento em 1170 (Costa, 1706-1712, 289), operado, com a reconquista cristã, por D. Afonso Henriques 3, após ter passado por uma fase de declínio e abandono depois da invasão islâmica. A defesa deste território, a favor dos cristãos, foi entregue à Ordem de Santiago da Espada.

Évora situa-se numa região com frequentes marcas de populações que em épocas longínquas a povoaram. Na cidade é a partir da ocupação romana que esses sinais são mais nítidos, sendo que o núcleo  Afonso Henriques armou-se cavaleiro em 1122, na Catedral de Zamora. Foi o fundador do Reino de Portugal e reinou de 5 de Dezembro de 1143 a 6 de Dezembro de 1185.

D.

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populacional terá sido reconfigurado, com a influência da cultura urbana vigente. Embora condicionada pela topografia, a cidade assumiria as orientações de Vitrúvio (Maciel, 2006, 41) para qualquer urbe do Império. Os equipamentos públicos, a regularidade no traçado e a dimensão das ruas foram essenciais, para definir a nova imagem urbana. As vias militares que irradiavam da cidade, por exemplo a via romana Olisipo – Salacia – Ebora - Emerita4, correspondente ao “Itinerário XII” 5 com ligação também a Caetobriga 6, que asseguravam ligações rápidas e seguras às várias regiões que na época integravam o império romano foram fundamentais para o desenvolvimento económico e cultural. É desta época, a génese reticulada da malha urbana da cidade, algumas estruturas e troços de muralha. Na sequência de guerras internas, entre fações muçulmanas rivais, a cidade, tal como Setúbal, foi totalmente despovoada e sofreu danos significativos. Contudo no início do séc. XII terá sido uma urbe grande e povoada, cercada de muralhas, com um castelo forte e uma mesquita catedral. Após a conquista por Giraldo Sem Pavor e entrega ao rei D. Afonso Henriques, a cidade passou, em primeiro lugar, a ser defendida por ordens militares exteriores e mais tarde, por outra do mesmo cariz (os Freires de Évora), que asseguraria eficazmente a posse da cidade aos cristãos. Setúbal, nesta época, não passava de uma aldeia de pescadores, do termo de Palmela. A povoação afirmou-se à escala exterior europeia, no séc. XIII com a produção de sal (Rau, 1984).

Estas cidades passaram pelos mesmos momentos históricos, mas nelas não sobreviveram idênticas marcas, nomeadamente a influência romana que determinou o traçado de génese reticulado que ainda hoje persiste no primitivo núcleo amuralhado de Évora 7. Setúbal foi o mais importante centro industrial de salga de peixe do ocidente peninsular, e também comercial, havendo testemunhos dessa época, no entanto na actual cidade não existem evidentes testemunhos urbanísticos que nos permitam confirmar essa influência no seu traçado 8.

2. A urbe medieval

No séc. XIV Setúbal possuía condições económicas e jurisdicionais que proporcionaram a construção de uma cintura de muralhas que protegia a “Praça” 9, um tecido urbano com os núcleos correspondentes às  Lisboa – Alcácer do Sal – Évora – Mérida. Mérida era a antiga capital da Lusitânia. Correspondente ao Itinerário de Antonino ou Itinerarium Antonini Augusti, escrito no séc. III. 6 Setúbal. 7 A ocupação do povo Godo ocorreu, em Évora, entre os séculos VI e XII tendo estes adaptado à sua cultura muito do marcante património urbanístico e arquitetónico legado pelos romanos. 8 Setúbal, na época romana, situar-se-ia numa cota a cerca 1,00 m abaixo da cidade actual. 9 A muralha assegurava a protecção mas também permitia a prática fiscal e fortalecia a autonomia e a afirmação identitária da povoação, conferindo-lhe uma posição de importância. Esta muralha apresentava uma planta com uma forma aproximada do rectângulo, estava munida com torres poligonais de plantas quadrangulares e duas hexagonais e teria três portas, a da Ribeira, da Vila e da Erva.  4 5

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duas igrejas, de Santa Maria e S. Julião, à judiaria e à mouraria, tendo o seu centro localizado na Praça da Ribeira, onde se desempenhavam as funções político-administrativas, jurídicas, fiscais e económicas.

A configuração da muralha controlou o desenho urbano deste núcleo antigo até aos nossos dias, existindo marcadamente em planta. O principal arruamento e via estruturante do tecido urbano, ou a Rua Direita, ligava as duas portas principais entre si e ao centro e assegurava a ligação aos vários espaços da povoação. A malha urbana é irregular e fortemente gerada sob a influência longitudinal deste arruamento que atravessa a povoação (Figura 2).

O centro urbano tinha uma localização lateralizada relativamente à mancha edificada e ao espaço cercado pela muralha, estando adjacente a esta, no seu limite Sul. Comunicava com a praia através da Porta da Ribeira e, por esta, com o Rio através do cais. Esta relação com o Rio era fundamental para assegurar e facilitar a funcionalidade das actividades fluvio-maritimas e mercantis.

No séc. XVI, com D. João III

10

iniciaram-se os trabalhos de construção dos edifícios públicos para

transferência deste centro urbano para o Largo do Sapal, onde já existiam equipamentos 11. Surgiu a nova Praça do Sapal com um desenho irregular resultante dum espaço já existente, que foi alargado e adaptado às novas funções 12. Com uma localização central à geometria do aglomerado para Nascente e para Poente proporcionou a facilidade de comunicação e de articulação com a restante área urbana, continuando numa posição urbana de centralidade morfológica, funcional e simbólica, dominante sobre as restantes áreas (Figura 2).

A cidade de Évora possuía um centro urbano primitivo, do período da Alta Idade Média, circunscrito por uma muralha de construção romana, enquanto Setúbal não possuía infraestruturas defensivas conhecidas, da referida época, determinantes para a sua actual forma.

Setúbal foi limitada por muralha no século XIV e em Évora estava em construção a segunda cintura de muralhas 13 que abarcaria toda a expansão urbanística consolidada durante os séc. XIII-XV. Passou assim

 D. João III reinou de 13 de Dezembro de 1521 a 11 de Junho de 1557. Destes equipamentos destacamos a igreja de S. Julião, o chafariz abastecido com a água conduzida pelo aqueduto, construído em 1487 e o Paço do Duque. 12 Este centro urbano, localizado em zona com cota mais baixa de toda a cidade, manteve-se até ao presente, com a actual designação de Praça de Bocage. 13 A conclusão desta cintura de muralhas terá sido anterior a 1501, dado que o segundo foral manuelino apresenta um desenho aguarelado, da cidade, com iluminura explícita sobre o assunto. D. Manuel I reinou de 25 de Outubro de 1495 a 13 de Dezembro de 1521. 10 11



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a integrar dois espaços autónomos, concêntricos, ligados pelas primitivas portas romano/godas 14. Durante este período o centro económico e cívico da cidade mudou-se do interior do primitivo espaço para o exterior 15.No

final da Idade Média o tecido urbano estava formado. A construção foi-se densificando nos principais

eixos e praças. Contribuíram para tal a localização de conventos e mosteiros que constituíram focos dinamizadores de uma economia urbana à época essencial 16. A segunda cintura amuralhada, em finais do século XV delimitou a área urbana fazendo convergir para as portas nela existentes o fluxo de circulação. A necessidade de espaços livres amplos ao longo do interior das muralhas e a existência de terreiros situados nas referidas portas condicionaram a localização de mais construção obrigando a uma densificação progressiva nas restantes áreas. A cidade medieval de Évora foi marcada pela estadia da corte portuguesa na urbe e pelas consequências daí resultantes 17.

Uma das características da cidade medieval de Évora é que, apesar da diversidade de tipologias urbanas, ela cresceu a partir do primitivo centro amuralhado para um ou mais espaços abertos, junto às portas da fortificação, e que se converteriam em futuras praças. Setúbal teve o seu crescimento com a extensão dos arrabaldes para Nascente e para Poente, no seguimento do rio e mantendo a proximidade deste (Figura 2). 

 Refira-se as, ainda hoje existentes, Porta D. Isabel para Poente, primitiva de Alconchel para Sul e de Moura para Nascente. 15 Situar-se-ia a Poente da Sé, local anexo ao qual ainda se pode constatar, integrando a actual biblioteca pública, a existência do portal de entrada da primitiva câmara municipal. Logo no início do século XVI a importância urbana da Praça Grande (actual Praça de Giraldo) fez com que a actividade municipal passasse a decorrer em nova construção situada no topo Nascente da referida praça em local onde hoje se situa o Banco de Portugal. 16 Indicamos o exemplo dos arrabaldes de S. Francisco e do S. Domingos e do cultivo das cercas destes conventos pela população local. 14

Entre 1282, com D. Dinis, e 1535, com D, João III, realizaram-se um total de doze cortes na cidade de Évora nas quais estiveram representadas todas as classes do país. Em 1325 foi autorizada, pelo Papa, a mudança do Paço, à data situado na Praça (actual Praça de Giraldo), para o convento de S. Francisco. Tal mudança é fundamentada por D. Afonso IV por este local ser mais calmo e amplo comparativamente com o anterior que à data já constituía o centro económico da cidade.

17



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Figura 2. Representação do desenho da malha urbana nos núcleos antigos de Setúbal e de Évora. A urbe medieval nestas cidades era constituída por várias grupos sociais, com mistura de raças e religiões, cristãos, mouros e judeus, autóctones e imigrantes, cuja ocupação urbana nem sempre coexistia harmoniosamente, no entanto foi um factor importante na diversidade cultural e dinâmica social.

3. O tecido urbano delimitado pela fortificação moderna

Com a Restauração da independência foi reforçado o sistema defensivo de Setúbal (Figura 3), do qual fez parte a fortificação abaluartada que circunscreveu a área urbana consolidada, o núcleo urbano intramuralha medieval e os arrabaldes já existentes para Nascente e para Poente 18. Esta fortificação veio criar novos limites e uma nova relação de influências na morfologia urbana, com a alteração da dinâmica da interrelação de forças estruturais, quer entre os vários espaços urbanos, quer na relação da nova urbanidade com a envolvente rural. Os anteriores arrabaldes ficaram, desde então integrados no núcleo urbano e novas áreas periféricas se estabeleceram.





 o projecto concebido, em 1642, por Jean Gilot e Cosmander, foi construída a nova linha de defesa. Nesta estrutura defensiva de Setúbal trabalharam vários engenheiros militares, nomeadamente Nicolau de Langres, Simão Falónio, Luís Serrão Pimentel, Mateus do Couto, Sebastião Pereira Frias, Simão Mateus, D. Diogo Pardo de Osório e Francisco João da Silva, tendo a direcção das obras sido acompanhada, durante um largo período de tempo, por João Rodrigues Mouro. Luís Serrão Pimentel projectou as obras do forte de São Luís Gonzaga em Setúbal, tendo delineado a praça de Évora onde também dirigiu as operações defensivas na restauração. Segundo



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Figura 3. Desenho das fortificações, medieval e seiscentista, de Setúbal e de Évora em “Piante d’Estremadura e di Catalogna” (POSSI, 1687, Nº 42 e 31). Assinalámos a localização do centro urbano.

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À medida que a urbe se expandiu e a malha urbana aumentou, novas dinâmicas surgiram, sem no entanto, alterar a forma e a lógica de comunicação entre os vários espaços urbanos e o diálogo entre as hierarquias funcionais da vila. Esta passou, então, a ser constituída por bairros onde novas centralidades de sociabilidade foram surgindo com a criação de novas praças. O desenho da malha urbana destas ocupações mais tardias apresenta uma malha ortogonal, com quarteirões rectangulares muito compridos 19,

verificando-se que os quarteirões construídos posteriormente têm a forma mais próxima do quadrado e

com maiores dimensões. O centro urbano continuou a desempenhar as suas funções, comunicando com as restantes zonas através da Rua Direita, que se estendeu e ramificou atravessando os bairros, num paralelismo à linha de costa (Figura 4).

Figura 4. Setúbal e Évora. Indicação da ocupação urbana, do centro urbano e das principais vias de circulação, nos finais do séc. XVIII.

O sistema abaluartado moderno concretizado em Évora 20 contribuiu pouco para a formação de novo tecido urbano considerando que os baluartes edificados se situaram muito próximo do segundo perímetro amuralhado e a necessidade de amplo espaço livre inviabilizava a constituição de mais tecido urbano 21.

Deste sistema de fortificações partem radialmente as estradas (Figura 4), nomeadamente para Lisboa através da porta de Alconchel 22, para Estremoz pela porta de Avis 23 e, finalmente, para Beja, através da  Estes quarteirões eram constituídos, na generalidade, por lotes de frente estreita e compridos. Em 1642, D. João IV enviou para Évora Carlos Lassart, para elaborar o projecto e as obras de reformulação e de reforço da fortificação medieval da cidade de Évora. O primeiro projecto aprovado data de 1659, da autoria de Nicolau de Langres, não tendo sido concretizado devido às ligações posteriores do autor a Espanha. A actual construção refere-se ao período entre 1640-1663, com projecto e obra da responsabilidade de Luís Serrão Pimentel, baseado no esquiço inicial de Nicolau de Langres. Estas obras contemplaram a construção de sete baluartes situados muito próximo da muralha medieval, de modo a reforça-la relativamente à utilização de deferente tipo de armamento. 21 Repare-se que em Évora, com as estadias cada vez mais raras do rei e respetiva corte em Évora, a partir de finais do século XVI, a cidade entrou em declínio sem a necessidade de novas áreas urbanas. Veja-se por exemplo o caso do baluarte do Conde de Lippe que foi convertido num sector do Jardim Público, construído em finais do século XIX. 22 A ligação primitiva era efetuada pela antiga porta de Alconchel localizada na muralha romana-goda. 23 Anteriormente realizada pela porta de D. Isabel. 19 20



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porta de Machede 24. Estas ligações urbanas resultaram dos antigos caminhos que evoluíram para vias de circulação preferenciais e deram origem às aberturas mais convenientes no conjunto defensivo edificado ao longo dos séculos.

4. A adaptação das cidades no séc. XIX

No final do séc. XIX e séc. XX as cidades viveram um sentimento social de que era necessário modernizar, em rejeição das más condições de salubridade dos núcleos históricos e em adaptação aos novos padrões sociais e tecnológicos 25.

Setúbal manteve a consolidação urbana limitada pela fortificação seiscentista até aos finais do séc. XIX, época em que se iniciou o rompimento desta estrutura para o estabelecimento de pontos de ligação a novas áreas de expansão 26 e sobretudo no século seguinte com as áreas urbanas surgidas.

A nova cidade preocupou-se com as melhorias urbanísticas que iriam dar satisfação a uma burguesia que aspirava uma qualidade ambiental que extravasava os limites e parâmetros da “cidade histórica”, iniciandose um novo ciclo que correspondeu a uma fase económica baseada na indústria, com novas vias de comunicação 27 e a continuação do desenvolvimento educativo e cultural. Assistiu-se à adaptação da cidade com a implementação de equipamentos, de infra-estruturas, surgiram os passeios públicos 28, a criação de novos espaços públicos 29 e na organização e regulamentação do edificado.

A terraplanagem efectuada sobre o Rio Sado, e a transformação da Rua da Praia e da praia na nova avenida, veio alterar definitivamente a morfologia urbana, tornando-se esta avenida no principal eixo estruturante da cidade 30. O desenho desta nova zona urbana continuava 31 a orientação da Rua da Praia,

 Constituindo-se como a relocalização das portas de Moura. O séc. XIX é considerado pelos historiadores a época da regeneração, reportando-se a um período decorrido entre 1851 e 1866, criado pelo movimento liberal que proporcionou a promoção do desenvolvimento económico e social, com a realização de obras estruturais na redes de circulação e de comunicação e na modernização da agricultura, do comércio e da indústria. A exemplo das reformas parisienses foram criadas as novas avenidas desenhadas na periferia mas com ligações à cidade antiga interferindo na respectiva morfologia urbana. 26 A evolução da Vila sadina foi reconhecida, tendo merecido a elevação à categoria de cidade por Decreto da 2ª Repartição da Direcção-Geral de Administração Pública do Ministério do Reino, de D. Pedro V, de 19 de Abril de 1860. D. Pedro reinou de 15 de Novembro de 1853 a 11 de Novembro de 1861. 27 Início da circulação ferroviária com a inauguração, a 1 de Fevereiro 1861, do troço de caminho-de-ferro do Pinhal Novo a Setúbal, dos transportes fluviais com a ligação a Lisboa por barco e das carreiras diárias de barco a vapor para Alcácer do Sal em 1867, e da iluminação a gás das principais ruas da cidade. 28 Indicamos, como exemplo, a criação do Passeio do Lago e o Campo do Bonfim. 29 Indicamos como exemplo a criação da Avenida Luisa Todi e as demolições efectuadas da Praça do Sapal, nomeadamente na muralha medieval para as novas ligações viárias. 30 Actual Avenida Luisa Todi. 31 A partir do Baluarte de N. Sra. do Livramento até ao Baluarte de N. Sra. da Conceição. 24 25



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paralela ao rio, e constituía seis novos quarteirões de malha ortogonal 32, que deram lugar a edificações de referência na cidade.

Outras largas avenidas novas foram criadas 33 e traçadas perpendicularmente e paralelamente à avenida Luisa Todi (Figura 5), projectando a cidade para Norte e para Nascente com a construção de novos bairros.

Figura 5. Setúbal e Évora. Traçados da antiga e das actuais vias de circulação, principais. Executado sobre imagem obtida a partir do Google earth, 2007.

Os bairros sociais iniciados em meados do séc. XX, com o Estado Novo, destacaram-se na cidade pela extensa área ocupada 34.

As intervenções urbanísticas então realizadas tiveram enquadramento urbanístico no Plano Geral de 34Urbanização

de 1944, do Arq. João de Aguiar 35.

Os anteriores arruamentos da cidade histórica viriam, actualmente, a ser condicionados ao trânsito automóvel e vocacionados ao uso pedonal.

Com a deslocação da corte para Lisboa, no final do séc. XVI, a cidade de Évora entrou em declínio até meados do séc. XX, não havendo evolução urbanística e económica assinalável. Numa cidade em que o tecido urbano se encontrava preenchido com a propriedade particular, os espaços anteriormente ocupados  Estes quarteirões foram subdivididos em grandes lotes com várias frentes para as ruas projectadas criando o espaço urbano localizado na zona Nascente da actual Avenida Luísa Todi. 33 Em Setúbal, estas novas avenidas foram criadas com um perfil transversal de duas faixas de rodagem separadas por um espaço central arborizado. Esta tipologia de traçado tem vindo a desaparecer, existindo ainda e apenas na Avenida 22 de Dezembro. 34 A esta expansão correspondeu um aumento demográfico que alterou as características e constituição da sociedade setubalense, com a vinda de novas populações para a cidade. 35 A figura de ”Plano Geral de Urbanização” foi criada pelo Decreto-Lei n.º 24.802, de 21 de Dezembro de 1934, o qual fixava a obrigatoriedade das Câmaras Municipais elaborarem Planos Gerais de Urbanização. 32



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pelas casas religiosas proporcionaram áreas fundamentais para a reedificação urbanística e implantação de serviços públicos. A edificação de algumas construções, ainda hoje consideradas de referência, é desta época e foram viabilizadas pela iniciativa de particulares em espaços livres de antigos conventos 36 .A construção do caminho-de-ferro

37

viabilizou o desenvolvimento urbano de área específica garantindo a

ligação entre a estação e o espaço amuralhado. Com o advento do Estado Novo, em 1945, o Arq. Étienne Groer preconizou intervenções no tecido urbano com o anteplano de urbanização, propondo a constituição de novos largos, abertura de diferentes arruamentos e realinhamento de outros, através do sacrifício de edificações existentes.  Considerações finais

No caso de Setúbal a localização e as respectivas condições asseguraram-lhe as condições de defesa, de sustentabilidade e de desenvolvimento do tecido urbano que foi sendo formado e desenhado, sob a orientação de eixos viários e o surgimento progressivo de praças, tomando uma forma alongada, mais segundo um crescimento orgânico, do que em obediência à existência de planos com preocupações de caracter formal.

As condições do local determinaram a sua implantação e desenvolvimento, a Ordem de Santiago, o poder régio, a igreja e o poder social geriram o seu destino conjuntamente com o Rio Sado, que influenciou a sua economia e o tecido social, e constituiu um elemento gerador da morfologia urbana.

Setúbal manteve o traçado medieval e a ocupação urbana durante um largo período de tempo, iniciando as novas linhas de intervenção urbanística no final do séc. XIX. No séc. XX a cidade foi submetida a uma explosão da expansão urbanística mas manteve o seu centro urbano 37.

A sua organização morfológica tem vindo a ser alterada, com início no séc. XVI, até ao séc. XIX. No séc. XIX, as transformações ocorridas efectuaram-se em função do novo meio de locomoção, o automóvel. Rasgaram-se as muralhas e alargaram-se ruas. Verificamos a existência de uma morfologia urbana com desenhos diferenciados em função da sua origem, da sua relação com a cidade, com o seu centro urbano e com as novas tecnologias, e tendências urbanísticas.

Da “cidade” romana em grelha à “cidade” fortaleza romano-goda e finalmente à cidade radial, soluções naturais dependentes das diversas culturas e vivências inerentes a cada época, resultou, em Évora, num  O Teatro Garcia de Resende edificado no antigo local da igreja do convento de S. Domingos, ou da casa Barahona em terrenos anexos ao convento de S. Francisco. Como criação de espaço de circulação e sociabilização, refira-se o Jardim do Paraíso no local do antigo mosteiro com o mesmo nome. 37 Inaugurado em 1863. 37 Actual Praça de Bocage.

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sedimento urbanístico e humano indissociável da actual cidade. Os antigos eixos estruturantes da cidade continuam ainda a assumir um papel dominante, actualmente reforçado pela obrigatoriedade dos sentidos de trânsito no interior da cidade amuralhada. Quanto aos percursos pedonais eles acentuam-se actualmente em função dos locais de estacionamento e paragens de transportes públicos, não obstante a antiga Praça Grande (Praça de Giraldo) continuar a polarizar todo o movimento na cidade.

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Vilas e cidades no Brasil Colônia Lívia Vierno Faculdade Dehoniana de Taubaté – www.dehoniana.org.br Rua Carlos Rizzini, 26/112, Taubaté, SP, Brasil. Telefone: 00 55 12 3622-9042 - 00 55 12 99781-8615 [email protected]

 Resumo “É um assunto de reflexões singulares este do estudo do aprovisionamento de um país em cidades. Como uma região se proveu de aglomerações urbanas? Como nasceram elas, onde se instalaram, por que progrediram? Como se cria uma rede urbana, eis um estudo que é difícil de abordar nos nossos países da Europa e é, entretanto, um dos mais curiosos problemas que apresenta a Geografia Humana.” Com este pensamento, Pierre Deffontaines, em 1944, lança a questão sobre quais teriam sido os critérios que fizeram surgir em determinadas localidades do Brasil suas vilas e cidades, quais teriam sido as determinantes que direcionaram a escolha dos pontos iniciais que teriam dado origem a um povoado. Para tanto, divide e classifica a origem das cidades no Brasil como tendo sido consequência de determinados tipos de ocupação, ou seja, estão diretamente relacionadas aos assentamentos surgidos. Aroldo de Azevedo em 1957, também procurou entender quais teriam sido os tipos de embriões de cidades que deram origem às primeiras vilas e povoados no Brasil. Em 1966 foi a vez de Francisco Andrade considerar a implantação urbana territorial com o estabelecimento de núcleos de povoamento, quer “seja por um ato voluntário da autoridade, quer seja pela ação espontânea dos primeiros colonizadores”. Logo a seguir, em 1968, João Boltshauser procurou também elaborar sua classificação, considerando que “o fenômeno urbano nas Américas corresponde às várias funções que as cidades desempenham”. Em outra classificação, de Paulo F. Santos, a formação de vilas e cidades no Brasil esteve condicionada por fatos de interesse econômico, que orientaram o surgimento de núcleos urbanos em lugares específicos. Quando se analisa o contingente de textos e teses sobre o assunto, fica a certeza de que, por mais que já se tenha escrito, muito ainda ficou para ser dito. Existem muitos aspectos, objetivos, áreas de interesse diversificadas e pouca abordagem sobre o assunto, para direciona-se o entendimento dos fatos à luz da cronologia histórica e entender-se o porquê de certos fatos e em quais circunstâncias ocorreram, para poder-se afirmar quais posturas e interesses moveram os fundadores de cidades, em face dos resultados colhidos. Deste modo, através da comparação de vários autores e estudiosos, este trabalho pretende estabelecer quais foram os critérios e como se classificam a imensa e diversificada rede urbana que se formou em terras brasileiras.

Palavras-chave Urbanismo, vilas, formação urbana, assentamento urbano

  1. Implantação da rede urbana no Brasil A formação urbana no Brasil é um assunto que tem despertado interesse e curiosidade em muitos estudiosos, sob diversos ângulos de visão e de áreas de estudo. É muito intrigante quando se tem em frente o tamanho territorial do Brasil e a grandiosidade do desafio a que se lançaram os portugueses nessa empreitada. É surpreendente, quando se compara essa formação com a dos com os vizinhos peninsulares dos portugueses, que também se lançaram em aventura semelhante, colonizando áreas tão extensas e diversificadas, com um tipo de colonização muito diferente. É fascinante debruçar-se sobre o vasto material



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cartográfico que foi produzido pelos navegantes e descobridores das Novas Terras, material este, que encanta por sua beleza plástica, por sua imaginação e mesmo ingenuidade, e surpreende, pelo número de informações e registros, ainda que meio imprecisos e incompletos.

2. Tipos de ocupação “É um assunto de reflexões singulares este do estudo do aprovisionamento de um país em cidades. Como uma região se proveu de aglomerações urbanas? Como nasceram elas, onde se instalaram, por que progrediram? Como se cria uma rede urbana, eis um estudo que é difícil de abordar nos nossos países da Europa e é, entretanto, um dos mais curiosos problemas que apresenta a Geografia Humana” (Deffontaines, 1944, 1). Com este pensamento, Pierre Deffontaines lança a questão sobre quais teriam sido os critérios que fizeram surgir em determinadas localidades do Brasil suas vilas e cidades, quais teriam sido as determinantes que direcionaram a escolha dos pontos iniciais que teriam dado origem a um povoado. Para tanto, divide e classifica a origem das cidades no Brasil como tendo sido consequência de determinados tipos de ocupação, ou seja, estão diretamente relacionadas aos assentamentos surgidos como:  Reduções;  Aglomerações de origem militar;  Cidades mineiras;  Cidades nas estradas: pousos;  Cidades da navegação;  Cidades-estações ferroviárias;  Bocas de sertão;  Patrimônios religiosos;  Patrimônios leigos.

Assim como Deffontaines, Aroldo de Azevedo (1956, 37) também procurou entender quais teriam sido os tipos de embriões de cidades que deram origem às primeiras vilas e povoados no Brasil, classificando-os como:  Lugares fortificados e postos militares;  Aldeias e aldeamentos de índios;  Arraiais e corrutelas;  Engenhos e usinas;



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 Fazendas e bairros rurais;  Loteamentos rurais: patrimônios e núcleos coloniais;  Pousos de viajantes e estações ferroviárias.

3. Por ato voluntário ou espontâneo Francisco Andrade (1966, 39), em um extenso trabalho, considerou a implantação urbana territorial com o estabelecimento de núcleos de povoamento, quer “seja por um ato voluntário da autoridade, quer seja pela ação espontânea dos primeiros colonizadores”. Segundo Francisco Andrade (1966,41), “por atos espontâneos, incluímos a ação não necessariamente programada, individual ou coletiva dos povoadores, responsável pela conquista territorial do país. Os núcleos de povoamento assim surgidos tinham, muitas vezes, caráter provisório e instável e se estabeleceram como resultado de um ato de rebeldia, de exploração agro-pastoril desordenada ou, ainda, da exploração mineradora turbulenta e itinerante. Em inúmeros casos resultaram da fuga à opressão ou do medo ao indígena”. Com estas considerações, desenvolve um estudo baseado na trajetória histórica, analisando, em cada período, o fator relevante que deu ensejo à fundação de vilas e cidades.

Para Andrade, os primeiros núcleos de povoamento obedeciam a certo número de etapas:  Feitorias fortificadas e abrigos para refresco e abastecimento;  Vilas de senhorio, originadas da divisão territorial em capitanias de terra, destinadas ao povoamento, à posse territorial, por sua vez resumida em quatro fases bem caracterizadas; ‡

Estabelecimento do homem na terra em caráter definitivo, entrelaçando-se o povoador e o gentio da terra;

‡

Submissão do gentio hostil e a expulsão do corsário;

‡

Expansão da lavoura e da produção agrícola, consequente à paz de 1549, no norte, e a de 1567, no sul;

‡

Organização da vida urbana, coincidente, no norte, com o estabelecimento do primeiro governo geral.

 Vilas Reais, fundadas e erigidas pelo Governo Geral. Ao todo, foram 51 governadores, em um longo período de 259 anos, de 1549 a 1808, de Tomé de Souza ao Conde dos Arcos. Esta fase foi por Andrade dividida em duas fases: ‡

1ª fase: Ciclos das fortalezas da costa e dos fortes fronteiriços, que se divide em três grandes ciclos:  Ciclo das fortificações da costa norte;



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 Ciclos das fortalezas da costa sul;  Ciclo das fortificações fronteiriças de oeste. ‡

2° fase: Catequese e Assistência religiosa – processo de urbanização que surgiu da necessidade de conquistar almas para a Igreja Católica.

4. Por suas funções Em 1968, João Boltshauser (1968, 8) procurou também elaborar sua classificação, considerando que “o fenômeno urbano nas Américas corresponde às várias funções que as cidades desempenham”. As vilas e cidades surgidas no Brasil estão diretamente relacionadas às suas funções:  Função militar (bases de operação e de defesa contra ataques dos indígenas ou de colonos rivais ou de piratas);  Função administrativa (sedes dos governos locais);  Função de extração e exploração (centros de aproveitamento das riquezas minerais ou agrícolas);  Funções comerciais ou de transporte, quando a colonização avançou para as grandes áreas internas;  Função industrial, por ocasião da revolução industrial iniciada no século passado e, ainda, algumas funções secundárias:  Função recreativa (estações de cura e de repouso),  Função educativa (centros de instrução),  Função religiosa (locais de peregrinação).

5. Por sua localização João Boltshauser, ainda no mesmo trabalho, propõe outro critério de classificação para as cidades nas Américas, de acordo com sua localização, em função da qual as cidades assumiram determinadas características:  Cidades em ilhas – traduzem, por sua localização, a preocupação inicial de defesa.  Cidades em colinas (acrópoles) – a localização dos núcleos habitados no alto de colinas apresentava maior segurança e era fator essencial quando se tornavam prováveis os ataques por parte dos índios ou dos inimigos externos.  Cidades à beira-mar – foram de início todos os pontos de desembarque dos conquistadores espanhóis e portugueses e dos colonos europeus que vinham às Américas.  Cidades à margem de rios – os cursos dágua foram usados como vias de penetração largamente abertas, em geral, para o interior do continente. Era lógico que ao longo de suas margens se



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estabelecessem pontos de parada para descanso e abastecimento, ou para contornar obstáculos existentes, como cachoeiras e corredeiras.  Cidades à margem de lagos – não são comuns, na América do Sul, devido ao fato de os lagos situarem-se em regiões inóspitas, não tendo surgido junto a eles centros urbanos importantes.  Cidades de planícies – geralmente apresentam a possibilidade de livre expansão em todas as direções e do emprego de qualquer tipo de padrão urbano, embora nas Américas seja este tradicionalmente, o de ruas ortogonais e de rígido traçado geométrico.  Cidades de montanhas – no Brasil, são cidades de montanha todas as que se acham situadas para dentro da extensa muralha da Serra do Mar, e geralmente apresentam sistema de ruas irregulares, acompanhando as encostas e desviando-se dos obstáculos que se apresentavam.

6. Pelos interesses econômicos Em outra classificação, de Paulo F. Santos (2001, 81), a formação de vilas e cidades no Brasil esteve condicionada por fatos de interesse econômico, que orientaram o surgimento de núcleos urbanos em lugares específicos:  Cidades de afirmação de posse e defesa da costa e cidades do litoral em geral, fundadas principalmente nos dois primeiros séculos, do extremo norte ao extremo sul, a maioria das quais tendo tido como base econômica principal o açúcar; outras, não passando de praças-fortes, cuja localização dependeu quase exclusivamente de conveniências estratégicas;  Cidades de conquista do interior, em que se incluem as do bandeirismo e de mineração, com as quais se fez, do primeiro ao terceiro século, a fixação do homem no sertão;  Cidades de penetração rumo às fronteiras oeste e sul, cuja fundação ou desenvolvimento resultaram, no terceiro século, dos propósitos de conter eventuais investidas dos castelhanos e dos trabalhos que se completaram com os tratados de limites com a Espanha;

Existem também outros estudos sobre o assunto, como o trabalho de Capistrano de Abreu (1982), um dos precursores do estudo sobre a formação da rede urbana no Brasil, em 1907, que considerou os 300 anos de colonização, destacando o isolamento da escassa e dispersa população de composição mestiça; o trabalho de Plínio Salgado (1978), que trata da formação das principais cidades brasileiras, não se detendo mais profundamente sobre o assunto da urbanização no Brasil; e o livro de Nelson Omegna (1961), uma análise da cidade colonial, com sua estrutura, aspectos sociais, dando muita ênfase aos costumes da época, todos, no entanto, sem apresentarem uma classificação das vilas e cidades surgidas no Brasil.



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7. Uma primeira classificação Somando, assim, os critérios acima mencionados, para uma classificação de como surgiram as cidades no Brasil, podemos estabelecer a seguinte ordem: de modo geral, podemos dividir em dois grandes grupos, os assentamentos surgidos no litoral e os no interior: 1. No litoral ‡ Feitorias ‡ Vilas de Senhorio ‡ Agrupamentos de origem militar 2. No interior ‡

Arraiais e Pousos – espontâneos:

‡

Arraiais de mineração

‡

Beira de caminhos e vias de comunicação: bocas de sertão

‡

Pousos

‡

Caminhos de bois – curral

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Às margens de rios

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Patrimônios

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Religioso

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Patrimônio leigo

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Vilas e aldeamentos – intencionais:

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Reduções – Catequese e assistência religiosa

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Acampamentos militares e Fortes em fronteiras avançadas – bocas de sertão.

8. Classificação das vilas e cidades no Brasil colônia - uma nova abordagem Até aqui, tudo o que temos, são classificações das vilas formadas no Brasil colônia vistas sob o ponto de vista de sua função e de sua localização. Para irmos um pouco mais além nesta discussão, vamos propor que as vilas e cidades elencadas acima sejam classificadas segundo sua ordenação espacial, ou seja, vilas e cidades planejadas ou não. O ponto inicial desta argumentação foi o capítulo quatro, “O Semeador e o Ladrilhador”, que Sérgio Buarque de Holanda (1995, 93) brilhantemente apresentou em seu “Raízes do Brasil”, abordando, com a metáfora do semeador e do ladrilhador, os tipos de urbanismo adotados por portugueses e espanhóis no século das grandes navegações. Sérgio Buarque define que são cidades “ladrilhadas” as nascidas segundo o sistema de ordenação urbana espanhol, que adotou um desenho ortogonal para as vilas na América. As cidades semeadas seriam as dos portugueses, surgidas



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espontaneamente, plantadas ao sabor dos interesses particulares de cada local e momento. Assim, generalizando, os espanhóis planejaram as suas vilas e cidades, enquanto no Brasil os portugueses agiram com um alto grau de desinteresse e descuido, deixando que as vilas e cidades se formassem de modo aleatório e espontâneo. Generalizações à parte, o que se pode realmente afirmar é que esta é apenas uma meia-verdade.

Deste modo, com base na intensa classificação aqui apresentada por diversos estudiosos, levando em conta as considerações sobre o surgimento das inúmeras vilas e cidades em solo brasileiro, pode-se, por fim classificá-las dentro de dois grandes grupos: 1. Cidades “semeadas”; 2. Cidades “ladrilhadas”:

8.1. Cidades semeadas D Feitorias: Surgidas de fortificações para defesa da costa e como entrepostos comerciais para o embarque do pau-brasil e armazenagem dos bens provindos da Metrópole, não tiveram nenhuma ordenação física, sendo de início uma porção de solo cercada por uma paliçada, em cujo interior as construções se distribuíam segundo o terreno e a necessidade. E Vilas de Senhorio: surgidas segundo interesses de ocupação por conta da instituição das Capitanias Hereditárias no Brasil. Seu assentamento se deu na primeira metade do século XVI, em busca de providenciar um abrigo imediato para os novos colonos que aqui chegaram sempre movidos por interesses particulares. Não possuíam qualquer legislação normativa, não havia a intenção colonizadora ou intenção de ocupação e fundação da vila. As cidades deveriam ser construídas com os recursos próprios e particulares de cada donatário. Diante deste quadro, as vilas surgidas, não contaram com um plano de ordenação prévio, foram uma consequência do caráter da ocupação. F Agrupamentos de origem militar: surgindo como fortalezas, as vilas que surgiram se amoldaram ao entorno, com casas construídas por pessoas que buscavam na proximidade do forte a sua proteção. Foi um assentamento espontâneo, não tendo tido nenhum plano organizado para sua implantação. G Arraiais de mineração: surgiram de maneira espontânea onde quer que houvesse algum veio aurífero a ser explorado. Como a grande maioria das minas de ouro, principalmente as de Minas Gerais, se localizavam em terrenos bastante acidentados, em encostas de morros, com a extração do minério nos rios e córregos no fundo de vales, o assentamento destes arraiais, além do descuido com a ordenação física, se adaptavam ao terreno, acompanhando a topografia local, na aparente desordem, tão típica desse tipo de assentamento. H Beira de caminhos e vias de comunicação: surgiram de maneira espontânea, acompanhando a sinuosidade dos caminhos, eram mais pontos de apoio e postos avançados de abastecimento que atendiam às necessidades dos poucos aventureiros rumo ao sertão do Brasil. I Bocas de sertão: os pousos – como as vilas à beira de caminhos, os pousos ou bocas de sertão surgiram da necessidade de penetração interior adentro, se colocando em encruzilhadas, pontos



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estratégicos, medidos por dias de caminhada, quando ao cair da noite os viajantes procurassem abrigo e pousada. J Caminhos de bois: curral – assentamentos surgidos de forma espontânea, em finais de caminho por onde se conduzia animais, principalmente tropas de mulas e boiadas. Sua localização somente atendia aos usuários do caminho, que por vezes terminava em alguma feira, onde o comércio dos animais era realizado. Não tendo nenhum outro interesse envolvido, em seu surgimento além do comercial, não apresentou nunca uma ordenação urbana que se aproximasse de algum traçado préestabelecido. K Às margens de rios: surgido em função das circunstâncias e das necessidades imediatas de comunicação com o interior, se situaram junto às margens do rio, a alguma vau ou ponto onde se pudesse fazer alguma baldeação. Também se estruturaram de maneira espontânea. L Patrimônio religioso: surgidos no interior das sesmarias, na junção de terras de alguns senhores, tiveram como ponto inicial e motivo para sua implantação a construção de uma capela. Apesar da presença religiosa, esta se dava de maneira esporádica, e não sendo esta a idealizadora e estruturadora do povoado, este crescia ao redor da igreja, em função dos interesses e solicitações dos moradores, que disputavam os lotes frente à praça, e junto à igreja. O espaço físico não foi deste modo ordenado segundo critérios comuns às ordens religiosas. M Patrimônio leigo: uma das variações do patrimônio religioso – surgiram em função de interesses comerciais, sendo sua ordenação física realizada também de maneira espontânea.

8.2. Cidades ladrilhadas D Reduções: Catequese e assistência religiosa: surgem a partir da construção de um convento ou igreja por uma ordem religiosa, interessada em evangelizar os indígenas e estruturá-los segundo o de modo cristão, em uma vila “civilizada”. Estas são na verdade as primeiras vilas surgidas no Brasil colônia que tiveram desde o início intenção de se desenvolver segundo um plano ortogonal. E Acampamentos militares e Fortes em fronteiras avançadas: bocas de sertão: assim como as anteriores, se estruturaram segundo um traçado axadrezado, que tinha suas origens nos conceitos urbanísticos da Grécia antiga.

Como uma conclusão desta classificação, fica a constatação de que se o colonizador, o explorador, o bandeirante, o aventureiro, o minerador e o mercador foram os semeadores de arraiais, vilas e povoados, as ordens religiosas e as instituições militares foram os ladrilhadores das vilas e cidades no Brasil colônia. Planejamento houve, não restam dúvidas, e intenções urbanísticas preencheram as preocupações de alguns fundadores de cidades, implantando de acordo com a época e seus objetivos, modelos em moda na Europa. Na verdade, em se tratando do urbanismo desenvolvido no Brasil, com a qualificação de cidades “ladrilhadas” está-se apenas querendo empregar este termo para os assentamentos urbanos surgidos segundo um plano geometrizado de ruas ortogonais e quadras regulares, mas não na mesma medida e



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apuro urbanístico dos espanhóis, que levaram ao extremo tal desenho, aplicando uma ordenação em tabuleiro de xadrez com quadras rigorosamente iguais e ruas distribuídas nos ângulos da praça, como determinavam as normas urbanísticas espanholas. No entanto, o tipo de urbanismo aqui empregado, em nada desmerece tal título, que deve, sem sombras de dúvidas, ser dado, em primeiro lugar, às ordens religiosas, em segundo, à conscientização por parte da Coroa da necessidade de se ordenar as vilas e cidades na América, sendo o grande responsável pela ordenação urbana nas Américas, a assimilação inconsciente do tradicional urbanismo hipodâmico surgido na Grécia antiga.   Referências bibliográficas Abreu J (1982) Capítulos de história colonial (1500 – 1800) & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil, Editora Universidade de Brasília, Brasília. AndradeF (1966) Subsídios para o estudo da influência da legislação na ordenação e na arquitetura das cidades brasileiras, Tese apresentada para concurso de cátedra na Escola Politécnica de São Paulo, São Paulo. Azevedo A (1956) Vilas e Cidades do Brasil Colonial, Boletim nº 208, Geografia nº 11, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo. ______Embriões de cidades brasileiras, Separata do Boletim Paulista de Geografia, n. 25, mar. 1957, São Paulo, 3169. ______ Arraiais e corrutelas, Separata do Boletim Paulista de Geografia, n.27, out.1957, São Paulo, 3-26. ______ Aldeias e aldeamentos de índios, Separata do Boletim Paulista de Geografia, n. 33, out. 1959, São Paulo, 2340. Boltshauser J (1968) Noções de Evolução Urbana nas Américas, 3 v., Faculdade de Arquitetura da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte. Deffontaines P (1944) Boletim Geográfico. Conselho Nacional de Geografia, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, n. 14, 141-148, n. 15, 299-308. Delson R (1997) Novas Vilas para o Brasil-Colônia: Planejamento espacial e social no século XVIII, Ed. Alva-CIORD, Brasília. Ferreira M (1999) História do urbanismo no Brasil, 1532 – 1822, RG Editores, São Paulo. Gandavo P (1924) I - Tratado da Terra do Brasil, II História da Província Santa Cruz, Edição do Annuario do Brasil, Rio de Janeiro. Holanda S (1995) Raízes do Brasil, 26. ed., Companhia das Letras, São Paulo. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2000) Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Jurandyr P. Ferreira (org.), versão original em 32 v., 1958. Versão digital, edição fac-similar, 18 v., IBGE, Rio de Janeiro. Leite S (1937) Páginas de História do Brasil, Tomo I, Livraria Portugália, Lisboa, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro. Lima R (1990) Pequena História Territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas, Fac-simile da 4. ed., Secretaria de Estado da Cultura, São Paulo. Marx M (1980) Cidade Brasileira, Melhoramentos, EDUSP, São Paulo. ______. Cidade do Brasil - Terra de Quem? São Paulo: Edusp/Nobel, 1991. Morse R (1970) Formação histórica de São Paulo: de comunidade a metrópole, Difusão Européia do Livro, São Paulo. Morse R (1971) La investigación urbana latinoamericana: tendencias y planteos, 3 v., Nueva Visión, Buenos Aires. OmeganaN (1961) A cidade colonial, José Olympio, Rio de Janeiro. (Documentos Brasileiros, 110).



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As Formas do urbano na cidade histórica em Galícia Xose Lois Martínez Suárez Escola Técnica Superior de Arquitectura, Universidade da Coruña Campus da Zapateira, Plaza do Campo da Fraga. Telefone/fax: 00 34 981167000 - 00 34 661702236 [email protected] 

 Resumo Trata-se de mostrar a investigação realizada na Area de Urbanística e Ordenación do Territorio da Escola Superior de Arquitectura da Galicia sobre diferentes núcleos urbanos representativos da Galicia urbana ata o século XIX. O trabalho desenvolvido durante as duas últimas décadas ressalta a importância dos estudos de análise urbana com o objetivo de interpretar os contidos da condição “urbana” nos diversos exemplos analisados. 1.- O tempo do “urbano” (séc. XII-XIII) e os agentes implicados no processo de criação de “âmbitos” forais. 2.- A escala territorial Parte-se como hipótese de trabalho da necessidade de identificar os elementos da grande escala territorial precisos para articular o urbano em torno a um discurso mais amplio. 2.1.- Território e cidade na Galicia urbana seriam uma das primeiras aproximações, na procura e identificação das pautas implícitas nos inícios do processo de urbanização da Galicia urbana medieval. Quanto há de “reflexo” duma cultura urbana europeia em expansão continental e quanto de específico na seleção dos âmbitos territoriais nos que desenvolveram-se os assentamentos. 3.- A escala regional. Um segundo nível de aproximação situa-se no âmbito das regiões geográficas concretas. 3.1.- A Galicia urbana interior. 3.1.1.- As cidades episcopais. 3.1.2.- As cidades do Caminho de Santiago. 3.1.3.- As vilas e cidades fronteira. 3.2.- A Galicia urbana litoral: as cidades de realengo. 3.2.1.- A marinha Lucense. 3.2.2.- O arco Ártabro. 3.2.3.- As Rías Baixas. 4.- Por último, o urbano concebido como âmbito de desenvolvimento de “novas relações” ao longo do tempo precisa da fixação de limites físicos que acotam um espaço no interior do que se explicitaram as novas regras de conformação do construído. Tratara-se de proceder nas diferentes escalas territorial, regional e urbana a análise das morfologias urbanas e dos tipos arquitetônicos que conformam a identidade de alguns dos centros históricos das cidades galegas na atualidade. Palavras-chave Forma, urbano, Galícia. PNUM 2016 151

Vivemos uma etapa máis num longo processo de antropizacion na que a relação home-médio tense desenvolvido com singularidades, derivadas da condição específica duma sociedade assentada num médio natural com imensas potencialidades simultaneamente fechada num entorno limitado nas relações e contatos exteriores, dada a condição de fisterre atlântico até o passado século.

Uma sociedade rural, inserida numa economia de subsistência de autoconsumo, com um tipo de povoamento que no último milênio foi extraordinariamente eficiente para os grupos de poder feudal (de senhorio religioso ou laico) num processo de colonização extensiva duma terra fértil, que nos séculos XIIXIII iniciaria um processo inserido na experiência urbana empreendida na Europa medieval.

Um número reduzido de cidades (episcopais, de realengo ou de senhorio laico), dezenas de pequenas vilas e entorno a elas milheiros de pequenos núcleos aldeãs que se mantiveram num aparente equilíbrio bastante afastadas dos grandes conflitos e tenções dum "mundo" urbano desenvolvido entorno ao Mediterrâneo.

Conflitos justificados polo poder, por questões religiosas, ou por razões dinásticas que se disputavam de jeito violento o território.

Lutas polo poder econômico e a hegemonia política das diferentes facções eram moeda comum num continente no que os câmbios na Galícia medieval, vai ligada ao restabelecimento do comercio atlântico, á lenta emergência dumas fracas burguesias sometidas á nobreza e ao clero, e á maduração a partir das práticas soluções tipológico-arquitectônicas e de morfologias urbanas experimentadas nas exemplares experiências das "cidades góticas" na Europa medieval. Todas elas baixo a urdume do cristianismo.

Um fenômeno no que não há que esquecer a presencia no centro e sul da península das cidades de matriz muçulmana desenvolvidas ao longo do Mediterrâneo constituindo os grandes núcleos urbanos nos que a cultura se expandia em todas as direções também no arquitetônico e no urbanístico.

Em Galícia, as cidades episcopais, (Santiago, Lugo, Ourense, Tui e Mondoñedo), todas no interior, mostravam os volumes das catedrais emergindo como fortalezas, os contentores dos palácios episcopais e os conventos a eles anexos, símbolos todos do poder e manifestação da capacidade de organização duma milenária instituição religiosa que dominava os territórios estendendo se até a mais remota das aldeias a partir da freguesia.

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Catedrais, conventos, elementos claves para a compreensão do fenômeno urbano em Europa, que tiveram em Galícia uma atitude extrativa, parasitaria, de acumulação durante séculos da maior parte da renda agrícola dum território colonizado e trabalhado ata o esgotamento por uma sociedade de servos que, na crença firme de se encontrar na etapa terreal do caminho ao paraíso celestial, era aleccionada desde os púlpitos na submissão a un ordem e na obrigada renúncia a modificá-lo só pena da condena eterna. Uma atitude de acatamento duma “ordem natural” e aceitação do reparto desigual dos recursos, da persistência das desigualdades.

Esta organização todo-poderosa e fortemente jerarquizada, centralizada em Roma, com Santiago de Compostela como indiscutível sé metropolitana, com capacidade de promover nos seus domínios territoriais o nascimento de vilas e cidades de senhorio eclesiástico, promove uma universidade na que formar elites do poder divino e terreal, de enquadrar a milheiros de homes e mulheres sujeitos aos votos de obediência, de castidade e de pobreza num clero regular ou secular distribuído ordenadamente por freguesias, colexiatas, arciprestazgos, dioceses nas cidades, vilas, aldeias, nas fortalezas e pazos de todo o pais.

Um grupo dirigente complementário co poder real e nuns senhorios laicos conscientes da fortaleza e da capacidade operativa da instituição religiosa, da que foram fiéis aliados, e cós que nos âmbitos territoriais respectivos reproduziam ao "jeito europeu" a criação de vilas e cidades de Realengo (A Coruña, Betanzos...) e de senhorio eclesiástico (Pontevedra) ou civil (Monforte).

A ETAPA CONSTITUÍNTE DA GALICIA URBANA ACTUAL.

Nos séculos XII e XIII inicia se, o que podemos denominar a "etapa constituinte" da historia urbana de Galícia da que o momento atual é um capitulo mais no processo de urbanização e de hegemonia do "urbano" no território. Si excetuamos as velhas civitates, a prática totalidade do que hoje consideramos conjuntos históricoartísticos tem nestas datas o seu ponto de partida, momento da proliferação de iniciativas do poder: - delimitando âmbitos espaciais precisos, diferenciados fisicamente (com um limite cercado e/ou amuralhado, e um alfoz ou território de domínio) e - dotando com um estatus jurídico próprio (foral) que num breve período de tempo se van multiplicar polo que constitui um signo geográfico diferencial do pais: o litoral. Galícia é inintelixible sem a sua característica diferencial, os 1200 km de costa, que se converteram em lugares por excelência da "Revolução Urbana Medieval":

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Noia (1158), Pontevedra (1169), Ribadeo (1182), Viveiro (1199), A Coruña (1208), Betanzos (1214), Ortigueira (1255), Pontedeume (1270), Muros (1286), Ferrol, Neda, Redondela, Baiona... têm em comum a sua condição de "litoralidade”.

  Figura 1. O sistema urbán galego

 Emprazadas nas Rias (cidades/vilas de fundo de ría e cidades/vilas de boca de ría) numa situação bem diferente á das cidades episcopais do interior, o seu ato fundacional constitui o início dum processo primeiro de "achegamento" e séculos depois de "deslocamento" da povoação cara ao litoral coo ressurgimento duma rede comercial de transporte marítimo entre as cidades do Norte Europeio e do Mediterrâneo e que se põem em evidencia na incorporação das cidades/vilas galegas litorais a uma rede côa que se inicia o despegue da Galícia urbana.

Haverá outras cidades e vilas: Vilas-caminho (Melide, Arzúa, Sarria...) de morfologia lineal apoiadas no antigo caminho de peregrinação cara o fisterre atlântico, reconvertido no século IX no Caminho de Santiago, e Vilas-Fronteira (Monterrei, Salvaterra...) promovidas por razões político-militares como consequência da independência de Portugal. PNUM 2016 154

Em todas manéjanse elementos e relações próprios dum "jeito medieval de fazer cidade" na Europa que pertence ao que damos em chamar Teoria Urbanística Medieval: um âmbito delimitado (muralha), com uns pontos de acesso e controle (portas), e no interior uns pontos fortes localizados estrategicamente (os edifícios especializados: catedrais, igrejas paroquiais, fortalezas), rodeadas por um tecido homogêneo conformado a partir duma "parcela básica" (a parcela gótica), sobre a que se construirá "um tipo arquitetônico básico" (a casa gótica), que dispõe da capacidade de incorporar numa agregação ordenada formando ringleiras simples ou duplas, que se constituíram num dos elementos intermédios entre a casa e a cidade próprios da experiência Europeia: o quarteirão compacta ou o quarteirão com pátio.

  Figura 2. Quarteiroes compactos e quarteiroes com patio, A Coruña. Francisco Montaigú, 1723 (fragmento)

 Um sistema viário de ruas, travessas, cantons, e uma proliferação de pequenas praças mercantis (farinha, leite, peixe, lenha, pão, erva, ...), religiosas (paroquiais, conventuais) ou institucionais (ligadas ao Consistorio) completariam a paisagem urbana.

Todas têm um reduzido tamanho: Compostela (20.000 habitantes no século XIX) é a grande cidade galega por excelência fechada numa elipse de 750m e 550m de diâmetro (30 Has).

Pontevedra com 600m por 300m (18 Has), Lugo um óvalo de 700 e 550m de diâmetros (37 Has), Ourense (15 Has) de 700m de longitude e 250m de largura em fin A Coruña com um núcleo de 350m de diâmetro e um longo arraial marinheiro de 800m por 200m (entorno a 25 Has). 

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Figura 3. A Coruña: Praças 

 No entorno os campos comunais, e além a imensidade dum indefeso rural de pequenas aldeias e lugares rodeados pólas terras agrícolas e submergidos na espessura dos montes e na impenetrabilidade de bosques percebidos como lugares da insegurança. PNUM 2016 156

Nalguma das vilas e cidades portuárias, observasse um aumento povoacional e um lento crescimento superficial de jeito perceptível.

Nas proximidades dum "núcleo duro inicial" entorno á Igreja e o adro (Santa Maria na Coruña, Pontevedra, Betanzos...) podemos observar "morfologias urbanas" próprias de extensões de origem medieval, podendose identificar tecidos homogêneos nos que o traçado viário, a divisão parcelaria e o "tipo edificatorio" respondem a similares "comportamentos urbanísticos".

Apoiando-se num "trajeto matriz", um caminho preexistente cara um "ponto forte" ou polaridade (igreja, mercado), observa-se a cadencia rítmica das embocaduras das denominadas travessas (entre 20 e 25m em Pontevedra, 15m em Noia, 12,5m em Ferrol, 15m em Betanzos, 30m na Coruña) traçadas com um paralelismo irregular adaptado as preexistências e deformações do terreno, pero em todo caso longe da "espontaneidade" e irregularidade doutros comportamentos urbanísticos.

O "tipo edificatorio básico", a casa gótica, disponse en "ringleira" (simples ou doble) sobre um parcelario (parcela gótica) que adota ser perpendicular ao eixo viario, conformando quarteiroes compactas que no tempo alcançam ata160 metros de comprimento (Pontevedra).

Há cidades e vilas marinheiras nas que outro "comportamento urbanístico" homogêneo alcança também a outras áreas urbanas: Nos tecidos da Coruña e Noia no seu acesso mais importante observa-se como as vias de acesso voltam a jogar um rol de "trajeto matriz" a partir do que se implantam ruas paralelas. Nestes casos os traçados viários têm uma curvatura na a referência é a ordem natural da antiga línea costeira.

Pontedeume no seu parcelario percebe-se como uma criação urbana planificada, pois a regularidade manifesta-se com grande claridade entorno a axialidade do caminho do que a velha Ponte Medieval (seculo XIII) passou a formar parte. PNUM 2016 157

  Figura 4. Pontedeume

  UMA NOVA VISAO DO MUNDO. Mais o nascimento duma nova visão do mundo, modificou de pleno o "status quo" da situação de Galicia. PNUM 2016 158

Abriuse assim uma etapa da Modernidade da que emergiria um novo ordem nas relações internacionais: Nos séculos XVI e XVII converteram o Océano Atlántico no grande cenário das confrontações armadas polo seu controle.

A costa de Galicia passou de ser um território finisterran a ser vista pólas sucessivas monarquias absolutas como uma "fronteira militar" que ao longo dum amplo litoral de rias-refuxio, como primeira línea dum potencial campo de batalha: era necessário modificar o "modelo territorial e urbano" de origem medieval. Esta tarefa desenvólvese desde o século XVI (o traslado em 1564 á Coruña da Capitanía General do Reyno de Galicia) a partir da consciência do alcance da “súbita aparição" do “novo mundo" transoceânico.

O câmbio da escala que conleva a presencia do "novo mundo" e o caráter extrativo do modelo operativo que lideram os países europeus remata côa criação dos novos impérios coloniais e o desplazamento das "centralidades" no novo "espaço global" cara as ribeiras do Atlántico. Na escala Europeia as cidadescapitáis litoráis convertense em Metrópolis coloniais: Paris, Londres, Amsterdam, San Petersburgo, Lisboa, protagonizam todas elas os grandes momentos no urbanismo e na arquitetura barrocos, e desplazando do foco mediático as capitais renascentistas: a Rebuilding Act de Londres (1667) e o posterior Londres Georgiano (XVIII), a Lisboa Pombalina (1756), o Plan de Amsterdam (1613), San Petersburgo como nova capital de Rusia (1737)...

A monarquia absolutista espanhola, mantivo a sé do poder en Madrid, placenteiramente instalada na centralidade e solidão da estepa, de 300 a 600 km das fronteiras litorais peninsulares. Isto permitiríalle prescindir de muralhas defensivas e fazer jogar este rol as cidades litorais.

Galícia é o paradigma desta atitude: o Poder Real vai propiciar durante 300 anos iniciativas de índole exclusivamente militar nas cidades de Realengo ou outras cidades e vilas litorais iniciam a sua conversão em máquinas de guerra, desenhando e ampliandoas com novas muralhas e fortificações, construindo castelos nas rias donde se emprazam.

Durante 300 anos, desde o XVI ata mediados do século XIX passaram a ser consideradas "plazas fortes”, e os esforços econômicos van destinarse a especializalas em cumprir o rol de cidades-fortaleza ao serviço da lógica militar do Império espanhol. PNUM 2016 159

A hegemonia da lógica da guerra aplicada nas cidades galegas do litoral desencadeou gravíssimas consequências comerciais, econômicas e humanas tendo como "efeito colateral" as indubidabeis aportações dos Enxenheiros Militares coa "ciencia da cartografía", que como corpo de elite ao servicio da Monarquía absolutista, procederon a realizar levantamentos precisos das Plazas Fortes redactando múltiples proxectos de amuralhamento e de extensao de “novas poblacións”.

Tal foi a importância estratégica das rías galegas que no século XVII e mais tarde no XVIII na tarea de modernização do estado e de reordenação Borbónica dos Exércitos, as Rias de A Coruña e Ferrol serão os espaços por excelência das experiências fundamentais no que se refere á novas concepção urbanísticas e utilização de novos instrumentos de controle da forma urbana inaugurándose em Galicia “outro jeito de construir cidade”, outra forma de "fazer a Galicia urbana", que ao tempo que afiança o protagonismo á Galicia Atlántica sobre a Galicia interior, visibiliza os novos princípios da racionalidade cartesiana aplicados com todo rigor tanto na criação urbana como na transformação do espaço urbano existente.

O interesse polas questões urbanas presente em París desde inicios do XVII ("servitudes spetial d'architecture", "ordonances", operacions de "embellissement partial", alargamento e alinhamento de ruas, infraestruturas de pavimentação de ruas, redes de saneamento, de abastecimento de agua, alumeado, vexetacion, ...) e de ahi, a consciência polo poder Real da importância “mediática” da forma urbana, na sua condicion de máxima autoridade sobre as Plazas Fortes xenerará uma ampla produção cartográfica tras da que se encontram os engenheiros militares.

Na Ría da Coruña, lugar de localização da Capitanía General do Reyno de Galicia, sé dos Reales Correos Maritimos A Coruña-Falmouth (1689 ), sé do Real Consulado Marítimo e Terrestre (1742) con funções diretivas e comerciais dos portos galegos e das suas relações coas colonias ultramarinas, e mais tarde co Reglamento de Libre Comercio (1764), redactaránse proxectos de extensão urbana (1702, 1726, 1736, 1774, 1776 etc), de urbanização (1740,1741) e d'embellissement da fronte marítima (177980).

Na Ria de Ferrol, convertida na sé da capital do Departamento Marítimo do Cantábrico e do almirantazgo, levantarase uma nova cidade proxectada entre 1750 e 1774 como "Nueva poblacion". Esta decisão esixirá uma renovação das "infraestructuras territoriáis" de conexion coa Metrópoli: Madrid, o lugar do poder, aillada no interior da península, a centenares de kilómetros das fronteiras peninsulares.

A cultura e fortificação das cidades a partir dos modelos teóricos desenvolvidos polos tratadistas italianos ou franceses (Vauban) nos séculos XVI e XVII, fanse presentes nesta nova etapa do "urbano" en Galicia:

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A Coruña (1702), O Ferrol (1728), Ons, Vigo e Baiona são um mostrario da cantidade e calidade técnica das propostas desarrolladas e o esforzo concentrado na "questão militar" da Galicia litoral no XVII e XVIII.

No século XVIII emerxerán iniciativas e atividades económicas (arsenal e asteleiros, complexo siderúrxico de Sargadelos, fábricas de mantelería, xarcia, tabacos...) que ao tempo que mostran os novos "inxenios" numa incipiente nova paisagem xeneran condições socioeconómicas que possibilitaram a diversificação de atividades dotando duma certa complexidade aos "organismos urbanos".

A "Nova Población" de Ferrol constituiráse dende a segunda metade do XVIII no modelo no que imitar a conceição do "urbano" no sentido moderno. Uma "cidade de Estado” promovida pola monarquía absolutista na que numa ampla superficie de terrenos agricolas vemos plasmado o ideal da cidade. Xeometria, equilíbrio, regularidade e simetria caracterizan ao conxunto.

O plano da "Nova Población", de 800 m de lonxitude e 250 m de ancha a converten no proxecto mais ambicioso xamais emprendido na historia da Galicia urbana.

Nela adoptanse os principios urbanisticos como si dum "proxecto arquitectónico" se tratara. O proxecto abarca desde a escala global da "nova povoação" descendendo a escala do edificio particular ou "unidade básica" do tecido urbano (a vivenda unifamiliar em linea), elaborando disenhos aos que someterse (ordenanzas de fachada), para conseguir ese ideal de unidade na uniformidade dos regulares e alongados quarteirões de 83,5m por 33,4m dispostos numa reticula de Ruas todas de 8,35m de largura.

A utilização dum único tipo de rua em toda a retícula, numa única parcela de 7,5m, um tipo de plaza de 83,5 por 75m e a indiferencia cos diferentes entornos no que se insire, que faz que a experiência apareça inserida dentro das práticas tardias do jogo das retículas e cuadrantes da Teoría Urbanistica Renacentista da cidade próprio da tratadística de Cataneo, e alonxada polo tanto das ricas experiencias do urbanismo barroco.

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  Figura 5. Mapa do Real Arsenal de Ferrol, 1761 (Servicio Geografico del Ejercito) e Anailsis urbano de Ferrol

 A parcela (7,5m por 16,7m) está pensada para recibir tipos edificatorios de vivendas unifamiliares de tres ocos por planta com um baixo porticado, piso e bufarda, deixando libre um pequeno patio posterior.

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Vivendas identificables polas pilastras dos seus extremos, adosadas e sometidas ao "alineamento oficial" formando quarteirões regulares nos que a figura-fondo pon em evidencia o sometimento aos "alineamentos" fixado pola reticula de ruas duma largura excepcional comparadas coas dimensões do viario das cidades galegas, pero cativa si a relacionamos coas experiencias coetâneas.

Dentro da experiência ferrolán, aparece por primeira vez na historia urbana de Galicia, dum bairro obreiro: Esteiro. Distante da "nova povoação", emprazado a carón dos estaleiros e ordenado com quarteirões co novo tipo edificatorio da casa en linea sem parcela libre, destinados a outro "grupo social": os obreiros.

A Galicia das cidades episcopáis seguiu mantendo o protagonismo demográfico a través da sé compostelán durante o século XVIII.

Santiago com 17.000 habitantes iniciará um processo de "embellisement" no entorno da catedralicio para a sua "monumentalização" a través da redefinição "ordenada" e polo tanto regularmente "alineada" coa "beleza da línea recta" nos seus limites e enfatizando o seu ailhamento respecto aos edifícios próximos a través de plazas (Quintana, Acibechería, Inmaculada, Obradoiro,...) que son "pensadas" de xeito estático em relação exclusiva coas diferentes fachadas do monumento, do gran edificio relixioso co que toda a cidade se identifica. Santiago “pretendese a catedral”. O edificio busca representar á cidade enteira.

A “monumentalizacão" do "edificio especializado" a través do "embellissement exclusivo" e "oxigenacion" no urbano circundante respecto das fachadas dos prédios próximos: um "embellissement" que afeta aos espaços vacantes do entorno em contato com ele e aos frentes das edificações existentes ou por criar. O urbano (a relação entre edifício e vácuo) é objeto de atenção prioritária como plateia num "cenário" no que o elemento por excelência impõe ao contorno próximo umas relações que permitam a súa contemplação.

Nada evidencia a procura duma intervenção a "escala cidade" que persiga a integração neste discurso da complexidade da Compostela urbana dazaoitesca.

Na imensidade da majoritária Galicia rural através dos grandes domínios territoriais mantínhase intacta a estrutura dum poder feudal como garante do irrefutable "ordem" no que o campesinato tinha assignado um rol de mero "servo-produtor" de renda agrária.

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Desenho e circunstância Mário Bonito: Bairro de Moradias Económicas da Cooperativa O Lar Familiar Helder Casal Ribeiro Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, Faculdade de Arquitectura, Universidade do Porto Via Panorâmica S/N, Telefone: 00 351 226 057 100 [email protected]

Resumo O presente trabalho propõe interpretar uma forma de fazer/entender cidade, que pretende formular uma resposta actualizada e prepositiva aos problemas do nosso tempo, através da compreensão do processo de desenho de um conjunto urbano singular, enquadrando-o na realidade portuguesa e portuense, com a discussão dos modelos urbanos e opções de projecto que lhe estão inerentes. Investiga-se o Bairro de Moradias Económicas da Cooperativa O Lar Familiar, 1950/54, de Mário Bonito, que na sua condição de conjunto informado pelas experiências urbanas modernas do centro europeu, assentes na continuidade da estrutura da cidade tradicional – a afirmação do quarteirão e da rua – reformula o discurso oficial do Estado Novo para os Bairros Económicos, mantendo, contudo, as premissas programáticas da célula habitacional individual com jardim. A representação da individualidade nos modelos urbanos impostos pelo Estado Novo será reformulada através da implementação de conjuntos de habitações em banda que conformam quarteirões estruturados por uma malha viária hierarquizada estabelecendo um diálogo entre o significado do espaço público e do espaço privado, conferindo um novo sentido à urbanidade do colectivo, determinante na compreensão e qualificação das cidades actuais. O presente trabalho integra uma investigação que incide sobre os processos de desenho dos anos 40 a 60, período experimental no panorama da arquitectura moderna portuguesa, que na tentativa de construir um discurso renovado e próprio, incorpora e reformula as premissas defendidas pelo movimento moderno, transformando um momento potencialmente anacrónico, decorrente da assimetria socio-cultural com o contexto internacional, num período fundacional para a arquitectura contemporânea portuguesa, do qual se poderão destacar temas inerentes à interpretação da morfologia urbana.

Palavras-chave Porto; cidade contemporânea; arquitectura; desenho.

A reconstrução do moderno no Porto, nos anos 50, ao contrário dos modelos urbanos de premissas modernas, não interpreta a noção de cidade de forma abstracta, o que afastará a discussão com base na realidade utópica que alimentava a transformação da sociedade de forma abrangente, através da implementação de um novo desenho urbano à custa da supressão do tecido existente, informado pela alteração no regime de propriedade do solo, privilegiando o público sobre o privado, pela reorganização funcional da paisagem e pela nova forma de habitar a casa e a cidade. A premissa da “tabula rasa” não será colocada no cenário do Porto provavelmente informada por três motivos: a concentração do investimento e da obra pública na capital, a restrição topo-morfológica inerente PNUM 2016 165

ao tecido urbano da cidade e a consciência, enquadrada pelo processo pedagógico da ESBAP – aberto às discussões da UIA e dos CIAM – da necessária revisão dos princípios do urbanismo moderno tendo em conta o habitat, ou seja, a realidade urbana concreta. O Bairro de Habitações Económicas da Cooperativa O Lar Familiar1, para um terreno sito à rua Ciríaco Cardoso, de 1950,2 com o objectivo de uma máxima rentabilidade económica, será condicionado programaticamente, pela tipologia unifamiliar imposta, e pelas características especificas de um terreno intersticial, sem ligação à estrutura viária existente. A encomenda, com a particularidade programática de “construir um bairro de moradias para os seus associados”3, não possibilitará a Mário Bonito implementar o modelo de cidade, que assenta no princípio da alta densidade com a introdução da respectiva tipologia do bloco plurifamiliar, defendidas por várias teses/comunicações no 1º Congresso Nacional de Arquitectura de 1948, com destaque para “Onde se fala da Arquitectura no Plano Nacional e do Problema português da Habitação”, manifesto do grupo da ODAM, e em sucessivas manifestações públicas.4 Contudo, o propósito da encomenda, partindo de premissas programáticas defendidas pela propaganda político-governamental e ao gosto dominante dos associados,5 será reinterpretado como um modelo urbano, que subverte formalmente o plano-tipo defendido e aplicado pelo regime,6 respondendo às condições programáticas individuais com um desenho de urbanidade colectiva a partir de princípios conceptuais e formais enraizados na Arquitectura Moderna, desenvolvidos nos anos vinte. O terreno, de configuração irregular e de topografia acidentada caracteriza-se por uma área agrícola de interstício delimitada pelos lotes que conformam a avenida da Boavista a norte, a rua Ciríaco Cardoso a nascente, a travessa de Cima, de matriz rural, a poente e campos de cultivo a sul.

A designação do projecto tem como referência a memória descritiva e o rótulo dos desenhos – CMLF. Ano de entrada do requerimento nº 8232/50 para apreciação do anteprojecto; aditamento com desenhos datados de Dezembro de 1953 (1ª fase); licença de construção nº 653, de 31 Outubro 1955; ocupação do conjunto sem licença de habitabilidade a partir de 1958. Projecto executado com a colaboração de Augusto Amaral. 3 Cooperativa “O Lar Familiar”, requerimento nº 823, de 14 Janeiro 1954, aditamento ao anteprojecto. 4 Nos anos de 1948/49 destacam-se dois momentos relevantes no debate e defesa dos ideais do Movimento Moderno no Porto: “Uma mensagem e um telegrama” que Arquitectos do Norte enviaram ao presidente da Câmara Municipal do Porto e ao presidente da Assembleia Nacional, Fevereiro de 1948 e Março de 1948, respectivamente, e a “Exposição dos Arquitectos do Porto ao Presidente da Câmara Municipal” sobre da imposição dum estilo às novas edificações, fomentada pela ODAM, Outubro 1949. 5 Em entrevista/conversa com alguns dos associados e moradores originais, confirma-se a preferência, na época, pela moradia em detrimento da habitação plurifamiliar em bloco. 6 “(...) eram subjacentes aos programas arquitectónicos de obra pública, a expressão formal de ideia de Nação e da ideia de sociedade. Conveniente a tais, propósitos, a habitação permitia, em simultâneo, a ilustração do modelo social e do modelo arquitectónico e urbano: a família modesta e digna, plena proprietária da casa própria, dotada de jardim e quintal (reminiscência de ruralidade ancestral), composta com recurso aos elementos típicos caracterizadores da “nossa casa” e ordenada em conjunto por adição parcelar, em extensão moderada, até alcançar dimensão de tecido urbano que lhe permitisse almejar o estatuto de arrumada “aldeia” na cidade.” CRVWD J  Bairros do Estado Novo, Guia de Arquitectura Moderna. Porto 1901-2001 (Coord.: J. Figueira P. Providência N. Grande)OARSN e Civilização, 3RUWR. 1 2

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A área de intervenção, sem frente directa com o espaço público, coloca dois temas urbanos chave a resolver: a definição de novas frentes para colmatar os muros dos logradouros/lotes e a ligação da malha proposta à estrutura viária existente. A definição dos pontos de contacto com a malha existente é fundamental no desenvolvimento do princípio geral de implantação com a ligação à estrutura viária a estabelecer-se em dois pontos opostos que estruturarão o desenho da malha proposta, a sua orientação e escala, com a respectiva proporção dos conjuntos edificados/quarteirões. O princípio de implantação e a respectiva volumetria dos conjuntos habitacionais interpreta a encomenda da cooperativa conjugando, conforme afirma Mario Bonito, as incidências de ordem geral com as de ordem particular7, ou seja, considerando o equilíbrio entre os requisitos do colectivo – a noção de continuidade e de conjunto da proposta – e do individual – as condições de lote e casa individual Mário Bonito desenvolverá uma proposta que contempla um modelo urbano estruturado por uma malha regular de quarteirões, constituída por dois tipos de habitações unifamiliares, de dois pisos, agrupadas em banda contínua que garantem a unidade de propriedade mas afirmam, através de um princípio compositivo e formal, a leitura de um conjunto coeso. ()igura 1) Nesse sentido, o traçado urbano estrutura-se com a implantação das habitações orientadas a nascentepoente e a introdução de uma área lúdica/jardim no centro do conjunto, como rótula urbana que articula um quarteirão central e os dois arruamentos principais que interligam a nova malha proposta à estrutura urbana existente. Os dois conjuntos centrais – quarteirão de habitação e jardim publico – apresentam-se como um núcleo estruturador da distribuição viária e da composição geométrica da malha regular, definindo dois quarteirões a norte e duas frentes que colmatam as irregularidades dos muros dos lotes existentes. O terreno, a sul, será reservado para uma possível ampliação do conjunto, com a indicação de dois futuros arruamentos que garantem a continuidade compositiva do bairro, com a definição de um quarteirão central e duas frentes a colmatar os muros dos logradouros dos lotes existentes. Assim, o princípio viário assenta na definição de uma estrutura principal que, conjuntamente com um núcleo central – constituido por um conjunto/módulo de habitações e um jardim público – estabelece a ligação com a malha existente garantindo um circuito contínuo, e uma estrutura secundária associada aos acessos dos restantes conjuntos habitacionais com as ruas/espaço público à cota do passeio, organizadas por separadores ajardinados. ()igura 2)

7 “Do ponto de vista estético o problema estaria em conjungar as incidências de ordem geral (conjunto do Bairro e tipo de agrupamento) com as incidências de ordem particular (programa das casas e sua organização funcional)” BRQLWR M m.descritiva 12 dezembro 1953.

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Esta estrutura secundária, que desenhará a ampliação a sul do bairro, hierarquiza a malha atribuindo às ruas, sem saída, um carácter mais reservado e de apoio local, privilegiando o espaço e uso pedonal. Este princípio anuncia um desenho de compromisso, entre o modelo urbano tradicional e a cidade funcional de Le Corbusier (CIAM V, 1933), cruzando a definição da unidade quarteirão com um espaço público envolvente hierarquizado funcionalmente oferecendo áreas predominantemente de uso pedonal independentes da circulação automóvel de atravessamento, isto é, de ligação à estrutura viária existente. O cruzamento destes dois modelos urbanos permite reinterpretar a sua referência principal valorizando o desenho do espaço público com um novo significado colectivo sem, contudo, retirar a importância do papel da propriedade privada na estruturação da cidade. Esta associação apresenta, ainda, um enquadramento singular, tendo em conta que, na sequência do Congresso de Bruxelas em 1930 (CIAM III), onde Le Corbusier apresenta a sua “Ville Radieuse” e onde as intervenções debatem a pergunta de Walter Gropius “Low-, mid-, or high-rise building?”, se realiza uma exposição itinerante intitulada “Rationelle Bebauungsweisen”,8 onde J. J. P. Oud apresenta o seu trabalho de Kiefhoek acompanhado por comentários de crítica sobre a falta de uniformidade da exposição solar e das curtas distâncias entre habitações.9 Esta possível interpretação, articulada com as experiências múltiplas de diálogo, ou mesmo a continuidade do tecido urbano existente, como o conjunto de Kiefhoek, serão fundamentais para compreender o significado do desenho de compromisso na procura de um urbanismo de princípios modernos. A densidade, proporção e escala do conjunto urbano proposto para O Lar Familiar por Mário Bonito, incluindo algumas soluções formais, remetem de forma clara para a proposta de Kiefhoek, no entanto, a tradição urbanística holandesa inerente à proposta de J.J.P. Oud, de malha urbana conformada por quarteirões que articulam várias direcções/eixos, com enfase na respectiva resolução dos gavetos compactos, não estará presente, prevalecendo outra referência – o purismo corbusiano. Através da leitura da sua referência urbana principal, o Bairro de Kiefhoek (1925-29), de J. J. P. Oud, poderse-á verificar o assimilar de vários temas de desenho, como o sistema viário proposto em continuidade com a estrutura urbana existente, permitindo a colmatação dos logradouros que delimitam o terreno, o significado dos espaços de uso colectivo na hierarquização da malha, a escala dos quarteirões e o sentido Exposição Rationelle Bebauungsweisen: composta por 56 plantas em suportes de alumínio, com informação complementar; as propostas são apresentadas sem indicar os autores, unicamente com a designação e localização do projecto. A uniformidade da escala e forma de apresentação criava um sentido de conjunto, atribuía uma homogeneidade a um corpo heterogéneo. As propostas são de carácter diverso, de propostas visionárias de Le Corbusier, passando por edifícios de habitação social construídos em Frankfurt, até conjuntos urbanos de habitação do século XIX em Amsterdão, Paris, Milão e Basileia. Estes últimos apresentavam no painel comentários, possivelmente escritos por Sigfried Giedion, sobre alguns dos aspectos singulares dos projectos. MXPIRUG E  The CIAM Discourse on Urbanism, 1928-1960, MIT Press0DVVDFKXVHWWV. 9 A exposição é naugurada em Zurique, em Fevereiro 1931, com a consequente itinerância pela Europa e a edição de uma publicação com o mesmo nome, em Novembro de 1931. 8

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de continuidade de desenho atribuída aos conjuntos habitacionais em banda. A afirmação destes princípios leva a soluções arquitectónicas particulares onde o desenho procura situações de compromisso sem perder a identidade pretendida para o conjunto. A proximidade programática e a semelhança das condições do terreno e das características do contexto permitem adaptar estes temas de desenho de forma quase directa; contudo, a ausência de equipamentos e comércios no programa, ao contrário do Bairro de Kiefhoek, obriga a procurar outro tema base para auxiliar a hierarquizar a malha do conjunto urbano. ()igura 3) Mário Bonito complementa o modelo urbano de J. J. P. Oud com dois novos temas, decorrentes da cidade funcional: a hierarquização do espaço público com a diferenciação do seu uso e o significado da natureza/vegetação na harmonização do conjunto. Assim, a falta de um programa de equipamento central será colmatada pela inclusão de um largo público, ajardinado e arborizado, e os comércios pontuais pela conformação de dois tipos de arruamentos e pela utilização da vegetação dos jardins privados na caracterização do espaço público e na definição dos seus enquadramentos. A importância de desenhar um sistema viário em contínuo com o existente leva a propor dois tipos de habitações10 de forma a definir um quarteirão central que, em conjunto com um largo ajardinado, funciona como rótula principal do conjunto com funções distributivas e comunitárias, respectivamente. O sistema viário apresenta uma estrutura principal de acesso ao conjunto com um perfil onde prevalece a faixa automóvel com passeios estreitos e uma estrutura secundária com um perfil que privilegia o uso pedonal de acesso às habitações em banda, com a rua desenhada à cota do passeio e organizada com faixas verdes centrais. 11 A concepção de uma quadrícula que desalinha os diversos quarteirões, de forma a enquadrar o vazio do logradouro e a valorizar os respectivos jardins – arborização e vegetação –, desenha um sistema visualmente aberto, utilizando o domínio privado como elemento de composição do público, ou seja, a matriz da cidade tradicional e seus elementos colocados ao serviço dos princípios do urbanismo moderno. Os topos dos quarteirões, com a mesma tipologia habitacional, também introduzem o vazio do logradouro e respectivos jardins na composição do alçado do conjunto como elemento de transição entre os dois arruamentos de carácter distinto. ()igura 4)

A diferença das duas tipologias consiste na frente da habitação mantendo a mesma organização funcional, o que reforça o objectivo urbano de conformar um quarteirão central que articulasse as duas ligações à malha existente de forma contínua. Ambas as tipologias permitem a opção entre garagem ou escritório. 11 O extenso periodo de construção do bairro levará à não execução do desenho preconizado para o espaço publico, perdendo-se a clareza da sua hierarquia e consequentemente a sua sequência espacial. 10

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Esta premissa de interligar a natureza com o edificado – princípios subjacentes à cidade-jardim e às várias experiências ou utopias modernistas – será um dos temas-chave da composição urbana e arquitectónica deste conjunto. O tema da natureza, associado ao bairro habitacional, com matriz no lote individual, remete para os estudos de Le Corbusier e Pierre Jeanneret para o Bairro de Pessac, em Bordéus, de 1925-28. A proposta, com uma encomenda específica – bairro de casas económicas destinadas à classe operária – apresenta um desenho de conjunto assente em diversas tipologias e associações volumétricas que caracterizam o perfil dos arruamentos e resolvem as transições e remates da malha com a prevalência da vegetação/natureza como elemento/factor de continuidade na leitura do conjunto e de humanização do bairro. O condutor de toda a composição será a relação das construções de implantação descontínua, com o desenho contínuo das áreas verdes, como espaços lúdicos e complementares às habitações – interpretação do modelo da cidade-jardim – permitindo a variedade tipológica e formal das habitações agrupadas ou em banda à face da rua ou recuadas. O diálogo entre a proporção e geometria das várias volumetrias da edificação, com as áreas ajardinadas, introduz um equilíbrio das partes e afirma um sentido de conjunto urbano no desenho do Bairro. Na procura de um desenho de compromisso, informado pelo conjunto de Pessac de Le Corbusier, a condição da cidade do Porto poderá, também, ser influência determinante, sobretudo a sua morfologia urbana de quarteirões constituídos por lotes estreitos e profundos ocupados perifericamente libertando o interior para jardins particulares que, devido aos muros de meação de baixa altura, transforma o jardim privado num enorme espaço de usufruto visual colectivo. Poderá ser a reinterpretação desta matriz local que informa a procura de um novo equilíbrio entre o uso individual e o usufruto colectivo, mantendo as premissas da cidade tradicional.12 Esta procura de enquadramentos abertos sobre espaços ajardinados também permite controlar a escala do conjunto através da redução da extensão dos arruamentos, o que reforça a hierarquia da malha viária valorizando a estrutura secundária com o perfil que privilegia o uso pedonal. ()igura 5) A escala que o desenho propõe para o conjunto reafirma os princípios da cidade funcional estabelecendo uma continuidade com a matriz da cidade tradicional, integrando-se no contexto urbano fragmentado existente, contrariando a condição dos modelos urbanos de implantação racionalista do bloco plurifamiliar autónomo – arquétipo da cidade funcional – onde a escala do conjunto, afirmado por uma quadrícula com extensos arruamentos e alinhamentos construídos, se solta da escala do tecido da cidade tradicional.

12 A importância atribuída à vivência do interior dos quarteirões da cidade tradicional será também valorizada por Le Corbusier, que, na sua vista a Barcelona, ao sobrevoar a cidade, afirma para José Lluís Sert que o modelo da cidade colectiva já está no interior dos quarteirões.

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Esta composição, com raízes nos princípios da edificação linear decorrentes das experiências da cidadejardim e posteriormente desenvolvidas e adaptadas nas experiências da Siedlung do centro da Europa permite, em detrimento da valorização da individualidade sobre a ideia do colectivo, afirmar a ordem geométrica do traçado e a regularidade da edificação com a respectiva sistematização construtiva e formal, valorizando o sentido do conjunto em diálogo com o individual. Nesse sentido, o Bairro de Moradias Económicas da Cooperativa O Lar Familiar apresenta-se como um caso singular, de diálogo com a cidade e no equilíbrio entre a necessidade individual e o desígnio colectivo, que não teve réplica em posteriores propostas de modelo urbano associado ao bloco plurifamiliar, nos anos seguintes, no Porto, com o Bairro de Ramalde (1952/60), ou em Lisboa, com o Bairro das Estacas (1949/1958), os Conjuntos da Avenida dos Estados Unidos (1952/55) e na Avenida Infante Santo (1952/1955). A lição de compromisso do modelo urbano implementado indica um caminho alternativo de resposta às questões principais que o urbanismo moderno colocava sem percorrer um caminho único da ortodoxia dos modelos do moderno traduzido pelos dogmatismos da Carta de Atenas. Poderá afirmar-se que, no Bairro da Cooperativa O Lar Familiar, a utilização da estrutura do quarteirão como elemento de continuidade com a matriz urbana da cidade tradicional – manter a propriedade individual: casa com jardim – em contraponto com o agrupamento linear das habitações unifamiliares, através da sua associação em banda contínua e respectiva afirmação formal, revela um processo projectual caracterizado pela permeabilidade a diversos conceitos e discursos arquitectónicos, traduzidos num desenho de procura, onde as regras de intervenção não estão estabelecidas a priori. Entre a interpretação de várias referências, desde J. J. P. Oud a Le Corbusier ou influências da arquitectura moderna brasileira, ao diálogo dos modelos do urbanismo moderno com a cidade tradicional, Mário Bonito procura um desenho operativo, de recusa dos dogmatismos da arquitectura moderna, que propõe uma resposta de diálogo com as condições locais, mas informada pela universalidade na arquitectura, resumida num compromisso entre tradição e modernidade – a efectiva revisão do moderno. Este assumido desenho de compromisso, no Bairro de habitações económicas da Cooperativa O Lar Familiar, será interpretado não só por investigadores, como “uma solução pré-moderna,” como ainda por entidades, como o IGESPAR, que enquadra a conservação do conjunto como património de interesse

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municipal.13 “Os critérios para novas classificações devem por isso ser muito exigentes e entendemos que a graduação patrimonial que neste caso melhor se adequa é Interesse Municipal.”14 Tendo em conta que o projecto final de licenciamento decorre em meados dos anos 50, Janeiro de 1954, com o discurso dos CIAM em clara revisão, o desenho da proposta poderá ser enquadrado no paradoxo, de “como modernizar-se e retornar às fontes?”15 que Paul Ricoeur colocará, em 1961, e que Kenneth Frampton desenvolverá para defender, nos anos 80, a interpretação para um regionalismo crítico. Esta leitura estará enquadrada com o entendimento que este paradoxo poderá, também, ser traduzido para os arquitectos modernos, no pós-guerra, com as necessidades quotidianas da sociedade a solicitar outra interpretação da arquitectura e do urbanismo moderno, ou seja, a revisão do Estilo Internacional e da Carta de Atenas. As divergências nas reuniões dos CIAM, com as propostas dos grupos holandeses, alemãs, italianos e portugueses, serão reflexo deste diálogo ou equilíbrio entre a civilização universal e a cultura local na formulação de uma nova arquitectura. Os instrumentos específicos de projecto – noção do quarteirão e a herança do seu cadastro, escala da rua e proporção do edifício – denunciam empatia pela revisão que a nova geração de arquitectos começava a operar e a introduzir nos CIAM e que caracterizará a noção de cidade a partir dos anos sessenta. Este processo dialogante, entre a importação dos modelos internacionais e a sua apropriação à circunstância portuguesa, será inerente à História da Arquitectura Portuguesa, conforme expresso por Alexandre Alves Costa: “Não existem dúvidas de que, num processo de gestação pleno de hesitações e sobreposições estilísticas, a arquitectura portuguesa é ecléctica e contraditória.”16 Assim, poder-se-á concluir que o Bairro de moradias económicas da Cooperativa O Lar Familiar incorpora a revisão dos modelos modernos, apontando um caminho alternativo à utopia colectiva, proposta pelas vanguardas dos anos 20, com um desenho de compromisso que, informado pela herança dos mestres

13 Não será indiferente o facto de o Bairro de habitações económicas da Cooperativa O Lar Familiar não surgir referenciado nas diversas publicações ou estudos sobre a arquitectura moderna portuguesa. Será com o levantamento do AAIPXX, no início do século XXI que o núcleo norte, coordenado por Sergio Fernandez, referencia o conjunto, com a consequente integração na publicação La vivenda moderna 1925-1965: Registro Docomomo Ibérico (Portugal com direcção de investigação Ana Tostões), Fundación Caja de Arquitectos/Fundación Docomomo Ibérico, %DUFHORQD Colección arquia/temas, nº 27, 2009. Contudo, na sequência de um pedido de abertura do processo de requalificação do conjunto como Património Nacional, em 2010 e 2011, petição subscrita por Alexandre Alves Costa, António Pina e Helder Casal Ribeiro, tendo em conta o crescente número de intervenções que descaracterizam e subvertem, de forma profunda, o desenho original do conjunto com respectiva indiferença camarária, o IGESPAR indeferiu o pedido, reforçando a posição de património de interesse municipal. 14 IGESPAR, Ofício de resposta ao pedido da abertura do processo de requalificação, Referência: DIED/DIDA 794732, de 5 de Março de 2012. 15 RLFRHXU P  “Universalization and national Cultures”, in History and Truth, Evanston, Northwestern University Press, ,/276-283. In FUDPSWRQ K  “Perspectivas para um regionalismo critico” in NESBITT, Kate (org.), Uma nova agenda para a arquitectura: antologia teórica 1965-1995, Cosac Naify Edições, 505. 16 CRVWD$  “Valores Permanentes da Arquitectura Portuguesa”, in Vértice, nº 19, Outubro 1989.

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modernos, de acordo com Ernesto N. Rogers, a actualiza como resposta às condições e necessidades da sociedade. Em termos formais, os modelos urbanos modernos são reconhecíveis estabelecendo um diálogo de compromisso com o contexto, através da interpretação da matriz da malha da cidade, com um desenho autoral a confirmar a evocação do moderno através da contaminação da circunstância, criando uma arquitectura que enfatiza a noção de habitat. Assim, o desenho final proposto não reflecte um universo arquitectónico mono-referencial ou o compromisso programático com os modelos oficiais, nem reflecte o problema económico subjacente nas opções de desenho, demonstrando que as soluções formais encontradas ou aprofundadas não só resolvem os problemas em causa como ainda se transformam em temas de projecto urbano. Nesta condição, o Bairro de moradias económicas da Cooperativa O Lar Familiar deverá ser considerado um passo em frente, uma lição de abertura, através do processo de fertilização recíproca e de reinterpretação, demonstrando que existe mais do que um caminho para cumprir os objectivos anunciados pela arquitectura e pelo urbanismo contemporâneo. Será este compromisso que deverá informar o exercício da profissão e que possibilitará construir um discurso orientado, não pela quantidade mas pela qualidade, actualidade e pertinência da resposta, propondo soluções aos problemas, estabelecendo um estreito diálogo com a história da cidade e dos seus edifícios. Neste sentido, valoriza-se um processo de desenho que permite ler especificidades urbanas no tecido da cidade, mas sempre interpretadas caso a caso, formulando propostas que não se repetem nas soluções, aprofundando o cruzamento de modelos teóricos e experiências formais na consolidação da paisagem construída, neste caso, do Porto.

Referências bibliográficas Alves Costa A (1989) Valores Permanentes da Arquitectura Portuguesa, Vértice 19. Bonito M (1953) Memoria Descritiva, Bairro de Moradias Económicas da Cooperativa O Lar Familiar, Requerimento de Licenciamento nº 823, (14 Janeiro 1954), Arquivo Geral da Câmara Municipal do Porto. Casal Ribeiro H (2013) Experimentação do Moderno na obra de Mário Bonito. Um processo de desenho dos anos 40 a 60Dissertação de Doutoramento em Arquitectura, FAUP, Policopiado. Costa J (2001) Bairros do Estado Novo in Guia de Arquitectura Moderna, Porto 1901-2001, OARSN e Civilização, Porto. Mumford E (2002) The CIAM Discourse on Urbanism, 1928-1960, MIT Press, Massachusetts. Ricoeur P (1961) Universalization and national Cultures, in History and Truth, University Press, 1RUWKZHVWHUQ (YDQVWRQ,/, 276-283. Rogers E N (1960) A arquitectura moderna desde a geração dos mestres (tradução de Sílvia Viana de Lima) Edições CIAM Porto, Porto. PNUM 2016 173

)LJXUDMário Bonito, Bairro de Moradias Económicas da Cooperativa O Lar Familiar, 1950/54

)LJXUD Esquema com principio viário sobre planta topográfica com 1ª fase – Janeiro de 1954

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)LJXUD Esquema da estrutura urbana do Bairro Kiefhoek, Roterdão, 1925-29, J. J. P. Oud

)LJXUD Esquema de aberturas visuais sobre planta topográfica com 1ª fase – Janeiro de 1954

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)LJXUD Mário Bonito, Bairro de Moradias Económicas da Cooperativa O Lar Familiar, 1950/54

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Encontrar o futuro na história. O Plano de Urbanização de Guimarães (Fernando Távora, 1982). Eduardo Fernandes LAB2PT, Escola de Arquitectura da Universidade do Minho Rua Francisco Sá Carneiro, 577, 4450-676 Leça da Palmeira, Telefone: 919679257 - 229950481 [email protected]

Resumo No seu “Plano Geral de Urbanização de Guimarães” Fernando Távora considerou como fatores determinantes “os valores da forma urbana, definida através da análise morfológica da sua situação actual e da sua história”. A uma distância de mais de 30 anos, é hoje possível avaliar os resultados do plano nos próprios termos em que este foi apresentado: na relação entre “unidade” e “variedade”, “geral” e “particular”, “função” e “desenho”, “realidade” e “imaginação”, “passado” e “futuro” (Távora, 1993, 120-21). Neste texto pretende-se interpretar a documentação escrita e desenhada produzida para este Plano de modo a demonstrar a importância que a história da cidade desempenhou na sua conceção, explicitando a forma como os anteriores processos de crescimento urbano foram reinterpretados nesta proposta. Consideramos que este Plano de Urbanização se pode ler como uma reinterpretação da história da cidade, assente num princípio de modernização em continuidade, numa releitura e atualização dos processos que, durante mais de dez séculos, deram forma a Guimarães.

Palavras-chave Guimarães, Távora, Plano, Urbanização, História.

1. Enquadramento: breve história da evolução urbana de Guimarães. Património é, como a palavra significa, aquilo que herdamos dos nossos pais ou, em sentido lato, o conjunto de valores que os homens foram criando e conservando ou transformando ao longo do tempo e que os identificam como comunidade. (…) O Plano Geral apoia-se neste conceito lato e rico de património e assim sendo propõe a sua aplicação a toda a Área Urbana (Távora, 1982a).

A documentação existente na Fundação Marques da Silva1 permite enquadrar cronologicamente o Plano de Urbanização de Guimarães, de Fernando Távora: o contrato é assinado a 3 de janeiro de 1979, o plano é entregue em Janeiro de 1982 (data que consta da respetiva Memória Descritiva), ano em que é também



O espólio de Fernando Távora encontra-se arquivado e disponível para consulta na Fundação Marques da Silva; o Plano de Urbanização de Guimarães tem aí a referência FIMS_FT_0207.

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 exposto publicamente; em 1991, Fernando Távora realiza uma revisão a este Plano Geral, que incide apenas sobre alguns aspetos pontuais, sem pôr em causa as principais premissas do trabalho anterior.2 Para enquadrar as ideias que estiveram subjacentes à conceção deste plano, partindo do citado conceito lato e rico de património, é necessário conhecer a história da cidade. Existem sinais da ocupação do território que constitui hoje o concelho de Guimarães que remontam a épocas anteriores à romanização; há igualmente importantes vestígios da ocupação romana deste território (Távora, 1982b, 33-4). No entanto, o “acto fundacional” da cidade de Guimarães ocorre apenas no primeiro quartel do século X: por morte de D. Hermenegilde Mendes (Conde de Tuy e do Porto, governador da província de Entre Douro e Minho), sua mulher Dona Muma herda a quinta de “Vimaranes”, onde existiria já uma povoação de pequena dimensão. Como “eram desejos ardentes desta senhora edificar um mosteiro, onde vivesse recolhida”, a Condessa Mumadona (nome com que ficou conhecida) inicia essa obra em 927, no local onde hoje se encontra a Igreja de Nossa Senhora da Oliveira (Caldas, 1881, 29). O Mosteiro foi implantado num local estratégico, entre as ribeiras de Santa Luzia e de Couros, numa importante estrada medieval que ligava Braga a Lamego, a curta distância do Paço Condal (que se situava no local onde hoje se encontra a pousada de Santa Marinha). Para defesa deste mosteiro (e do burgo que foi crescendo nas suas proximidades), a Condessa Mumadona manda edificar uma fortificação, ainda no séc. X; esta é construída no monte Latito, local ideal pela sua localização próxima, mas mais elevada, dominando a envolvente (Afonso; Ferrão, 2002, 5-6). É nesta bipolarização (entre castelo e mosteiro) que se vai desenvolvendo o burgo, em dois núcleos: a Vila Alta e a Vila Baixa. Ligava-os uma rua, transversal à já referida estrada regional Braga-Lamego; era no prolongamento desse eixo transversal que se realizava a ligação do burgo para norte/nascente (na direção de S. Torcato e Chaves) e para sul/poente, na direção de Vila do Conde, Santo Tirso e Porto. Para além destas duas vias principais, existiam ainda mais duas estradas que completavam este sistema: a ligação para Póvoa de Lanhoso, por Azurém, e a estrada para Fafe, por Mesão Frio (Távora, 1982b, 38). Se, inicialmente, apenas o burgo alto era muralhado (com o perímetro definido por D. Sancho I no início do séc. XIII), no século XIV é edificada uma segunda muralha (por D. Dinis) que abrange os dois núcleos e unifica a vila. A nova muralha vai definir a forma urbana medieval de Guimarães, ainda hoje reconhecível. Na sua construção, a localização das portas vai permitir a continuidade dos eixos viários existentes: a porta da Senhora da Guia dá saída para o Campo da Feira, ligando à estrada para Amarante e ao caminho para o Convento da Costa; a porta da Torre Velha dá saída para a rua Mosqueira (atual rua de Couros), que leva ao núcleo industrial de Pelames; a porta Nova (do lado sul do largo do Toural) liga à estrada de Santo



Entre 1981 e 1992 Távora é também consultor do Gabinete do Centro Histórico de Guimarães e realiza vários projetos de reabilitação urbana que integram um Plano Integrado de Reabilitação e Revitalização do Centro Histórico de Guimarães; não é a este conjunto de intervenções que se refere este texto, embora a sua linha de ação seja consequência dos mesmos princípios que estão subjacentes à conceção do Plano de Urbanização de Guimarães.

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 Tirso, pela rua da Caldeiroa; a Porta de S. Domingos ou da Piedade (a mais nobre da Vila), do lado norte do Toural, liga à rua dos Gatos (D. João I), na saída para Vila Nova (Famalicão) e Vila do Conde; finalmente, a porta de Santa Luzia ou da Senhora da Graça faz a ligação com a estrada de Braga (Figura 1).3

Figura 1. Esquemas do núcleo medieval de Guimarães antes e depois da construção da segunda muralha, mostrando o seu traçado e a relação das suas portas com os caminhos de ligação às cidades mais próximas. Desenhos de Eduardo Fernandes, a partir de Afonso; Ferrão (2002) e Távora (1982b).

Ao longo dos séculos, são estes eixos que vão estruturando o crescimento urbano fora de muros, que se vai fazendo sem plano e sem regra aparente, até ao século XIX. Simultaneamente, no interior da nova muralha, a malha urbana vai ocupando o espaço disponível; a bipolaridade inicial da cidade desaparece, mas define um eixo “que se manifestará secularmente” (Távora, 1982b, 38). Em 1853 a Rainha D. Maria II concede o título de cidade a Guimarães, na sequência de uma visita realizada no ano anterior. A nova cidade vai, pouco depois, dispor de um primeiro plano urbanístico da autoria do Eng. Almeida Ribeiro, professor de Arquitectura Civil e Naval da Academia Portuguesa de Belas Artes. Este plano (concluído em 1867) não previa qualquer área de expansão, apenas intervenções no existente, nomeadamente a salvaguarda de monumentos (como o Castelo, a Igreja de S. Miguel e o Paço dos Duques) e o traçado de novas vias, como a rua Paio Galvão (ligando o Toural e a nova praça de mercado), e a rua Nova do Mercado (actual Gil Vicente), abertas em 1873 graças ao trabalho da Comissão de Melhoramentos (presidida pelo Dr. Avelino da Silva Guimarães) criada em 1869 para executar o referido plano (Afonso; Ferrão, 2002). Em 1884 é inaugurada a estação ferroviária de Guimarães e abre ao público

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Existiam ainda a porta da Freiria, a nascente (acessível pela rua do Sabugal, no interior do castelo), e a da Garrida

ou Santo António, a poente (acessível pela rua da Infesta), que dava acesso ao campo de S. Salvador; estas eram as únicas portas que não se situavam no percurso de estradas regionais, mas justificavam-se para permitir a ligação interior/exterior ao longo de dois extensos panos de muralha. Na antiga cerca transversal (demolida no século XV), que ainda delimitava a Vila Alta depois da construção da nova muralha, a porta de Santa Bárbara localizava-se no ponto de confluência das ruas de Infesta e do Gado (no cimo do atual largo Martins Sarmento); daí partia a rua do Castelo, que atravessava a Vila Alta e saia do outro lado da cerca velha, para o terreiro de onde partiam, para norte, as duas ruas dos Canos, de ambos os lados do atual campo de S. Mamede (Afonso; Ferrão, 2002).



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 o troço de caminho-de-ferro até Lousado. A nova ligação ferroviária vai implicar o traçado de duas avenidas quase paralelas (não previstas no plano de Almeida Ribeiro), para ligar a estação ao centro da cidade: as avenidas da Indústria e do Comércio, atualmente D. João IV e D. Afonso Henriques (Figura 2). Em 1916 é lançado um concurso para o projeto dos novos Paços Municipais, prevendo a sua construção na praça de S. Tiago; o projeto vencedor, de Marques da Silva, não foi imediatamente construído. Em 1923 é decidida a sua construção noutro local: na confluência da rua de Serpa Pinto com a estrada de Fafe. O projeto de implantação, que incluía o desenho de uma praça para a qual convergiam várias vias, é aprovado em 1924.4 No ano seguinte é apresentado o Plano Geral de Alargamento da Cidade do Capitão Luís de Pina, que prevê a criação de uma zona de expansão urbana em torno do novo edifício da Câmara Municipal, que se encontrava já em construção:5 confluíam para aí três avenidas, num desenho em forma de pata de ganso que se articulava com os arruamentos pré-existentes.

Figura 2. Esquemas da expansão urbana de Guimarães: vias abertas em consequência da nova ligação ferroviária e dos planos de 1867 e 1925 (esquerda) e expansão prevista no plano de 1953 (direita). Desenhos de Eduardo Fernandes a partir de Pina (1925) e Silva; Silva (1953).

Este traçado lembra o desenho barroco da praça Del Popolo (em Roma) e as triangulações do plano de Haussman para Paris, mas está também claramente referenciado a Guimarães: a avenida Alberto Sampaio corre paralela ao único pano da muralha que sobreviveu às demolições do século XIX, a avenida Cónego Gaspar aponta ao alto da colina da Penha (local onde poucos anos depois se irá construir um Santuário, com projeto de Marques da Silva), a avenida dos Combatentes da Grande Guerra, no centro, traça a



Na sequência deste desenho, Marques da Silva irá elaborar alguns estudos (em 1938) para o ordenamento da expansão urbana a nascente da nova praça, que não chegam a ser formalizados como plano nem concretizados na cidade (Tavares, 2010, 39, 87). 5 O novo edifício da Câmara Municipal, com projeto de Marques da Silva, não chega a ser concluído; a obra é interrompida em 1934 e, em 1955, foram demolidos todos os vestígios ainda existentes para permitir a construção, nessa praça, do palácio da Justiça de Guimarães (Luís Benavente, 1960); ver Fernandes; Jorge (2011, 62). 4



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 bissetriz do ângulo formado pelas outras duas e a rua José Sampaio, que remata o triângulo, aponta ao convento de Sta. Marinha da Costa. Completam o desenho inicialmente previsto, do lado nascente, a via que liga a nova praça municipal ao largo de Santa Clara (concretizada em 1925), a rua Serpa Pinto e uma outra, que não chega a ser realizada, que passaria entre o Convento do Carmo e o Paço dos Duques e remataria na rua Conde D. Henrique. Este sistema viário radial, já previsto por Marques da Silva no desenho de 1924 para a nova praça Municipal, faz parte de uma estratégia de expansão da cidade (não concretizada) assente numa malha de quarteirões retangulares que se estenderia para norte/nascente, perpendicularmente à Avenida Cónego Gaspar (Figura 2). Em 1931, a rua Gil Vicente é prolongada até se encontrar com a rua D. João I, desviando o trânsito proveniente de Famalicão do centro da cidade e criando um novo eixo de expansão. Esta via, a Av. Conde de Margaride, já está aberta em 1936 mas só em 1940 estará concluída; o seu traçado é indissociável da evolução da construção do novo mercado, projetado por Marques da Silva. Em 1955 entra em vigor o Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, da autoria de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva.6 Iniciado em 1945 e entregue em 1949, só seria aprovado após o aditamento realizado em 1953; propõe áreas de expansão da cidade a norte, a nascente, a sul e a sudoeste, propondo a expansão da cidade para as freguesias periféricas de Creixomil e Urgezes. A expansão a norte, na área onde atualmente se situa o campus de Azurém, não se concretiza; torna-se claro o reforço da tendência da cidade para crescer para sudoeste, “na direção da Estrada Nacional 206 para Famalicão” (Pires, 2012,241).

Para nascente, partindo do desenho da praça estabelecida no plano do Capitão Luís de Pina, altera-se a matriz geométrica da extensão prevista em 1925, procurando dar continuidade para nascente/nordeste do núcleo histórico à direção do eixo constituído pela avenida Conde de Margaride e pela rua Gil Vicente. A aguarela de 1953 que publicita o Anteplano mostra a importância desse eixo no desenho da cidade, definindo uma praça alongada (de desenho mais pronunciado do que o previsto em 1949) que marcaria com alguma monumentalidade a entrada da cidade, no local onde hoje se encontra a Alameda Mariano Felgueiras (Figura 2).7 Estas áreas de expansão correspondiam a uma ideia de “zonamento funcional” herdeiro da Carta de Atenas (Pires, 2012, 252) que, no entanto, pressupunha uma urbanização de baixa densidade, com a abertura de novas ruas para a “construção de edifícios unifamiliares isolados com jardins privados (…) na linha de pensamento de De Gröer” (Pires, 2012, 243). Em 1965, a Câmara aprova a revisão do plano de 1955; em 1967, Arménio Losa é contratado para conceber o novo Plano de Urbanização de Guimarães (Afonso; Ferrão, 2002). Este novo plano nunca chega a ser



Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva eram a filha e o genro de António Marques da Silva, ambos colaboradores do seu ateliê; após a morte deste, em 1947, substituíram o mestre na condução das obras e projetos em curso. 7 O Aditamento a este plano, realizado em 1957 (“Anteplano Parcial de Urbanização da Cidade de Guimarães”) não alterou de forma significativa as implicações do plano anterior (Pires, 2012, 243-4). 6



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 finalizado, embora Arménio Losa realize alguns planos parciais, como “urbanista-consultor” da CMG: “estudou uma variante à ligação das Estradas Braga-Famalicão-Santo-Tirso”, “executou os planos parciais das zonas da Estação e do Nordeste” (Távora, 1982b, 32) e viu aprovado (em 1971, “com muitas alterações”) o Plano Integrado da Quinta da Senhora da Conceição (“apresentado ao público em 1970”), que prevê a abertura de novos arruamentos para a realização de edifícios de habitação coletiva (“blocos de quatro ou seis andares”) numa área considerado como “zona verde” no plano de Moreira da Silva (Afonso; Ferrão, 2002). 2. Intenções: o Plano de 1982 nas palavras do seu autor. Planear é condição da nossa existência de homens. Planear é conceber um futuro em função de uma experiência passada e de uma situação presente. (…) Planeia o lavrador a sua colheita, a dona de casa a sua economia doméstica, o estudante os seus deveres, o homem de negócios a administração dos seus bens. Todos planeamos o nosso amanhã, o nosso mês, a nossa vida… (Távora, 1982a).

A memória descritiva (Távora, 1982b) que acompanha Plano de Urbanização de Guimarães apresenta uma descrição detalhada tanto da situação pré-existente do território do concelho como das propostas de Távora; uma vez que este documento não se encontra publicado, destacam-se seguidamente algumas das ideias aí expressas. “A Área Urbana desenvolve-se no sentido ENE-OSO acompanhando (…) o movimento das linhas de água que a percorrem”, mas a evolução da cidade, nos últimos 30 anos, levou a uma “multiplicação preocupante de construções isoladas e dispersas pelo território”, numa “constelação desordenada (…) que urge transformar num todo coerente, estruturando-a através de um sistema viário claro e definindo áreas de expansão e sentidos de desenvolvimento” que permitam transformar a cidade “num organismo tão funcional e esteticamente perfeito quanto possível” (Távora, 1982b, 43). “Guimarães é, como todas as cidades implantadas num terreno acidentado, uma cidade que se vê a si própria”,8 característica que é “reafirmada ou recriada na proposta do Plano Geral” com o traçado da nova estrada de Famalicão, com a proposta de localização do “futuro estádio no grande eixo do vale da Ribeira da Costa”, com as vistas da cidade que o traçado da nova circular irá proporcional e com o percurso do teleférico, entre outras (Távora, 1982b, 44). Este território não possui “um sistema viário que satisfaça as necessidades locais, concelhias ou regionais”; o plano propõe uma reformulação de todo o sistema viário, onde se destaca uma “grande via circular” com “acessos condicionados e ligações desniveladas” para “desviar o tráfego de atravessamento da zona



Távora destaca o enfiamento sobre a Penha, desde a antiga estrada de Famalicão, entre os “vários arruamentos urbanos conduzidos visualmente sobre aquele santuário ou sobre o Convento da Costa” (p. 44)

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 central e servir novas zonas de expansão da cidade” (Távora, 1982b, 47-48) e a proposta de um teleférico, “velha aspiração Vimaranense”, para ligar a cidade “á sua montanha da Penha (…) no enfiamento da rua Cónego Gaspar” (Távora, 1982b, 51). O plano propõe quatro áreas de expansão da cidade: a norte, dominada pela já prevista “implantação da Universidade do Minho (Pólo de Guimarães)”;9 para nascente, nas vertentes da ribeira da Costa, dando continuidade à tendência já estabelecida pelo plano de Moreira da Silva; para sul, “no sentido da EN 105” (também já estabelecida no plano anterior); para poente, ao longo da nova variante à EN206, “admite-se o que nos parece ser um indispensável crescimento, com funções estruturantes e de remate da desordenada situação actual” (Távora, 1982b, 52-53). 3. Encontrar o futuro na história: uma interpretação subjetiva do plano de Távora. Trata-se de um plano geral (…) que, preconizando as grandes linhas de uma estrutura urbana coerente, constitua, sobretudo, um plano de síntese no qual se procurou compatibilizar a unidade e a variedade, o geral e o particular, a função e o desenho, o passado e o futuro (Távora, 1993,126).

Parece evidente, numa análise dos seus textos e peças desenhadas, que o plano de Távora se constrói a partir de uma reinterpretação da história da cidade, assente num princípio de modernização em continuidade, numa releitura e atualização dos processos que, durante cerca de dez séculos, deram forma a Guimarães. Esta é, aliás, uma opção natural, pelas caraterísticas do trabalho: um plano de Urbanização implica sempre uma releitura do passado do espaço urbano em causa, para melhor compreensão do presente. No caso de Guimarães, o percurso anterior do autor do plano torna evidente que esta metodologia seria não só o ponto de partida mas também a matriz de todo o trabalho: na obra de Távora encontramos sempre, em paralelo, uma atenção à circunstância pré-existente que condiciona a obra e a consciência de uma circunstância pós-existente que a nova intervenção vai determinar (Fernandes, 2011, 232). No que diz respeito à circunstância pré-existente, a topografia do terreno assume um carácter determinante, condicionante da ocupação do território desde a fundação do primeiro núcleo urbano. O desenho 22 do plano (intitulado “Relevo”) mostra as principais linhas de festo da topografia envolvente, permitindo perceber o modo como o crescimento urbano foi sendo condicionado por esta característica perene. Se a cidade nasce num eixo norte - sul, na relação direta entre o castelo e o mosteiro, a sua expansão planeada (tanto em 1925 como em 1953) seguiu sempre uma orientação nascente/nordeste – poente/sudoeste que acompanha as linhas de água e procura algum paralelismo com a direção dominante das linhas de festo da topografia circundante.

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Sobre a história da localização do Campus Universitário na cidade de Guimarães ver Fernandes (2013). PNUM 2016 183



Figura 3. Esquema da expansão urbana de Guimarães prevista no plano de 1982. Desenho de Eduardo Fernandes a partir de Távora (1982b).

Távora leva também em conta a expansão não planeada que se inicia ainda no período medieval fora dos limites reconhecíveis da cidade: ao longo dos caminhos que saem das portas da muralha e seguem para as cidades mais próximas foi crescendo, lentamente, de forma linear mas desconexa, uma urbanização dispersa que contrasta com a forma bem definida do burgo, contida pela muralha. No seu plano, Távora procura controlar novamente a morfologia da cidade, procurando criar uma nova entidade compacta e reconhecível que contraste com a dispersão da envolvente circundante. A nova circular rodoviária, com perfil de autoestrada e integrada num corredor verde, estabelece os novos limites da cidade consolidada a poente e norte do mesmo modo que a muralha os estabeleceu, no século XIV: com uma fronteira clara. Se a sul e nascente do centro histórico os limites da cidade estão naturalmente definidos pela topografia (as montanhas criam uma barreira natural que complementa o traçado da via rápida), os novos limites a poente e a norte são claramente percetíveis para quem circula nesta nova via: de um lado está a cidade, do outro um território muito menos denso, que ainda preserva o uso rural. Desenhada sobre as linhas de festo, esta circular permite também a vista da cidade de várias direções diferentes, tal como o caminho de ronda no topo das muralhas permitia (Figura 3). Para a sua ligação ao sistema viário pré-existente redesenham-se as vias que estruturam a cidade entre a nova e a velha muralha: a Alameda Mariano Felgueiras, a rua de S. Gonçalo, a alameda Alfredo Pimenta e a alameda da Universidade são vias cujo traçado estava já previsto no plano de 1955 mas que ganham agora um carácter estruturante muito mais evidente. Essas vias sobrepõem-se às velhas estradas que atravessavam a antiga muralha e cruzam agora a nova muralha em novas portas (onde se articulam com a via circular através de nós de acesso), continuando o seu traçado para as cidades mais próximas.



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 Este carácter é enfatizado no caso do nó de acesso à Alameda Mariano Felgueiras, onde Távora previa a localização de uma obra de arte a eixo do viaduto, virada para o sentido de entrada da cidade.10 Esta é, hoje, a principal entrada da cidade, porque é a única ligação que se pode fazer diretamente por via rápida, a partir da autoestrada A7.

Figura 4. Desenho esquemático do plano de 1982. Desenho de Eduardo Fernandes a partir de Távora (1982b).

Todo o percurso de chegada à cidade, por esta via, é objeto de um traçado cuidado (que altera o desenho proposto pela Junta Autónoma das Estradas), desde a rotunda projetada para o lugar de Carreira: num primeiro momento, a via é alinhada com o santuário da Penha, ao longo da veiga de Creixomil, grande extensão de área verde que surge à direita e confirma que ainda não chegamos à cidade (Figuras 4 e 5). Depois, inflete ligeiramente para a direita, mantendo a visão do santuário à esquerda, preparando o traçado para que, depois de uma suave e prolongada curva para a esquerda, nos apareça momentaneamente a visão do castelo. É com esta vista que chegamos à nova porta (onde um nó nos permite aceder à via circular e contornar a cidade à cota alta) e podemos atravessar esta nova muralha. Depois desta porta, a via rápida perde caráter de autoestrada - entramos na cidade moderna, pelo seu eixo principal: Alameda Mariano Felgueiras - avenida Conde Margaride – rua Gil Vicente. Como conclusão refira-se que esta interpretação da via circular como nova muralha é, evidentemente, uma liberdade poética de caráter simbólico e subjetivo. A aquiescência desta leitura não é necessária (nem sequer relevante) para validar a qualidade do plano em análise, face à evidência dos resultados da sua aplicação que hoje, mais de trinta anos depois, podemos ver em Guimarães: o contraste entre a cidade compacta e bem organizada (ainda contida nos limites da via circular) e a sua envolvente próxima. Procurando o futuro na história, Távora conseguiu o seu principal objetivo: transformar uma constelação desordenada num todo coerente e estruturado, num organismo funcional.

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Ver desenho de Távora publicado em Bandeirinha (2012, 360). PNUM 2016 185



Figura 5. A nova via rápida junto ao lugar de Carreira, alinhada com o santuário da Penha. Fotografia de Eduardo Fernandes.

Agradecimentos Este trabalho tem o apoio financeiro do Projeto Lab2PT- Laboratório de Paisagens, Património e Território AUR/04509 e da FCT através de fundos nacionais e quando aplicável do cofinanciamento do FEDER, no âmbito dos novos acordos de parceria PT2020 e COMPETE 2020 – POCI-01-0145-FEDER-007528

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Cidades Limitadas? Análise Configuracional de Assentamentos Urbanos Murados Marlysse Rocha, Valério Medeiros, Monica Gondim Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo FAU- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília UnB CCSW1 Lote 4 BlocoC Apt 303 –Sudoete, Brasilia DF- Brasil – Cep 70680-150, Telefone/fax: (61)96671052 [email protected] , [email protected], [email protected]

Resumo Este artigo discorre sobre cidades e limites. Limites construídos com tijolos e pedras, muros visíveis; ou caracterizados pela água, pela escarpa e pela areia, por uma dimensão em que o anteparo é intangível, muro invisível com limite visível, mas que, não obstante a robustez das muralhas e fortalezas também separa, segrega, protege, define, limita, une, ilha, isola e abraça o espaço urbano. Os limites são opcionais, seja pela escolha do sítio ou pela decisão de se construir muros. Esse ato deliberado – de construir muros - pode resultar em consequências contrárias, tais como controle ou submissão. A primeira situação é exemplificada por cidades cercadas por muralhas físicas. Já a segunda por cidades contidas em um elemento natural, envoltas por água, por exemplo. Essas particularidades determinam a permanência dos limites. No primeiro exemplo há possibilidade de expansão, novos anéis de muros são construídos até que o limite seja suprimido. Mas, no segundo exemplo, a geografia favorece sua permanência. Antigo elemento presente em diferentes períodos da história, os limites, como definidores da forma urbana, apresentam três principais funções: proteção, gestão e união. Quanto à proteção, separa o ambiente externo (selvagem, desordenado, imprevisível) do interior controlado e previsível, protegendo contra ataques de outras tribos, de animais e intempéries. No que se refere à gestão, as portas das antigas muralhas, como os portos das cidades ilhadas ou as guaritas dos condomínios fechados, controlam o acesso de pessoas, o abastecimento e o comércio. A última e talvez a mais interessante função do limite seja unir. O que parece segregar externamente tem o poder de unificar o que está contido, contribuindo para a construção da identidade da comunidade que aí se encerra, estabelecendo laços, preservando costumes e tradições, como por exemplo, a língua. Cidades limitadas são cidades abraçadas! Este trabalho investiga 26 assentamentos, construídos em diferentes períodos, que se contrastam física e socialmente, cujos limites permaneceram no seu tempo. A pesquisa é exploratória de caráter configuracional e morfológico e busca responder a seguinte questão: O que teriam em comum esses assentamentos quanto aos aspectos configuracionias? Divide-se em duas etapas: a primeira consistiu-se em fazer uma varredura na história das cidades, identificando esses exemplares. A segunda na classificação dos assentamentos seguindo as categorias: 1) Temporalidade 2) Caracterização do limite; 3) Configuração e elementos morfológicos 4) localização estratégica. Palavras chave: limites, muros, assentamentos urbanos, configuração PNUM 2016 189

Introdução Este ensaio discorre sobre os limites que unem, separam, segregam, protegem, isolam, mas também abraçam as cidades. Limites naturais como água, escarpa ou areia. Limites humanos como muros, fossos ou cercas. Se por um lado os limites são uma opção de assentamento, seja pela escolha do sítio ou pela decisão de se construir muros, o ato pode resultar em controle ou submissão. O primeiro contexto é exemplificado por cidades cercadas por muralhas físicas. O segundo diz respeito às cidades contidas pelo elemento natural. Essas particularidades determinam a permanência dos limites. No primeiro exemplo há possibilidade de expansão, novos anéis são construídos até que o limite seja suprimido e deixe de existir. No segundo, a geografia condiciona a restrição. Elemento presente em diferentes períodos da história, os limites, como definidores da forma urbana, apresentam três principais funções: proteção, gestão e união. Quanto à proteção, separam o ambiente externo (selvagem e imprevisível) do interior controlado e previsível, protegendo contra ataques de outras tribos, de animais e intempéries. No que se refere à gestão, as portas das antigas muralhas, como os portos das cidades ilhadas ou as guaritas dos condomínios fechados, têm a função de controlar o acesso de pessoas, o abastecimento e o comércio. A última e talvez mais proeminente função do limite seja unir. O que parece segregar externamente tem o poder de unificar o que está contido, contribuindo para a construção da identidade da comunidade, estabelecendo laços e preservando costumes. Cidades limitadas são cidades abraçadas. O trabalho investiga 26 assentamentos com limites construídos em diferentes períodos e culturas. A pesquisa é exploratória e busca responder a seguinte questão: O que teriam em comum esses assentamentos quanto aos aspectos configuracionias? Metodologia Esta pesquisa propõe uma análise configuracional e morfológica dividida em duas partes: a primeira apresenta assentamentos com limites ao longo da história, a segunda analisa estes segundo aspectos configuracionais. Na parte 1, as cidades são apresentadas cronologicamente em grupos segundo tipo de limitação. A investigação teve como apoio publicações tradicionais de urbanismo, produções que consideram descobertas arqueológicas atuais, além dos documentos disponibilizados pela UNESCO. Na parte 2, procedeu-se a análise configuracional segundo as categorias: 1) temporalidade; 2) caracterização do limite; 3) configuração e elementos morfológicos e 4) localização estratégica. PNUM 2016 190

Limites ao longo da história. Limites físicos A transformação das pequenas aldeias em cidades não se restringiu a uma mudança de dimensões, mas de direção e finalidade (Munford, 1960, 60). Estabelecem-se novas formas de submissão e poder materializados nas muralhas das novas cidades: “Constituindo, em parte, uma manifestação de ansiedade e agressividade, a cidade murada substitui uma imagem mais antiga de tranquilidade rural e de paz” (Munford, 1961, 60). Chatal Huyuk (Turquia), de 7400 a 6000 a.C. era formada por moradias aglomeradas, não possuía ruas, os tetos constituíam uma via suspensa, não havia portas no nível do chão (Gondim, 2014, 132). A ocupação aglomerada com fachadas cegas formava um monólito com ares de fortaleza. As cidades sumerianas, como Uruk, a maior cidade do 4º e 3º milênio a.C. e Mari (Gondim, 2014, 159) eram muradas. Mari era circular e possuía duas muralhas concêntricas (Gondim, 2014 apud Mergueron, 2003). A Babilônia (2000 a.C.), na costa do Eufrates, foi constituída por um retângulo amuralhado, dividida em duas metades pelo rio. No oriente, Índia, Indochina e China, a civilização urbana iniciou-se por volta de 2000 a.C. Relações de poder e virtude dominam a cultura oriental desde sempre, sendo a cidade impregnada de significados. (Benevolo, 2015, 55). Xi'an (1.100 a.C.) na China, apresenta estrutura murada construída entre 194 a.C. e 190 a.C. e reconstruída no século XIV na Dinastia Ming. Gregos e Romanos construíram cidades muradas, produtos de um gesto colonizador. Mileto era uma península murada na Anatólia, cujos primeiros muros datam de 1350-1050 a.C. (FHW, 2015). Após sua destruição em 494 a.C., em 479 a.C. foi reconstruída, segundo malha ortogonal (Gondim, 2014, 190 apud Harquel, 2001, 15). Pompéia, próxima da Baía de Nápoles, foi fundada no século VI a.C. como colônia grega (Morris, 2004, 73). No século I a.C. conquistada pelos romanos (Gondim, 2014, 194) e em 79 d.C. na altura da destruição, era rodeada por uma dupla muralha (Morris, 2004, 73). Os primeiros séculos da era cristã apresentam cidades limitadas em diferentes culturas. Construída no século I, Itchan Kala1, no Uzbequistão é cercada por uma muralha retangular. A fortificação atualmente é um núcleo inserido numa malha urbana de dimensão superior (UNESCO, 2015).

1 Considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1990.

PNUM 2016 191

Produto da cultura antropocêntrica, as cidades do Renascimento são objetos também de criação. Nos planos desenvolvidos é evidente o enaltecimento do traçado regular, da perspectiva cônica, que culminam na forma radiocêntrica de cidades com traçados em estrela. Além das características mencionadas, os projetos apresentam muralhas defensivas. Projetada por Vicenzo Scamozzi, Palma Nova, na Itália, foi erguida no século XVI. A cidade-fortaleza, tem forma de estrela de 9 pontas. Neuf-Brisach2, na França, projetada no século XVII por Sebastien Vauban3, também possui forma de estrela. Ainda entre os séculos XV e XVI, os europeus estendem suas fronteiras nos extremos do globo. Novos assentamentos foram estabelecidos com aspirações renascentistas. No entanto, a inspiração não é das cidades ideais, mas estratégias de rápido controle de territórios. No século XVII ocorre a consolidação dessas cidades. Com planos trazidos da Europa, esses assentamentos se constituíam como grandes fortalezas. Trujillo, no Peru, está entre as cidades planejadas pelos espanhóis na América e apresentava muralha com perímetro de 3,8Km. Nos séculos XVIII e XIX, ante o liberalismo, a muralha física perde força. Paris e Londres extrapolam os limites dos muros, e as novas relações sociais, políticas e econômicas não justificam a construção de cidades fisicamente limitadas. No entanto, o processo de “isolamento” subsistiu de forma invisível. Na cidade industrial, verifica-se o isolamento entre partes e classes, bem como sua relação com o campo é revista. No século XX, nas cidades modernas, muros invisíveis se materializam nas distâncias, dispersão e setorização de funções. A cidade contemporânea apresenta muralhas invisíveis e repagina as visíveis em seus condomínios fechados, como é o caso do Condomínio Alphaville Lagoa dos Ingleses em Nova Lima-MG, que possui áreas residenciais, centro comercial, empresarial, hotel, escola e clube. Limites naturais e físicos Na Mesopotâmia e na Palestina, a iniciativa de se estabelecer em elevações, conhecidas como tell, sinaliza a preocupação com a defesa. Jericó, considerada a mais antiga urbanização da Palestina, por volta do ano VIII a.C. era circundada por muro de pedras com uma torre (Gondim, 2014, 127). A configuração de Ur (2000 a. C.) pode ser analisada em três partes: a cidade antiga intramuros, o recinto sagrado e a cidade exterior. Foi construída sobre um monte formado por ruínas. O Eufrates corria a oeste

2 Considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 2008. 3 Um dos maiores engenheiros militares da história, esteve a serviço de Luís XIV e desenvolveu e sistematizou complexos sistemas de fossos, rampas e baluartes de muralhas (Lamas, 2004, 172).

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e um longo canal navegável rodeava a cidade a norte e a leste e há indícios de que um canal menor atravessava a área urbana (Morris, 2004, 20). Outro contexto exemplar são as cidades israelitas. Constitídas por fortalezas com suportes e torres projetadas para além dos muros. Desse período destaca-se Megido4 (1000 a.C.), centro administrativo e base militar. Dentre as colonias gregas: Olinto, na Macedônia, foi implantada sobre duas colinas localizadas a 30 e a 40m da planície (Cahill, 2002). A parte antiga, na colina sul, apresentava traçado irregular. A ocupação sobre a colina norte possuía configuração em quadrícula (Gondim, 2014, 192). Parte da ocupação era circundada por muralha (Benevolo, 2015, 192). O muro não foi traçado mais ao sul, e o limite sudeste da cidade não foi determinado (Cahill, 2002), foi destruída em 384 d.C. Priene (350 A.C), no Vale do Meandro, foi implantada sobre um desnível de aproximadamente 100 metros, sobre quatro grandes platôs. Completamente murada, da porta principal ocidental, a via principal conduz à acrópole; e ao norte desta via localizam-se os principais edifícios: o Templo de Atenea, o Ginásio e o Mercado (Morris, 2004, 47-48). Na Espanha, produto da expansão romana no século I, destaca-se Tarragona que repousa sobre uma colina e era cercada por 4Km de muros, sua localização conjuga água, montanha e muralhas. A queda do Império Romano do Ocidente, no século V, desestruturou a rede de cidades então existente. O temor às invasões bárbaras promoveu o abandono de cidades inteiras, que foram retomadas a partir do século XI. Para esses reassentamentos, procuravam-se sítios de difícil acesso, afirmando a preocupação com proteção (Lamas, 2004, 152). Sobre essa perspectiva se tem Marvão, Ávila e Carcassone. Implantada no cume da Serra de São Mamede, na região do Alentejo, Marvão foi consolidada no século X. Nessa ocupação, a montanha funciona como uma muralha, sendo os muros construídos uma extensão da proteção natural. Na Espanha, no topo de uma colina, a cidade de Ávila5 foi fundada no século XI para proteger os castelhanos da invasão moura. O assentamento possui fortificação com 2,5Km, 3m de espessura, 87 torres (UNESCO, 2015).

4 A Tell de Megido foi considerada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 2005. 5 Considerada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1985.

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Localizada ao sul da França, a colina onde se situa Carcassone6 desde os tempos dos romanos abrigava fortificações (UNESCO, 2015). Atualmente, existem duas cidades, a antiga sobre a elevação a leste do Rio Aude e uma ocupação na planície do outro lado do rio: a cidade baixa (Morris, 2004, 134). A cidadela antiga possui dupla muralha somando 3 km e 52 torres. Localizada ao norte de Moçambique, a Ilha de Moçambique 7 foi assumida pelos portugueses no século XVI, que desenvolveram as muralhas e a disposição de fortificações de pedra aliadas aos limites das águas. Outro exemplo de isolamento é Timbuktu8. Fundada no século V, chegou a abrigar 100.000 habitantes (UNESCO, 2015). A cidade, situada nas franjas do deserto do Saara e por isso previamente isolada, possui muralha de 5Km. Limites naturais Entre as fozes dos rios Brenta e Piave (Benevolo, 2015, 285p.), Veneza9 surgiu no século V e foi consolidada no século XI. As águas do Adriático serviam de muralhas e os alagadiços e ilhas sugeriam abertura de canais para irrigar terras e estabelecer vias (Mumford, 2008, 384). A importância dos muros de água para formação da cidade pode ser observada em uma lápide do século XVI, conservada no Museu Correr: A cidade dos Venetos, fundada por disposição da Divina Providencia ao meio das águas, circundada pelas águas e defendida pelas águas em vez de muro. Portanto, quem quer que traga dano as águas públicas, de qualquer modo, será julgado inimigo da pátria. E não receberá pena menor quem tiver violado os santos muros da pátria. A lei estabelecida por este edito deve prolongar-se eternamente. (Benevolo, 2015, 310p.)

Também limitada por água temos Afuá, na Ilha do Marajó-Brasil. Fundada do século XIX, se desenvolveu as margens dos Rios Cajuuna, Afuá e Marajozinho. Foi toda construída sobre palafitas a cerca de 1,20m do solo. Caso parecido é o da Ilha de Paquetá, consolidada no século XIX. Atualmente um bairro do município de Rio de Janeiro, também é limitada pela água.

6 Considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1997 7 Considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1991. 8 Considerada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1998. 9 Considerada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1987.

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Assentamento

Cronologia

Tipo de muro

Área (ha)

Maiores Distâncias

Traçado urbano

Situação atual

Jericó

8000 a. C.

Físico/ montanha

4

-

-

sítio arqueológico

Chatal Huyuk

7400 a 6000 a. C

físico

12

-

sem ruas

sítio arqueológico

Uruk

4.000 a. C.

físico

435

3*

radial

sítio arqueológico

Ur

3.000a.C.

água / físico

100

1,2x0,8

radial

sítio arqueológico

Mari

2.000 a.C.

físico

193

1,9 *

radial

sítio arqueológico

Babilônia

2.000 a.C.

físico

400

2,5x1,5

quadriculada

sítio arqueológico

Xi'an

Antes de XI a.C.

físico

1202

4,3 x2,8

quadriculada

expansão extramuros

Megido

Séc X a. C

Físico/montanha

5

0,32*

-

sítio arqueológico

Olinto

Séc.III a. C

Físico/ montanha

30

1 x0,3

quadriculada

sítio arqueológico

Priene

Sec. III a. C

Físico/montanha

33

0,82x0,44

quadriculada

sítio arqueológico

Mileto

Sec. V a. C.

físico

90

1,8x1,1

quadriculada

sítio arqueológico

Pompéia

VII e VI a.C.

físico

66

1,3x0,65

quadriculada

sítio arqueológico

Tarragona

Sec. I

físico/água

71

1,5 x0,48

quadriculada

expansão extramuros

Ichan Kala

Sec. I

físico

26

0.65x0.4

irregular

expansão extramuros

Carcassone

Séc XIII

Físico/montanha

12

0,55x0,25

irregular

expansão extramuros

Ávila

Sec. XI

Físico/montanha

35

0,9x0,47

irregular

expansão extramuros

Marvão

Séc. X

Montanha/físico

9,7

0,7 x0,2

irregular

consolidada no limite

Veneza

Sec. XI

água

600

5 x2

irregular

consolidada no limite

Timbuktu

Sec. XV

Deserto/físico

434

3,5 x1,8

irregular/quad.

consolidada no limite

Palma Nova

Séc. XVI

físico/água

200

1,7

radial

expansão extramuros

Neuf-Brisach

Séc XVII

físico

75

1,1

quadriculada

expansão extramuros

Trujillo

Séc. XVII

físico

111

1,35 x 0,97

quadriculada

expansão extramuros

Ilha de Moçambique

Séc. XVII

Água/físico

94

2,74x 0,5

irregular/radial.

consolidada no limite

Afuá

Séc. XIX

água

115

1,3 x 0,9

irregular/ quad/radial.

consolidada no limite

Paquetá

Séc. XVII

água

66

1,7 x0,9

Irregular/radial

consolidada no limite

Alphaville

Séc. XX

físico

430

2,8x 1,00

irregular/ quad.

consolidada no limite

Figura 1

PNUM 2016 195

Categorização/Análise TEMPORALIDADE A amostra estuda sítios arqueológicos, cidades preservadas por interesse patrimonial, salvaguardadas com ocupações consolidadas nos limites, outras que mantiveram os muros, mas sofreram expansão extramuros e assentamentos atuais. A cronologia encontra-se na Figura 1. CARACTERIZAÇÃO DOS LIMITES Para a pesquisa os limites são dintinguidos em dois grupos: 1) muros visíveis (físicos) e 2)muros invisíveis, produto do contexto geográfico: montanha, água e deserto. A amostra guarda especificidades como combinação de muros visíveis e invisíveis. A classificação encontra-se na Figura 1.

CONFIGURAÇÃO E ELEMENTOS MORFOLÓGICOS Os

assentamentos

possuem

formas

e

dimensões variadas É interessante notar que apesar da diversidade de manchas, essas apresentam

continuidade,

confirmando

a

propensão de controle e submissão dos limites (Figura 2). Quanto ao traçado urbano, classificou-se em: irregular, quadrícula e radial, e sistemas com mais de uma caracteristica. Marvão, Veneza, Ávila e Carcassone possuem traçado irregular.

Figura 2 . 1. Neuf-Brisach. 2.Ilha de Moçambique., 3. Carcassone, 4. Megido, 5.Tarragona, 6. Xian Variáveis formas e dimensões de assentamentos murados que compõe a amostra Base da Imagem: Google Earth. As representações estão na mesma escala.

Ainda nessa categoria temos Itchan Kala- cidade mulçumana que apresenta ruas não menos regulares. Dentre os exemplares com traçado em quadricula incluem-se: 1) Babilônia; 2) X`ian e 3) as colônias da herança clássica: Olinto que possuía 4 vias principais que percorriam o assentamento no sentido norte-sul (Figura 3). Pompéia que era estruturada por três vias de maior importância: duas paralelas e um perpendicular. Priene onde a quadrícula era composta por 7 vias principais, que cortavam o sítio de leste a oeste, acompanhando as curvas de nível e 15 vias secundárias, ladeiras no sentido norte–sul. A cidade reconstruída de Mileto também possuía traçado urbano em quadrícula e vias estruturantes.

PNUM 2016 196

Compõe ainda a categoria Tarragona, que apresentava uma via estrutural que separava a residencial da ocupação militar. Também está inserido no grupo Trijullo, onde o tabuleiro de ruas retilíneas define os quarteirões. Por fim, inclui-se Neuf-Brisach, com formado em estrela e ruas em tabuleiro.

1

2

3

Figura 3. Assentamentos com traçados urbanos em quadrícula: 1. Trujillo, 2. Mileto; 3. Olinto Fontes: Google Earth, https://coisasdaarquitetura.files.wordpress.com/2010/06/miletusplan.jpg e http://pt.slideshare.net/CintiaNogueiradeCarvalho/grcia-e-roma-prof-thays-zenkner

Dentre os assentamentos com traçado radial10 inserem-se Ur, Uruk e Mari e Palma Nova ( Figura 4).

1

2

Figura 4. Assentamentos com traçados urbanos radiais: 1. Palma Nova, 2. Mari Fontes: http://www.cpp.edu/~aehacker/arc362/Northern%20Italy%20and%20Palladio/Images/7605.jpg e http://pazhayathu.blogspot.com.br/2010/11/uru-big-boat-bepur-calicut.html

Há que se considerar ainda os assentamentos com uma espécie de costura de malhas, como Timbuktu onde se verifica traçado irregular e quadrícula, a última resultado de uma intervenção ocorrida no século XIX, a ocupação com traçado irregular apresenta vias troncais mais claras do que a ortogonal que apresenta lotes mais definidos, porém não expressa hierarquia viária. Compõe ainda a categoria o Condomínio Alphaville Lagoa dos ingleses e três cidades limitadas por água: Ilha de Moçambique com ruas

10 As ruas principais de alguns dos assentamentos assim classificados tem a tendência ao radial.

PNUM 2016 197

irregulares na parte norte- “Cidade de Pedra”, costuradas a uma ocupação com traçado de tendência radial ao sul- “Cidade Macuti”; Ilha de Paquetá onde se verifica também a ocupação ao sul com traçado irregular e ao norte vias principais com tendência radial; e a ribeirinha Afuá, que apresenta três cidades em uma, na ocupação original a tendência é o traçado radial, na primeira expansão irregular e na última, ainda em fase de consolidação, traçado projetado em quadrícula ( Figura 5). 1

2e3

4

Figura 5. Assentamentos com traçados urbanos mistos – 1. Mapa de Paquetá, 2. Parte de Timbokitu, 3. Parte de Ilha de Moçabique (Cidade de Pedra e Cidade Macuti ) e 4. Mapa de Afuá Fontes: http://cabana-on.com/Turismo/Paqueta/mapa.htm; Google Earth e Secretaria de Obras de Afuá- PA

Nos assentamentos “projetados” com traçado em quadrículas e radiais, verifica-se que as vias estruturantes ligam as portas de acesso aos limites. Essas vias são as mais largas da amostra, garantem continuidade extramuros, abrem uma perspectiva frente à finitude do traçado intramuros. Para exemplificar vejamos as Via Dell Abondanza e Via dela Fortuna, em Pompéia. Os assentamentos com traçados irregulares em sua maioria possuem uma rede de vias com hierarquia, porém com certa descontinuidade que não favorece grandes perspectivas e não possuem relação direta com os acessos aos limites. Nos sistemas com muros físicos destaca-se o papel das portas. Mari possuía 7 portas, Megido apresentava 3, Pompéia 8, Itchan Kala 4, Ávila 9 (UNESCO, 2015) e Palma Nova 3 acessos. Os assentamentos com limites visíveis e muros invisíveis apesar de mais permeáveis possuem menos acessos formalmente constituídos: Marvão possui apenas uma porta. À Ilha de Paquetá chega-se apenas por meio de embarcações, assim como em Afuá. É válido notar que em ambas existe apenas um acesso formal. Cidades como Mari, Ur, Babilônia e Tarragona apresentavam acessos por terra e por água: os portos eram importantes portas de entrada. Quanto à mobilidade, nos sistemas menores verificous-se que a configuração favorece meios de transporte que priorizam velocidades reduzidas. Em Paquetá e Afuá não há circulação de veículos motores. Outro PNUM 2016 198

aspecto configuracional recorrente é a presença de cursos d’água importantes para estruturação urbana dos sistemas e para possibilitar o uso de outros meios de transportes. São observados em Ur, Mari, Babilônia, Veneza e Afuá. Aspecto interessante é a relação dos lotes com os limites. Nas cidades de muros físicos e traçados regulares verifica-se que os lotes não ocorrem rentes aos muros. Nas cidades de muros físicos com traçados irregulares como Carcassone, verifica-se que alguns lotes teêm como limites a muralha. Nos assentamentos com muros invisíveis os lotes se conformam à geografia que determina o limite.

LOCALIZAÇÃO ESTRATÉGICA Os assentamentos com traçado em quadrícula e muros físicos, as cidades da herança grega e Tarragona localizavam-se sobre montanhas, reflexo das funções militares. As cidades com limites naturais visíveis e muros invisíveis, com exceção de Marvão e Ilha de Paquetá 11, funcionaram como entrepostos: Veneza era um centro intermediário entre o Oriente e o Ocidente; Timbuktu, entreposto para a rota sul trans-saariana; Ilha de Moçambique exerceu importante papel na rota portuguesa para as Índias; Itchan Kala lugar de descanso para caravanas que cruzavam o deserto do Irã e Afuá entreposto na entrada do estuário amazônico. Conclusão O artigo procurou investigar semelhanças configuracionais entre assentamentos limitados em diferentes culturas, e dos achados pôde-se concluir que: 1) a maioria dos sistemas apresenta manchas contínuas, confirmando a propensão de controle e submissão dos limites; 2) na análise das malhas urbanas constatou-se que apesar dos traçados variados, a maior parte dos sistemas apresenta vias estruturantes; 3) os lotes e quadras são mais definidos nos assentamentos com traçados em quadrícula que predomina nas cidades de muros físicos, exemplificando o controle e planejamento; 4) dos assentamentos com limites geográficos e muros invisíveis nenhum apresenta traçado em quadrícula, recorrem a traçados mistos ou irregulares onde lotes são subordinados aos limites, uma espécie de acomodação; 5) quanto aos acessos os exemplares com muros físicos apresentam mais entradas formais; 6) nos assentamentos regulares os lotes não são traçados rentes aos muros; 7) de uma forma geral os sistemas são compactos, com quadras curtas e geralmente adensadas, podendo ser percorridos em pouco mais de uma hora, seja por meio de via retilínea, ou através de diversas mudanças de direção.

11 As duas cidades nasceram como lugar de refúgio onde se buscavam segurança e descanso.

PNUM 2016 199

Como se vê, os desdobramentos das análises configuracionais apontaram características que reforçaram a função que tem os limites de separar, segregar, proteger, ilhar, isolar e abraçar o espaço urbano, criando cidades limitadas apenas no sentido geográfico. Referências bibliográficas Benevolo L (2015) História da cidade, Perspectiva, São Paulo. Cahill N (2002) Household and city organization at Olynthus, Yale University Press, Yale. Disponível em: . Acesso em: 06 de dez. de 2015. FHW - FOUNDATION OF THE HELLENIC WORLD. A walk through ancient Miletus. Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2015. Gondim M F (2014) A travessia no tempo: homens e veículos, da mitologia aos tempos modernos, PPG/FAU/UnB, 2014, Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília. Gondim M (2006) Cadernos de desenho: ciclovias, Monica Gondim, Fortaleza. Heaton E W (1961) O mundo do Antigo Testamento, Zahar, Rio de Janeiro. Lamas J M R G (2004) Morfologia urbana e desenho da cidade, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Medeiros V (2012) As cidade e o labirinto: a configuração espacial em assentamentos brasileiros, in: Holanda F (Org.). Ordem& Desordem: Arquitetura & Vida Social, FRBH, Brasília, 47-66. Medeiros V(2015) Notas de aula da disciplina “Evolução Urbana”, Programa de Pós Graduaçãp e, Arquitetura e Urbanismo/FAU-UnB. Medeiros V (2013) Urbis Brasiliae: o labirinto das cidades brasileiras, Editora Universidade de Brasília, Brasília. Morris A J E (1984) Historia de la forma urbana: desde sus orígenes hasta la Revolución Industrial, Gustavo Gilli, Barcelona. Mumford L (1968) A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas, Martins Fontes, São Paulo. Mumford L (2008) A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Martins Fontes, São Paulo. UNESCO. Ávila. Disponível em: < http://whc.unesco.org/en/list/348Acesso em: 10 dez . 2015. UNESCO.

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http://portal.unesco.org/es/ev.php-

URL_ID=45692&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html> Acesso em: 12 dez. 2015

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2. Heranças patrimoniais e regeneração urbana

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Ofícios e Rios: uma análise da regeneração urbana nos bairros Olarias e Poti Velho em Teresina – Piauí Ana Falcão, Ingred Sampaio, Vitória Alencar¹, Karenina Matos, Wilza Lopes² Universidade Federal do Piauí Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, Bairro Ininga. CEP: 64049-550. Teresina, Piauí, Brasil. (1) Estudantes de graduação do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Pesquisadoras do Laboratório Urbano da Paisagem - LUPA/UFPI. (2) Professoras do Departamento de Construção Civil e Arquitetura – DCCA/CT/UFPI. Coordenadoras do Laboratório Urbano da Paisagem - LUPA/UFPI. [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected]

Resumo As atividades de pesca, de olaria e de cerâmica foram consolidadas desde o século XVIII na região do encontro dos rios Poti e Parnaíba em Teresina – Piauí, devido à abundância de peixes e jazidas de argila. A presença dessas atividades foi um fator de grande importância que impulsionou o crescimento urbano na região de estudo, onde hoje existem os bairros Olarias e Poti Velho. Os ofícios, cultura e religiosidade da comunidade local formam a herança patrimonial da região, reconhecida pela população teresinense. O presente artigo tem como objetivo analisar as transformações causadas, entre 1990 e 2015, pelos processos de regeneração urbana que incluem os investimentos públicos: Polo Cerâmico do Poti Velho, Centro de Produção de Arte Santeira, Associação dos Artesãos em Cerâmica do Poti Velho, criação da Incubadora do Artesanato Artístico de Teresina – INART e do Parque Ambiental do Encontro dos Rios, que deveriam contribuir para a conservação do patrimônio cultural e simbólico. A metodologia fundamentou-se em fontes bibliográficas, orais, documentais e de campo.

Palavras-chave Regeneração Urbana. Patrimônio Cultural e Simbólico. Poti Velho. Olarias. Ofícios.

Introdução A paisagem é o ponto de maior atração da região dos bairros Poti Velho e Olarias. A Lagoa dos Oleiros e as margens dos rios Poti e Parnaíba destacam-se e diferenciam esses bairros que têm em suas histórias uma relação direta com esses elementos naturais. Não só como componente estético, a presença dos rios e da lagoa motivou o povoamento e o desenvolvimento da área. A presença da água na paisagem constitui um elemento considerado por vários autores como de atração praticamente universal, relacionado com múltiplas dimensões da percepção humana e apreciado, não só pela visão, como também pelos outros sentidos (SDUDLYD, 1999, 236).

Os rios remetem aos ofícios da região: passadas de pai para filho, ou repassadas por mestres a iniciantes, a cultura se perpetua e se valoriza. Patrimônios imateriais, os ofícios e a religiosidade estão PNUM 2016 205

relacionados entre si, compreendendo as especificidades locais. Conforme o Art. 216 da Constituição Federal Brasileira de 1988 (BUDVLO, 1988): Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BUDVLO, 1988).

Logo, ofícios, cultura e religiosidade da comunidade formam a herança patrimonial da região, reconhecida pela população teresinense. Nesse sentido, faz-se necessária a busca pela proteção dessa herança patrimonial e preservação da paisagem ribeirinha por meio do processo de regeneração urbana da área de estudo. De acordo com Mendes (2013) o processo de regeneração urbana se trata de uma abordagem em diversos âmbitos que busca a qualidade de vida da comunidade envolvida. Em suma, trata-se de uma nova política urbana que procura a requalificação da cidade existente, desenvolvendo estratégias de intervenção múltiplas, orquestrando um conjunto de ações coerentes e de forma programada, destinadas a potenciar os valores socioeconómicos, ambientais e funcionais de determinadas áreas urbanas, com a finalidade de elevar substancialmente a qualidade de vida das populações residentes (MHQGHV, 2013, 36).

O fenômeno da regeneração urbana possibilitaria ações emblemáticas e transformadoras nos bairros Olarias e Poti Velho, zonas postergadas, e as integrariam com a cidade de Teresina num movimento de resgate da herança cultural. Nesse contexto, as intervenções urbanas entre 1990 e 2015 nesses bairros resultam da necessidade de reestruturação funcional e, portanto, são também resultado de uma tentativa de aproveitamento do potencial turístico e cultural da região que incluem os investimentos públicos: Polo Cerâmico do Poti Velho, Centro de Produção de Arte Santeira, Associação dos Artesãos em Cerâmica do Poti Velho - Acepoti, criação da Incubadora do Artesanato Artístico de Teresina – INART e o Parque Ambiental Encontro dos Rios. Contextualização Na região do encontro dos rios Poti e Parnaíba, a abundância de peixes, solo fértil e jazidas de argila foram determinantes para o processo de ocupação, caracterizando-se como comunidade pesqueira, oleira e ceramista. Esse processo é resultado da localização privilegiada, que se constituía em local de passagem obrigatória a qualquer viajante que se deslocasse de Oeiras, antiga capital do estado do Piauí.

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Em vista de impossibilidades para que Oeiras permanecesse como a capital do Piauí, chegou-se à conclusão de que era indispensável a mudança da capital. A Vila do Poti foi uma das alternativas apresentadas para a nova capital, pela proximidade dos rios Poti e Parnaíba, porém a região vinha a ser frequentemente afetada por enchentes acompanhadas de insalubridade. Assim, foi escolhido um novo local, em uma área mais alta e sem riscos de inundação, mas ainda na margem do rio Parnaíba, a Vila Nova do Poti. Em 1852, José Antônio Saraiva elevou-a à categoria de cidade e a instituiu como nova capital do Estado do Piauí (CKDYHV, 2013). A antiga área, nas proximidades dos dois rios, passou a ser chamada de Vila Velha do Poti, e posteriormente, com a cidade mais urbanizada, como bairro Poti Velho. Já a área que se desenvolvia próximo ao encontro dos rios e da lagoa dos Oleiros compreenderia o bairro Olarias. Ao longo de sua ocupação, o bairro Poti Velho sofreu grandes transformações em decorrência do crescimento urbano. Na paisagem, percebem-se as residências construídas em taipa devido a abundância de argila fornecida pelas olarias na região e pela população ser de baixa renda. Metodologia A metodologia fundamentou-se em fontes bibliográficas, orais, documentais e de campo. As análises foram feitas consultando-se a legislação vigente sobre os temas, Legislação Ambiental de Teresina. Realizou-se entrevistas com moradores e trabalhadores da área de estudo, que foram convidados a responder um questionário elaborado pelas autoras. No questionário havia perguntas sobre o que representa os bairros e os rios e qual a visão deles sobre o impacto dos novos investimentos feitos na área. Também foram realizadas entrevistas com representantes de projetos da Prefeitura Municipal de Teresina e com a Promotora do Meio Ambiente do estado do Piauí. Paisagem Ribeirinha na identidade localdos bairros Poti Velho e Olarias De acordo com Saraiva (1999) o movimento dinâmico dos rios remete a renovação e continuidade, harmonizando seus elementos físicos e socioculturais e unindo-os, porém, a paisagem no entorno dos rios Poti e Parnaíba (Figura 1) não apresenta tal harmonia. De fato, eles foram desde a ocupação fonte de subsistência, de produção e de renda, além de serem também locais onde a população sempre pôde reencontrar sua identidade. Porém, ao longo do tempo, a exploração de tal paisagem não priorizou a valorização de sua riqueza histórica e cultural.

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Figura 1. Área do encontro dos rios Poti e Parnaíba. Os bairros Olarias e Poti Velho em destaque.

As atividades desenvolvidas na região estão sempre ligadas a essa paisagem: a pesca, a extração de argila na lagoa para fabricação de tijolos e, posteriormente, peças cerâmicas constituem a verdadeira herança patrimonial cultural da região. A própria atividade pesqueira associada à religiosidade da população, gerou uma identificação com São Pedro (protetor dos pescadores), dando origem a essa importante manifestação de fé que também ocorre nos rios – onde, nos festejos do mês de junho, a imagem de São Pedro é seguida em um cortejo flúvio-terrestre que se finaliza na Igreja de N. Sra. do Amparo, no bairro Poti Velho. Outrossim, a extração de argila realizada na Lagoa dos Oleiros, com particularidades semelhantes à pesca, no que diz respeito a sua prática rudimentar e à mão de obra, também integra tal herança, visto que representa uma atividade pertencente à identidade e à memória da região. No entanto, é uma atividade de grande potencial modificador da paisagem e, infelizmente, responsável por inúmeros impactos ambientais. De acordo com a Resolução n° 001 de 23 de janeiro de 1986 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), o impacto ambiental pode ser definido como: [...] qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: I a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II as atividades sociais e econômicas; III a biota; IV as PNUM 2016 208

condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V – a qualidade dos recursos ambientais (CONAMA, 1986).

Com base na resolução, é possível enumerar alguns dos efeitos ambientais gerados pela atividade, como a mudança do solo e da topografia original, assoreamento e poluição dos rios, desmatamento das margens ribeirinhas e maior vulnerabilidade. Apesar disso, a extração da argila possibilitou um ofício extremamente importante para a região: a fabricação de peças artesanais em cerâmica (Figura 2). A produção ceramista iniciou-se timidamente após a década de 1960, com a chegada do artesão Raimundo Camburão, que instalou o primeiro torno artesanal para a produção de filtros de barro (RRUL], 2010). O ofício se desenvolveu progressivamente, sendo fortalecido pela criação da INART – (Incubadora do Artesanato Artístico de Teresina), que visa apoiar o artesanato do Piauí proporcionando a geração de emprego e renda, o empreendedorismo e a adequação de novas tecnologias que não causem danos ao meio ambiente.

Figura 2. Potes cerâmicos em processo de secagem, fabricados por artesãos do Poti Velho.

A parceria da INART com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) proporcionou, inicialmente, cursos de capacitação aos artesão da Acepoti (Associação dos Ceramistas do Poti Velho) e, posteriormente, através de ações que culminaram na construção do Polo Cerâmico do Poti Velho em 2006, local de produção e comercialização das peças fabricadas (SLOYD, s/d, 4). De acordo com Londres (2001), práticas culturais, artefatos e ritos só se tornam referências culturais quando são valorizadas por sujeitos definidos. Há na região a tentativa de atualizar as técnicas e peças cerâmicas a fim de chamar a atenção de novas gerações, sem que a tradição da produção morra. Inclusive, a construção do Polo Cerâmico foi uma iniciativa advinda da persistência dos artesãos em

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perpetuar o ofício e difundi-lo como atividade característica da cidade. Assim, tal aspecto marcante da região em estudo, o trabalho cerâmico, compreende e fabrica uma riqueza patrimonial para o país. Em 2015, foi implantado na região o Centro de Produção de Arte Santeira, introduzindo a produção e o ensino da técnica de entalhe em madeira, que embora seja uma iniciativa interessante não estimulou a interação dos usuários do bairro com a atividade, devido à forte afinidade com o artesanato cerâmico. Os ofícios citados anteriormente também contribuíram bastante para modificar e, em alguns casos, deteriorar a paisagem ribeirinha, porém há outros elementos que também provocaram esse processo. Na área em estudo, os rios e a lagoa estariam sempre no horizonte, em todos os ângulos de visão do observador, não fossem por algumas edificações que bloqueiam a visão direta. A própria ocupação das margens dos rios e da lagoa modificou a paisagem. O desenho urbano dos bairros sugere o distanciamento da comunidade com a paisagem ribeirinha, devido à parte das margens estarem ocupadas com residências irregulares. É possível observar o afastamento das novas gerações com a paisagem, onde as presenças dos rios e da lagoa só são percebidas no dia-a-dia devido ao trajeto da casa até o local de trabalho. Nota-se, também, a associação desses cursos d’água a significados negativos como: poluição e perigo. O Parque Ambiental Encontro dos Rios foi uma tentativa positiva de fazer com que a paisagem fosse preservada de forma atrativa na região. Criado através da Lei Municipal nº 2.265 de Dez/1993 (THUHVLQD, 1993), nele a paisagem foi utilizada para criar um ponto, além de turístico, de identidade. A presença da estátua do Cabeça de Cuia remete a lenda mais simbólica da cidade. O encontro dos dois rios que envolvem a cidade de Teresina, Poti e Parnaíba, é um evento de grande beleza e o tratamento de uma área para receber observadores aumenta o seu valor (SRXVD, 2009). Ocupações Irregulares x Inundações A região em estudo sempre esteve sujeita a fortes enchentes. Sua localização, seu solo argiloso e a presença de grandes corpos d’água interligados pelo sistema de lagoas de drenagem existente, atribuemna determinada sensibilidade ao período de chuvas. Na enchente ocorrida em 1970, o governo do Estado do Piauí construiu um dique de proteção na Avenida Boa Esperança. Posteriormente, o dique foi prolongado até conjuntos habitacionais adjacentes. Na mesma época, também foram implantados dois sistemas de recalque, um na Lagoa dos Oleiros e outro na do Mocambinho e um projeto de controle de cheias, interligando diversas lagoas, onde é feito um bombeamento de água para o Rio Parnaíba através de canais e dutos de conexões. No entanto, essas ações não foram suficientes para impedir novas inundações (LRSHV e MRXUD, 9-10).

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A necessidade de moradia e renda da população, a ausência de planejamento e fiscalização dos órgãos públicos responsáveis provocaram a expansão da ocupação e uso do solo de maneira desordenada e irregular em toda área, transformando-a em um local de vulnerabilidade socioambiental e, portanto, mais suscetível a inundações. Desse modo, há uma problemática delicada sobre a situação dessas habitações muito próximas às áreas alagadiças, que também seriam Zona de Preservação de acordo com a a Lei Municipal n° 1.939, de 16 de agosto de 1988 (THUHVLQD, 1988), e atualizada pela Lei Complementar nº 3.563, de 20 de outubro de 2006 (THUHVLQD, 2006). O Processo de Regeneração Urbana de 1990 até 2015: Investimentos públicos A configuração urbana da área, na década de 1990, negava seu potencial turístico-ambiental e não promovia a integração com o centro de Teresina, pela falta de investimentos que valorizassem a paisagem e a cultura local, além da região carecer de serviços básicos, como saneamento e vias de acesso estruturadas, não acompanhando o desenvolvimento da cidade. De acordo com os resultados das entrevistas com moradores e trabalhadores dos bairros, não houve mudanças significativas entre 1990 e 2015 na infraestrutura e serviços públicos. No entanto, houve algumas tentativas para amenizaras questões ambientais e socioculturais por meio da Prefeitura Municipal de Teresina e do governo do Estado do Piauí através de investimentos (Figura 3) reconhecidos pela população local.

Figura 3. Localização das intervenções: Parque Ambiental Encontro dos Rios, Polo Cerâmico e Centro de Produção de Arte Santeira.

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O primeiro deles foi a inauguração do Parque Ambiental Encontro dos Rios (1996) que estimulou nas comunidades o interesse pela conservação e recuperação dos recursos naturais e, sem causar impactos ambientais negativos, propicionando o turismo ambiental com uma infraestrutura de apoio aos visitantes. O parque (Figura 4) foi avaliado como satisfatório pela maioria dos entrevistados, pois trouxe visibilidade e geração de renda para a comunidade, mas ainda requer melhorias nas condições de atendimento aos visitantes.

Figura 4. Vista aérea do Parque Ambiental Encontro dos Rios. Fonte: Piaui Tour (http://www.piauitour.com/teresina/).

Nas imediações do Parque, em 2006, foi construído o Polo Cerâmico, para substituir as casas de taipa dos artesãos, visando organizar a fabricação e comercialização das peças cerâmicas. Funcionando na avenida Des. Flávio Furtado que margeia o rio Poti, o Polo tem capacidade para 27 ateliers, cada uma possui sua própria oficina e local para armazenamento dos produtos. As lojas foram distribuídas para os artesãos que na época faziam parte da Acepoti e um espaço que mais tarde abrigaria a Cooperativa de Artesanato do Poti Velho (Cooperart). No lado oposto dessa avenida, há residências cujo os moradores também desempenham a mesma atividade, comercializando suas peças na calçada. O Polo Cerâmico proporcionou impactos positivos na economia local, tornou-se ponto turístico e de referência do bairro Poti Velho para os teresinenses. Apesar disso, a edificação tem sua fachada principal voltada para o lado contrário ao rio Poti, e sua forma prolonga-se paralelamente a ele, criando uma barreira física e visual entre comunidade e rio (Figura 5). Não há entre as lojas nenhum acesso ou abertura onde o rio possa ser visto. Essa sensação de distanciamento descaracteriza o próprio bairro, desvalorizando a paisagem ribeirinha.

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Figura 5. Comparação do antes (2005) e depois (2013) da construção do Polo Cerâmico no bairro Poti Velho. Fonte: Google Earth moficada.

Resultados A atividade oleira, a pesca nos rios e posteriormente a exploração da produção de cerâmica tornaram a paisagem agente modificador. Muito além de bem-estar, conforto climático e resgate da natureza, os elementos naturais marcantes da região possibilitaram e possibilitam o seu desenvolvimento econômico. Observa-se que a grande maioria dos moradores possui relação familiar e/ou trajetórias pessoais que remetem ao exercício desses ofícios, o que comprova uma relação intrínseca destes com a identidade do local. Tais como essas atividades de subsistência e a religiosidade demarcada pelo catolicismo popular se constituem marcadores da herança cultural dos bairros Olarias e Poti Velho. Existem tentativas para modificar questões ambientais e socioculturais como as que foram citadas no presente artigo. Atualmente, o Programa Lagoas do Norte - PLN, da Prefeitura Municipal de Teresina, ainda em 2ª fase, é responsável pelas últimas modificações no cenário da paisagem e da situação das APP(s) dos bairros em estudo. O programa é formado por um conjunto de ações que busca melhorar a drenagem da água das cheias dos rios, além dos problemas sociais, ambientais e urbanísticos. Uma das ações será a reforma do Parque Ambiental Encontro dos Rios, que, de acordo com o projeto, contará com uma melhor infraestrutura e mirante. Além disso, o projeto prevê a utilização de área próxima à Lagoa dos Oleiros para o lazer e o reassentamento involuntário de famílias que estão em áreas de risco ou em áreas requeridas pelas obras do PLN. Para que seja possível o reassentamento de famílias, o projeto conta com a construção de residenciais, um deles, o Zilda Arns, já foi entregue em 2010.

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Portanto, analisa-se que ainda não se alcançou uma íntegra regeneração urbana na região. Assim, dos diversos processos que poderão existir, desde a simples renovação física a uma intervenção mais profunda, busca-se aqueles que promovem a verdadeira regeneração, não só num plano da matéria construída, mas com integração social e resolução dos problemas vivenciais dos bairros Olarias e Poti Velho. Referências bibliográficas Brasil (1988) Constituição da República Federativa do Brasil, Senado Federal, Brasília. Chaves M (2013) Obras completas, Fundação cultural Monsenhor Chaves, Teresina. Conselho Nacional do Meio Ambiente (1986) Resolução n° 001 de 23 de janeiro de 1986, disponível em: www.mma.gov.br/port/conama/legislacao/CONAMA_RES_CONS_1986_001.pdf (acesado em 25 de março de 2016). Londres C (2001) Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio, Revista Tempo Brasileiro, 147. Lopes W , Moura M (2006) Lagoas da Zona Norte de Teresina e seu Entorno: Uma Análise Ambiental, Universidade Federal do Piauí,Teresina. Mendes L (2013) A regeneração urbana na política de cidades: inflexão entre o fordismo e o pós-fordismo, Urbe Revista Brasileira de Gestão Urbana , 1 (5), 33-45. Roriz P (2010) O Trabalho do Artesão e suas Interfaces Culturais Econômicas, Universidade de Brasília, Brasília. Santos M (1988) Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teórico e metodológico da geografia, Hucitec, São Paulo. Saraiva M (1999) O rio como paisagem: gestão de corredores fluviais no quadro do ordenamento do território, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Silva T (s/d) O homem sua arte seu lugar: Promoção de empreendimentos voltados para o desenvolvimento local e setorial, SEMDEC, Teresina. Sousa G (2009) Análise de parques de beira-rio em Teresina – Piauí, Universidade de Brasília, Brasília. Teresina (1998) Legislação Ambiental de Teresina nº 1.939 de 16 de agosto de 1998, Prefeitura Municipal de Teresina, Teresina. Teresina (2006) Lei Complementar Municipal nº 3.563 de 20 de outubro de 2006, Prefeitura Municipal de Teresina, disponível em: www.semplan.teresina.pi.gov.br (acessado em 23 de janeiro de 2016).

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Intervenção em centro urbano tombado buscando critérios estéticos para preservar a sua ambiência histórica Fernanda Vierno Faculdades Integradas Teresa D'Avila, FATEA, Lorena-SP Brasil. Rua Carlos Rizzini, 26, apto. 112, Jardim das Nações , Taubaté-SP, BRASIL. Telefone: 00 55 12 997070775 [email protected]

  Resumo São Luiz do Paraitinga é uma cidade paulista, de ricas tradições culturais, cujo centro histórico é tombado pelo IPHAN e possui um conjunto significativo de casas térreas e sobrados de porte, erguidos em sua maioria entre os anos de 1850 e 1880 em taipa de pilão e de mão, que surpreende seus visitantes pela unidade visual, pela homogeneidade do conjunto e pela regularidade e simetria das suas edificações. Essa harmonia estética tem origem no plano de ocupação do território, típico da época caracterizada como “iluminista” de Marquês de Pombal para os novos assentamentos urbanos erguidos no Brasil na época em que era Império. Este plano regulador procurava tratar a arquitetura como consequência da planificação urbana, promovendo a uniformidade e o alinhamento das fachadas e buscando uma elegância estética, simétrica e regular do casario. A principal praça da cidade encontra-se hoje com lacunas urbanas, oriundas do desabamento de alguns edifícios após a ocorrência de uma grande enchente no local em janeiro de 2010. Mas apesar da destruição causada, que arrasou parte do patrimônio arquitetônico da Praça Dr. Oswaldo Cruz, a uniformidade característica do casario do início do povoado ainda é possível de ser vista na configuração do cenário urbano atual. O presente artigo pretende mostrar uma metodologia de leitura e avaliação da atual ambiência da praça e apresentar soluções de preenchimento das lacunas urbanas existentes, inserindo novos elementos criteriosamente, de forma a obter novamente a harmonia visual do ambiente urbano, sem falsear o aspecto estético do conjunto e nem propor uma nova arquitetura que imponha sua presença sobre a anterior. Através de uma documentação arquitetônica do quadro atual foi possível se ter a compreensão das características morfológicas e estéticas do local e identificar as tensões visuais existentes que devem ser eliminadas para recuperar a percepção deste ambiente por inteiro. Entende-se que o conjunto préexistente jamais voltará a existir, mas qualquer intervenção no local deverá dialogar em harmonia com o ambiente histórico desta praça, já tão cheia de caráter. O resultado da leitura e documentação embasou a proposta de intervenção, que teve por objetivo requalificar a área desta praça com uma nova arquitetura que atenda às necessidades do usuário, que tenha funcionalidade, que seja criativa e que adicione valor estético-artístico à materialidade existente. Pretende-se mostrar aqui uma sequência de trabalhos que possa servir de exemplo e ser aplicada em outros contextos históricos urbanos. Palavras-chave ambiência urbana, centro histórico, percepção ambiental, leitura e documentação, requalificação urbana

  1. O objeto de intervenção O centro histórico de São Luiz do Paraitinga, cidade paulista fundada em meados do século XVIII, surpreende seus visitantes pela unidade visual, pela homogeneidade do conjunto e pela regularidade e simetria das suas edificações. Essa harmonia estética tem origem no plano de ocupação do território, típico PNUM 2016 215



da época caracterizada como iluminista, que procurava tratar a arquitetura como consequência da planificação urbana, promovendo a uniformidade e o alinhamento das fachadas e buscando uma elegância estética, simétrica e regular do casario. Apesar da enchente de janeiro de 2010 que arrasou parte do patrimônio arquitetônico da cidade, essa conformação urbana do início do povoado ainda é possível de ser vista na configuração do cenário urbano atual (Figura 1). 









Figura 1. A área em estudo envolve a Praça Dr. Oswaldo Cruz e casario ao seu redor, que corresponde ao espaço ocupado por 32 lotes.

 O desafio atual é entender como se deve intervir nesse rico ambiente histórico, visando a recomposição do que se perdeu, sem falsear o aspecto estético do conjunto e nem propor uma nova arquitetura que imponha sua presença sobre a anterior. O mapeamento de cheios e vazios da área, nos mostra que o vazio que se formou com as perdas totais é menor do que o tecido remanescente, o que permite que a leitura parcial do conjunto urbano ainda seja possível de ser feita. A situação contrária o condenaria à condição de ruína. Além disso, através de uma documentação arquitetônica do quadro atual foi possível se ter a compreensão das características morfológicas e estéticas do local e identificar as tensões visuais existentes que devem ser eliminadas para recuperar a percepção deste ambiente por inteiro. (Figura 2). 

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Figura 2. Perfil e leitura dos cheios x vazios das edificações da quadra 02.





A figura 2 representa uma parte do estudo realizado, que mostra a composição volumétrica dos edifícios de um lado da praça e a tensão visual que a lacuna no tecido figurativo proporciona ao ambiente urbano. 2. O valor intrínseco do patrimônio tombado Será adotada neste momento a posição de observador objetivo, com certo distanciamento da obra de arte para poder analisar o monumento histórico em estudo. A Praça Dr. Oswaldo Cruz é considerada aqui como este “monumento” a ser avaliado. Serão examinadas as formas de recepção, de percepção e de fruição do monumento através de atribuição de valores a ele. A Praça Dr. Oswaldo Cruz é o espaço físico urbano constituído por todos os elementos que a compõem: o mobiliário urbano, a vegetação, as estruturas de apoio e o casario ao seu redor. Ela é reconhecida como obra de arte a partir da bipolaridade aspecto-estrutura, sendo a estrutura todo esse conjunto arquitetônico que a constitui, que inclui os materiais e as técnicas construtivas dos edifícios que a compõem, a condição de luminosidade do conjunto e o traçado urbano da área. Já o aspecto é a imagem emanada deste suporte material absorvida pela consciência de um observador. A praça é também para os luizenses palco das diversas manifestações culturais da população. As festas têm um caráter único neste ambiente, ao serem realizadas dentro de um cenário próprio, que qualifica os eventos. Segundo o historiador de arte austríaco Max Dvořák, as obras do passado têm valor na medida em que estão em constante relação com a vida presente e não são consideradas como algo distante 1. Preservar o casario ao redor da Praça Dr. Oswaldo Cruz é também preservar as representações culturais de um povo. “A preservação desse ambiente do passado significa assegurar que as várias formas de manifestações, inclusive as que ocorrem no presente, possam coexistir, permitindo que os monumentos

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Riegl A apud, Dvořák M (2008) Catecismo da preservação de monumentos, 55. PNUM 2016 217





históricos atuem como efetivos e fidedignos suportes materiais da memória coletiva” (Kühl in Dvořák, 2008, 57). Nada tem valor por si só, tudo tem valor atribuído. Segundo a teoria elaborada pelo historiador de arte Aloïs Riegl, os valores são esquematizados em valores de “rememoração” e valores de "contemporaneidade”. O valor artístico é um valor contemporâneo e ele é reconhecido no momento em que satisfaz ao “Kunstwollen2” do presente. Quanto ao valor histórico, segundo Riegl, este é um elo de uma cadeia. “O progresso mostra certa organicidade e evolução. Se todos os elos são importantes, então tudo aquilo que tem testemunho, tem valor histórico. Por outro lado, toda vez em que há uma ruptura de um ciclo histórico, há um recomeço” (Vierno, 2011). Ao se tratar de valor artístico e valor histórico em monumentos arquitetônicos, muitas vezes descobrimos os dois valores atrelados. De acordo com o pensamento de Riegl valor artístico não supera o valor histórico, mas o valor histórico tem de certa forma, secundariamente, valor artístico. O valor imaterial de São Luís do Paraitinga se encontra na concentração e preservação de uma grande gama de manifestações culturais. A cidade conserva as tradições populares através das festas “religiosasprofanas”, mas a responsabilidade por manter viva esta cultura advém de sua população, sempre ativa e criativa. Segundo Brandi, a materialidade não deve se sobrepor à imaterialidade. A cultura é a maior riqueza da população e o patrimônio arquitetônico é apenas parte da ambiência que existe nesta cidade. Várias modalidades de artes e atividades culturais estão presentes no cenário cultural da cidade. O turismo cultural é representado por festas e tende a uma consideração cenográfica do ambiente urbano. Dentro desse cenário urbano, a Praça Dr. Oswaldo Cruz é o local de maior convergência humana em épocas festivas. A ambiência da praça está sendo aqui citada como essa imaterialidade existente naquele espaço, presente no uso que a população faz da praça, na cenografia que o casario constitui em dias de festa, na importância que o monumento religioso assume ao convergir a população para o local, na relação direta das casas com a rua por meio de suas aberturas de porta e janelas no alinhamento da fachada frontal, e na homogeneidade da linguagem arquitetônica existente, que permite um ritmo agradável ao olhar nas edificações que circundam a praça e o monumento religioso.  O conceito de Kunstwollen (que, em alemão, significa literalmente "vontade da arte") foi criado pelo historiador da arte austríaco Alois Riegl, que o entende como uma força do espírito humano que faz nascer afinidades formais dentro de uma mesma época, em todas as suas manifestações culturais.

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3. O restauro de recomposição O ambiente da praça Dr. Oswaldo Cruz que se pretende trabalhar está lacunar, faltando grandes elementos na sua composição. Estes vazios urbanos podem ser preenchidos com novas edificações que atendam às necessidades atuais da cidade e as formas de intervenção podem seguir critérios diversos. As opções de preenchimento e recomposição são: 

Reconstrução idêntica dos edifícios perdidos;



Reconstrução simplificada baseada na releitura das formas dos antigos volumes;



Nova arquitetura de formas contrastantes;



Novos edifícios com linhas contemporâneas que partem da mimese do entorno.

Entende-se que o conjunto pré-existente jamais voltará a existir, mas qualquer uma das opções de intervenção deverá dialogar em harmonia com o ambiente histórico desta praça, já tão cheia de caráter. Além disso, a futura intervenção deverá ser testemunho da época atual, documentando também as técnicas construtivas do presente. 3.1. Reconstrução idêntica dos edifícios perdidos A primeira opção de intervenção propõe a reprodução de uma cenografia urbana para depois adaptá-la a novas funções. Essa ação é aqui questionada, pois a dinâmica urbana, as técnicas construtivas e as necessidades habitacionais são diversas nos dias de hoje. Não se pretende adotar a linha do restauro científico, onde a prioridade é a história e não a arte, e nem restabelecer a materialidade das formas baseando-se em documentos fotográficos e em outros dados que provem como este centro histórico foi um dia. No caso da igreja Matriz, no entanto, há de se considerar a vontade da população, que pediu aos órgãos públicos a sua reconstrução. O seu valor simbólico para a cidade é grande, mas aqui se discute se o antigo monumento carregava uma simbologia agregada que qualificava a forma anterior como insubstituível, ou se o maior valor deste monumento era ser o ponto focal da paisagem urbana, relacionado à sua volumetria e à congregação dos fiéis na praça. É defendido aqui que mais importante do que “engessar” a cidade para que esta seja admirada pelo seu cenário arquitetônico, o real valor de São Luiz do Paraitinga está na ambiência do conjunto arquitetônico, na cultura do seu povo, nas tradições religiosas, folclóricas e artesanais que ainda existem, e que tanto têm atraído olhares de turistas e historiadores. Como a construção do casario foi uma solução artística condicionada por fatores específicos, a reconstrução idêntica dos edifícios que ruíram está, portanto, descartada como opção.

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3.2. Reconstrução simplificada baseada na releitura das formas dos antigos volumes Procurando resgatar a unidade visual que hoje se encontra parcial, sem reconstruir o que foi perdido, chegase a pensar em simplificar as formas que um dia ali existiram, propondo novos edifícios que não contrastem com os antigos. Porém, é preciso também evitar a situação em que se recupera a forma, mas não a aparência, aquela intervenção em que se dá mais importância à materialidade e menos à expressão artística. Não se pretende, por exemplo, propor em São Luiz do Paraitinga o preenchimento dos vazios com um bloco uniforme e monocromático de casas. Esta atitude não estaria levando em consideração a ambiência do local, onde a pluralidade das formas e expressões são tão características na arquitetura quanto no uso dos edifícios. Segundo o historiador Max Dvořák (2008, 95), “as reconstruções aproximativas jamais poderão substituir aquilo que realmente existiu, pois as antigas construções não foram realizadas segundo um fazer passivo, como geralmente ocorre nas obras arquitetônicas modernas, mas cada uma delas foi uma solução artística condicionada por fatores específicos, o que a torna irreproduzível, assim como não se pode ressuscitar um homem medieval de sua sepultura”. Poderia ser seguida a linha de Giovannoni, que buscava reintegrar os monumentos sem falseá-los, adicionando materiais novos e modinatura simplificadas. Porém, tratando-se de edifícios faltantes num centro histórico, essa postura poderia levar à elaboração de um “pastiche neutro”, de edifícios sem personalidade. Descarta-se então também a 2ª opção de intervenção. 3.3. Nova arquitetura de formas contrastantes Como 3ª opção, temos aquela adotada pelos modernistas, que propunham o contraste para afirmar uma novidade. O emprego de materiais contemporâneos é uma atitude coerente quando se fala em valor histórico, pois a intervenção estaria respeitando o caráter dos edifícios antigos a partir do momento em que o novo tem também nova identidade. Além disso, o pano de fundo do ambiente antigo estaria conferindo historicidade ao moderno. No entanto, a nova arquitetura não deve ser mais chamativa do que a antiga, pois estaríamos anulando o valor já reconhecido neste ambiente histórico. Existem casos de intervenções modernas em centros antigos que, na intenção de serem neutros, acabaram ganhando mais destaque, e se tornaram “a figura”, deixando o casario histórico como “pano de fundo” (Figura 3). 

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Figura 3. Intervenção na Praça da Sé de Salvador em que o edifício com fachada de vidro, de linguagem neutra mas contrastante se sobressai aos outros. Foto: acervo CECRE



 Deve ser evitada também, uma arquitetura vistosa e de apelo comercial, típica de grandes centros urbanos, considerando que esta não dialogaria com a simplicidade de São Luiz do Paraitinga, nem com os hábitos cotidianos da população local. 3.4. Novos edifícios com linhas contemporâneas que partem da mimese do entorno A quarta opção propõe a construção de novos edifícios com o emprego de materiais contemporâneos e formas novas e criativas, cuja concepção arquitetônica parte da mimese da pré-existência, buscando ambientar os novos edifícios ao ambiente urbano sem usar o recurso da cópia e nem usar o recurso do contraste. Uma nova forma de expressar a cidade pode ser materializada através de novos edifícios, sem deixar que a harmonia e o ritmo estético atual sejam rompidos, como mostra o exemplo abaixo (Figura 4). Nesta opção de intervenção a atitude de “tapar os buracos” é rejeitada e a nova expressão artística é incentivada.



Figura 4. Loja de departamentos em Roma, de Franco Albini – edifício em estrutura metálica e fechamento com materiais pré-moldados, um bom exemplo de um edifício que dialoga com a pré-existência. Foto: Nivaldo Andrade Jr

 Nesta linha de intervenção, mais importante do que o edifício físico, é a ideia por trás dele, o seu conceito artístico. A proposta de intervenção neste ambiente deverá lidar com a restauração da ambiência do local, tomando o cuidado para não mudar a percepção do ambiente histórico. É preciso identificar os valores artísticos e históricos desta praça e a leitura estética que ainda é possível de ser lida. As características da ambiência da Praça Dr. Oswaldo Cruz são: PNUM 2016 221



D Destaque da igreja E Praça como local de convergência humana F Casas no alinhamento da rua G Predominância do uso misto nas edificações H Ritmo marcante de cheios e vazios nas fachadas A proposta de intervenção, de acordo com essa linha de restauração, tem por objetivo requalificar a área desta praça com uma nova arquitetura que atenda às necessidades do usuário, que tenha funcionalidade, que seja criativa e que adicione valor estético-artístico à materialidade. 4. A restauração da unidade plena A Praça Dr. Oswaldo Cruz está sendo tratada neste estudo como uma “obra de arte” que precisa voltar a ter sua unidade plena. Será adotada para esta obra de arte a linha da “restauração crítica” do arquiteto italiano Cesare Brandi. Segundo este teórico, quando a natureza unitária de uma obra de arte está rompida por algum motivo, seja ela por degradação, mutilação ou acréscimos espúrios, ela está fragmentada, apresentando lacunas em seu tecido figurativo e precisa, portanto ser restaurada para recuperar plenamente sua unidade preexistente. Além disso, “a falta de um edifício no casario histórico tombado proporciona a falta de interpolação dos edifícios uns com os outros” (Vierno, 2011). E como ainda existe uma coesão artística neste tecido urbano, a atividade restaurativa se torna indispensável. A restauração da leitura plena da praça é interpretada como o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, que é o segundo princípio da teoria de Brandi. A restauração, para Cesare Brandi, deve conseguir o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte enquanto seja possível alcançá-lo, sem cometer uma falsificação artística, nem uma falsificação histórica e sem apagar as marcas da passagem da obra através dos tempos. (Brandi, 1996, 49)

 Na praça, é possível dizer que o casario existente é histórico, representativo de uma época próspera da cidade, que os exemplares remanescentes apresentam valores estéticos e que o seu conjunto representa parte considerável do valor artístico ali reconhecido. A “obra de arte” existe potencialmente e por isso ainda é possível se ter a leitura desta obra de arte. A restauração é o que vai fazer esse conjunto voltar a ter sua unidade plena. A obra que ainda possui esta leitura artística, mas está fragmentada, não possui uma unidade plena, e sim uma “unidade em potencial”.

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O restabelecimento da unidade potencial deve vir com um processo criativo e é a própria obra que vai dizer até que ponto se deve atuar sem fazer um falso histórico ou um falso artístico na restauração (Figura 5). 

 Figura 5. Perfil das edificações da quadra 02 com proposta de preenchimento da lacuna existente. Detalhes construtivos: 1- Rebaixo na parede; 2- Porta de vidro; 3- Pintura texturizada; 4- Friso na argamassa; 5- Guardacorpo e bandeira com acabamento de brise de madeira

 Brandi ainda defende que a forma de cada obra é individual e a restauração por analogia não é aceitável. Deve-se restaurar a obra de arte baseando-se nas informações contidas nela própria, e não fora dela, ou seja, não justificar a intervenção com base em documentação fotográfica, mas sim na leitura que se tem do monumento no presente. É inconcebível, portanto, o restauro por imitação, ou mesmo a reconstrução do que se perdeu tal qual era, pois esta ação representa tentar resgatar o momento irreversível da criação. Nega-se, assim, a essência da condição artística cuja exigência fundamental consiste na concepção da obra de arte através de processos intuitivos, criativos, manifestada à época em que está sendo realizada. “Só é possível não cometer um falso histórico e estético com intervenções autenticamente contemporâneas, e legitimamente criativas” (Vierno, 2011). 5. A recuperação da ambiência do centro histórico Para o teórico italiano Cesare Brandi, numa obra de arte o aspecto é prioritário em relação à estrutura, pois é a imagem da obra que, ao ser absorvida pelo indivíduo, que vai possibilitar que se desenvolva o reconhecimento e a apreciação da obra de arte como tal. Qualquer intervenção restaurativa neste espaço urbano, que possui claramente uma finalidade funcional, considerará como prioridade a restauração do seu aspecto e somente como objetivo secundário o restabelecimento de seus valores materiais, pois, segundo Brandi, a singularidade da obra de arte em respeito aos outros produtos humanos não depende da sua consistência material, nem sequer da sua dupla historicidade, mas sim da sua condição artística, de onde, uma vez perdida, não resta mais que uma relíquia.

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Uma vez reconhecido como obra de arte, se define como será a restauração de um monumento. Além disso, existe uma relação inseparável entre a obra de arte e o restauro. O fato de ser arte condiciona o restauro. O restauro crítico parte da afirmação de que toda intervenção constitui um caso em si, não classificável em categorias (como aquelas meticulosamente precisadas pelos teóricos do chamado restauro „científicoெ: completamento, liberação, inovação, recomposição, etc), nem responde a regras prefixadas ou a dogmas de qualquer tipo, mas deve ser reinventado com originalidade, de vez em vez, caso a caso, em seus critérios e métodos. Será a própria obra, indagada atentamente com sensibilidade histórico-crítica e com competência técnica, a sugerir ao restaurador a via mais correta a ser empreendida. (Carbonara in Brandi, 2004, 12-13)

Neste sentido, Brandi revela que as estratégias assumidas frente a uma possível intervenção de restauração devem partir da coerência da avaliação crítica do problema da preexistência, não podendo derivar de critérios, métodos, cartilhas previamente elaborados. Em centros históricos a linguagem da intervenção é que é importante. Desse modo, podem-se usar tanto materiais tradicionais, como contemporâneos para se alcançar essa linguagem. 6. O ambiente contemporâneo Diante da destruição causada pela enchente de 2010 vê-se surgir novas possibilidades. O que é válido para uma casa, vale também para uma cidade inteira. Assim como não é possível equipar uma nova construção obedecendo às mesmas prioridades das casas antigas, o mesmo vale para novas edificações em centros históricos: não é necessário reconstruir o tecido urbano arruinado, mas ele pode ser mantido realizando-se as adaptações pertinentes. E graças à possibilidade de ainda se ter uma leitura do conjunto arquitetônico da praça, uma nova expressão artística surgirá para fazer reviver a cultura de todo um povo. A intenção final da intervenção projetual sobre a Praça Dr. Oswaldo Cruz é permitir que a praça, após o restabelecimento de sua unidade plena, desperte nos observadores das mais diversas sensibilidades artísticas, a sensação de uma harmonia estética, apesar das diferentes épocas em que foram erguidas as edificações neste ambiente urbano. O ambiente contemporâneo que se pretende criar contará com arquitetura e mobiliário urbano contemporâneos, que utilizarão métodos construtivos atuais e que dialogarão com equilíbrio e harmonia com o ambiente histórico.  Referências bibliográficas Brandi C (2004) Teoria da restauração, Ateliê editorial, São Paulo. Dvořák M (2008) Catecismo da preservação de monumentos, Ateliê editorial, São Paulo. Gallo H (2008) Identidade e autenticidade no tempo presente: flutuações da preservação do patrimônio cultural, PNUM 2016 224



in ArquiMemória 3 – Encontro Nacional de Arquitetos sobre preservação do patrimônio edificado, FAUFBA, Salvador. Gonçalves A L (2010) Metodologia para elaboração de plano de iluminação urbana de conjuntos históricos e tradicionais, in IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico nacional, metodologia de pesquisa e multidisciplinaridade: anais da segunda oficina de pesquisa, IPHAN, Rio de Janeiro. IPHAN (2010) Dossiê São Luiz do Paraitinga, SR IPHAN-SP, São Paulo. La Regina A (1982) Preservação e Revitalização do Patrimônio Cultural na Itália, FAUUSP, São Paulo. Murta S M e Albano, C (Org.) (2002) Interpretar o patrimônio: um exercício do olhar, Ed. UFMG, Território Brasilis, Belo Horizonte. Riegl A (2006) O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese, Editora da UCG, Goiânia. Saia L, Trindade J B (1977) São Luis do Paraitinga, Publicação nº 2, CONDEPHAAT, Governo do Estado de São Paulo, São Paulo. Trindade J B (1977) No caminho do Paraitinga, CONDEPHAAT, São Luís do Paraitinga, Governo do Estado de São Paulo, São Paulo. Vierno F (2011) Anotações de aula: Teoria da conservação e do restauro, profa. Dra. Odete Dourado, UFBA/CECRE, Salvador.

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Casa do Barro: Memória Viva da Olaria no Telhado, freguesia do Fundão Rúben de Matos Departamento de Engenharia Civil e Arquitetura, Faculdade de Engenharia, Universidade da Beira Interior Calçado fonte do Lameiro 6200-001 - Covilhã, Telefone/fax: 00 351 275242059 - 00 351 275240895 [email protected]

Resumo Situada no Telhado, Freguesia do Concelho do Fundão, a Casa do Barro vem colmatar a falta de visibilidade e divulgação de uma herança cultural característica desta região. Ao ser reabilitado um conjunto edificado degradado e devoluto com fim à musealização de toda a atividade e produção ligada à olaria construi-se a memória de uma povoação espelhada num novo equipamento de caris cultural e educacional. A premissa de conceber este projeto e dar valor ao que de melhor se produziu, em tempos, veio permitir a musealização do património e, mais importante, manter viva a memória do que foi, e continua a ser, esta terra. Este espaço, respeitando a malha do modelo da Casa Senhorial utilizada para o efeito, é revitalizado com o objetivo de afirmação identitária, mas também de forma a dar resposta a várias frentes, tais como, a animação cultural e turística em meio rural, as atividades lúdicas intergeracionais, e a vontade de expor as origens romanas que resultaram na terra com o topónimo: Telhado. Neste seguimento, observa-se na Casa do Barro a inclusão de programas relacionados com a prática museológica, exposição do processo de concretização do barro, a realização de palestras, em espaço dedicado ao mesmo (auditório), e, por fim, a criação de espaços dedicados à execução de Workshops, tanto em zona interior como exterior incluindo um forno telheiro no projeto expositivo. Será trazido a debate o processo conceptual que gerou esta reabilitação, assim como todo o percurso técnico e museológico que levou à concretização de uma reabilitação que permite a regeneração dos interesses culturais, por vezes esquecidos, desta região. Palavras-chave Fundão; Museu; Olaria; Projetos; Reabilitar

Introdução A necessidade, cada vez mais denotada na sociedade atual, de cultura e elementos turísticos levam-nos a um incentivo à reabilitação arquitetónica em Portugal. A época dos museus e casas de exposição continua a manter-se viva, na sua génese, de forma a colmatar algumas lacunas sociais e culturais. Vivendo numa altura em que a sociedade atual está fortemente descaracterizada, há a vontade de se voltar a promulgar e a conhecer os antepassados. Aí pode-se ver a ligação da arquitetura vernacular que procura manter traços identitários daquelas populações, mas também da arquitetura presente em cada espaço.

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A Casa do Barro, é mais uma entre tantas ao longo do país, que teve origem na vontade profunda de uma população “sedenta” de cultura e origens. Deste modo, procurou-se investigar sobre a freguesia em questão, passando a conhecer melhor o que dela havia a aproveitar, passando pelo motivo que levou a Câmara Municipal de Fundão a abraçar este projeto e, por fim, uma análise de todo o programa ao longo do decorrer do projeto expositivo do museu. Um espaço que alie o saber à memória, os costumes à multigeração que por ali poderá passar. 2. Área de Intervenção Situada na freguesia do Telhado, Concelho do Fundão, a obra vem relembrar e manter vivas as origens desta população. Esta freguesia, com cerca de 600 habitantes, dista cerca de 10 quilómetros da cidade do Fundão e abrange uma superfície total de 17,52 quilómetros quadrados a uma altitude de 525 metros de altitude, integrando-se, através do seu constante relevo, em plena área da bacia orográfica do rio Zêzere. De origens temporais e fundacionais, parcialmente conhecidas, terá sido a partir da segunda metade do século XVIII que esta comunidade se enraíza na paisagem e assume o topónimo Telhado. Quiçá, assume esta designação devido à existência de vestígios da passagem romana, como por exemplo de um forno telheiro. Estes vestígios arqueológicos são qualificados pela comunidade de alto interesse, devido à forte presença dos mesmos nesta área territorial do concelho e pela forma como designadamente foram marcando o território fundanense. Exemplo disso é, ainda, a estação de Carantonha, distante cerca de um quilómetro da povoação desta freguesia, como se pode comprovar na afirmação de Candeias da Silva: Dali deve ter saído aquela bela lápide com inscrição romana, que a Junta de Paróquia ofereceu ao Dr. Leite de Vasconcelos em 1916 para o seu museu; ali apareceram tijolos completos e fragmentos de potes, bem como uma pedra de instalação sanitária que foi levada para o Museu do Fundão. Nas proximidades foi encontrada em 1916 pelo Dr. Vasconcelos uma torsa de columbário, que estava a servir de degrau na entrada da capela alpendrada de S. Sebastião, cerca de 500 m a NNE da aldeia, no caminho da Sra. Da Rosa ou Vale de Carantonha. 1

Posto isto, sabe-se que o concelho do Fundão era caraterizado pela abundância de argila (matéria-prima constituinte do barro) não só pelos artefactos e vestígios encontrados no local, mas também pela quantidade de barreiros que existiam na região. Entende-se por barreiro o local onde se depositava a argila que, devido à forte diferença de argilas presente no terreno, serve também para o trabalho de lotação da

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Silva, Candeias da, Fundão, Ecos de um Passado Milenar... PNUM 2016 228

matéria com outra terra vermelha mais fraca, no caso da primeira ser muito forte, ou seja, difícil de moldar e retirar impurezas naturais. No Fundão, estes Barreiros existiam em São Bartolomeu, Carantonhas e Ortigal e serviam toda esta zona territorial. Sabe-se ainda, que, em tempos, para a quantidade populacional que habitava esta freguesia, aproximadamente um quarto da mesma estava diretamente ligada à olaria tendo os próprios meios de trabalho na área de residência para que o trabalho pudesse ser realizado não só pelo homem, mas também por toda a família, sendo esta vista como uma atividade familiar, funcionando com repartição de tarefas. Por exemplo, o oleiro recriava os utensílios na roda e enfornava a loiça, a mulher e os filhos preparavam e limpavam o barro, o abastecimento de água e a recolha de lenhas e de arbustos necessárias à cozedura do barro. Desde o chiar da roda, ao calor saído da boca do forno, eram várias as sensações sentidas durante o decorrer de todo o ano, contudo as segundas-feiras de cada mês tinham um valor e sentido mais aliciante. Falamos da venda, do mercado, do comércio, com algum volume, que levavam às feiras habitantes de outros concelhos vizinhos, e não só, que faziam com que “mercados cheios, verdadeiramente maciços: (...)” pudessem dar animo e algum rendimento económico às famílias dos oleiros. 3. Propósito da Musealização Na atualidade, cada vez mais é demarcada a desertificação populacional do interior do país, mais propriamente das aldeias, onde as comunidades populacionais que aí viviam no século XX deram lugar a espaços devolutos por falta de uso e cuidados de quem ali vivia. Isto ocorre devido à migração populacional do século XX e XXI que tem como consequência principal o envelhecimento precoce da população em Portugal. Desta feita, as gentes do Telhado sentiam com o passar dos anos a carência e a falta de reafirmar das suas origens e o valor das mesmas. (Figura1) A cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida. A moldura à procura de retrato, é isso que eu vejo quando revisito o meu lugar de nascimento. Não são ruas, não são casas. O que revejo é um tempo, o que escuto é a fala desse tempo. Um dialeto chamado memória, numa nação chamada infância.2

O pensamento de Mia Couto vem de encontro ao exposto, pois as origens são o fundamento de uma população, a sua conservação, o seu património. Consequentemente, surge a necessidade de criar um espaço onde estas gentes possam rever-se enquanto memória viva do seu passado.

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Couto, Mia, Pensatempos PNUM 2016 229

Figura 1 Extrato de Noticia, Jornal Gazeta do Interior 16 de Setembro de 2015

4. PROGRAMA

A vontade de querer e ver reafirmadas as suas origens faz com que este povo venha exigir uma obra digna da sua representação. Assim, a escolha do local, por parte da autarquia local, foi fácil. A única casa senhorial da aldeia com grande valor patrimonial onde está implementada a sede da Junta de Freguesia no piso térreo. Esta casa era composta por dois pisos de habitação e sótão, uma capela anexa com elementos da época barroca, e ainda um jardim exterior que continha um forno antigo utilizado por estas gentes para a cozedura, em tempos, de telhas, tijolos e vasos decorativos de vários géneros. Durante o processo de reabilitação do edifício a poder albergar o museu teve-se em conta o valor patrimonial e o valor sentimental que aquele tinha para a população e dai não se alteraram quaisquer elementos estruturais. Entende-se por elementos estruturais, paredes principais e paredes divisórias do espaço, alterando somente a imagem interior do espaço tornando-o mais simples de modo a valorizar o que ali seria exposto, o Barro. O soalho antigo de madeira é alterado por um novo piso de madeira de carvalho, as paredes de cada divisão que antes eram coloridas com diferentes cores dão lugar à simplicidade do branco em harmonia com a pedra dos vãos de janelas e portas mantidas da malha original da casa. Também a caixilharia foi alterada por uma mais recente e discreta que pudesse proteger o que ali se iria expor no futuro. Indo de encontro ao programa do projeto expositivo e ao planeamento da obra enquanto museu, este dividiu-se em três grandes momentos: o primeiro, localizado no primeiro piso e prologando-se ao longo do segundo piso, introduziu-se a receção (primeiro piso), e o museu na sua génese ao longo de cinco salas PNUM 2016 230

(segundo piso). Num segundo momento, o tratamento do piso térreo num auditório para futuras palestras e num espaço amplo dedicado à pratica de workshops e futuros eventos da promoção do barro e da olaria. Por fim, o terceiro momento passa-se no exterior. Este continha um antigo forno comunitário, e foi tratado com alguma vegetação e com o calcetamento do terreno com pequenos paralelos de granito, sendo este tipo de pedra típica e bastante propicia no concelho. Nesta fase inicial, fez-se a distribuição das salas consoante o conteúdo pedido e a ordem que foi tida como a mais correta no processo do barro na vida destas pessoas. Deste modo, a primeira sala era dedicada à matéria em questão, o barro, com o nome “Matéria da Vida” e definida por uma citação de um popular local: Quando Deus Formou Adão Dum bocadinho de barro Nem as terras davam pão Nem o mar era sagrado... 3

A segunda sala designa-se como “Terra do Barro”, e reflete o trabalho das origens daquela povoação, mas fala ainda da olaria em concreto pela voz de um oleiro. Este aborda as diferentes fases da olaria, desde o barreiro até ao produto final para venda através de esquemas. Seguindo a uma terceira sala damos conta de um espaço dedicado já às louças na fase final com elementos concretos, desde peças decorativas a cântaros e peças do quotidiano. Esta tinha o nome de “As Louças e os Usos” e continha ainda um segundo painel referente à fase das feiras com o título de “Vendas”. Ou seja, até agora podemos ver um seguimento coeso na relação de união entre o barro e a terra do barro, o Telhado. A sala de projeção, é a sala que se segue e que nos leva até à ultima sala, que podemos dizer que é a sala principal da Casa do Barro. Nesta, designada de “Matéria da Vida”, podemos ver a projeção de testemunhos daqueles que dedicaram a sua vida à olaria e ao uso do barro. As projeções valorizam neste momento as pessoas que fizeram do Telhado a “terra do barro” do concelho. “Rostos da Memória” é o nome dado à ultima e mais solene sala deste espaço. Este irá conter o maior espólio a estar em exibição constituindo o fim da história contada ao longo do percurso das outras salas. Aqui ressalta a emoção, o sentimento, tudo o que a vida, por vezes, faz esquecer. Das simples fotografias de todos os oleiros do Telhado já ausentes nesta vida terrena, a outras que remontam às feiras, aos dias passados em redor do forno e até mesmo no adro da aldeia, tudo aqui é revivido, mantido, de novo memorizado e gravado nos corações daqueles que por ali passam. No que respeita ao edifício:

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Neto, Joaquim, Texto inédito PNUM 2016 231

Casa de habitação de nobreza, o paço distinguia-se por ser maior que as restantes casas, não só por elevar sistematicamente em dois pisos, como também pelo maior número de divisões interiores. Inserido predominantemente nos senhorios rurais que a nobreza detinha, era, também, sinal explícito do poder fundiário e político-administrativo dessa classe, não admirando, por conseguinte, a coincidência praticamente total de paço como sinónimo de poder.4

Passando a uma segunda fase do projeto, a cargo do atelier do Arquiteto Pedro Novo, tratou-se do projeto expositivo, isto é, tudo o que diz respeito ao que vai ser implementado no interior do edifício quanto à sua imagem. Assim tratou-se do desenho do mobiliário interior e consecutivamente, em conjunto com outras entidades como designers e arqueólogos, do design de tudo o que ali se iria expor. Quanto ao desenho dos expositores, tentou fazer-se uma linha simples de modo a não tirar a atenção das peças que posteriormente iriam ser expostas. Estes foram concebidos em ferro pintado de cor preta, sendo esta uma cor elegante e ao mesmo tempo neutra, podendo fazer uma analogia ao material utilizado pelo oleiro na hora de retirar as peças do forno, espátula em ferro. Ainda no programa do museu implementou-se a “Torre das Palavras” dedicada ao poeta português nascido no Telhado, Albano Martins. Nesta, complementada com três salas quadrangulares, uma por cada piso, estão expostas algumas peças, por exemplo livros e passagens da vida do autor e que levam a mais um momento de valorização patrimonial e cultural do que a aquela terra produziu tal como refere o poeta: Tens uma paleta a que faltam algumas cores. Talvez porque há substâncias a que não soubeste dar expressão. Ou porque elas são incolores. Ou porque em toda a realidade há fendas que nem pela palavra nem pela cor alguma vez saberás preencher.5

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Silva, Custódio V. da, Fundão, Ecos de um Passado Milenar... Martins, Albano, Escrito a Vermelho, Paleta

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5. Conclusões

A importância da conservação e materialização da arquitetura vernacular em consonância com as origens dos antepassados é cada vez mais necessária à valorização do que somos enquanto seres humanos. A reabilitação destes espaços e a respetiva musealização vem, desta forma, dar resposta às necessidades populacionais a nível histórico e cultural, mas também desenvolver e dar a conhecer o que podemos fazer com a arquitetura, sendo esta a mais completa e complexa do universo das artes.

6. Referências Bibliográficas Couto M (1955) Pensatempos, Ed. Caminho, Moçambique Martins A (1999) Escrito a Vermelho, Paleta, Ed. Campo das Letras, Porto Neto J (1936) Texto inédito, Telhado Silva C V (s.data) Fundão, Ecos de um Passado Milenar..., Ed. Héstia, Paços de Ferreira    

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O Mercado Público de Laguna: Uma inserção atemporal na inconstância da urbanidade Tueilon de Oliveira Florianópolis, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. UFSC Rua Lauro Müller, 334. Apto 103, Centro, Tubarão, SC. +55 48 99529433 [email protected]

    Resumo Este artigo apresenta um estudo investigativo a respeito das propriedades históricas do mercado público de Laguna e sua relevância para a memória urbana local e regional. O trabalho foi estruturado de acordo com pesquisas bibliográficas contextualizando história, memória urbana e patrimônio. A análise subsequente aborda o mercado público nos dias atuais assim como em outros momentos distintos de sua história, que se inicia com a construção do mercado no final do século XIX. Dessa forma, a pesquisa baseia-se na coleta de dados históricos - registros fotográficos e bibliográficos - e a sua interpretação nos contextos urbano e regional de acordo os tempos distintos em que o mercado se situa na forma de equipamento urbano. Palavras-chave Patrimônio histórico, mercado público, memória urbana.

 Introdução A cidade como conhecemos hoje é caracterizada pela ação antrópica sobre a natureza. Evidentemente, não se trata de uma intervenção instantânea mas, sim um processo contínuo. Como consequência desse processo obtém-se um traçado urbano que interliga formas arquitetônicas distintas cujo resultado é composto por uma contínua sobreposição de camadas, desde a formação inicial das cidades até o momento atual. Pesavento (2004) conceitua o espaço urbano como “uma paisagem social, fruto da ação da cultura sobre a natureza, obra do homem a transformar o meio ambiente” (Pesavento, 2008, P.27). Ademais, a apropriação e interação das pessoas com esse espaço social gera vivências urbanas cujas variações podem definir um espaço como marco ou referência de um lugar em certos períodos de tempo. Cada indivíduo escolhe seus próprios pontos de referência como modo de se situar espacialmente e temporalmente no meio urbano. Todos nós, que vivemos em cidades, temos nelas pontos de ancoragem da memória: lugares em que nos reconhecemos, em que vivemos experiências do cotidiano ou situações excepcionais, territórios muitas vezes percorridos e familiares ou, pelo contrário, espaços existentes em um outro tempo e que só tem sentido em nosso espírito porque narrados pelos mais antigos, que os percorreram no passado. Estes espaços dotados de significado fazem, de cada cidade, um território urbano qualificado, PNUM2016 235

a integrar esta comunidade simbólica de sentidos, a que se dá o nome de imaginário. Mais do que espaços, ou seja, extensão de superfície, eles são territórios, porque apropriados pelo social. (Pesavento, 2008, 3)

Os núcleos urbanos concentram grande parte dos pontos referenciais de uma cidade. Da mesma forma, conforme definição de Pesavento (2008, 4), “Ser o núcleo mais antigo de um assentamento urbano implica poder contar, de forma visível ou não, com a certeza de ser o sítio portador do traçado original da urbe”. Ibidem (2010), relaciona os conceitos de história e memória, ambas como narrativas distintas do passado. O centro das cidades é um local que evoca intensamente estas duas narrativas, pois, constitui-se dos pilares cuja base solidifica a estrutura urbana, ainda que, eventualmente, processos de degradação e abandono se sobrepõem a estes espaços. A isto relacionam-se também os conceitos de identidade urbana e construção de paisagem assim como as conexões entre a paisagem natural e os elementos edificados. Essa relação mostra-se de modo singular em cidades construídas às margens de rios, lagos, ou em cidades costeiras, dotadas de excepcional apelo estético e simbólico. Considerações sobre Mercados Públicos ao Longo do Tempo Os espaços de troca marcam a centralização e constituição das cidades. O escambo consolida a essência dos espaços urbanos e é marco histórico presente nas cidades desde a antiguidade; a Ágora, na Grécia antiga - considerada a grande praça do comércio - era tratada como local de reunião pública, definido pela força da palavra, advinda majoritariamente das reuniões públicas nela realizadas. Conforme Teixeira (2002, 43) “O mercado grego, além de lugar de compras de alimentos e outros objetos, pela natureza do convívio de pessoas de diferentes procedências e classes, era um espaço público pleno de vida”, convívio de pessoas de diferentes classes sociais, e palco de manifestações artísticas e discussões políticas. O mercado público surge como uma necessidade de abastecer uma cidade ocupada por cidadãos que não mais produzem o próprio alimento e tampouco controlam todas as etapas de uma produção manufatureira que precede os eventos da Revolução Industrial. Esta que altera profundamente a estrutura social e física das cidades no século XIX e, consequentemente, nas propriedades arquitetônicas dos mercados. Além das atividades comerciais propriamente ditas o mercado passa a ser um símbolo citadino, palco de eventos, manifestações culturais e cívicas e polo de atração turística. (Yamamoto, 2008)

Com o advento do pós-modernismo, em meados do século XX a necessidade de utilização do mercado sofre intensa mudança, pois são criados os centros de compras especializados sob o conceito de shopping centers, locais fechados, precedidos por grandes áreas de estacionamento e geralmente afastados do centro das cidades que polarizam o consumo de bens. Aliada a expansão de supermercados e outros locais de compra, a soberania do mercado público sobre o comercio citadino diminui gradativamente. (Guirardo, 2002) PNUM 2016 236



Contextualização Geopolítica Municipal O município de Laguna está localizado no sul do estado de Santa Catarina, à 120km da capital Florianópolis. A cidade possui população estimada de 44.650 habitantes (IGBE, 2015) e é integrante da Associação dos Municípios da Região de Laguna (AMUREL) juntamente com os municípios de Armazém, Braço do Norte, Capivari de Baixo, Tubarão, Imaruí, Imbituba, Jaguaruna, Rio Fortuna, Sangão, Santa Rosa de Lima, São Martinho e Treze de Maio. (Figura 1)     

  Figura 1. Localização de Laguna

  Laguna apresenta um conjunto de paisagem bastante complexo, formado por dunas, praias, promontórios e restingas. É notável a grande variedade de fauna e flora, assim como a existência de sítio arqueológicos de sambaquis. Laguna está incluída na Área de Proteção da Baleia Franca (APA) 1 e o núcleo urbano original de Laguna foi tombado pelo Iphan em 1985.2 Hoje, a preservação desse contexto está comprometida; a paisagem cultural da cidade é ameaçada pela urbanização incipiente e pela cultura do turismo sazonal. Citadim (2010) destaca a degradação e descaracterização do patrimônio em virtude do uso e ocupação do solo, agravado nas últimas décadas pelo processo crescente de ocupação da costa devido à segunda residência e do turismo sazonal. O que ocorre em Laguna - assim como em muitas cidades brasileiras - é a ocupação exploratória, capitalista e predatória do território sem uma contrapartida do poder público e a ausência de políticas públicas direcionadas para a preservação do patrimônio cultural e natural da paisagem.  



Área de proteção ambiental que cobre grande parte da costa catarinense, desde Florianópolis à Rincão. Mais informações em: 2 Em 2015, o tombamento do centro histórico de Laguna completou 30 anos. Instituído em 1985, o decreto protege 600 edificações construídas em estilo luso-brasileiro, eclético e art-deco. 1

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Processos de Ocupação do Território Lagunense Desde meados do século XVIII, Portugal estava sendo impulsionado pela Inglaterra para a penetração do Prata. A colônia de Sacramento conformava o último ponto ao sul dos domínios de Portugal, mais próximos à foz do Prata. O último ponto do território português ao sul das américas seria marco vivo do domínio lusitano, sendo então formadas expedições colonizadoras pessoas foram enviadas para colonizar essa região. O ano de fundação de Laguna fica em 1676. (Vettoretti, 1992) No início do século XIX, inicia-se então a colonização por imigrantes europeus, italianos e alemães, que chegavam pelo porto de Laguna e “ficavam na beira da praia, nos trapiches, esperando embarcações e seguiam para as colônias do estado de Santa Catarina” (Citadim, 2010, 86). Gradativamente, o núcleo urbano foi se expandindo com a formação de novos ajuntamentos, que iriam conformar futuramente os bairros como o Magalhães, e o Campos de Fora, e assim, Laguna acompanhou as mudanças geradas pelo advento da Revolução Industrial tardia - que chegou ao país em meados do século XIX - trazendo mudanças nas tipologias construtivas da época, nos materiais, adornos, moda e costumes. Esta época constituiu os anos áureos de Laguna, inaugura-se a iluminação pública a petróleo, e são instalados vários equipamentos que melhoram a qualidade de vida da população, dentre eles a sede do primeiro jornal, a biblioteca pública, o teatro sete de setembro, o primeiro hotel, o hospital e o antigo mercado público. (Figura 2) 

   Figura 2. Vista aérea núcleo original de Laguna. O Antigo Mercado Público ao centro, 1890. Fonte ETEC Laguna/IPHAN, SC.

 Em virtude do relevo dos morros, da lagoa e do mar, Laguna encontra dificuldades para a expansão da mancha urbana, ainda que, mesmo com estes fatores, a cidade apresenta certa regularidade em seu traçado. As ruas que não tem influência topográfica dos morros são retilíneas, e cortam-se perpendicularmente. PNUM 2016 238



Pesquisa Histórica sobre o Mercado Público de Laguna Podem ser distinguidas duas tipologias distintas nos mercados públicos brasileiros herdados da tradição portuguesa; os mercados abertos, qualificados por possuírem vedação em grades de ferro sobre paredes de meia altura de alvenaria, e os fechados, com sistema de vedação em esquadrias e vidro. Em função do clima e da temperatura, predomina na região sul do Brasil estes últimos, como também é o caso de Laguna. O mercado público de Laguna está localizado na Rua Gustavo Richard – por onde passava a Ferrovia Dona Theresa Cristina - ao lado do cais portuário conforme mostra a Figura 3. Devido à sobreposição de todos estes fatores, o local se tornou referência e ponto de encontro, demarcando a vitalidade urbana da área.    



 Figura 3. Contexto Urbano do Mercado Público

 No mercado eram comercializados pescados frescos, camarão, siri, mariscos, assim como itens de artesanato local dentre outras mercadorias (IPHAN, 2010). O Mercado Antigo Conforme levantamento realizado pelo IPHAN (2010), a construção do primeiro mercado público de Laguna (Figura 4) é referente ao final do século XIX. Dall’Alba (1979) descreve a desorganização do comércio local antes de 1880 ao passo que Laguna encontrava-se isolada de outras localidades pelas más condições das  PNUM 2016 239

estradas, não obstante o intenso movimento do porto e do comércio marítimo. O autor ressalta ainda que o mercado era uma das necessidades reivindicadas pela população Lagunense. “Muitas são as necessidades locais... Tudo está por fazer... a barra necessita ser melhorada; cemitério ser concluído; as ruas calçadas; o mercado, o chafariz construídos... a população almeja possuir tão importantes melhoramentos” (Dall’Alba 1979, 64) (grifo nosso). 

  Figura 4. Destaque Para o Mercado Público na à direita, e a esquerda, destaque para o movimento intenso de pessoas no entorno do mercado, e à quantidade de embarcações atracadas. Inicio do Século XIX. Fonte: IPHAN

 Nota-se que neste período predominava o sentimento de prosperidade entre os Lagunenses, que o sentiam após as novas possibilidades alcançadas com construção da Ferrovia Dona Theresa Cristina. Pelos anos de 1880, com a entrada dos imigrantes e o início da exploração do carvão de pedra, Laguna parece deslanchar para o progresso. Seu porto torna a movimentarse. A colônia Italiana de Azambuja e Urussanga, A Colônia Grão Pará, da Princesa Isabel, a colônia alemã de Braço do Norte, mais os tropeiros de Lajes fazem da Laguna o grande porto de abastecimento da praça do Rio de Janeiro. O baixo calado de sua barra, porém, fez com que o porto de embarque do minério de carvão fosse construído na enseada de Imbituba. Assim mesmo, até os idos de 1910, carne, banha, madeira, açúcar, farinha e aguardente movimentaram o pequeno porto. A estrada de ferro Teresa Cristina, se não lhe trazia carvão, trazia-lhe a clientela te todo um rico interior, com seus produtos agrícolas (Laguna antes de 1880, documentário. p.171.)

A Praça do Comércio deste período compreendia a estreita faixa entre o cais e a linha férrea, onde comerciantes expunham seus produtos, estes que deviam ser removidos seguindo o apito, que anunciava a passagem da locomotiva. (IPHAN, 2010). PNUM 2016 240

A edificação do mercado data do ano de 1897, segundo estabelecido na Lei Municipal de 1894 que autorizava a construção. Obras que seriam finalizadas dois anos depois, com a inauguração do mercado público em janeiro de 1897. (IPHAN, 2010) O mercado, o porto e a ferrovia constituíam a força motriz da economia Lagunense no início do século XIX. O porto conectava a cidade com a capital da província, e a ferrovia com as cidades do interior. Com a intensificação do movimento decorrida do aquecimento da economia da época, o mercado passa a ser gradativamente mais utilizado, chegando ao ponto onde melhorias são realizadas para melhor atender a demanda local; dentre elas, a a abertura das lojas para as extremidades do mercado, tornando desnecessário entrar no mercado para comprar mercadorias.(Ibidem, 2010) Em 1919, a exploração do carvão proveniente de Criciúma determina outro marco para a economia local. Laguna celebra a prosperidade, até que, 20 anos depois, no dia 20 de agosto de 1939, passados 42 anos de sua inauguração, o Mercado Público de Laguna é incendiado. Na época, o incêndio é categorizado como “criminoso” pelo secretário de Justiça do Estado, Ives de Araújo. (Prefeitura de Laguna, 2015)   Incendiado o Mercado Municipal Ainda perdura no espírito de todos os habitantes desta cidade o pavoroso incêndio da Rua Raulino Horn, nos prédios do Sr. Luiz Gonzaga de Oliveira, incêndio que impressionou vivamente todos aquelles que assistiram a tão doloroso acontecimento. Eis que, domingo, a população adormecida, era acordada com o apito da usina dando o alarme de novo incêndio. Ardia em chamas o velho prédio do mercado público. Em menos de uma hora estava destruído pelo fogo aquelle edifício. Achavam-se localizadas no referido Mercado, 9 casas comerciaes, sendo 7 de seccos e molhados, 2 açougues e 3 cafés. Eram proprietários os Srs. Manoel Borges, Lauro Barreto, João Antônio de Bem, Antônio Cezareo, Rosa & Leite, João Barbosa, Polydoreo Amaral, Júlio e João da Silveira, Alvim Amaral, Custódio Serafim Nunes e Marcos Fernandes Goulart. (O Albor, Anno XXXVIII, nº. 1808, 26 de agosto de 1939 - página quatro apud IPHAN, 2010)   O Mercado Atual Após o incêndio que consumiu o Antigo Mercado Público de Laguna, os comerciantes passam 20 anos tendo que expor seus produtos sem nenhum abrigo, sob as condições das intempéries. As obras de construção  PNUM 2016 241

do novo mercado se iniciam em 1957 – 27 anos após a destruição do antigo mercado – este sendo inaugurado em 19 de janeiro de 1958. O novo edifício em estilo Art Deco (Figura 5) fora construído em dois pavimentos no primeiro ficando as instalações comerciais, e no segundo a sede da municipalidade Lagunense. (IPHAN, 2010) 

   Figura 5. Novo Mercado Público de Laguna, atualmente. Fonte: http://www.verdevaleam.com.br/conteudo/leitura/4727/3/Revitalizacao-do-Mercado-Publico-de-Lagunaomeca-nos-proximos-dias/2

   O novo mercado representava um marco de desenvolvimento e prosperidade para os cidadãos da época, e a edificação novamente passa a influenciar a vida citadina de Laguna, se tornando referência e ponto de encontro para as pessoas. Fato importante é o escoamento do Carvão de Criciúma, que passa então a ser realizado através da cidade de Imbituba devido à dificuldades impostas pelo assoreamento do canal, fato que abalou a economia municipal. Entrevistas realizadas pelo Iphan destacam o fluxo intenso de mercadorias e pessoas nesta época no mercado público de Laguna, superior ao movimento dos dias atuais.  “A concentração de atividades na Orla da Lagoa era intensa, pedestres, animais de carga, trem, navios e, em especial no início de cada ano a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes atraía pessoas de diversos lugares, bem como embarcações que participavam da procissão. Esta terminava sempre no porto, ao lado do Mercado Público” (IPHAN, 2010)

As relações interdependentes entre vários aspectos de uma economia pode ser lembrada no caso de Laguna. A queda de um dos pilares econômicos – a ferrovia – acarretou no declínio dos outros três. A mudança da ferrovia para Imbituba gradualmente implicou na redução do comércio no mercado e no porto. Os trens de carga ficaram em circulação em Laguna até 1965, e os de passageiros até 1970, fato decorrido  PNUM 2016 242

em função da construção da BR 101 na década de 1970, levando os transportes ferroviário e marítimo ao declínio. As relações entre o mercado e a identidade e memória urbana de Laguna.

A degradação decorrente pela falta de cuidados com o mercado público e da construção de aditivos à edificação original sem o devido planejamento arquitetônico fez com que patologias sérias se assomassem na edificação do mercado público de Laguna. Esse cenário evidencia ainda mais a decadência do mercado em relação aos anos áureos do desenvolvimento econômico municipal. Em virtude deste cenário, hoje o mercado está passando por um processo de requalificação. A adequação foi avaliada em R$ 3.779.742,16 milhões, valor investido pelo BNDES e pelo IPHAN, através da Lei Rouanet.3 O projeto de requalificação foi desenvolvido pela empresa lagunesense “Arte Real Arquitetura e Restauro”, que ganhou a licitação realizada em 2009. Em agosto de 2015, estima-se que na parte interna, 70% da revitalização e restauração já foram concluídas, e a conclusão das obras para o segundo semestre de 2016. (Prefeitura De Laguna, NOTÍCIA DO DIA 27/08/2015) O mercado público de Laguna é tido como marco representativo da cultura citadina e das oscilações do desenvolvimento econômico municipal. Como visto, muitas vezes alvo do sentimento de prosperidade nostálgica dos tempos áureos de Laguna, remanescente arquitetônico e que permanece na memória dos cidadãos Lagunenses.4 Conforme o IPHAN (2010), o mercado público que “Com o passar dos anos vai perdendo suas ‘funções e sua necessidade’ para a localidade, mas ainda é um prédio representativo no imaginário social”( IPHAN, 2010, p. 43) que remete à história da cidade e compõe o imaginário coletivo local, dotado de “valor de uso e valor museal” (Choay apud IPHAN, 2010). O mercado público de Laguna - assim como em outras cidades - pode ser visto como permanência em meio a uma urbanidade extremamente volátil, mutável. Conforme Teixeira, (2002, 85) “O Mercado é um monumento mantido em meio a alterações radicais na paisagem e nas funções urbanas em sua ambiência.”.



A Lei Federal de Incentivo à Cultura é a lei que institui politicas públicas para a cultura nacional, como o PRONAC Programa Nacional de Apoio à Cultura. 4 Entrevistas realizadas pelo IPHAN como parte integrante do Levantamento Histórico do Mercado Público de Laguna mostraram a presença do mercado na memória das pessoas e sua importância no desenvolvimento de Laguna durante o século XX. 3

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Em Laguna, o tombamento do centro histórico5 faz com que o mercado ainda esteja de certa forma, inserido em seu contexto urbano original, apesar das alterações de uso e de apropriação do espaço, hoje menos intensas.  A necessidade de conservação, preservação e valoração de espaços como o mercado público se dá pela necessidade de conservar a memória coletiva da cidade. Assim, os centros urbanos sofrem os desgastes físicos inerentes à passagem do tempo e ao uso social de tais espaços; sofrem ainda alterações de uso que modificam, apagam ou destroem a função original dos mesmos; e, por último, a centralidade pode ser acometida de uma perda de significado e de memória, sofrendo pelo esquecimento e pela falta de sentido histórico, que foi perdido através das gerações. (Pesavento,2008, 5)

O mercado remete diretamente às origens da cidade, com a justaposição as marcas da passagem do tempo, das alterações de uso, das mudanças sociais, econômicas e tecnológicas que interferem diretamente o modo de viver as cidades. O mercado público permanece, história viva e presente na vida citadina como equipamento urbano. Porém, menos utilizado e menos apropriado pela população lagunense.

 

O centro histórico de Laguna. Vista do Morro da Glória. Fonte: turismo.sc.gov.br.   PNUM 2016 244

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Regeneração e re-funcionalização. Perspetivando o futuro do(s) território(s) ribeirinho(s) de Lisboa Ana Nevado DINÂMIA’CET-IUL, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa Av. Forças Armadas, 1600-026 Lisboa, Telefone: 912277613 [email protected]

Resumo A cidade contemporânea abarca realidades complexas, mutáveis e globais cujo processo de (re)construção revela a sobreposição, rotura e articulação de momentos históricos e intenções políticas distintas. A evolução urbana e socioeconómica gera fragmentos com novas lógicas e interpretações, fomentando a necessidade de ligação com contextos pré-existentes. No rescaldo da crise mundial contemporânea e numa era marcada pelo planeamento, consideramos as heranças patrimoniais como âncoras para a intervenção (Choay, 2011) e o Plano enquanto instrumento de controlo e de (re)desenvolvimento urbano, propondo usos variados do património cultural e considerando a história e o passado urbano ao serviço do futuro. Conceptualmente, revisitam-se conceitos de conservação e restauro promovidos por Giovannoni (Rufinoni, 2012), adaptando-os aos territórios enquanto suportes da intervenção contemporânea. Exploram-se as figuras dos Planos de Conservação Integrada (Castello, 2006), que ultrapassam os Planos de Pormenor de Salvaguarda, fundamentados no passado ativo (Terán, 2009), na re-funcionalização das pré-existências (Smith, 2006), onde a relação entre História, Projeto e desenvolvimento urbano (Nevado, 2015) transmitem noções de tempo, memória e património no construído (De Gracia, 1992; Smith, 2006). A cidade e área metropolitana de Lisboa, e especificamente as zonas ribeirinhas, servem como casos de estudo nesta abordagem histórica (mas não historicista), demonstrando a evolução da cidade até à escala metropolitana, baseada no recurso ao passado, revelando o potencial virtual, físico e de poupança de recursos imbuído nas estruturas existentes. Embora os territórios ribeirinhos tenham sofrido múltiplas transformações – desde a génese rural de veraneio/lazer, passando pelos tumultuosos processos de instalação portuária, infraestruturação rodo e ferroviária, industrialização, posterior desindustrialização e declínio urbano -, consistem em charneiras cruciais nas margens do rio Tejo e de ligação a áreas centrais e periféricas. Metodologicamente, parte-se da fase de gestação da Região de Lisboa – a actual AML -, no final da década de 1950, e elabora-se uma viagem teórica pelo planeamento e pensamento crítico urbano sobre a evolução da zona ribeirinha de Lisboa até à década de 1990, cujo enfoque era a recentralização, a reabilitação e regeneração urbana. Tecem-se considerações sobre o passado/história como vantagem competitiva num mundo global, fomentando a relação entre território, população e identidade. Representando a memória colectiva, o recurso ao passado justifica e fundamenta a intervenção na cidade na atualidade, desencadeando, porém, a mudança. Conclui-se que as intervenções no âmbito da gestão de áreas urbanas críticas beneficiam da interacção entre projecto, planeamento e história, partindo de matrizes territoriais, enfatizando a re-funcionalização, visando a regeneração e promovendo reinvenções.

Palavras-chave Zonas ribeirinhas de Lisboa, regeneração urbana, re-funcionalização, passado ativo, território metropolitano. PNUM 2016 247

Introdução O célere desenvolvimento urbano, sobretudo a partir de meados do século XX, e a complexa realidade da cidade contemporânea e global (Sassen, 2001; 2014) impõe inúmeros desafios e questões relevantes no campo do planeamento e, sobretudo, da gestão urbana. O fenómeno urbano a diversas escalas (suburbano, metropolitano, ora de continuidade, ora de fragmentação) absorveu a cidade histórica e as suas referências, dissimulando a memória e a identidade (Queirós, 2005). A evolução urbana e socioeconómica gera constantemente fragmentos com novas lógicas e interpretações, fomentando a necessidade de ligação com contextos pré-existentes e perante o cenário de crise instalado na Europa e em Portugal, em particular, urge (re)descobrir caminhos de actuação viáveis do ponto de vista económico. Nesse sentido, a regeneração urbana constitui uma alternativa de relevância na cidade contemporânea, não apenas em áreas centrais, como também periféricas (Nevado, 2015). Enquanto abordagem integrada e considerando a escala metropolitana, a regeneração privilegia o re-desenvolvimento territorial nas suas diversas vertentes (i.e.: física, social, económica), onde os elementos patrimoniais existentes adquirem destaque. O crescente movimento de preservação e conservação do património, desencadeado sobretudo a partir da década de 1960, é agudizado actualmente, em contexto de crise, onde, mais do que conservar, urge garantir a continuidade das pré-existências por via da regeneração urbana e da refuncionalização. Inserido num complexo sistema de planeamento de herança funcionalista e científica, o Plano é ainda o instrumento vigente de controlo e (re)desenvolvimento urbano, definindo de usos mistos. Mas qual o papel desempenhado pelo património cultural, a história e o passado urbano nessa regulamentação? Apesar de ser notório o investimento no ordenamento do território nacional nas últimas décadas, denotase, por um lado, a sua incapacidade de resposta perante a celeridade de evolução urbana, e, por outro lado, o desaproveitamento de recursos (e.g.: ambientais, financeiros, humanos) sob uma perspectiva colectiva (Carvalho, 2012). A ineficácia do sistema advém sobretudo de: i) políticas fundiárias marcadas pela perversidade na gestão do uso dos solos e do edificado (e.g.: especulação imobiliária) (Carvalho, 2012); ii) práticas urbanísticas desadequadas face aos contextos em que se opera (Carvalho, 2012); iii) horizonte e teor abstracto dos Planos urbanos (e.g.: Planos Directores Municipais). Apesar das mudanças no quadro legal (e.g: Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio), as práticas urbanísticas carecem ainda de alterações, especialmente à escala municipal (Carvalho, 2012), e com enfoque na regeneração urbana. Perante a crise económico-financeira, urge racionalizar a utilização de recursos públicos e privados, os quais deverão ser orientados para operações urbanísticas que permitam retorno económico a médio prazo e que possam contribuir para o bem colectivo (Carvalho, 2012). Não obstante a evolução cultural e conceptual, dissecamos alguns conceitos no contexto da regeneração urbana que nos parecem triviais a considerar no sistema de planeamento e gestão na actualidade, PNUM 2016 248

nomeadamente: i) Conservação e Restauro Urbano; ii) Conservação Integrada e respectivos Planos; iii) Património; iv) Regeneração urbana. i) Conservação e Restauro Urbanos O conceito de conservação urbana foi inicialmente debatido pelo Arquitecto e Engenheiro italiano Gustavo Giovannoni, o qual fundou uma doutrina moderna de conservação e restauro (Choay, 1999). Embora a cidade histórica fosse considerada como monumento, constituía também um “tecido vivo”, em transformação, e onde tomava lugar a conservação e o restauro do património urbano, ou seja, à escala da cidade (Choay, 1999, p. 200)1. Tomando como princípio fundamental a integração de fragmentos urbanos antigos em Planos urbanos (i.e.: Directores/Municipais, Regionais e Territoriais)2, e o conceito alargado de monumento histórico (i.e.: o qual não se cinge somente ao objecto patrimonial, sendo indissociável do contexto urbano em que se insere (Choay, 1999, 200), a conservação e restauro urbanos visam abordagens integradas. Sob essa perspectiva, a conservação territorial e urbana é também vulgarmente designada por “restauro urbano”, pois considerando o estado dos centros históricos urge, mais do que conservar, restaurá-los (Queirós, 2005). ii) Conservação Integrada O conceito de CI terá surgido em Itália, na década de 1970, na sequência do processo de reabilitação do centro histórico de Bolonha no final da década anterior, sob directivas políticas que privilegiavam a eficiência administrativa, a justiça social e a participação da população (Zancheti e Lapa, 2012). Inicialmente sob o foco de regeneração integrada (i.e., recuperando a estrutura física, economia e social existente) de antigas áreas residenciais nas periferias dos centros históricos, com ênfase em espaços públicos e a na reconversão de grandes edificações em equipamentos colectivos, a CI libertou-se do cunho social nas décadas de 1980-90 (Zancheti e Lapa, 2012). Essa transformação determinaria os conceitos, práticas e políticas de revitalização, reabilitação e regeneração urbana atuais, fomentando a especulação imobiliária e o aparecimento de fenómenos de gentrification, ao induzir à substituição dos residentes por novas camadas sociais. A CI integrou, no entanto, a questão da conservação ambiental, prevendo intervenções abrangentes, à escala do território (Zancheti e Lapa, 2012). a. Planos de Conservação Integrada Os Planos de Conservação Integrada (PCI) surgiram no seguimento da expansão urbana e na necessidade de conservar e preservar áreas urbanas centrais degradadas (Castello, 2006). Os PCI

Os conceitos de monumento e património – amplamente debatidos por autores como F. Choay (1999; 2011) relacionam-se e dependem da história, da memória e do tempo (De Gracia, 1992; Smith, 2006). A evolução destes conceitos permitiu a construção de novas abordagens de conservação, manutenção e renovação de edifícios. 2 Visando relacioná-los com a contemporaneidade, justificando a sua importância e utilização, e relacionando-o com o carácter social da população (Choay, 1999, 200). 1

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ultrapassam os Planos de Pormenor de Salvaguarda (PPS)3, na medida em que prevêem abordagens integradas. Consideramos que os PCI se deverão fundamentar no passado activo4 do território (Terán, 2009), na re-funcionalização das pré-existências (Smith, 2006; Nevado, 2015), relacionando a História, a actividade projectual e o (re)desenvolvimento urbano. iii) Património Apesar de se encontrar inserido num vasto debate internacional, não existe uma definição única de Património (Smith, 2006). Em 1972, aquando do encontro científico da UNESCO em Paris, foram elaboradas recomendações de protecção do património cultural e natural perante as céleres transformações urbanas e ameaças ambientais5. Apesar de ser universalmente considerado como herança e legado do passado (Queirós, 2005), ultrapassa o domínio físico, incorporando também a dimensão imaterial e cultural (e.g.: valores) de uma dada nação (Smith, 2006). Contudo, consideramos que apenas se poderá considerar como património aquilo que se relacionar directamente com a identidade enquanto vestígio histórico e se se justificar face ao seu uso atual de uma determinada sociedade. O conceito foi sendo desmembrado e especificado, de onde destacamos o de património urbano industrial (Rufinoni, 2013), no âmbito dos territórios ribeirinhos pós-industriais. iv) Regeneração Urbana A regeneração urbana surgiu nas décadas de 1960-80 especialmente com a desafectação económica industrial, revelando a passagem da cidade antiga para a contemporaneidade (Nevado, 2015). Conduzida através de programas, projectos e fundos (inter)nacionais, a RU contribui para a recentralização, reinvenção e reforço da relação entre território, população e economia. Apesar de se aproximar dos PCI e dos princípios de conservação e restauro urbanos, a regeneração contém um carácter económico, social e político, englobando diferentes tipos de operações, dinâmicas e impactos urbanos a diversas escalas. Destacam-se as mega-operações de regeneração urbana de frentes ribeirinhas – tais como Docklands de Londres, Barcelona, Bilbao, Glasgow, Helsínquia, etc. -, marcadas pela espectacularidade, obras de autor e revitalização social e económica.

Actualmente, o enquadramento legal vigente prevê a consideração do Património Cultural, de onde se destacam os Planos de Pormenor de Salvaguarda (PPS). De acordo com a Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro de 2001 – a qual estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural – define a obrigatoriedade da existência de um PPS para a área a proteger, na sequência da classificação de monumentos, conjuntos ou sítios (vd. Artigo 53.º da Lei n.º 107/2001). Os PPS focam-se na protecção específica de elementos patrimoniais culturais, à micro-escala, e, embora considerem a envolvente, nem sempre estabelecem relações à macroescala nem promovem intervenções de regeneração urbana a escalas alargadas. 4 De acordo com Terán (2009), o conceito de passado activo remete para a cristalização do tempo no espaço e para a relação entre História e Projecto, onde o factor tempo constitui matéria de projecto urbano (Terán, 2009, 5). A cidade é uma representação cartográfica da sua história urbana, passível de transformação e, porquanto, demonstrando a sua contemporaneidade. Neste contexto, o passado deverá constituir tanto como suporte e fundamento da intervenção urbana contemporânea. 5 Vd. http://whc.unesco.org/en/conventiontext/ 3

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Seguidamente elaboramos uma breve viagem teórica sobre a evolução urbana da cidade e AML, com vista à compreensão da passagem da fase de expansão urbana à posterior recentralização, focando a reabilitação e regeneração urbana como instrumentos especialmente úteis no caso das frentes ribeirinhas. O caso de Lisboa: da expansão urbana à recentralização A cidade de Lisboa é singular no contexto do planeamento urbano pelo facto de ser a capital do País e à escala ultramarina (Metrópole), tendo sido um laboratório de experimentação ao longo dos séculos XIXXXI. Embora nas primeiras décadas do século XX (1920-30) se tenha denotado um crescimento suburbano nos arredores da cidade, foi após a II Guerra Mundial, mais especificamente no final da década de 1950, que a tomada de consciência da escala metropolitana tomava lugar. Foram elaborados estudos para a concretização do Plano Director da Região de Lisboa (1964), com vista ao ordenamento e expansão do território. Porém, o documento não passou da versão de Anteplano, tendo sido, no entanto, utilizado para a elaboração do Plano Geral de Urbanização de Lisboa - PGUCL (1967-77), de MeyerHeine6. Note-se que se partiu da escala da Região, metropolitana, para a urbanização, à escala local. A recentralização adquiriu então especial destaque a partir de meados da década de 1980 e, sobretudo, na década de 1990, com o Plano Director Municipal de Lisboa (1994), onde a reabilitação urbana era reconhecida como intervenção prioritária face às áreas urbanas centrais em processo de declínio. A Expo ’98 e a subsequente mega-operação de regeneração urbana estavam também a ser preparadas, com base em referências internacionais (e.g.: Barcelona). Assim, destacam-se as zonas ribeirinhas como alvo de intervenção pelo Município, quer pela sua importância económica, nomeadamente com actividades portuárias e industriais, quer pelo potencial de relação entre cidade, população e rio. Consideramos que existe um ciclo de evolução urbana na cidade contemporânea (Figura 1), onde a fase de declínio e a regeneração urbana são inevitáveis.

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Vd. http://www.cm-lisboa.pt/viver/urbanismo/planeamento-urbano/plano-diretor-municipal/enquadramento-do-pdm PNUM 2016 251

Figura 1. Diagrama conceptual de evolução cíclica urbana contemporânea.

De acordo com Rufinoni (2013), os sítios urbanos industriais deverão ser considerados como património passível de preservação e conservação, à semelhança da cidade contemporânea. A nossa visão corrobora com a da autora, visto que apesar de constituírem tecidos marcadamente monofuncionais, contêm comunidades, valores e importantes testemunhos físicos e culturais (e.g.: Vilas Operárias) de relevância e utilidade à cidade, por via da regeneração e da re-funcionalização. Se, por um lado, os antigos espaços e estruturas industriais produtivas deixaram de ter função, por outro lado constituem oportunidades fundamentais de redesenvolvimento territorial e transformação urbana. As intervenções em antigos sítios industriais são muitas vezes considerados como reservas de terreno disponível para novos usos descurando as pré-existências históricas, memoriais e estéticas (Rufinoni, 2013). O património urbano de origem industrial (i.e.: edificado, espaço público e territórios) – patentes em inúmeras áreas ribeirinhas pós-industriais - representa uma parte fundamental da evolução da cidade contemporânea, beneficiando da aplicação de princípios teóricos de conservação e restauro integrados7. Considerando as áreas ribeirinhas como territórios de excelência no âmbito do (re)desenvolvimento territorial, e particularmente no caso de Lisboa, de seguida analisam-se sucintamente os diferentes territórios ribeirinhos de Lisboa e questionam-se possíveis mudanças futuras, sobretudo no âmbito da gestão política pública e urbana. Territórios ribeirinhos de Lisboa: que futuro? Embora a frente ribeirinha de Lisboa se desenvolva ao longo da margem Norte do rio Tejo (Figura 2), é possível distinguir diferentes tipos e vocações de territórios8. Existem diversos problemas e desafios a enfrentar na intervenção dos sítios industriais de interesse cultural (Rufinoni, 2013). Mas quais são os motivos que dificultam a aplicação prática dos princípios de preservação, conservação e restauro, e que caminhos serão possíveis para a prossecução de projectos de regeneração urbana? 8 No seguimento da evolução da industrialização, surgiram diversas zonas descaracterizadas e fragmentadas que carecem de investimento global de regeneração, com vista à articulação com outros centros urbanos e visando a revitalização urbana e a coesão socioeconómica. 7

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Figura 2. Diagrama de localização da frente ribeirinha de Lisboa, na Margem Norte do Rio Tejo. Fonte: Diagrama elaborado pela autora sobre vista aérea parcial do Google Maps (2014).

Enquanto que a zona de Belém é marcada por actividades de lazer e detentora de reconhecimento patrimonial, na sequência da transferência de indústria pesada para a zona Oriental nas décadas de 1930-40 para a preparação da Exposição do Mundo Português, a zona de Santos-Alcântara ainda contém inúmeros vestígios do seu passado industrial apesar das intervenções de regeneração urbana (e.g.: Lx Factory; Condomínio Alcântara-Rio). A zona do Cais do Sodré, Terreiro do Paço e Santa Apolónia tem vindo a ser intervencionada no sentido de aproximar a cidade ao rio (e.g.: Estação ferroviária e fluvial do Cais do Sodré; Ribeira das Naus; Cais das Colunas; Terminal de Cruzeiros de Santa Apolónia). O território do Parque das Nações pertence parcialmente ao Município de Lisboa e o restante ao de Loures, tendo sido regenerado aquando do evento internacional Expo ‘98, em 1998. Contudo, começa a apresentar alguns sinais de degradação urbana, sobretudo em espaços públicos. Apesar da sua contemporaneidade, é uma área totalmente regenerada e susceptível de ser considerada patrimonial por representar um exemplo de transformação urbana, de qualidade de vida e ambiente. Resta então a regeneração de uma área fundamental, localizada entre Santa Apolónia e o Parque das Nações, composta por diversos micro-territórios com especificidades e características distintas, apesar da sua proximidade e localização geográfica. A zona ribeirinha oriental de Lisboa (ZROL) - composta pelo Beato, Xabregas, Marvila, Chelas, Matinha e Braço de Prata - requer olhares críticos considerando a crescente situação de declínio em que se encontram. Apesar do importante legado histórico, urbano, industrial e portuário que contêm, sobreposto e transformado desde o século XV até à actualidade (Custódio e Folgado, 1999; Matos e Paulo, 1999), é notória a degradação (Figura 3) e os problemas sociais que se assomam.

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Figura 3. Vista parcial de Xabregas (Outubro 2014). A presença das infraestruturas ferroviárias e ruínas industriais marcam a paisagem urbana.

Actualmente está em curso o projecto de regeneração urbana “Jardins Braço de Prata” (Figura 4), da autoria do Arquitecto Renzo Piano, que articulará o Parque das Nações com a cidade dita antiga (i.e.: Av. Estados Unidos da América). Na zona da Matinha também se prevê um novo Plano de Urbanização por via municipal e incidindo em habitação. Não obstante o ímpeto de mudança anunciado por estas operações urbanísticas, denota-se uma falta de investimento nos objectos patrimoniais existentes, bem como uma abordagem global que os considere como âncoras de intervenção urbana (Choay, 2011).

Figura 4. Vista da primeira fase de construção do empreendimento “Jardins Braço de Prata” (Braço de Prata, Abril 2015). É notório o confronto entre regenração urbana e património (i.e., antiga Fábrica “Tabaqueira).

A ZROL contém inúmeros exemplos históricos urbanos de cariz industrial (Custódio e Folgado, 1999) que apresentam sinais de degradação e obsolescência (e.g: Abel Pereira da Fonseca) (Figura 5), passíveis de serem reabilitados, transformados e utilizados na contemporaneidade.

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Figura 5. Vista do conjunto “Abel Pereira da Fonseca”, da autoria do Arquitecto Norte Júnior (Julho 2014).

O estado de declínio e as potencialidades enunciadas por via da regeneração urbana e da CI conduzemnos a questionar que futuro se avizinha para os territórios ribeirinhos de Lisboa? De acordo com a Presidência do Município, a ZROL9 é potencialmente emergente, sobretudo pela inclusão de clusters e incubadoras de empresas internacionais (e.g.: reaproveitamento do antigo edifício do Exército, localizado no Beato/Xabregas10) (Figura 3), afigurando-se como uma futura área internacional de grande destaque económico, empreendedorismo e inovação. Esse impulso será reforçado pela reabilitação de edifícios, reconstruindo o lugar do interior para o exterior. A minimização dos efeitos de gentrification passa pela inclusão de usos (mistos) que beneficiem os moradores, bem como a reabilitação no campo da habitação. Tal tem sido também uma das intenções da gestão municipal, por via de diversos Programas (e.g: Bip/Zip; Re-Habitar Lisboa: Reabilita primeiro, paga depois) e da coordenação das actividades de reabilitação mediante a utilização alternada de fogos devolutos durante o seu decurso. A criação de bolsas dinâmicas de imóveis, visando agilizar o mercado de arrendamento e acesso à habitação, constitui uma medida importante em paralelo com o envolvimento e a participação pública. A ZROL tem também acolhido novos espaços criativos em antigas infraestruturas industriais, como mote para a reinvenção e regeneração urbana (e.g: Ateliers, Academias de Dança, etc.). Considerações finais O passado e a história afiguram-se como vantagem competitiva num mundo globalizado, na medida em que contribuem para articular e fundamentar as intervenções urbanas com a cidade, territórios e população, invocando a memória colectiva e (re)construindo identidade. Nesse processo de mudança global e conceptual, a conservação integrada por via da regeneração urbana deverá ser considerada não Enquanto sítio histórico pós-industrial, o seu importante legado urbano deverá ser o ponto de partida, suporte e fundamento da intervenção. 10 Vd. Notícia do Jornal “Público”, de 04.05.2016 (Fonte: http://p3.publico.pt/print/20381). 9

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só no campo do planeamento (e.g.: Planos Directores Municipais) e da gestão urbana (e.g.: Sociedades de Reabilitação Urbana), como também através de formas empíricas e não-convencionais de actuação (e.g.: hortas urbanas). A conservação e o restauro urbano integrados, assim como a regeneração urbana envolvem actuações multi, pluri e interdisciplinares. A História e o passado estão ao serviço do futuro, i.e., contribuindo para uma fundamentação histórica mas não historicista. A visão geral supostamente oferecida pelos Planos urbanos é mascarada pelo seu teor demasiado abstracto e, por vezes, distante da realidade complexa e em constante mutação. Consideramos que a interacção entre projecto, planeamento e história poderá contribuir para o sucesso das intervenções no âmbito da gestão de áreas urbanas críticas. Em pleno contexto de mudança e incerteza (Nevado, 2015) dever-se-á partir de matrizes territoriais e das pré-existências, onde a re-funcionalização constitui um instrumento valioso e consiste numa abordagem que permite justificar a sua permanência e adaptação à contemporaneidade, com vista à regeneração urbana, conservação integrada e promoção de reinvenções urbanas. Os territórios ribeirinhos são potenciais alvos de regeneração urbana pelas suas características morfológicas, urbanas e históricas. No âmbito da regeneração urbana, é necessário estabelecer políticas, directivas e prioridades de actuação, articulando promotores públicos (e.g.: CML) e privados. A preservação do carácter histórico de tecidos urbanos inteiros pode ser relevante nas dinâmicas socioeconómicas actuais, visando a contextualização dos bens culturais, a compreensão dos espaços urbanos industriais como unidades, cujas estruturas constituem paisagens únicas (Rufinoni, 2013). Para além disso, constituem testemunhos vivos de outras temporalidades, sendo lugares de desenvolvimento da vida quotidiana (Rufinoni, 2013), potencialmente emergentes do ponto de vista económico (e.g.: incubadoras de empresas). Referências bibliográficas Carvalho J (2012) Dos Planos à Execução Urbanística, Almedina, Coimbra. Castello L (2006) City & Time and Places: Bridging the concept of place to urban conservation planning, City & Time, 2(1). Choay F (1999) A alegoria do Património, Edições 70, Lisboa. Choay F (2011) As questões do património: antologia para um combate, Edições 70, Lisboa. Custódio J, Folgado D (1999) Guia do Património Industrial, Livros Horizonte, Lisboa. Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio – Aprova a revisão do regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, Governo de Portugal. De Gracia F (1992) Construir en lo construído. La arquitectura como modificación, Nerea, Hondarribia. Jokilehto J (1986) A History of Architectural Conservation, The contribution of English, French, German and Italian thought towards an international approach to the conservation of cultural property, The University of York, York. Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio – Lei de Bases Gerais de política pública de solos, do ordenamento do território e do urbanismo, Governo de Portugal. Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro – Lei Protecção e Valorização do Património Cultural, Governo de Portugal.

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Matos J, Paulo J (1999) Caminho do Oriente: Guia Histórico I e II, Livros Horizonte, Lisboa. Nevado A (2015) The Eastern waterfront area of Lisbon: progresso, decline and regeneration, Joelho – Revista de Cultura Arquitectónica ‘The Built Heritage Debate’, 6, 146-152. Queirós F F (2005) O restauro urbano integrado e a necessidade de formação superior direccionada para a salvaguarda, gestão, valorização, restauro e conservação dos núcleos históricos, Revista da Faculdade de Letras CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÓNIO, I Série, Vol. IV, 169-192. Rufinoni M (2012) Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano, in B Kuhl, R Cabral, C Andrade (eds) Gustavo Giovannoni. Textos escolhidos, Ateliê Editorial. Rufinoni M (2013) Preservação e Restauro Urbano: Intervenções em Sítios Históricos Industriais, FAP-UNIFESP, São Paulo. Sassen, S (2001) The Global City: New York, London, Tokyo, Princeton University Press, Princeton. Sassen (2014) Expulsions: Brutality and Complexity in the Global economy, Belknap Press, Cambridge/MA. Smith L (2006) Uses of Heritage, Routledge/Taylor & Francis Group, London/New York. Terán F (2009) El pasado activo: del uso interessado de la historia para el entendimiento y la construcción de la ciudad, Akal, Madrid. Zancheti S M, Lacerda N (2012) Plano de Gestão da Conservação Urbana: Conceitos e Métodos, Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada, Olinda. Recursos disponíveis na WEB http://www.cm-lisboa.pt/viver/urbanismo/planeamento-urbano/plano-diretor-municipal/enquadramento-do-pdm http://rehabitarlisboa.cm-lisboa.pt/inicio.html http://whc.unesco.org/en/conventiontext/ http://p3.publico.pt/print/20381

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Morfologia urbana na zona ocidental intramuros da cidade de Évora (séc. XIII -XXI): do património à malha urbana Maria Monteiro¹; Maria Tereno²; Marízia Pereira³ ¹ Divisão de Cultura e Património, Câmara Municipal de Évora, Praça de Sertório, 7004-506 Évora, Portugal, Tel. 00351266777000 ² Departamento de Arquitetura, Universidade de Évora, Colégio dos Leões Estrada dos Leões, 7000-208 Évora, Portugal, Tel. 00351266745300 ³ Departamento de Paisagem, Ambiente e Ordenamento do Território, Universidade de Évora, Colégio Luís António Verney Rua Romão Ramalho, nº 59, 7000 Évora, Portugal, Tel. 00351266745300 ¹[email protected], ²[email protected], ³[email protected]

Resumo O património eborense integra um conjunto notável de monumentos, civis e religiosos, que têm originado ao longo do tempo a formação e desenvolvimento de tecido urbano. Desse património ressalta-se a construção de casas religiosas, disseminadas em espaço anexo ao primitivo recinto amuralhado tendo as suas comunidades residentes influenciado os habitantes da área circundante. Algumas dessas áreas foram ocupadas por complexos religiosos (S. Domingos - século XIII, Santa Clara - século XV, Santa Catarina de Sena e Santa Helena do Monte Calvário - século XVI). As intervenções projetadas nas antigas cercas monástico-conventuais, realizadas posteriormente à exclaustração das ordens religiosas, abrangem não apenas a construção dos espaços livres, mas também pontualmente a reformulação, por vezes radical, das antigas estruturas pertencentes aos complexos religiosos já desativados. Nos espaços verdes que constituíam as cercas, ocorreu a eliminação ou alteração de uso do solo dessas áreas tendo desaparecido simultaneamente muito do historial destes locais. A reorganização interior das construções e a reformulação volumétrica, adaptando-as às atuais exigências funcionais, determinam que as demolições sejam correntes nessas intervenções. A organização espacial inerente à vida monástico-conventual dissipa-se definitivamente com essas demolições, que ocasionam também o desaparecimento de um conjunto significativo de elementos construtivos. As reduções substanciais das manchas verdes intramuros constituíam abrigo para espécies animais. O decréscimo de áreas de absorção de água para o subsolo foi aspeto controverso resultante de tais intervenções. O presente trabalho foca-se em quatro situações distintas: reconstrução total de todo o espaço (Santa Catarina), reutilização de um espaço monástico (Santa Clara), o espaço respeitante ao convento de S. Domingos parcialmente ocupado/loteado e o do mosteiro do Calvário, de dimensão considerável, que atualmente se encontra expectante. O objetivo é procurar estabelecer comparações entre situações diferenciadas, com intervenções de maior ou menor qualidade para a regeneração urbana. Neste âmbito, a cartografia urbana histórica da cidade torna-se essencial para a compreensão evolutiva do tecido urbano. Palavras-chave Património; morfologia urbana; regeneração urbana; cartografia.

Introdução Durante os primórdios do cristianismo em Évora, são escassos os documentos sobre o contacto entre a cidade e a nova doutrina, contudo, existem vários testemunhos desta religião monoteísta, a partir do terceiro século. Durante os séculos VIII a XII, com a invasão muçulmana vinda do norte de África, os núcleos urbanos, em especial as antigas cidades de ocupação romana, sofreram uma época de incremento económico. A origem das primeiras fundações monástico-conventuais medievais em Évora, deve-se ao facto de esta ser uma cidade relevante, conquistada recentemente aos mouros, e situada em território limite ocidental da

 

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Cristandade, o que aliciou algumas ordens religiosas que, seguindo o espírito apostólico e expansionista terão chegado a esta cidade1 (Figuras 1 e 2). Évora deve parte da sua imagem urbana à localização de mosteiros e conventos, construídos ao longo dos séculos, e à influência da população religiosa aí residente. As ordens mendicantes, com a pobreza e humildade a elas inerentes terão, de maneira significativa, influenciado a cidade de Évora. No urbanismo contribuíram para o desenvolvimento de aglomerados urbanos iniciais, que em locais específicos tiveram como referência os respetivos conventos mendicantes, caso dos arrabaldes de S. Francisco e de S. Domingos. O clima seco e ameno, proximidade e fácil acessibilidade a outros centros urbanos, tornaram-na ao longo dos séculos em local de visita assídua da corte portuguesa, que aqui permaneceu por períodos variáveis de tempo. O final do século XIII e seguintes são, em Évora, para a Igreja cristã, período de instalação e enriquecimento, através de avultadas e numerosas doações régias. Nos finais do século XV e inícios do século XVI o espaço amuralhado (107 ha) encontrava-se predominantemente ocupado, embora com densidade construtiva variável, de acordo com a maior ou menor proximidade dos centros dos poderes então vigentes na urbe. As áreas adstritas à judiaria e mouraria densificaram-se, obrigando a sucessivos alargamentos das zonas primitivamente delimitadas, e à consequente construção de novas portas de ligação à área envolvente, esta habitada por cristãos. Até meados do séc. XVI foram fundadas na zona ocidental da cidade várias casas religiosas, nomeadamente as referentes aos casos apresentados: o convento de S. Domingos e os mosteiros de Santa Clara, de Santa Helena do Monte Calvário e de Santa Catarina de Sena (Figura 3). Convento de S. Domingos O convento de São Domingos foi fundado em 12862, tendo sido o local de implantação facultado pela Câmara, que disponibilizou área livre exterior à primitiva muralha defensiva. A respetiva autorização de instalação na cidade foi concedida, através de alvará real, por D. Dinis. No presente caso, deveu-se à pequena nobreza local a doação de avultadas esmolas que permitiram o desenvolvimento futuro das áreas de construção inerentes a esta importante casa religiosa. Foram alguns dos eborenses, e não os monarcas portugueses, que proporcionaram o maior impulso à sua construção3. O local cedido para a fixação dos frades, foi no lado ocidental da cidade, em área próxima do espaço de circulação exterior à muralha que ligaria as zonas do norte e sul do território, e tendo como pontos de articulação com o interior amuralhado, as portas de D. Isabel e primitiva de Alconchel. O posicionamento era descentrado relativamente ao centro económico da cidade, que se prolongaria posteriormente em direção a sul e a poente4. Estrategicamente, o espaço encontrava-se afastado das torres defensivas da primitiva muralha, que à data pautavam este circuito amuralhado.

 1 Cf. Santos J. E. (1925) S. Francisco de Assis, Versão dos seus Poemas e Opúsculos, acompanhada de notas e de um Bosquejo da Vida, Obra e Ideal do Poverello, Ottosgrafica, Lisboa, 47 e 74. 2Existiriam, no mínimo, há sessenta e dois anos franciscanos na urbe eborense embora ainda em instalações provisórias situadas fora do antigo recinto amuralhado e perto do caminho de acesso à principal entrada na cidade, a primitiva porta de Alconchel. 3 A própria Igreja, logo no início das ordens mendicantes, solicitou apoio especial por parte dos monarcas relativamente aos franciscanos, mais vulneráveis pelo seu modo de estar, prevendo que os dominicanos, facilmente iriam angariar um maior apoio junto das classes mais abastadas. 4 Em 1547 o sítio era já fortemente urbano, pelo que as mulheres do recolhimento de Santa Marta, a escassos metros de S. Domingos, se viram forçadas a mudar de local, dando origem ao mosteiro de Santa Catarina. A impossibilidade física de ampliação da anterior edificação assim como o interesse por parte das instituições eclesiásticas em que estas integrassem casa subordinada a Ordem religiosa, foram determinantes para a nova fundação. Sobre o recolhimento de Santa Marta: Franco, Pe. Manuel (1707-1711), Évora Ilustrada, Edição Nazareth & Filho (1945), Évora, 364. 

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O facto de este complexo conventual se posicionar na zona ocidental da cidade, protegida das investidas mouriscas vindas de sul e este, assim como a circunstância de a construção do segundo circuito de muralhas se ter iniciado pela zona norte, mais desprotegida por parte do castelo da cidade, garantia alguma proteção a este convento. Em redor deste criou-se e densificou-se a malha urbana que se desenvolveu no sentido sudeste, com a designação de arrabalde de S. Domingos posteriormente integrada na área urbana mais tarde constituída. Com a extinção das ordens religiosas, este conjunto voltou a ser génese de malha urbana, desta vez planeada, e viabilizada através de loteamento municipal que abrangeu parte da antiga cerca5. O primitivo conjunto edificado, maioritariamente demolido logo após a extinção das ordens religiosas, foi alvo de mais algumas demolições tendo sido a construção remanescente reutilizada com novas funções, nomeadamente a nível de serviços e comércio. Mosteiro de Santa Clara O mosteiro de Santa Clara da Segunda Ordem de S. Francisco, foi fundado no ano de 14526 por iniciativa do bispo de Évora D. Vasco Perdigão, que facultou na rua de Alconchel (atual rua Serpa Pinto) algumas construções arruinadas, pertencentes ao paço dos Falcões. Os votos de pobreza, obediência e castidade professados pelas monjas clarissas, a par da clausura, foram valores fundamentais para estruturar, desenvolver e tornar prestigiada esta comunidade religiosa. O espaço reduzido que a casa monástica inicialmente ocupou, influenciou posteriormente toda a área envolvente pois foi justificativo para desestruturar um antigo e importante eixo radial de circulação interior, truncado de modo a viabilizar um limitado aumento de área na cerca monástica. Com mais este espaço, não obstante diminuto, as condições do mosteiro foram melhoradas permitindo uma área livre complementar. Esta foi a única casa religiosa eborense, que concretizou uma intervenção marcante no espaço público, condicionando-o até à atualidade. Este quarto complexo cenobita fundado na cidade de Évora, foi localizado no quadrante noroeste da urbe, zona à data já ocupada por um convento da Ordem Primeira Franciscana. A área primitiva cedida à Ordem, compunha-se por um conjunto de casas arruinadas, espaço que não seria muito amplo considerando que após alguns anos foram adquiridas mais construções para alargamento do mosteiro 7. Daqui se infere, que a zona estaria já bastante construída, pois que em ambas as situações se adquiriram construções a serem adaptadas ou demolidas, e não terreno livre onde se pudesse implantar ou ampliar o mosteiro. À época da fundação, o local escolhido para o primeiro mosteiro feminino era uma área em franco desenvolvimento. Instalou-se em construções situadas para poente da rua de Alconchel, eixo de circulação em desenvolvimento a partir do século XV. A sua portaria, aberta para sul, situava-se num arruamento que ligava a S. Domingos, a rua de S. Domingos, parte da rua da Carta Velha e a rua de Santa Clara, com um pequeno terreiro defronte à portaria, sofrendo ajustamentos ao longo dos séculos. O trajeto em direção ao convento de S. Francisco, a cerca de trezentos metros, era interrompido, nos anos iniciais da fundação de Santa Clara, pela zona da judiaria mais ampla ou reduzida de acordo com a época política, mas sempre em espaço diferenciado na malha urbana. A nascente  5 A área restante da cerca da antiga cerca encontra-se ainda na posse da Câmara Municipal de Évora existindo para o local estudo da autoria do arquiteto Sisa Vieira, com previsão de áreas de construção maioritariamente destinadas a atividades culturais complementando o Teatro Garcia de Resende situado em espaço confinante ao do referido estudo. 6 A primeira comunidade eborense de clarissas foi fundada, duzentos e vinte e oito anos após a fundação do primeiro convento masculino franciscano nesta cidade. 7 Em 1485, quando da primeira fase de construção, verificaram-se grandes alterações na antiga rua do Gaio, denotando a existência de uma área já bem definida por arruamentos. Em 1494, o mosteiro adquiriu casas “que ficam dentro em o Convento na Rua da Carta Velha”. Tal arruamento, que em 1571 corre ao longo da portaria de Santa Clara, é designado já por Travessa da Carta Velha. Sobre o assunto: Carvalho A (2004) Da Toponímia…, ob. cit., vol. I, 143. 

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da judiaria situava-se a rua do Raimundo que, com a construção da muralha fernandina e a abertura do denominado Buraco do Raimundo, se tornou num eixo de circulação que progressivamente foi ganhando importância a partir do século XV8. Em Évora, as clarissas terão obtido mais espaço através da aquisição de casas e reformulando o traçado de arruamentos, subordinando-se à posse de uma reduzida cerca, o que demonstra os condicionamentos desde o início na zona de instalação9. Ao longo dos séculos, sucessivos acessos foram abertos nos limites do mosteiro de Santa Clara para alguns dos arruamentos circundantes (ruas Serpa Pinto, de Santa Clara, da Carta Velha, de Alfeirão, travessas dos Beguinos e da Milheira). A escassez de terrenos disponíveis no mosteiro de Santa Clara está patente no volume construtivo da capela-mor, que foi ampliada sobre um arruamento pré-existente, a travessa da Milheira. A estreiteza desta antiga via que faz a ligação entre as ruas Serpa Pinto e a dos Caldeireiros é notória. Em 1945, o anteplano de urbanização de Évora, da autoria do arquiteto Étienne Groër preconizou para a zona poente da cidade intervenções “demolidoras” no tecido urbano, com a constituição de novos largos, abertura de arruamentos e realinhamento de outros, sempre através do sacrifício de edificações existentes. O antigo mosteiro permaneceu, até à atualidade, embora com profundas remodelações concretizadas quando da reutilização do conjunto como equipamento público. Mosteiro de Santa Helena do Monte Calvário O mosteiro de Santa Helena do Monte Calvário foi consagrado inicialmente à Vera Cruz, por neste local existir uma ermida com esta invocação. A fundação deveu-se à Infanta D. Maria de Portugal10 e iniciou-se a construção em 1569. As obras formam executadas rapidamente e o mosteiro consagrado em 1574. Esta foi uma das casas mais pobres da Ordem Franciscana existentes em Évora11. Conjunto de volumetria marcante, em local anexo à muralha fernandina, definiu um dos limites da cidade, sendo que a sua cerca se prolongou ao longo da muralha. Na sua envolvente, para sudeste, desenvolveu-se e densificou-se um conjunto urbano, delimitado pelas antigas ruas Direita dos Cogulos e da Lagoa. Atualmente o antigo conjunto encontra-se parcialmente devoluto, estando a igreja e algumas dependências adstritas a práticas religiosas e o espaço da cerca constitui-se como um amplo terreno expectante. Mosteiro de Santa Catarina de Sena Este mosteiro teve a sua génese em beatérios instalados na rua de Santa Marta, entre os finais do século XIV e inícios do século XV. Em 1547 inicia-se a vida monástica no novo espaço com o orago de Santa Catarina de Sena, constituído como comunidade de terceiras dominicanas. O mosteiro foi implantado numa área densamente edificada, junto ao antigo arrabalde de S. Antoninho, sendo o seu conjunto delimitado, desde a sua fundação, por arruamentos pré-existentes. A casa religiosa foi extinta em 1882, aquando da morte da última religiosa, e posteriormente demolida em 1900. Já no início do século XX, o espaço em questão deu origem a um cinema ao ar livre. Posteriormente o terreno foi constituído como lote urbano, e totalmente edificado, integrando áreas de habitação multifamiliar, de comércio e de parqueamento automóvel.

 8 Só em 1487 é proposto o calcetamento da referida rua, demonstrando a sua até então pouca importância no conjunto urbano edificado. De referir que à data, a cidade possuía vários espaços públicos calcetados, maioritariamente custeados pelos habitantes das respetivas áreas envolventes. 9 Não obstante, tal mosteiro foi recolhimento de nobreza influente, como por exemplo de D. Joana, filha de D. Henrique IV de Castela e noiva do rei português D. Afonso VI. 10 Filha de D. Manuel de Portugal. 11 Espanca T(1993), 92. 

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Considerações finais O facto de o convento dominicano se ter edificado no quadrante noroeste da urbe, local mais protegido das investidas mouriscas que teoricamente partiriam de sul e este, e da construção do segundo circuito de muralhas se ter iniciado pela zona norte, área mais desprotegida por parte do castelo primitivo, garantia maior proteção aos frades. A fixação urbana em redor do cenóbio aconteceu de modo progressivo, assim como a constituição de eixos comerciais paralelos, onde atividades específicas se foram instalando. O convento de S. Domingos terá contribuído para a formação, e posterior consolidação de malha urbana, assim como para a localização pontual de casas de algumas das famílias mais importantes da cidade. Tal capacidade de gerar área urbana prevaleceu, até à presente data, devido às potencialidades edificatórias da ampla cerca. O mosteiro de Santa Clara localizou-se no quadrante sudoeste da urbe, onde já existia o de S. Domingos. Este inseriu-se em espaço urbano já fortemente condicionado, contribuindo para a sua densificação. A sua principal ampliação deveu-se à reformulação de importante artéria, a antiga rua do Gaio, secionando-a e desestruturando parte do tecido urbano envolvente. A sua reutilização posterior garantiu a manutenção do espaço edificado até à presente data. O mosteiro do Calvário implantou-se próximo de um antigo ferragial, e possuía uma cerca de dimensão assinalável fato que perdura até hoje, o que o torna em espaço apetecível a nível urbanístico. O mosteiro de Santa Catarina foi, desde a sua fundação até à presente data, área urbana densamente edificada, primeiro com construção monástica e posteriormente com secular, tendo passado pela demolição total de toda a sua primitiva construção. Pode-se concluir que a implantação das casas religiosas em geral, e no caso presente dos quatro conjuntos estudados, o convento de S. Domingos e os mosteiros de Santa Clara, do Calvário e de Santa Catarina, foram determinantes para o desenvolvimento económico e urbanístico da área da cidade onde se localizaram (Figura 4). Esta ocupação de território teve grande influência no desenvolvimento do espaço envolvente, contribuindo para o crescimento coeso da cidade, e posteriormente para o urbanismo resultante, em parte, da implantação destas casas religiosas. Na planta de zonamento do Plano de Urbanização de Évora, atualmente em vigor, constata-se que quase toda a área compreendida na zona amuralhada se encontra densamente edificada existindo apenas, na área de referência onde se localizam estas quatro antigas casas religiosas, uma atual área verde, adstrito a S. Domingos, e uma outra programada para habitação, referente a S. Domingos (Figura 5). Como exceção, refira-se o espaço anexo ao mosteiro de Santa Helena do Monte Calvário, antigo ferragial no século XIII, que hoje permanece como única mancha verde nesta área da cidade e que, no citado plano, está programado para equipamento. Estas quatro construções cenobitas deixaram marca na configuração urbana da cidade, que ainda se mantêm, apesar de qualquer destes espaços ter sido utilizado, após a exclaustração das ordens religiosas, de forma muito distinta daquela para a qual tinham sido concebidas. Referências bibliográficas Almeida F (1967) História da Igreja em Portugal, nova edição preparada e dirigida por Damião Peres, vols. I-IV, Portucalense Editora, Porto. Barata A F (1899) Breve Notícia do Mosteiro de Santa Helena do Monte Calvário em Évora, Évora. Espanca T (1966) Inventário Artístico de Portugal, vol. VII (Concelho de Évora - volume I), Lisboa. Espanca T(1993) Évora, Lisboa. Carvalho A(2004) Da Toponímia de Évora, dos meados do século XII a finais do século XIV, vol. I, Edições Colibri, Lisboa. Carvalho A (2007) Da Toponímia de Évora- século XV, vol. II, Edições Colibri, Lisboa. Fialho Pe. M (1707-1711) Évora Ilustrada, manuscrito, Évora.  

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Santos J E (1925) S. Francisco de Assis, Versão dos seus Poemas e Opúsculos, acompanhada de notas e de um Bosquejo da Vida, Obra e Ideal do Poverello, Ottosgrafica, Lisboa.

Figura 1. Évora. Localização sobre planta Portugalliae meridionales plagae: geo-hydrographice descripttie de Carel Allard (1648?-1709?). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal.



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Figura 2. Évora. Proposta de malha urbana (século XII).



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Figura 3. Évora. Proposta evolutiva de malha urbana nas áreas envolventes ao convento de S. Domingos e mosteiros de Santa Clara, Calvário e Santa Catarina (séculos XIV/XVI).



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Figura 4. Évora.Situação atual nas áreas urbanas envolventes ao convento de S. Domingos e mosteiros de Santa Clara, Calvário e Santa Catarina. Fonte: Google maps (2016).



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Figura 5. Évora. Plano de Urbanização com localização do convento de S. Domingos e mosteiros de Santa Clara, Calvário e Santa Catarina. Publicação em 02/6/2011, 2.ª série do Diário da República n.º 107, Aviso 12113/2011. Fonte: Câmara Municipal de Évora.



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2UGHQVHVVDVTXHLPS}HPjUHJLmRDQiOLVHVFRQVXEVWDQFLDGDVHFRPSURPLVVDGDVFRPDQHFHVViULDFLHQWtILFLGDGH H SRU TXH QmR GL]HU FRP XPD GHYRWDGD DIHWLYLGDGH KDMD YLVWD VHXV DWULEXWRV H SRVVLELOLGDGHV HP SURO GH VHX GHVHQYROYLPHQWRVXVWHQWiYHOHFRQVHUYDomR $UDJyQ6DFKV   $ PRUIRORJLD XUEDQD VXS}H D FRQYHUJrQFLD HDXW LOL]DomR GH GDGRV KDELWXDOPHQWH UHFROKLGRV SRU GLVFLSOLQDV GLIHUHQWHV±HFRQRPLDVRFLRORJLDKLVWyULDJHRJUDILDDUTXLWHWXUDHWF±DILPGHH[SOLFDUXPIDWRFRQFUHWRDFLGDGH FRPRIHQ{PHQRItVLFRHFRQVWUXtGR  ,PSRUWDFODULILFDUTXHDPRUIRORJLDXUEDQDpDGLVFLSOLQDTXHHVWXGDRREMHWR ±DIRUPDXUEDQD±QDVVXDVFDUDFWHUtVWLFDVH[WHULRUHVItVLFDVHQDVXDHYROXomRQRWHPSR /DPDV  $QW{QLR6RX]D3HQWHDGRDSDUWLUGRSDQRUDPDJHRJUiILFRIRUPXODGRVREUHDHYROXomRXUEDQDGH%HOpPDWHVWDD LPSRUWkQFLDGRVLJDUDSpVQDSDLVDJHPHRU LVFRVRIULGRSRUHOHVHPPHLRjH[SDQVmRGDFLGDGH2DXWRUGHVWDFD TXH HVVHV FXUVRV GiJXDV UHSUHVHQWDUDP QRSDV VDGR XP QRWiYHO SDSHO TXHU FRPR HOHPHQWRV GHG HIHVD TXHU FRPRDQFRUDGRXURVSDUDSHTXHQDVHPEDUFDo}HVRXFRPRIRUQHFHGRUHVGHiJXDSDU DDSRSXODomRHTXHDLQGD KRMHHPSDUWHDWHUUDGRVRXFDQDOL]DGRVFRPRRVLJDUDSpVGR3LULHGDV$UPDVDLQGDID]HPVHQWLUVXDSUHVHQoDQD WRSRJUDILD GH %HOpP VHUYLQGR WDPEpP FRPR LPSRUWDQWHV HOHPHQWRV GHOLPLWDGRUHV GH VHX DWXDO HVSDoR XUEDQR FRPRpRFDVRGRVLJDUDSpVGR8QDH7XFXQGXED 3HQWHDGR  5HVVDOWHVHTXHLVWRVHGiGHPRGRQmRLPSRVLWLYRSRUPHLRGRUHFRQKHFLPHQWRGRSUpH[LVWHQWHHPRSRVLomRj LGHLD GHF RQWLQXLGDGH HU XSWXUD DV TXDLV VXEMD]HP UHVSHFWLYDPHQWH jL GHLD GHSHU PDQrQFLD HL QWHUUXSomR SRUWDQWRLPSURFHGHQWHVjLGHLDGHGLQDPLVPRGDSDLVDJHP6HJXQGRDLQGDRDXWRURFRQFHLWRGHFRQWLJXLGDGHWUD] HPVHXERMRDLGHLDGHSUR[LPLGDGHYL]LQKDQoDFRQWDWRFRQYtYLRLQWHUDomRHGLYHUVLGDGHFRQGLo}HVHVWDVTXHGmR VXVWHQWDomR jL GHLD GHF RQVWUXomR GDF LGDGH FRPR REUD  H QmRSU RGXWR FDSLWDOLVWD  GR HQWHQGLPHQWR H FRPSDUWLOKDPHQWRSROtWLFRHVRFLDOKXPDQR /HIHEYUH  PNUM 2016 271

 1RVHVWXGRVVREUHDUHJLmR $E¶ViEHU%HFNHU pSRVVtYHOSHUFHEHUTXHDWUDYpVGRGLiORJR RX GD LPSRVLomR FXOWXUDO SHVDP Do}HV TXH GHVHQKDP QRYDV IRUPDV XUEDQDV QDV SDLVDJHQV GD $PD]{QLD2UHOHYRpXPHOHPHQWRjSDUWHTXDQGRVHUHIOHWHVREUHDVFLGDGHVQDUHJLmR'HVWHPRGR DSUHQGHVHTXHRGLYHUVRRFRPSOH[RHRLQVWiYHOVXUJHPFRPRIDWRUHVIXQGDQWHVHGHWHUPLQDQWHVQD UHJLmR ,QVHULGRV QD FRPSUHHQVmR HQ R UHFRQKHFLPHQWR GD GLPHQVmR GD SDLVDJHP FRPR IDWRU SUHSRQGHUDQWH D SODQHMDPHQWRV SODQRV H SURMHWRV VH FRQVROLGDP WHFLGRV XUEDQRV GLYHUVLILFDGRV HP FLGDGHV JUDQGHV PpGLDV H SHTXHQDV DVVLP FRPR HP ORFDOLGDGHV GLVSHUVDV DR ORQJR GH ULRV EDLDV LJDUDSpVHIXURVQD$PD]{QLDDVGLWDV³FLGDGHVULEHLULQKDV´

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PNUM 2016 273

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 4XDQWRjPRELOLGDGHLQWHUXUEDQDHVWDpIHLWDH[FOXVLYDPHQWHDSpRXHPELFLFOHWDVTXHVXUJHPFRPRXP HOHPHQWR j SDUWH QD SDLVDJHP GHYLGR j VXD LQFLGrQFLD DR VHX DSHOR HVWpWLFR H IXQFLRQDO H j VXD RULJLQDOLGDGH(VVDV³FKDUUHWHV´FRQWHPSRUkQHDVHVHPFDYDORVDWHQGHPjVGHPDQGDVGDSRSXODomRH HPSDUWLFXODUVHGX]HPWXULVWDVTXHDVDOXJDP,GHQWLILFDPVHYDULDo}HVGHWLSRVHPRGHORVWDLVFRPRR ³ELFLWD[L´ D ³ELFLDPEXOkQFLD´ D ³ELFLERPEHLUR´ D ³ELFLSROtFLD´ ³ELFLGHOLYHU\´ TXH VmR DGDSWDo}HV GH PRGHORVWUDGLFLRQDLVGHELFLFOHWDVSDUDXVRHPVHUYLoRVGLYHUVRVHIHLWDVHPIHUURDOXPtQLRHPDWHULDLV FXVWRPL]DGRV $V WUDQVIRUPDo}HV TXH VH LPS}HP DR FRQWH[WR UHJLRQDO SDLVDJtVWLFR GH $IXi HVWmR UHODFLRQDGDV j FRQILJXUDomR WLSROyJLFD GDV DUWpULDV XUEDQDV WUDGLFLRQDOPHQWH GR WLSR ³HVWLYDV´ HP PDGHLUD +i GH IDWR Do}HV GD SUHIHLWXUD TXH SUHWHQGHP VXEVWLWXLU DV YLDV SULQFLSDLV FRQVWLWXtGDV RULJLQDOPHQWHHPPDGHLUDSRUHVWUXWXUDVHODMHVHPFRQFUHWRDUPDGR )LJXUDVDE   )UHQWHDHVWHTXDGURRFRQFHLWRGH³FRQVHUYDomRLQWHJUDGD´H[SHULPHQWDGRQD,WiOLDVHJXQGR-RNLOHKWR  QmRHQFRQWUDUHIOH[RQRFRQWH[WRDPD]{QLFRWRGDYLDLQWHUSUHWDPRVTXHHVVHpXPYLpVSRVVtYHO SDUDDFRQVHUYDomRGDSDLVDJHPGH$IXiH[SUHVVDSRUPHLRGDVWLSRORJLDVDUTXLWHW{QLFDVHXUEDQtVWLFDV DLQGDSUHVHQWHVHPPDLRULDQDSDLVDJHP  'H DFRUGR FRP -RNLOHQWR D FRQVHUYDomR LQWHJUDGD p DOFDQoDGD SHOD DSOLFDomR GH WpFQLFDV GH UHVWDXUDomRVHQVtYHLVHSHODHVFROKDFRUUHWDGHIXQo}HVDSURSULDGDV1RFXUVRGDKLVWyULDRVFRUDo}HV GDVFLGDGHVHGHDOJXQVYLODUHMRVIRUDPGHL[DGRVDVHGHWHULRUDUHVHWRUQDUDPiUHDVGHKDELWDo}HVGH EDL[DUHQGD6XDUHVWDXUDomRSUHFLVDVHUIHLWDFRPXPHVStULWRGHMXVWLoDVRFLDOHVHPOHYDUjH[SXOVmR GRV KDELWDQWHV PDLV SREUHV 3RU LVVR D FRQVHUYDomR GHYH VHU XPD GDV SULPHLUDV FRQVLGHUDo}HV HP WRGRVRVSODQHMDPHQWRVXUEDQRVHUHJLRQDLV6HJXQGRDRDXWRUDFRQVHUYDomRLQWHJUDGDQmRHOLPLQDD LQWURGXomR GD DUTXLWHWXUD PRGHUQD HP iUHDV FRQWHQGR HGLILFDo}HV DQWLJDV FLQWDQWR TXH R FRQWH[WR H[LVWHQWH SURSRUo}HV IRUPDV WDPDQKRV HH VFDODV VHMDP FRPSOHWDPHQWH UHVSHLWDGDV H VHMDP XVDGRV PDWHULDLVWUDGLFLRQDLV   

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PNUM 2016 275

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3. Teoria da morfologia urbana

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“The grand manner”: a rede axial barroca e a concepção da forma urbana na Escola Francesa de Urbanismo Ivvy Pessôa Quintella Centro de Tecnologia, Universidade Federal de Alagoas Maceió/AL/BR, Telefone/fax: 00 55 82 999211068 [email protected]

 Resumo A presente comunicação dedica-se à concepção da forma urbana na “Escola francesa de urbanismo”, associada aos atores que viriam integrar a Société Française des Urbanistes (S.F.U.), fundada em 1911. Ao longo da primeira metade do século XX, essa escola possuiu um papel de destaque na concepção e execução de planos urbanísticos. Essa escola era herdeira da tradição da arte urbana, que celebrou a noção de urbanismo como arte e da cidade como campo de apreciação estética, aportando a concepção de desenho urbano como composição. Ela irá perpetuar a maior parte dos princípios compositivos denominados por Kostof (2012) de “the grand manner” e por Lynch (2012) de “rede axial barroca”. Trata-se de um método de intervenção ou concepção da cidade que articula seus principais pontos de interesse em uma rede estruturada por meio de grandes vias de circulação. O princípio de hierarquia e conexão de vias diagonais interligando marcos urbanos é o principal dispositivo desse método urbanístico, a sua característica distintiva. Esse tipo de urbanismo é classificado por muitos teóricos como “barroco”, por ser nesse período histórico que tal estratégia mais floresceu e se difundiu. Além disso, ele cultiva certas características ligadas a esse estilo, tal como a monumentalidade. Porém, em realidade, esse recorte histórico não corresponde realmente à sua preeminência na arte urbana. Tal método urbanístico, como afirma Kostof, distendeuse inequivocamente ao longo de vários séculos, desde antes do século XVI, chegando ao menos até a primeira metade do século XX. A escola francesa de urbanismo é justamente um dos exemplos da perpetuação de tal método Nos planos urbanísticos de alguns de seus principais representantes, como Jaussey, Prost e Gréber podese identificar continuidades com os princípios compositivos da grand manner: estruturação do tecido urbano a partir da rede axial, valendo-se de tramas viárias de diagonais em uma distribuição policêntrica, atribuindo preponderância aos espaços públicos e monumentos. Todavia, busca-se evidenciar também as rupturas da escola francesa com tal tradição, a partir da absorção e implementação dos novos dispositivos do urbanismo científico (enquete, zoning, park system, green belt, transporte intermodal, etc.). Sem descartar os legados da história, nem negar as novas demandas funcionais da cidade moderna, a S.F.U. buscou sedimentar um amálgama de princípios que conjugasse ciência e arte na disciplina urbanística. Constituía-se, nesse sentido, em uma moderação pragmática entre as práticas de embelezamento do passado e os princípios iconoclastas do nascente urbanismo funcionalista.

Palavras-chave Escola francesa de urbanismo; forma urbana; rede axial barroca. PNUM 2016 283

A Escola francesa de urbanismo A presente comunicação dedica-se à concepção da forma urbana na “Escola francesa de urbanismo”, associada aos atores que viriam integrar a Société Française des Urbanistes (S.F.U.), fundada em 1911. Nesse grupo, contam-se importantes urbanistas (Alfred Agache, Henri Prost, Eugène Hénard, Léon Jaussely, Nicolas Forestier...), que exerceram intensa produção teórico-prática em diversos países e continentes. Ao longo da primeira metade do século XX, a escola francesa possuiu papel de destaque e de referência primordial, tanto do ponto de vista da produção bibliográfica, quanto da criação e da execução de planos urbanísticos, além da criação de instituições, legislações e promoções de eventos. O urbanismo da escola francesa representava, em larga medida, um savoir-faire acumulado durante décadas de intensas contribuições entre diversos campos disciplinares, resultando na almejada constituição de um corpo profissional especializado. A escola francesa teve papel preponderante pelo debate teórico, realizações de planos, e pela irradiação internacional. Exportou saber e formação e seus urbanistas trabalharam na organização de muitas cidades pelo mundo, conferindo-lhes determinada homogeneidade cultural, técnica e distributiva, ainda hoje reconhecível (Lamas, 2011, 260).

Essa escola era herdeira da tradição da arte urbana, que celebrou a noção de urbanismo como arte e da cidade como campo de apreciação estética. Todavia, a compreensão do urbanismo como disciplina científica era considerada igualmente importante. A dimensão estética era compreendida como elemento constituinte de uma tríade, como explicita a divisa da S.F.U.: “circulação, higiene, estética”. Permanece como característica marcante, porém, a concepção de desenho urbano como composição. A Rede Axial Barroca Uma das características do processo compositivo da escola francesa de urbanismo seria o seu embasamento em princípios generativos, ou seja, em “normas” adaptáveis. Tais princípios representavam a continuidade com uma tradição urbanística consagrada, a arte urbana. Essa concepção espacial iniciase no Renascimento, a partir de uma linhagem teórica iniciada por Alberti e prolongada pelos tratados de arquitetura: A arte urbana introduziu nas cidades ocidentais a proporção, a regularidade, a simetria, a perspectiva, aplicando-as às vias, praças, edifícios, ao tratamento de suas relações e de seus elementos de ligação (arcadas, colunatas, portas monumentais, arcos, jardins, obeliscos, chafarizes, estátuas). Devemos a ela a noção de composição urbana, derivada da pintura (CKRD\MHUOLQ, 1996, 76)1.

 Todas as citações de obras em língua estrangeira são traduções livres da autora.





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Um dos teóricos que mais detalhadamente debruçou-se sobre as características dessa concepção espacial foi Spiro Kostof, na obra “The City Shaped” (2012). Deve-se a esse autor a compreensão de que a arte urbana não é apenas uma “forma” urbana, mas uma metodologia urbanística, uma estratégia de concepção espacial. No entanto, Kostof não empreende propriamente o termo arte urbana, preeminente nos escritos franceses, mas propõe uma terminologia própria para abordar sua forma de composição urbanística: “the grande manner”, ou a grande maneira. Esse termo inglês, que advém do campo da história da arte, é geralmente utilizado para caracterizar os mais altos exemplos da pintura clássica, em sua visão ideal. Trata-se de um método de intervenção ou concepção da cidade que articula seus principais pontos de interesse em uma rede estruturada por meio de grandes vias de circulação. O princípio de hierarquia e conexão de eixos diagonais interligando os principais marcos da cidade é o principal dispositivo desse método urbanístico, a sua característica distintiva. Esse tipo de urbanismo é classificado por muitos teóricos como “barroco”, por ser nesse período histórico que tal estratégia mais floresceu e se difundiu. Além disso, ele cultiva certas características ligadas a esse estilo, tal como a monumentalidade. Porém, em realidade, esse recorte histórico não corresponde realmente à sua preeminência na arte urbana. Tal método urbanístico, como afirma Kostof, distendeu-se inequivocamente ao longo de vários séculos, desde antes do século XVI, chegando ao menos até a primeira metade do século XX. A escola francesa de urbanismo é justamente um dos exemplos da perpetuação de tal método. A rede axial de diagonais não corresponde necessariamente a um sistema radial concêntrico da cidade como um todo, ainda que se possa formar, no seu interior, pequenos sistemas radias a partir de monumentos. O sistema radial concêntrico absoluto é entendido por Kostof como um diagrama, expressado, por exemplo, pelas proposições utópicas de cidades ideais ex-novo. A grand manner, por outro lado, pode ser perfeitamente aplicada em tecidos urbanos consolidados: “(...) Haussman utilizou o modelo em Paris para melhorar o acesso na parte central da cidade, para criar novos e lucrativos locais de construção e para deslocar e controlar a classe trabalhadora” (L\QFK 2012, 267). Mas o sistema também se prestou muito bem para a concepção de inúmeras novas cidades, sobretudo capitais. Um célebre exemplo é o projeto do Major L´Enfant para Washington (Figura 1), que Kostof considera como paradigmático. A partir dele, o autor enumera algumas das principais características da estética urbana celebrada pela grand manner, empreendida como metodologia de desenho urbano (KRVWRI, 2012, 211) e resumidas adiante:  Um grande conjunto urbano, total e espaçoso, fixado em pontos focais distribuídos através da cidade;



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 Tais pontos focais são impressos em relação ao “drama” da topografia, e ligados entre eles por linhas de comunicação;  A preocupação com a construção da paisagem das vias principais;  A criação de vistas;  Espaços públicos como cenários para monumentos;  Efeitos dramáticos;  Tudo isso superposto em um tecido compacto para a vida cotidiana.

Figura 1. Plano da cidade de Washington, elaborado pelo Major L´Enfant (fonte: wikimedia commons).

 Apesar de Kostof ser o autor que esmiúça detalhadamente o método de composição da arte urbana (grand manner), Kevin Lynch, em “A boa forma da cidade” sintetiza suas principais características, intitulando-a de “rede axial barroca” (Figura 2):  Observe-se, por exemplo, a rede axial barroca como modelo frequentemente utilizado no passado para orientar o design das novas cidades e das cidades mais antigas. É uma concepção coerente e bem desenvolvida da forma da cidade. Declara que se pode organizar qualquer paisagem vasta e complexa do seguinte modo: escolhe-se um conjunto de pontos dominantes num terreno e colocam-se estruturas simbólicas importantes nesses pontos. Ligam-se esses pontos centrais através de ruas principais, suficientemente largas para suportarem o tráfego das artérias e modeladas como aproximações visuais aos pontos simbólicos, ou nodos (L\QFK, 2012, 266-267).



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 Figura 2. Esquema da rede axial barroca, por Lynch (fonte: /\QFK, 2012).

 Há, geralmente, pouca preocupação com as vias intersticiais, que são deixadas intactas em seu desenvolvimento espontâneo, quando se trata de intervenção em um tecido urbano constituído. Essa característica tem uma dupla interpretação. Por um lado, isso é o que caracteriza a flexibilidade e a complexidade visual desse sistema, pois ele permite um desenvolvimento independente dos seus interstícios. Por outro lado, é essa qualidade que evidencia que a trama axial é, em grande parte, uma solução “de fachada”, como a qualifica Lynch (2012, 355-356). A herança da arte urbana transmitiu-se em grande parte por meio da ligação do grupo da S.F.U. com a École des Beaux-Arts. O pensamento urbanístico, do ponto de vista da concepção da forma, era devedor dos mesmos princípios compositivos aplicados ao ensino da arquitetura. Tais princípios, que podem ser identificados com os valores de monumentalidade, simetria, convergência e axialidade, foram perpetuados nos tratados e transmitidos pela Beaux-arts. Toda a essência do método baseia-se na ideia de composição, ou seja, da possibilidade de aplicar regras de composição arquitetônica em escala urbana. Compreendia-se que o papel da arte urbana não estava apenas na inserção isolada de monumentos arquitetônicos ou de arte pública, mas no tratamento da forma urbana em si como uma grande composição artística. A escola francesa de urbanismo irá perpetuar a maior parte dos princípios compositivos aqui abordados. Mas diante de novos desafios: conjugá-los às demandas da modernidade e à cientificidade disciplinar. A concepção da forma urbana na Escola Francesa de Urbanismo A escola francesa estava integrada ao intenso debate internacional que culminou na institucionalização e profissionalização do campo do urbanismo. Na virada do século XX, fazia-se cada vez mais claro que as



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cidades demandavam um planejamento mais especializado, que abarcasse a complexidade de questões incidentes e que respondesse às novas necessidades da vida moderna. Nesse sentido, pode-se dizer que todos os urbanistas proclamavam tais ideias em uníssono. Mas o que os separava efetivamente, o que evidenciava as diferenças entre as “escolas”, era a questão crucial da forma urbana. Nesse aspecto, ainda que todos partissem das mesmas questões, proclamaram-se diferentes respostas projetuais: A aparente unanimidade de reformadores e técnicos se desfez quando das tentativas de se dar uma feição específica às cidades do futuro. Como pensar a metrópole moderna? Reinterpretando a beleza pitoresca de locais históricos? Expandindo os princípios clássicos da monumentalidade acadêmica, conforme representados pela obsessão beaux-arts com a axialidade, a hierarquia e o historicismo? Ou fugindo a toda e qualquer nostalgia, desenhado formas inéditas para o futuro, inspiradas por uma economia mecanizada e racionalizada? (CRKHQ, 2013, 71-74- grifo nosso).

Cohen identifica, assim, as três principais linhas de concepção da forma urbana na primeira metade do século XX: 1- reinterpretação pitoresca do passado; 2- princípios clássicos da monumentalidade acadêmica; 3- formas inéditas inspiradas na mecanização e na razão. Apesar das fronteiras entre tais posturas serem evidentemente mais nuançadas, essa separação é bastante didática e representativa: A linha do pitoresco pode ser identificada aos “culturalistas”, os seguidores de Sitte e da ideia de cidadejardim. A segunda linha refere-se ao posicionamento da escola francesa, herdeiros da tradição beauxarts. Como já se afirmou, os mais inequívocos princípios formais dessa escola advinham da tradição clássica e barroca, desenvolvida e aperfeiçoada ao longo de séculos. A terceira linha refere-se, evidentemente, aos “progressistas”, representados pelo funcionalismo da Carta de Atenas e dos CIAM. É interessante constatar que a dicotomia proposta por Choay (progressistas x culturalistas) não consegue situar corretamente a escola francesa, ainda que geralmente ela seja associada ao culturalismo. Em termos de concepção da forma, como se afirmou ao se discutir o Stadtebau, Sitte influenciou menos do que se imagina a escola francesa: em realidade, ela permaneceu predominantemente haussmaniana, ainda que sensível à história e ao “pitoresco local”. Nesse sentido, a obra de Sitte serviu mais para incitar o debate do que para estabelecer as principais diretrizes projetuais utilizadas pelos franceses. Por outro lado, a ideia de cidade-jardim de traçado “orgânico” foi inequivocamente incorporada ao desenho francês. Mas trata-se, aí, não propriamente de cidades, mas de bairros residenciais dotados de um desenho mais livre, submetidos à hierarquia da rede axial de circulação e dos espaços públicos monumentais. Além disso, apesar de, formalmente, certas diferenças com as propostas funcionalistas serem radicais, tais urbanistas partilhavam importantes princípios comuns: o zoneamento; a estruturação urbana a partir da circulação, propondo-se grandes e retas vias principais; a importância do verde urbano, a preocupação em estabelecer normas rígidas de higiene para as habitações, etc. Mas se a escola francesa partilha traços



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comuns com essas linhas (cidade-jardim e funcionalismo), em um ponto ela se distingue completamente: sua celebração do espaço público, e não da habitação, como o âmago da experiência urbanística: Onde a cidade-jardim e o modernismo minimizou ou rejeitou o domínio da monumentalidade pública, a grand manner a celebrava. Onde eles colocavam o componente residencial como o âmago da experiência urbanística, a grande maneira o colocava dentro de uma monumentalidade compreensível integrando a forma da cidade como um todo. A estética barroca prosperou tanto porque, acima de todos os outros atributos modernos, ela tornou-se sinônimo de cidade como uma obra de arte. Ela prosperou tanto porque estabelecia fortes imagens urbanas facilmente percebidas, que eram ao mesmo tempo modernas e ressonantes de uma autoridade histórica (KRVWRI, 2012, 217-218- grifo nosso).

Esse modo de projetar ou remodelar as cidades, denominado por Kostof (2012) de grand manner, é o método primordial adotado pela escola francesa de urbanismo, instituindo-a como herdeira e propagadora da tradição da arte urbana. Nos planos urbanísticos de alguns de seus principais representantes, como Jaussey, Prost e Gréber, podem-se identificar continuidades com tais princípios compositivos: estruturação do tecido urbano a partir da rede axial, valendo-se de tramas viárias de diagonais em uma distribuição policêntrica, atribuindo preponderância aos espaços públicos e monumentos. Todavia evidencia-se também as rupturas com tal tradição, a partir da implementação dos novos dispositivos do urbanismo científico (enquete, zoning, park system, green belt, transporte intermodal, etc.). Um primeiro ponto de ruptura que se pode apontar é que os estudos preparatórios à elaboração do plano tinham agora grande profundidade. O esquema teórico do traçado viário era um instrumento importante, que deveria permitir a clara compreensão do plano proposto, por meio da conexão das principais artérias do tecido. A influência de Haussmann é percebida pela concepção dos traçados em nível global sobrepondo-se à trama existente. Não se trata apenas de embelezamentos pontuais, como no passado, mas de um pensamento da cidade como um organismo, como um todo integrado. Um dos planos de cidade em que se mais se evidencia a estratégia de estruturação do tecido urbano a partir de uma rede axial é o primeiro sucesso internacional da escola francesa: o concurso para o ordenamento de Barcelona, em que Léon Jaussely obteve o primeiro lugar (1903-07) (Figura 3). De fato, foi um projeto bastante aclamado e que serviu de referência fundamental aos urbanistas franceses dessa geração. Esse novo ato de fundação pós Cerdà deveria dotar a Barcelona “do futuro” de conexões estáveis com sua história e com o seu caráter individual. Nesse sentido, Jaussely prenunciou uma das mais fortes características do modo de proceder da escola francesa: todo plano de urbanismo deveria basear-se em um conhecimento profundo do pano de fundo histórico da cidade e de sua evolução urbana. Esse aspecto



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é tanto mais importante quando se sabe que as intervenções urbanísticas francesas geralmente se deram em cidades com uma longa e rica história, tais como Thessaloniki e Istambul. 





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 Do ponto de vista da forma urbana, esse urbanista propôs “abrir” a trama fechada da ensanche e conectar suas diversas áreas, desaguando e incluindo os povoados da periferia (pueblos), que haviam desordenadamente crescido às suas margens. Os sistemas viários foram pensados integrados com os de trem, com conexões intermodais ligando as áreas mais distantes do centro. Quanto à modulação da quadratipo, ele preservou em grande parte a malha ortogonal regular característica do plano Cerdà, buscando articular-se a ela. Porém, nos lugares em que havia previsto suas diagonais, estabelecendo novas hierarquias no tecido, configuravam-se percées impositivas dignas de Haussmann, ocorrendo aí as mesmas configurações triangulares de quadra que em Paris. O plano Jaussely, como era característico da arte urbana, acordava um papel preponderante aos espaços públicos e monumentos. Os seus desenhos evidenciam uma grande quantidade de praças enquadrando monumentos, interligadas por avenues-promenades, redistribuindo funções urbanas e projetando novos centros para a cidade. A centralidade principal da Plaza de les Glories Catalanes foi ainda mais enfatizada do que no plano Cerdà: trata-se agora de uma grande composição em polivium que lembra a Place de L´Étoile, em Paris, marcando o coração da cidade. Mas, além do formato circular clássico, ele também propôs interessantes praças cívicas alongadas em formato de parábolas. Além disso, ele também transformou a via costeira em um dos eixos estruturantes, metade para atividades do porto e indústria, metade dando ênfase ao verde e ao lazer, intitulando-a de promenade.



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O segundo sucesso internacional do grupo da escola francesa se deu em 1910, no concurso lançado pela cidade de Anvers, na Bélgica, em que o laureado foi Henri Prost (Figura 4). O concurso tinha por finalidade obter as melhores propostas para o aproveitamento dos terrenos que constituíam o cinturão de fortificação de Anvers e os terrenos de manobras militares. A solução proposta por Prost, que venceu a de Auburtin (segundo lugar), foi conciliatória: apesar de desenhar a solução clássica do boulevard circular, ele optou por conservar trechos das fortificações, como elementos de memória e paisagísticos. A consciência paisagística de Prost ficou evidente na conservação e no aproveitamento do canal que circundava as fortificações, integrando-o ao percurso do boulevard e projetando áreas de passeio público e mirantes. 

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 O delicado cuidado paisagístico de Prost, porém, era de certa forma uma exceção nos grandes traçados. Muitas vezes a instituição da paisagem, na escola francesa, deu-se por meio de uma grande composição estruturante à maneira hausmanniana, herdeira, por sua vez, da rede axial “barroca”. É o caso, por exemplo, do projeto de Jacques Gréber (com Paul Crét) para o Benjamin Franklin Parkway (1917-18) (Figura 5), cuja composição e estrutura lembra o Mall de Washington por L´Enfant. Por cortar, com uma longa e larga diagonal axial, a grelha quadriculada existente, denota sua posição monumental destacando-se na malha urbana. Também é clara sua estratégia perspética do “monumento-alvo” e do trivium à maneira de Versailles. 



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 Figura 5. Benjamin Franklin Parkway, projeto de Gréber (fonte: http://www.urbagram.net).

 Mas a preocupação de Gréber, ressalve-se, não era apenas a circulação e a monumentalidade. Como paisagista, ele se valia dessas aberturas para estruturar um sistema de parques e distribuição do verde no tecido urbano. Nesse aspecto – a defesa do paisagismo enquanto urbanismo – encontram-se similaridades com a proposta de Prost para Anvers, malgrado as enormes diferenças em termos de historicidade e de escala entre essas duas cidades. O Legado da Escola Francesa de Urbanismo A escola francesa de urbanismo primava por uma compreensão da complexidade do contexto existente por meio da enquete como embasamento projetual. Isso faz com que não seja possível considerá-la simplesmente como uma continuação da arte urbana histórica clássica e barroca, e nem mesmo do legado haussmaniano. Porém, sem descartar tais legados, os urbanistas da S.F.U. abriram-se às novas demandas da cidade moderna, buscando sedimentar um amálgama de princípios que conjugasse ciência e arte na disciplina urbanística. Constituíram, assim, uma tentativa de síntese pragmática entre as práticas de embelezamento do passado e os ideais do urbanismo funcionalista:  A escola francesa de urbanismo que se criou na França a partir de 1900 é pragmática. Aqueles que a criaram tiveram a preocupação de atacar os males reais da cidade: é a razão pela qual eles fazem tão fortemente apelo à enquete social. Eles não são utopistas, preocupados em imaginar um tipo de cidade ideal que seria imposta ao mundo por eles. Apesar do sucesso que encontra o movimento britânico das cidades jardim em uma grande parte da opinião esclarecida de nosso país, o urbanismo francês



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não procurava revolucionar a cidade. Ele procurava torná-la mais humana e mais harmoniosa (&ODYDO in: BHUGRXOD\; CODYDO, 2001, 248.).

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Morfologia, atractores e vida social. O impacto do espaço físico no modo como usamos a cidade: o caso do Bairro de Alvalade. Micaela Raposo2, Luís Santos2, Rafael Ferreira2, Hugo Brito2, Sara Eloy1,2 1ISTAR-IUL, 2ISCTE-IUL

Av. Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Telefone/fax: +351 217903000 - +351 217964710 m.raposo11@hotmail, [email protected], [email protected], [email protected], [email protected]

Resumo O Bairro de Alvalade, projetado pelo Arq. Faria da Costa nos anos 40, constitui um dos bairros mais centrais da área de Lisboa. O bairro é delimitado por avenidas de grande circulação pedonal e viária. Este bairro é considerado um dos melhores exemplos urbanísticos projetados na Europa pelas suas qualidades habitacionais e de relação entre o espaço urbano e o convívio social. A problemática abordada neste trabalho incidiu sobre a vontade de perceber de que forma a morfologia do espaço, presente na organização das células, na distribuição dos equipamentos públicos e nos eixos viários principais, influenciam a vida social do espaço. A nossa tese é que ao longo do mesmo eixo, ocupado por determinadas funções, as variações de movimento segundo a hora do dia, e o público que o frequenta são elementos que fazem variar o uso de cada espaço complementarmente à sua potencialidade segundo a teoria da sintaxe espacial. Para este estudo procedeu-se à análise configuracional apoiada em técnicas da sintaxe espacial, com recurso a mapas axiais e mapas de segmentos. Recorreu-se também a técnicas de observação, nomeadamente o método dos portões (Gate Count) e o mapa de usos (Land Use Map) para registar a vivência nas avenidas, diferenciando variáveis como as faixas etárias, e de modo a perceber a distribuição dos equipamentos. Por fim procedeu-se à comparação dos dados recolhidos. As observações no local foram feitas nas duas avenidas com maior potencial de uso – Av. de Roma e Av. da Igreja – de acordo com a análise de space syntax. Os dados recolhidos na observação direta indicam que a vivência de ambas as avenidas não é constante ao longo do seu percurso. Os espaços onde se verificou maior afluência de pessoas são as intersecções entre estas avenidas, que coincidem essencialmente com a zona comercial. A Av. de Roma revelou-se um interessante caso de análise visto que a observação direta permitiu obter resultados diferentes dos constantes na análise dos mapas axiais. Constatou-se ainda que a presença de atractores tem uma influência decisiva no uso do espaço que foi comprovada pela análise comparativa dos resultados da space syntax sobre o potencial de uso e os resultados da observação direta do espaço através de contagens e análise das funções presentes no mesmo. Palavras-chave: Bairro de Alvalade; equipamentos públicos; morfologia do espaço; vida social PNUM 2016 295

Métodos e técnicas de análise A Sintaxe espacial “estabelece uma teoria descritiva básica de tipos de padrões e então um método de análise”,  (HLOHU & HDQVRQ, 1993). Segundo Hillier e Hanson (1993), a sintaxe espacial investiga a relação entre o conteúdo social e o conteúdo espacial dos padrões sociais, constituindo um método de análise que enfatiza as relações locais e globais com a sociedade que usa o espaço. Podemos afirmar que é um conjunto de teorias, técnicas e ferramentas que visam explorar as relações entre a sociedade e o ambiente construído. Permite definir padrões sociais e espaciais que estão associados a processos psicológicos e sociológicos de ocupação do território. Para isso a sintaxe espacial conta com ferramentas que nos permitem analisar o ambiente construído. Entidades espaciais As entidades espaciais são os elementos que, apesar das suas caraterísticas individuais, constituem padrões e entendem-se por espaços convexos, linhas axiais e isovistas, traduzindo as caraterísticas do espaço e as atividades humanas nele desenvolvidas: as pessoas juntam-se em espaços convexos, movem-se em linha reta e têm diversos ângulos de visão.

Um espaço convexo permite a relação visual entre qualquer ponto do mesmo. As linhas axiais baseiamse em linhas visuais retas possíveis de percorrer e devem cruzar o maior número de espaços convexos possível. Holanda (2002), refere-se às praças, ruas e avenidas como espaços convexos, definindo-os como unidades de duas dimensões, enquanto as linhas axiais são unidades de uma dimensão, e relaciona-os na cidade referindo-os como “(…) trechos de rua ou praças formam sequências ordenadas ao longo de linhas rectas, às vezes com quilómetros de extensão (…)”, (HRODQGD, 2002). Mapas axiais e de segmento Um mapa axial é o conjunto mínimo de linhas axiais mais longas de um sistema, em que todos os espaços convexos são atravessados e todas as conexões entre linhas são feitas. Estes mapas ilustram a potencialidade de geração de movimento e são usados para descrever a estrutura morfológica de áreas urbanas.

O mapa de segmentos deriva do mapa axial, e representa as linhas axiais divididas em segmentos nas suas interseções, permitindo uma análise mais aprofundada do sistema. Cada segmento torna-se uma entidade independente, traduzindo os valores de cada troço do espaço, em função das suas características, e introduzindo novos conceitos que vamos abordar mais à frente.

Ambas as técnicas são utilizadas nesta análise para percebermos a relação da acessibilidade e centralidade dos eixos principais do bairro perante todo o sistema com a sua vida social e espacial,

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diferenciando os diversos troços, uma vez que o objetivo deste trabalho é analisar o uso do espaço em função das suas zonas, dotadas com equipamentos de funções diferentes em cada troço. Medidas sintáticas As medidas sintáticas são os valores ou propriedades que cada entidade espacial traduz. Na prática, são as caraterísticas do espaço urbano. Existem medidas locais e globais, que estão diretamente relacionadas com a entidade espacial que as traduz (locais), ou fazem a relação com o sistema todo (globais).

A conectividade é uma medida sintática local que traduz a potencialidade de geração de movimento e é descrita pelas conexões dos espaços. Quanto mais interseções um espaço tiver, mais ativo é o seu papel no sistema. A integração, é uma medida global que traduz a potencialidade de atração de fluxos, e pode ser analisada em função da localização de um espaço no sistema, ou num raio que depende da escala e número de elemento desse mesmo sistema. A inteligibilidade é uma medida secundária que determina a relação entre a integração e a conectividade. A centralidade e conexões de um espaço inteligível permitem simultaneamente a geração de movimento e atração de fluxos.A Choice (escolha) introduz o conceito “trough movement”, que define o segmento da linha axial, pelo qual as pessoas se deslocam, uma vez que cada segmento proporciona uma possibilidade de percurso. Os espaços com valores mais elevados de Choice tendem a ser os mais conectados. Ao longo da análise efetuada estas medidas são utilizadas de modo a avaliarmos em que medida a configuração morfológica do bairro e percebermos se relaciona com os seus usos. Técnicas de observação Os mapas de usos caracterizam os espaços pela sua função, sejam eles espaços público ou edificado. Nestes mapas diferenciam-se as zonas residenciais, comerciais, equipamentos religiosos, de educação, saúde, desporto e serviços públicos. Estes mapas caracterizam o espaço, mas não explicam o “porquê”. A escolha desta técnica para este trabalho deve-se ao fato de pretendermos perceber o uso que as pessoas fazem do espaço com base nesses equipamentos.

O gate count é uma forma de observação do movimento de pessoas a partir de um determinado ponto. Neste trabalho definiram-se pontos, a partir dos quais foram feitas contagens, para registar a quantidade e faixa etária das pessoas que passavam por aqueles locais, para perceber a relação dessas pessoas com o ambiente construído e que variações se verificavam consoante a zona da contagem.

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Análise O Bairro de Alvalade, projetado pelo arquiteto João Faria da Costa, foi um dos últimos a ser pensado de raiz para a cidade de Lisboa, contendo um traçado regular, típico da história recente do urbanismo citadino. Desde cedo é considerado um dos melhores bairros para se viver em Lisboa, tendo em conta as relações entre o comércio, habitação e serviços existentes pelo bairro inteiro. A nossa escolha incidiu-se sobre Alvalade devido à relação existente entre as funções necessárias para o funcionamento de um bairro, algo que em certas zonas de Lisboa não acontece com tanta naturalidade como acontece em Alvalade, daí o destacamento pela sua diferença. A escolha das avenidas da Igreja e de Roma justifica-se por serem as que melhor estruturam o bairro, assim como serem as que melhor representam a diferença entre zonas de habitação e serviços. O objetivo do trabalho recai sobre o estudo dos elementos de atração destas duas avenidas tão importantes para a estruturação de Alvalade, tentando-se perceber se os níveis de integração, conectividade e choice, são afetados por esses elementos de atração.

Resultados da análise do Mapa axial A análise feita às avenidas mais movimentadas do bairro, Av. de Roma e Av. da Igreja, permite-nos perceber que, apesar de serem muito extensas e terem bastantes ligações, as mesmas não apresentam o valor mais alto de conetividade, como mostra a Figura 1 a). A Figura 1 b) mostra que estas mesmas avenidas são as mais integradas no sistema, permitindo-nos perceber onde todo o movimento populacional passa e como se distribui. Na análise da inteligibilidade, o sistema indica-nos que 39% do sistema é inteligível, ou seja, menos de metade do sistema potencia simultaneamente a atração de fluxos e a geração de movimento, revelando assim uma baixa inteligibilidade.

a)

b)

Figura 1 a) Análise axial do Bairro de Alvalade, mapa de Conectividade; b) Análise axial do Bairro de Alvalade, mapa de Integração HH

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Resultados da análise do Mapa de segmentos A Figura 2 a) mostra que os segmentos com valores mais elevados da medida Choice, são troços da Avenida da Igreja e da Avenida de Roma, o que já estava previsto pois observámos que a integração e conetividade dessas vias eram bastante elevadas. A escolha por esta medida sintática deveu-se ao que esta representa para a perceção das pessoas para determinada escolha entre ruas/avenidas, demonstrando a frequência com que cada um dos troços do bairro é utilizado. Contudo, existem troços destas mesmas vias em que o valor de Choice não é tão elevado, ao contrário do que o mapa axial nos mostrava ao representar a linha axial com valores elevados de integração e conectividade em toda a sua extensão. Em relação à profundidade média, a Figura 2 b) mostra-nos que as mesmas avenidas são dos espaços menos profundos do sistema, por serem os mais conectados.

a)

b)

Figura 2 a) Análise axial do Bairro de Alvalade, mapa de Choice; b) Análise axial do Bairro de Alvalade, mapa de Profundidade Média (Mean Depth)

Resultados da análise através do Gate Count A Avenida da Igreja engloba a zona de habitação, comércio, serviços e Saúde. Entre a área do Campo Grande e a Praça de Alvalade trata-se de uma zona puramente habitacional, sendo a Praça de Alvalade o ponto com maior concentração de comércio e serviços. A parte da rua que liga a praça com a igreja é uma zona residencial com serviços e saúde. O método “Gate Count”, que se realizou como método de análise dividiu-se por 4 pontos de observação em cada uma das avenidas, Avenida da Igreja (Figura 3) e Avenida de Roma (Figura 4), para perceber que pessoas utilizam mais estes espaços consoante o horário, e faixa etária de cada utilizador. As contagens foram realizadas em diferentes partes do dia (manhã, hora de almoço e tarde) com uma duração de 5 minutos cada. A disposição dos Gates é feita ao longo das duas avenidas, sendo que na avenida da Igreja os Gate 2 e 3 encontram-se próximos devido à

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estátua de Sto. António tornar-se uma barreira visual durante as contagens, fazendo-se então uma contagem para norte (Gate 2) e uma para sul (Gate 3), devido também à enorme afluência de pessoas ao longo do dia.

Figura 3 Gates de contagem para a Av. da Igreja

Nas contagens da manhã1 pudemos perceber que ao longo da Avenida da Igreja passaram mais adultos em relação às outras faixas etárias, e foi no Gate 4 que se registou um maior fluxo de adultos. Em relação às crianças, nesse horário registou-se um maior número no Gate 3 devido à proximidade da escola secundária Rainha D. Leonor.

1

Contagens efetuadas na Av. da Igreja durante o período da manhã

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Na hora de almoço2 os valores, em média, aumentaram e mantêm-se os adultos como a faixa etária mais registada nos 4 pontos. O Gate 4 continuou a registar o maior flux de adulto, enquanto as crianças passaram mais pelo Gate 1 neste horário. À tarde3, os adultos continuam a ser os maiores utilizadores da avenida e, em média, os idosos registam valores superiores às crianças. O Gate 4 continua a registar os valores mais elevados de idosos e adultos, mas as crianças passaram mais no Gate 3, tal como no horário da manhã.





Contagens efetuadas na Av. da Igreja durante o período da hora de almoço 



Contagens efetuadas na Av. da Igreja durante o período da tarde

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Figura 4 Gates de contagem para a Av. de Roma

Em relação à Avenida de Roma (Figura 4), no geral os adultos são os maioritários utilizadores no horário da manhã4, e o Gate 4 é o ponto onde foram registados os valores mais elevados de adultos e idosos. No gate 3 registaram-se valores mais elevados de crianças, que no geral contaram-se mais que os idosos. Pudemos confirmar que no horário do almoço5, são novamente os adultos o grupo mais contado, cujo valor mais elevado se registou no Gate 4. Os valores das crianças diminuíram, contudo registou-se um





Contagens efetuadas na Av. de Roma durante o período da manhã 



Contagens efetuadas na Av. de Roma durante o período da hora de almoço

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valor mais elevado no Gate 1. Os valores dos idosos aumentaram, e registou-se o valor mais elevado no gate 4, tal como os adultos. A proporção entre crianças e idosos manteve-se, apesar de se ter registado no Gate 3 e uma subida dos valores dos idosos face às crianças. No horário da tarde6, a contagem de adultos aumenta, mantendo-os com os valores mais elevados no geral, apesar da grande aproximação dos valores das crianças, que excedem os adultos no Gate 1, local onde se regista maior fluxo de crianças. O Gate 4 continua a ser o ponto mais usado pelos adultos e idosos que, no geral, mantêm os valores da hora de almoço. Resultados da análise do Mapa de usos O mapa de usos caracteriza os espaços pela sua função, sejam eles espaços públicos ou edificado, em que se diferencia o programa e as tipologias dos espaços. Estes mapas caracterizam o espaço, mas não explicam o “porquê”. A escolha desta técnica de observação no nosso trabalho deve-se ao fato de pretendermos relacionar esses mapas com os mapas de configuração do espaço gerados através de computador e com observações in loco, de modo a percebermos a lógica da localização das funções e o uso que as pessoas fazem do espaço com base nesses equipamentos e faixa etária das pessoas que os frequentam. A Avenida da Igreja engloba em toda a sua extensão zona de habitação, comércio, serviços e Saúde. Entre o Campo Grande e a Praça de Alvalade é um de zona puramente habitacional, sendo a praça de Alvalade o ponto com maior concentração de comércio e serviços. A rua que conecta a praça com a igreja de S. João de Brito é ocupada com habitação, serviços e saúde.





Contagens efetuadas na Av. de Roma durante o período da hora da tarde

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Figura 5Mapa de usos

Discussão e conclusões Numa primeira análise com base nos mapas axiais, as avenidas que apresentam maior integração no sistema são a Avenida da Igreja e a Avenida de Roma. Com o objetivo de correlacionar as áreas mais conectadas com a sua real utilização por parte da população e com os usos existentes no espaço decidimos focar-nos nessas duas avenidas. Depois de uma análise in loco chegámos à conclusão que a utilização de ambas as avenidas não é semelhante ao longo do seu percurso. De forma a reforçar esta teoria, dividimos as avenidas por sectores para comprovar essa não homogeneidade. Para isso, criámos um mapa de segmentos e um mapa de usos e realizámos contagens, que nos permitiam tirar conclusões acerca do uso destes espaços, nomeadamente no que respeito à faixa etária que utiliza cada espaço em função das atividades. Ao comparar o mapa de segmentos e as contagens comprova-se que a área mais utilizada é a comercial. No caso da Avenida da Igreja, a zona residencial é a que demonstra menos utilização de espaço em comparação com a zona comercial, mas a partir das contagens percebemos a discrepância etária dos espaços (Gate 1 e Gate 4 da Av. da Igreja). Em relação às crianças, ambos os espaços estão equiparados, mas isto muda nos idosos e principalmente nos adultos, visto a zona residencial ser muito menos utilizada do que a zona comercial, essencialmente pelos adultos, como podemos comprovar nas respetivas tabelas e mapas de segmentos. Relativamente à Avenida de Roma, o principal ponto que não corresponde com as contagens é o Gate 4, em que no mapa é representado com uma linha axial de baixo valor, e nas contagens é o ponto que contém maior número de pessoas derivado a ser uma zona comercial. No caso das crianças, concluímos PNUM 2016 304

que o único aumento significativo surgiu no Gate 1 da Avenida de Roma, e isto deve-se ao facto de naquele local se situar uma escola (Figura 5). Podemos concluir que o espaço mais utilizado é o espaço circunscrito nas interceções da Avenida de Roma com a da Igreja e a interceção entre a Avenida dos E.U.A com a Roma. Após refletir sobre a análise das Avenidas, apesar de não terem o maior índice de conectividade, as Avenidas de Roma e da Igreja são os eixos com maior integração, como se verifica na análise realizada pela sintaxe espacial, sendo a Praça de Alvalade, ou seja, a interceção entre as avenidas, o ponto de maior convergência como comprovámos pelas contagens realizadas. No Gate 4 da Avenida de Roma, na parte da avenida que faz ligação ao Areeiro, nota-se um aumento geral do número de pedestres a utilizála, presente em todas as faixas etárias devido à presença do metro da estação de Roma, mas também por este ser um dos principais eixos da cidade de Lisboa, não existindo praticamente ao longo de toda a sua extensão grandes diferenças de pedestres. Relativamente ao Gate 1, localizado no oposto da avenida, notou-se uma redução de pessoas a utilizá-la, devido essencialmente por ser uma zona mais habitacional que comercial. O aumento gradual dos valores na avenida em direção ao Areeiro justifica-se então pela combinação dos diversos espaços de comércio, escolas (primária e secundária), e das estações do metro (Roma e Alvalade), sendo a partir da Praça de Alvalade que esta avenida ganha uma maior preponderância. Em termos de inteligibilidade não se encontra uma linha axial que preencha todos os critérios. A linha que mais se aproxima é o segmento correspondente ao comércio da Avenida de Igreja, já que esta tem o nível mais alto de integração e um nível alto de conectividade. Agradecimentos Agradecemos o apoio da Professora Rosália Guerreiro na concretização do estudo que deu origem a este paper. Referências bibliográficas CRHOKR A B 2005 infohabitar- revista semanal sobre o habitat humano. [Online] Available at: http://infohabitar.blogspot.pt/2008/01/alvalade-de-faria-da-costa-uma-cidade.html [Acedido em 10 Dezembro 2015]. GXHUUHLURR& EOR\S 2012 Sintaxe Espacial e Complexidade. [Online] Available at: http://sintaxeespacialecomplexidade.blogspot.pt/?zx=ba1572184c0799e6 [Acedido em 28 Novembro 2015]. GUDMHZVNL T 1992 Space Syntax Observation Manual. Laboratory UCL/RQGRQ HLOOHU B 1984 Space is the machine. Cambridge University Press&DPEULGJH +LOOHU% & HDQVRQJ 1993 The social logic of space. Cambridge University Press*UHDW%ULWDLQ HRODQGD F 2002 O espaço de exceção. Universidade de Brasília%UDVLO TXUQHU A 2004 Depthmap 4: a researcher's handbook. Bartlett School of Graduate Studies University College London London, UK.

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Fundamentos de Morfologia Urbana Staël de Alvarenga Pereira Costa, Maria Manoela Gimmler Netto. Departamento de Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Minas Gerais. End. Rua Paraiba, 697 - Funcionários, Belo Horizonte - MG, CEP 30130-140. Telefone/fax: 00 (31) 99937 2669 e (31) 3409-8819. [email protected] , [email protected]

 Resumo O presente artigo tem por objetivo apresentar o livro Fundamentos de Morfologia Urbana, publicado em 2015, no Brasil. Este se propõe a suprir uma lacuna, pois são reduzidos os textos em português sobre o assunto e além de escassos, muitos empregam o termo Morfologia Urbana, mas de fato se referem a questões de forma urbana, como um elemento bidimensional estático. E mesmo nos artigos tradicionais, das línguas inglesa ou italiana, percebe-se uma reduzida aplicação instrumental, que possa servir de modelo para uma análise morfológica, precisa. O livro aborda as principais escolas tradicionais de Morfologia Urbana com a sua aplicação prática na cidade de Ouro Preto. Esta cidade tem sido o objeto dos trabalhos práticos porque todos os conceitos e desdobramentos teóricos e metodológicos podem ser ali observados. Nas conclusões são discutidas as semelhanças e divergências entre as duas escolas tradicionais de Morfologia Urbana e considerações são elaboradas sobre a complementariedade entre ambas, resultante da interdisciplinaridade consequente da formação acadêmica dos seus fundadores: a geografia e a arquitetura e urbanismo. Evidencia-se a sua contribuição para a ciência mundial e para a preservação da paisagem urbana. Mais do que tudo, espera-se contribuir para a disseminação dos conteúdos e para as infinitas possibilidades de pesquisa oferecidas pela aplicação do método.

Palavras-chave Publicação, língua porguesa, Fundamentos de Morfologia Urbana.

 Intodução O livro Fundamentos de Morfologia Urbana, publicado em novembro de 2015, é direcionado aos estudantes e profissionais de arquitetura, urbanismo, paisagismo e demais áreas do conhecimento da linha Ciencias Sociais Aplicadas. E também, a todo indivíduo que tenha interesse em compreender a Morfologia Urbana que estuda o processo de formação e de transformação das cidades. A publicação surgiu como uma solicitação de estudantes após a oferta em cursos de pós-graduação no Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável (MACPS), da Escola de Arquitetura da EAUFMG. Esses, interessados em dar continuidade aos estudos morfológicos observavam lacunas na divulgação do método, parte atribuída às publicações brasileiras, muitas relacionadas aos conteúdos da space syntax. Outros estudos, sobre as escolas tradicionais em português, além de escassos, empregam o termo, Morfologia Urbana, mas de fato, se referem às questões de forma urbana, como um elemento bidimensional, configurando a dicotomia entre forma urbana e morfologia. Nesses casos, verifica-se o uso incorreto do termo morfologia empregado para o estudo do objeto e não referente ao processo, como é praxe nos estudos morfológicos, como observa Larkan (2002). Esse livro se propõe a apresentar as principais escolas tradicionais de Morfologia Urbana e introduzir suas bases conceituais com aplicação prática na cidade de Ouro Preto. As Escolas de Morfologia Urbana Inglesa PNUM 2016 307

e Italiana foram fundadas pelo geógrafo Conzen e pelo arquiteto Muratori, respectivamente a partir dos anos de 1960. Ouro Preto tem sido o objeto dos trabalhos práticos nos cursos porque todos os conceitos e desdobramentos podem ser ali observados. O diferencial da obra reside, portanto, na apresentação das escolas com a aplicação das técnicas na cidade de Ouro Preto. O livro se estrutura em duas partes principais. A primeira aborda a teoria inglesa e para ilustrar os conceitos e apresentar em detalhes os instrumentos utilizou-se um texto de seu fundador, publicado em 2004, para aplicá-lo e interpretá-lo na paisagem urbana de Ouro Preto. A segunda parte apresenta os conteúdos da Escola Italiana de Morfologia Urbana, porém difere no aporte conceitual. Este não se baseia numa publicação do fundador, o arquiteto Saverio Muratori, e sim no livro publicado pelos seus discípulos, Gianfranco Caniggia e Gian Luigi Maffei. A aplicação é também ilustrada pelas pesquisas efetuadas na cidade de Ouro Preto. Nas conclusões são discutidas as semelhanças e dessemelhanças entre as duas escolas tradicionais de Morfologia Urbana e considerações são elaboradas sobre a complementariedade entre ambas e a sua contribuição para a ciência mundial e preservação da paisagem urbana.

A ESCOLA INGLESA DE MORFOLOGIA URBANA As análises desenvolvidas por Conzen a partir da sua interpretação da forma urbana estabelecem as bases da Escola Inglesa de Morfologia Urbana, também conhecida como a ″Escola Conzeniana″.

A paisagem urbana A origem da paisagem urbana é concebida no contexto de uma paisagem precedente agrária e rural, na qual se estrutura um assentamento incipiente de edificações com especialidades não agrárias, com funções centrais religiosas e políticas. Esses assentamentos possuíam edificações monumentais, áreas construídas próximas entre si, muralhas e a presença de um novo tipo de paisagem cultural, denominada a paisagem urbana. Todos estes núcleos incipientes já apresentam uma reticula fechada num plano urbano compacto e numa área construída que torna a paisagem urbana morfologicamente, o tipo mais intensivo da paisagem cultural. O processo de transformação da paisagem urbana Uma característica básica da paisagem urbana, como em qualquer outro tipo de paisagem cultural é a variação de períodos situados na sua origem. A análise geográfica desse fenômeno aponta para o processo morfológico formativo na história da cidade, o qual pode ser amplamente descrita, como resultante de um processo de acumulação, ou de adaptação que provocam transformação e renovação de forma. E em qualquer grau, esses processos morfológicos são resultantes do processo socioeconômico no sentido mais amplo. Por esta razão, a evidência da paisagem urbana, e particularmente, a identificação desses processos é de interesse histórico em termos gerais, pois a acumulação resulta do crescimento social e das necessidades culturais durante períodos PNUM culturais sucessivos, mais ou menos distintos. Então, a 2016 308

sobreposição de novas edificações a outros edifícios tem sido o corolário normal de um incremento populacional com a adaptação e a transformação das estruturas existentes para servir às necessidades atuais e as de transformação que serão praticadas ao longo dessas estruturas para atender a esse propósito.

A análise do Plano Urbano Para Conzen, o plano urbano é o elemento funcional da cidade que melhor expressa à gênese do assentamento geográfico. Isto ocorre, não obstante às mudanças que acontecem na aparência das cidades, mas também nas ruas que têm permanecido através dos séculos. Para ele, isso exprime a qualidade que se manifesta devido à capacidade das ruas de permanecerem pouco modificadas frente às transformações que ocorrem nas cidades, ao longo dos séculos. O parcelamento da cidade reflete a ordem econômica e as outras necessidades dos habitantes que mudam no curso dos séculos. Pode-se ler através dos planos urbanos, e acima de tudo, perceber as diferentes condições legais econômicas e políticas que prevalecem em cada período. Evolução Urbana e a visão tripartite Os estudos dos planos sucessivos de uma cidade e outras evidências morfológicas históricas, de formação mais antiga irão desnudar o desenvolvimento da cidade, em termos de crescimento e transformação interna ao longo do tempo. Isso proporciona a percepção dos três complexos morfológicos: o sistema viário, o padrão de parcelamento das quadras e dos lotes e a área edificada. A paisagem urbana é composta de formas pertencentes a três categorias sistemáticas, a saber – o plano urbano, o tecido urbano, e o padrão de uso do solo. Em qualquer lugar da paisagem urbana estas categorias estão intimamente associadas, desde que cada edifício e cada unidade de uso do solo formem um tecido urbano pertencente ao plano urbano. O estudo do plano urbano é normalmente efetuado por meio de comparações temporais.

O padrão de parcelamento de lotes O padrão de parcelamento do solo está intimamente associado à substituição dos edifícios. Há a metamorfose do lote porque a substituição edilícia frequentemente produz um alargamento na sua dimensão. A metamorfose dos lotes nas áreas centrais consiste geralmente, no remembramento de lotes contínuos e assim, leva a um processo gradativo no aumento da concentração do lote, com redução em número e no acréscimo da sua dimensão. A metamorfose no período industrial inglês caminhou na direção oposta quando, por exemplo, os grandes lotes do tipo parque, da classe alta antecessora formavam uma área residencial, sendo subdivididos por novos empreendimentos para grupos sociais de média e baixa renda. Por este exemplo pode-se aferir que a análise dos lotes e das suas transformações é decorrente da análise das edificações e sua ocupação no tempo. PNUM 2016 309

O pensamento sobre ″fringe belts″ Há alguns elementos reconhecidos no desenvolvimento das cidades, como os que se referem aos ″fringe belts″ ocupados por usos não residenciais. Os hiatos urbanos, na interpretação brasileira, constituem espaços fragmentados, mas percebe-se um conjunto estruturado por eixos ou linhas de fixação que, no caso podem ser vias, rios, encostas, morros e mesmo barreiras sociais como vilas e favelas. Eles constituem espaços livres de uso privado que formam hiatos urbanos no crescimento de uma zona residencial e apresentam-se como franjas temporárias na periferia urbana, definem zonas intermediárias e aparecem estar associados ao comércio e os ciclos de construção residencial. Os espaços localizados nas bordas urbanas ou nos seus limites podem ter sido originados no processo do loteamento e destinados ao abrigo de grandes equipamentos urbanos como cemitérios, hospitais, clubes, campos de futebol ou mesmo universidades. Esses equipamentos estão relacionados aos períodos de grande expansão urbana e com o declínio imobiliário refletem uma intermitente desaceleração ou estagnação do crescimento dos espaços urbanos limítrofes. Essa oscilação da expansão urbana pode ocorrer em qualquer momento da evolução urbana. Constituem-se por extensas glebas, muitas vezes com porcentual maior de áreas vegetadas do que de espaços construídos. Assim, algumas das características da franja rural-urbana preservam enraizadas na cidade. A gestão da paisagem urbana O gerenciamento apropriado de paisagens urbanas é de importância especial, devido o seu efeito direto na qualidade ambiental e a seu benefício, em longo prazo. Conzen afirma que, mesmo quando esse benefício não seja meramente econômico, mas também de uma natureza cultural e social, ele é de tal forma difícil de ser expresso, porque não é avaliado financeiramente de forma adequada. A paisagem urbana histórica é geograficamente estruturada e as suas localizações e diferem na maneira pelas quais expressam a historicidade urbana. Esta expressividade é reconhecida por meio da identificação da unidade de planejamento associada a uma base teórica. Se as unidades de planejamento podem ser analisadas uma a uma, pode-se identificar as regiões morfológicas que serão objetos de intervenção para a sua conservação. Desta visão global de análise das cidades, Conzen se antecede aos movimentos de requalificação urbana e apregoa nos últimos anos da sua prática profissional, a importância cultural das paisagens urbanas dos centros históricos britânicos. A aplicação das teorias inglesas em Ouro Preto Das aplicações práticas destacam-se os estudos sobre a Evolução Urbana, sintetizados na figura 1 que ilustra o processo de transformação do plano urbano de Ouro Preto ao longo de sete períodos morfológicos. Todos os conceitos e métodos da escola inglesa foram interpretados e aplicados na confecção de um mapa específico para cada período morfológico. Estes representam intervalos de tempo que mantém PNUM 2016 310

características físicas e formais semelhantes na paisagem urbana, derivadas de processos socioculturais específicos.

  Figura 1. Mapa Síntese da Evolução Urbana de Ouro Preto. Fonte: Pereira Costa e Gimmler Netto, 2015.

 Para a elaboração dos mapas houve uma adaptação metodológica contemporânea com a utilização de ferramentas digitais e análises da realidade brasileira. Os mapas antigos, figura 2, referentes a cada período morfológico serviram de documento para a elaboração de mapas confeccionados a partir de uma base de dados georreferenciada da cidade, em AUTOCAD, como mostra a figura 3.

Figura 2. Planta da cidade de Ouro Preto, 1888. Mapa histórico. Fonte: Arquivo Público Mineiro, 2013. PNUM 2016 311





Figura 3. Quarto período morfológico: A cidade de Ouro Preto. Fonte: Pereira Costa e Gimmler Netto, 2015.

Procurou-se sempre estabelecer fidelidade aos mapas antigos que eram documentos cartográficos de cada período morfológico, como se observa na comparação entre as figuras 2 e 3. Contudo distorções de proporções e de localizações foram corrigidas com o redesenho na base georreferenciada. Como método para a elaboração dos mapas definiu-se que haveria um apagamento sucessivo das informações da base atual, retrocedendo no tempo em cada período morfológico. Assim, os mapas organizados cronologicamente permitem a compressão física e espacial do processo de evolução urbana da cidade. O estudo na íntegra está presente no livro Fundamentos de Morfologia Urbana (2015). A ESCOLA ITALIANA DE MORFOLOGIA URBANA A Escola Italiana de Morfologia Urbana elabora o estudo da forma urbana como um modelo projetual para uma cidade. Os instrumentos metodológicos desta escola foram elaborados por Saverio Muratori e surgem principalmente, da sua prática arquitetônica e acadêmica que foram posteriormente sistematizados por seus discípulos. O tipo básico O tipo básico é a edificação considerada síntese da cultura local e que pode se reconhecida por meio das suas transformações, todas baseadas num principio comum, que se amplia ou reduz, mantendo o formato inicial, perceptível através da análise morfológica. O tipo básico, portanto forma a matriz do conceito PNUM 2016 312



residencial, do qual são herdadas as residências atuais por meio de especialização da função e do crescimento (Caniggia, Maffei, 2004). A pesquisa tipológica É a partir da identificação do tipo básico, que a escola italiana estrutura toda a análise morfológica. A pesquisa tipológica consiste na seleção do tipo básico, comparando-o aos outros tipos existentes e determinando o nível de especificidade apropriada para se estabelecer a distinção morfológica. A pesquisa é elaborada por meio da análise das fachadas, através de comparações das suas dimensões e aspectos construtivos que permitem estabelecer as características das diversificações diatópicas, que são variações geográficas dos tipos decorrentes da adequação às condições geográficas locais, tais como topografia e clima. As análises diacrônicas, por sua vez, se originam da variação dos tipos ao longo do tempo, sendo, portanto, variações processuais. A forma de análise diatópica ocorre pela observação das transformações dos tipos em conjuntos focando nas variações estabelecidas ao longo do tempo. Para efetuar comparações é necessário utilizar conjuntos de tipos edilícios básicos para o qual os conceitos se ampliam. E de um único tipo é feita a análise de conjuntos de tipos, que se referem a fachadas de faces de quarteirões com tipologias semelhantes. Os núcleos e a formação de tecidos urbanos A partir da estruturação de tipos e seus respectivos conjuntos são estabelecidos os processos de formação dos núcleos urbanos e consequentemente, a compreensão do ambiente humano. A Escola Italiana de Morfologia Urbana credita o aparecimento de núcleos urbanos à implantação de uma rota, por eles denominada "rota matriz" de onde outras rotas secundárias se interconectaram, estabelecendo a malha viária que estruturaria a noção de região e do território. (Cannigia et al, 2001). Nesta rota, há a ocupação da faixa paralela a ela e consequentemente, a formação de faixas relevantes dos lotes que definem a estrutura do tecido urbano. Estas faixas formam de acordo com o autor, as bases do parcelamento dos lotes e da ocupação incipiente no alinhamento das rotas que posteriormente, vão tendo as partes laterais ocupadas e os fundos do lote. E assim consequentemente, formam-se novas vias para dar acesso a esses lotes laterais e de fundos, e desta forma, cria-se o quarteirão. Os núcleos urbanos apareceriam em decorrência desta estruturação, nos pontos de união entre as rotas secundárias e as principais. A formação do território A escola italiana define e classifica as quatro fases para a estruturação do território: a fase inicial de rotas, a fase secundária de assentamentos, a terceira fase da área de produção e a quarta fase do protonúcleos urbanos. Cada fase evolutiva correspondente também, a uma fase equivalente na civilização humana. Um território que só possui rotas corresponde à fase civil nômade, no qual os grupos de seres humanos moviam-se de um lugar a outro, sem estabelecer habitações. Para Muratori e seus seguidores, as três primeiras fases constituem na verdade, à Idade Neolítica e que essas até então, ofereciam todas as necessidades ao 2016 ser humano. Consideram que só partir do progresso PNUM 313

da civilização que há distinção dos papéis e a especialização de funções, que vão dar origem às trocas de produtos e à necessidade de construção de estruturas que vão ocorrer nos centros de mercado, localizados no protonúcleo urbano. É então, na quarta fase que ocorre o aparecimento de um estágio civil. A fundação desses centros completa uma espécie de ocupação inicial da estruturação de uma sociedade civil na área para se compreender os desenvolvimentos subsequentes. É esta em termos resumidos, a teoria básica conceitual da escola italiana de Morfologia Urbana. A aplicação das teorias italianas em Ouro Preto Em relação à aplicação da teoria italiana, o estudo referente ao Processo Tipológico complementa a pesquisa de Evolução Urbana, pois traduz as transformações culturais para a escala do edifício. Parte deste estudo é descrita a seguir. Nesse sentido, foi possível estabelecer uma linha do tempo que demostrasse fisicamente as principais alterações formais nos tipos residenciais de Ouro Preto, como ilustra a figura 4. Metodologicamente, definiu-se o tipo básico que consiste no modelo mais representativo encontrado na cidade que é o sobrado. A partir dele retrocedeu-se no tempo até o tipo original, a tipuaba derivada de construções indígenas. Da mesma maneira, partindo do tipo básico, avançou-se no tempo para demostrar o processo de transformação dos sobrados aos palacetes.

Figura 4. O Processo Tipológico de Ouro Preto Fonte: Pereira Costa e Gimmler Netto, 2015.



 Considerações Finais O livro Fundamentos de Morfologia Urbana cumpre um importante papel ao inaugurar em língua portuguesa referencia bibliográfica sobre o assunto. Os reduzidos textos em português não focalizam o processo de gênese formal e de transformação ao longo do tempo que permitem uma visão sistêmica das tendências da paisagem urbana. Já os textos tradicionais, nas línguas inglesa e italiana, trazem limitações para a atividade didática. Durante as pesquisas sobre as interações entre os conceitos e aplicações de ambas as escolas observouse que a metodologia desenvolvida por cada fundador divergia e convergia paradoxalmente. Divergia, pois a escola inglesa iniciava os estudos pela escala ampliada da cidade e sucessivamente reduzia a escala para observar os tecidos urbanos e os lotes, enquanto que a escola italiana propunha o processo inverso, PNUM 2016 314

iniciando pela edificação ampliava-se a escala aos tecidos e por fim ao território. A convergência explicase por compreender que ambas as escolas reconheciam que a variação das escalas de observação dos elementos formais e o conhecimento dos processos culturais ao longo do tempo eram fundamentais para a compreensão das cidades. Conclui-se que a sincronicidade dos temas no campo da Morfologia Urbana obtém como resultado o entendimento de que as teorias das escolas tradicionais de Morfologia Urbana são complementares e podem ser associadas para os estudos das cidades. Bem como, podem ser integradas a outras teorias urbanas, constituindo um importante instrumental de análise e leitura das paisagens urbanas contemporâneas. Espera-se contribuir para a disseminação dos conteúdos e para as infinitas possibilidades de pesquisa oferecidas pela aplicação do método.

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Limite Difuso. Sines, o Processo de Infraestruturação Industrial Andreia M. Tavares, Paulo Tormenta Pinto Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), DINAMIA-CET-IUL, Lisboa, Portugal Avenida das Forças Armadas Edifício ISCTE 1649-026 Lisboa, Portugal, Telefone/fax: 00 351 210 464 031 [email protected], [email protected]

Resumo Em 1976, foi publicado na revista Binário um projeto determinante para a cidade de Sines. “Sines vai ser, grosso modo, um gigantesco complexo urbano-industrial. Uma altaneira chaminé vai ser o símbolo dessa concentração de indústrias pesadas e ligeiras.”1 Escolhida dentro de um leque de amplas hipóteses entre a Figueira da Foz e a Vila Real de Santo António, a sua localização era totalmente favorável ao serviço de uma descentralização urbana e de uma solução económica. É capaz de se constituir como potenciadora de desenvolvimento tão relevante quanto as restantes áreas industriais do país.2 Adotou-se como critério-base a ideia de um porto de águas profundas com infraestruturas ao serviço de uma zona industrial, promovendo-se, deste modo, a integração de planos parciais para os setores portuário, industrial e urbano. O setor industrial viria, então, a introduzir duas grandes zonas portuárias de granéis a norte e a sul da cidade, remetendo a instalação de indústrias ligeiras para a periferia da vila de Sines por forma a cortar no acréscimo de investimento de infraestruturas de base, dada a sua proximidade com a cidade e com o próprio porto de águas profundas. Do sector portuário, situado na baia de Sines, nasce, então, a implantação do sector industrial, que por sua vez induzirá o desenvolvimento de uma infraestrutura urbana constituída por três núcleos: Sines, Santiago do Cacém e a nova cidade de Santo André. A compacta área urbana Sineense começa a estender-se sobre o território sóbrio que a envolve, questionando-se como a cidade planeada cohabita com a existente. Com o passar do tempo, assiste-se a uma metamorfose resultante da fusão das duas realidades presentes, o centro industrial como uma realidade em permanente mudança e um centro urbano que se tenta adaptar a essas transforções. O anel industrial que delimita a cidade assume-se como instável e gradual. Desta forma, observa-se uma modificação sistemática do limite da cidade, promovendo uma contemporânea paisagem difusa.

Palavras-chave Sines. Desenvolvimento. Limite. Difuso.

Introdução No verão de 1976, foi publicado na Binário- Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento um projeto que colocara Portugal numa nova posição no mundo portuário-industrial. Apresenta-se a área de Sines como uma nova cidade industrial que albergara a implantação de uma área concentrada de indústrias associada a um porto de águas profundas, dando-se, assim, a localização de um novo complexo portuário-industrial de grande dimensão, apoiado por uma infraestrutura urbana que se prolonga. Constata-se que a localização de uma concentrada área de implantação de indústrias de base DLDV F S (1973) Dois técnicos do G.A.S. falam sobre Políticas e Técnicas de Planeamento, Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976, 206. 2 C.f. AQWXQHV, Eng. M (1973) “Área de Concentração de Indústrias de Base” from Revista Binário 209/210 1

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pressupõe a disponibilidade de um determinado plano de áreas do território, cujas atuações especulativas sejam facilmente evitadas. É de afirmar também a pertinência de um profundo fundo que contribua para um melhor funcionamento de um bom porto, retirando o máximo partido do mesmo a nível económico. Sines localiza-se a Sul de Portugal, na zona litoral da região do Alentejo, que o faz privilegiar de condições especiais de um Portugal atlântico por posição, mas mediterrânico por natureza. 3 Foi escolhida a enseada de Sines, favorecida pela sua localização geoestratégica de grande proximidade das rotas marítimas que interligavam a Europa com África, a América do Sul e com o Mediterrâneo e ainda a existência da infraestrutura ferroviária que facilitaria a intermodalidade entre transportes. Paralelamente, a área referida é apontada como o único ponto da costa portuguesa com capacidade natural de receber, sem limitações relativamente ao calado e sem necessidade de obras extensas, os maiores navios de transporte de mercadorias, além da favorável disponibilidade territorial que esta região possui. Paralelamente A escolha do território de Sines para a implantação industrial como “instrumento de política socioeconómica”4 encarou um amplo leque de possíveis localizações. A região foi selecionada entre vinte e uma regiões possíveis, realçando-se, desta forma, as qualidades naturais a ela inerentes capazes de fazer a Europa ganhar uma nova visão do nosso país, que outrora sofrera um determinado atraso no seu desenvolvimento relativo a este sector. Anos 70. Lógicas do projeto de Sines Na primeira metade dos anos 70, dá-se o início do projeto de desenvolvimento da área de Sines. Para a sua implementação foi criado o Gabinete da Área de Sines, cuja maioria dos poderes de gestão delegados provieram das Câmaras Municipais de Sines e Santiago do Cacém. A este grupo de ação foi atribuído amplas competências de gestão de forma a promover o desenvolvimento urbano ou industrial da zona. A sua constituição fundamentou-se, assim, em diversos pressupostos estratégicos. Realçaramse a necessidade de adequação dos complexos industriais existentes, tanto às novas tecnologias como à atualização das dimensões adequadas e justificáveis sob o ponto de vista económico nesta fase de expansão que a Europa atravessara, e a obtenção de um melhor ordenamento do território, através da implantação de um polo de desenvolvimento que induz a criação de uma área de implantação industrial concentrada capaz de aproveitar os recursos nacionais, com os consequentes centros urbanos e equipamentos sociais. “A realização de um complexo de indústrias de base em toda a sua extensão requer vastas áreas disponíveis, não só para organizar a estrutura urbanística de acolhimento como fixação das populações”. 5 Dadas as exigências claras de um aglomerado urbano-industrial desta dimensão, dá-se a preocupação de construir um significativo conjunto de infraestruturas e equipamentos coletivos para uma população da Expressão defendida por Orlando Ribeiro em “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” (1986) Cf. Do Plano Geral da Área de Sines (1973) Plano Director do Empreendimento, Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976, 188 5 Idem 3 4

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ordem dos 100 000 habitantes. Ao analisar o local, conclui-se que a estrutura urbanística existente estava abaixo dos níveis necessários de apoio à própria população residente, surgindo a necessidade da Administração intervir maciçamente para assegurar a programação global do conjunto, encarregada pelo Gabinete da Área de Sines. O planeamento é constituído por diversas soluções, posteriormente avaliadas segundo o programa de desenvolvimento da área de Sines, os estudos da população que ele irá atrair, os objetivos e restrições vindas da situação existente na área (geologia, topografia, fatores de população, entre outros) e a informação elaborada a nível técnico pelos planeadores (normas de habitação e equipamentos, medidas antipoluição e outros). Esta análise foi determinante na escolha da implantação mais favorável tanto das indústrias de base como as indústrias consideradas limpas. A localização da proposta é fundamental para o bom funcionamento e desenvolvimento das indústrias em questão, apoiando-se desde início nas existentes redes rodoviária e ferroviária de ligação entre Sines e Santiago do Cacém bem como noutras infraestruturas, como eletricidade ou água. Neste sector utilizou-se um modelo de simulação do porto de Sines, executando-se o estudo de seis portos e suas implantações, movimentações de ramas e de minérios, chegadas de navios, esperas, despejos, carregamentos, entre outros relacionados com o funcionamento do próprio porto. Ainda e pela primeira vez em Portugal, é executada outra simulação dinâmica para a projeção de população, prevendo-se, em função do que o plano oferece, o desenvolvimento demográfico da futura população de Sines. Seguidamente, os técnicos responsáveis do G.A.S., após a consulta de uma larga bibliografia técnica e prática, visitaram Inglaterra onde tiveram a oportunidade de discutir com um especialista da matéria a validade das soluções propostas. Foi executado e apresentado um sistema que reúne toda a informação relativa à área tornando-se num apoio importante ao planeamento urbano da zona - o Banco de Dados. Trata-se de um desenvolvimento no domínio das técnicas e dos processos de planeamento regional e urbano. Em Sines, de responsabilidade de cinco geógrafos do G.A.S., tratou-se de um sistema de informação com referenciação no tempo e no espaço, segundo um sistema de coordenadas dos Serviços Cartográficos do Exército (quadrícula secundária Gauss), de modo a permitir comparações e correlações. A opinião geral foi muito estimulante, na medida em que a estrutura do Banco de Dados foi considerada uma das mais desenvolvidas, permitindo, assim, uma maior flexibilidade de projeto. Afirma-se que “Na opinião do Dr.º Cripps, da Universidade de Reading, o caso do futuro Sines poderá vir mesmo a constituir um dos mais interessantes exemplos de estudo, desde que se disponha da informação como está prevista no banco de dados.”6 O planeamento urbano da Área de Sines iniciou-se com a elaboração dos anteplanos dos aglomerados urbanos existentes mais importantes - Sines e Santiago do Cacém - melhorando significativamente os

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Do Plano Geral da Área de Sines (1973), Planeamento Urbano (Plano Director), Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976, 192 PNUM 2016 319

serviços, equipamentos e infraestruturas de base que iriam apoiar as fases preliminares do empreendimento de Sines. De forma a garantir as melhores condições de integração e estabilidade à população recém-chegada, projeta-se equipamentos e serviços para os vários estratos para que o processo de crescimento se desenvolva naturalmente. A estrutura etária e socioprofissional da mão-deobra levou ao estudo profundo das tipologias habitacionais mais adequadas com possibilidades de posterior reconversão mais económica. Consideraram-se tipologias e habitações de tipo mais corrente, forma de habitação coletiva para mão-de-obra celibatária e “aumento-construção” para as famílias já constituídas de poucos recursos económicos. Dá-se em paralelo a criação da Comissão Instaladora do Hospital da Área de Sines, dada a clara necessidade hospitalar prevista ao executar o plano. Na área educativa, prevê-se o tipo e estrutura da população a exigir um desenvolvimento importante do ensino técnico como apoio às atividades e formação de mão-de-obra. Dá-se também especial atenção à viabilidade de criação de um centro urbano com estrutura sócio-profissional equilibrada, assim como a capacidade de atuação de investidores. Desta consideraram-se desde já equipamentos, tais como instalações hoteleiras e um complexo desportivo e recreio servindo todos, até investidores e empresários envolvidos na construção. Trata-se, assim, de um programa de economias de escala como também de coordenação e controlo do processo de crescimento futura. Esta observação leva à escolha da primeira hipótese do plano geral, pela qual consistia na instalação do porto na baía de Sines e consequente organização das áreas industriais. Espelha-se a noção de que a instalação de um porto de águas profundas tem alto potencial de desenvolvimento económico que entretanto se evidenciará como elemento predominante de todo o planeamento, dependendo, porém, da possível expansão deste processo de estruturação do complexo industrial. O plano resulta da integração dos planos parciais referentes aos três sectores: industrial, urbano e portuário.7 Do sector portuário, situado na baia de Sines e predominante dinamizador de todo o projeto, nasce a implantação do sector industrial ligado ao caminho-de-ferro e considerado o principal gerador de postos de trabalho. São introduzidas duas grandes zonas portuárias de granéis a norte e a sul do local destinadas a ramas petrolíferas e a minérios, respetivamente - e à instalação de indústrias ligeiras na periferia da vila de Sines, cortando-se no acréscimo de investimento de infraestruturas de base. Acompanhando as duas grandes zonas de indústrias pesadas, a sul, dá-se a articulação de um parque de minérios, dispondo-se estes elementos de forma mais favorável à sua acessibilidade ao porto e à rede viária geral sem colidir com os sistemas viários locais. Desta intervenção desenvolve-se o planeamento do sector urbano constituído por três núcleos: Sines como complexo de trabalho, Santiago do Cacém como complexo administrativo e a nova cidade de Santo André como o novo complexo residencial de alojamento tanto para os trabalhadores deste boom de construção como da população vinda das excolónias. Estes três indissociáveis polos constituem um sistema de relação territorial, denominado por “Trevo”, pela sua complementaridade e relação através do novo sistema rodoviário criado (Figura 1).

7 Do Plano Geral da Área de Sines (1973), Plano Director do Empreendimento, Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976,189

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Todo este processo permite uma economia de escala em paralelo com a projeção nacional e internacional do território de Sines, dinamizando e influenciando especialmente a zona litoral alentejana. Sines passa do caracter de vila piscatória para uma cidade de referência a nível industrial.

Figura 1. Esquema de conjunto. Sistema de relação territorial da área de Sines referido pela Engenheira do território Paula Pacheco (coautora PDM de Santiago do Cacém / PP da ZILS de Sines e participante nos estudos preparatórios do PDM de Sines) no âmbito de Conferência ISCTE-IUL. Fonte: Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976, 210.

Relativamente a outros centros industriais, Sines é considerado um polo de desenvolvimento industrial não menos importante que os restantes existentes. A sua localização é totalmente favorável ao serviço de uma descentralização urbana e de uma solução económica. É considerado, então, uma zona de implantação alternativa relativamente às outras áreas industriais do país, como Setúbal ou Lisboa8. Três variáveis. Topografia, núcleo urbano e sistema portuário-industrial Portugal constitui um território predominantemente litoral no qual o mar assume um papel de destaque. O promontório sineense sobressai-se na geografia da costa atlântica portuguesa num pequeno cabo entre o de Sagres e o Estuário do Sado. A delimitação Oeste desta região é marcada pelo contraste entre as C.f. Engenheiro Melo Antunes, técnico da divisão de Tecnologia e Apreciação de Projetos do planeamento industrial (1973) Área de Concentração de Indústrias de Base, Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976

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falésias rochosas da chamada Costa do Norte da península, pelo claro e extenso areal de praias, de forte ondulação a Norte e moderada a Sul, e pelas águas calmas da baía de Sines, elemento côncavo e naturalmente abrigado. Sines ainda oferece na sua costa pequenos pontos onde o oceano dialoga com algumas lagoas de águas doce, como a Lagoa de Santo André e da Sancha. No concelho de Sines, o oceano e sobretudo a baía estabelecem a primeira oportunidade urbanística da região, tendo a população vivido não só da atividade piscatória como das boas condições de defesa e da possibilidade de comunicação e de comércio, dada a sua localização no último contexto. O inicial núcleo piscatório assenta, assim, no cimo da presente escarpa e desenvolve-se em torno da baía sequencialmente para o seu interior. Verifica-se que, ao longo do tempo, a malha urbana do concelho de Sines se desenvolve em anéis que, com o passar do tempo, dão origem a diversas configurações de bairros. É criada uma imagem de pequenos “retalhos”, interligados por infraestruturas viárias, que foram compondo uma das características locais (Figura 2).

Figura 2. Evolução do concelho de Sines – 1621, 1781, 1930, 1945, 1953, 1971, 1998, sequencialmente. Fonte: esquemas executados segundo cartografia história do Arquivo Municipal de Sines.

As condições geomorfológicas da costa, nomeadamente dos fundos naturais e a disponibilidade territorial, definem-se como o motor de arranque para o desenvolvimento da região, instaurando-se como uma das mais significativas potencialidades de progresso num baixo Alentejo marcadamente PNUM 2016 322

subdesenvolvido. Neste quadro, a batimetria sugere que este é o único ponto da costa portuguesa capaz de abrigar navios de grande calado, dando resposta à necessidade de evolução industrial de um país que espelhava um determinado atraso no setor. Desta forma, é intensificado e adicionado à atividade piscatória e de escoamento dos produtos da região de Sines o seu carater industrial e comercial. Dão-se a implantação de um porto de águas profundas, que ao longo do tempo se tem desenvolvido brutalmente encontrando-se ainda nos dias de hoje em crescimento, e de um polo industrial na periferia do concelho Sines, que o marca e se impõe segundo a grandiosa escala que representa. Posto isto, o sul desta região está subordinado ao desenvolvimento do porto, que conquista cada vez mais mar em prol do seu crescimento, e o nordeste de Sines ganha uma cintura industrial em permanente mudança, definidor do limite do próprio concelho. Com o seguimento deste projeto portuário-industrial, Sines sofre determinadas alterações a nível topográfico que irão marcar e fazer parte da identidade desta região. Para a execução do referido porto de águas profundas, a cidade foi obrigada a receber novos aterros a sul da baía de forma a albergar as atividades e infraestruturas a ele inerentes. Consequentemente nasce a pedreira como uma estrondosa mancha a nascente no centro urbano, impondo o caracter humanizado que a topografia deste concelho sofreu (Figura 3). Dá-se o paralelismo entre o artificial e o natural, onde Sines se destaca pela variedade de caraterísticas referentes à sua topografia, afirmando-se topograficamente como uma região naturalmente humanizada após todo o processo de modernização portuária. Desde então, o desenvolvimento urbano da região de Sines ficou subordinado ao funcionamento do porto e indústrias aqui implementadas, considerando-os o elemento primordial da atratividade populacional.

Figura 3. Representação da cidade de Sines em função da própria topografia considerada simultaneamente natural e humanizada.

A relação cidade-mar altera-se com o início de um novo olhar. Um olhar que substituí os velhos portos de pesca, as enseadas pedregosas e um infinito plano de água por um conjunto de estaleiros, entrepostos e amontoados de granéis e maquinaria pesada que culminara na construção de novos cais e vias rápidas (Figura 4). As atividades portuárias e industrial motivaram o crescimento e desenvolvimento urbano sineense pelo aumento populacional incrementado e pela mão-de-obra necessária para a execução deste projeto e atividade. Geraram, assim, riqueza e criaram novas infraestruturas, equipamentos e serviços,

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elevando a economia local em detrimento da importância social que a frente-mar reflete nos habitantes das cidades portuárias.

Figura 4. Vistas aéreas do complexo urbano-industrial-portuário de Sines inicialmente. Atualidade do mesmo. Fonte: imagem da Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, JunhoAgosto de 1976, 189. Revistabusinessportugal.pt, consultado a 25/01/2016.

Conclusão Com o passar do tempo, assiste-se a uma metamorfose resultante da fusão das três realidades presentes: estrutura portuária como uma realidade em permanente mudança; o anel industrial que delimita a cidade e se assume como instável e gradual; e um núcleo urbano que se tenta adaptar a essas transformações. Face à determinação da área urbana Sineense se estender, questiona-se como a cidade planeada se mantém na atual. Explorar a metamorfose que se dá no território é determinante para o seu desenvolvimento e definição do difuso neste objeto de estudo. Os referidos planos parciais, executados neste projeto revolucionador de Sines, criam núcleos na própria cidade, independentemente de outrora terem sido projetados segundo inter-relações especiais. Entendese Sines como um conjunto de retalhos interligados por uma infraestrutura viária, afirmando a ideia de limite entre diferentes realidades, desde a escala de cidade à escala do território (Figura 5).

Figura 5. Esquema representativo da região de Sines. Referência aos três concelhos – Sines, a sul, Santo André a norte e Santiago do Cacém a nascente – da estrutura viária principal de ligação entre os mesmo e todo o sistema industrial presente em torno do concelho de Sines. Zoom in deste, representando o mesmo sistema associado ao grande núcleo portuário-industrial e a sua ligação – pipelines. PNUM 2016 324

A topografia, o porto, a indústria, o centro histórico e ainda os próprios retalhos urbano-temporais são claras limitações de diferentes escalas, criadores de espaços incertos no território de Sines. A indústria apodera-se da periferia das cidades, alterando, assim, o próprio urbanismo. Sines possui um limite grandiosamente marcado e uma periferia contrariamente indefinida e maioritariamente ocupada pela estranheza refletida pelos referidos elementos industriais. As limitações remetem, na sua verdadeira ascensão do termo, para algo que se impõe como barreira. Este conceito tem vindo a ser discutido por diversos autores, segundo diversas interpretações. Destaca-se uma interpretação conservadora do limite de uma cidade como cerco, remetendo-a para a imponência imposta pelo polo industrial aqui discutido, cuja dimensão influencia diretamente no desenvolvimento da própria cidade e representa uma delimitação clara da mesma. No entanto, quando se analisa este conceito no difuso, os limites são verdadeiramente potenciadores enquanto espaços de vínculo e relação para com o exterior, passando de uma barreira para um motor de desenvolvimento. Desta forma, questiona-se se estes limites industriais podem ser interpretados como um elemento mutável, dando origem a uma nova interpretação urbana. Sublinha-se a importância da sua permeabilidade e do contorno da ideia de espaço incerto através do desenvolvimento da cidade, potencializando, assim, o próprio limite. A densidade da antiga urbe, que limitava a expansão urbana, desvaneceu-se e estendeu-se pelo território como nunca antes se vira. Observaram-se, ao longo do tempo, alterações ao nível social sucedidas pelos diversos avanços científicos e tecnológicos e este facto influenciou diretamente na relação do indivíduo com a paisagem, levando a mudanças da própria estrutura urbana. Admite-se, ainda assim, que a cidade tradicional de contornos nítidos e com um centro de gravidade permanece mas em articulação com novos espaços urbanizados, expandindo o espaço urbano a partir dos núcleos pré-existentes de forma acelerada e em função primária das infraestruturas. Desta ideia nasce a Metápole como “(…) um vasto e heterogéneo território sem limites físicos precisos, marcado pela mobilidade quotidiana e pela dissolução das relações de proximidade”9. Estas têm uma dinâmica própria relativamente a atividades económicas e quotidianas. Neste quadro, o urbanismo tem a oportunidade de reformular o espaço público nas Metápoles, construindo aqui lugares urbanos, “no duplo sentido de agradável e de propício à urbanidade”10. Do urbanismo contemporâneo nasce a ideia de difuso como “uma expansão de baixa densidade das cidades para uma periferia cada vez mais afastada”11, devorando paisagens outrora rurais, avançando sobre o território e encarando o seu limite como uma alavanca para o desenvolvimento. Observa-se que C.f. AVFKHU F(1998) definição de Metápoles em Recensões, tradução de Álvaro Domingues $VFKHU) (1998) em Recensões, tradução de Álvaro Domingues, 177 11$VFKHU) (1998) em Recensões, tradução de Álvaro Domingues, 151 9

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Sines contém uma área urbana compactada que pretende avançar sobre os terrenos sóbrios que a circundam. Desta forma, analisa-se o seu desenvolvimento segundo um urbanismo contemporâneo que, abraçando as estruturas industriais, criarão uma nova realidade para a cidade de Sines, tornando-se importante reconhecer nos seus limites não só problemas como também potencialidades e oportunidades para uma reinvenção da paisagem. Observa-se uma modificação sistemática do limite da cidade, promovendo uma nova vivência para Sines em conformidade com as drásticas alterações que a própria cidade sofreu.

Referências bibliográficas Do Plano Geral da Área de Sines (1973), Plano Director do Empreendimento, Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976, 188-189. Do Plano Geral da Área de Sines (1973), Planeamento Urbano (Plano Director), Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976, 192. Dias FS(1973) Dois técnicos do G.A.S. falam sobre Políticas e Técnicas de Planeamento, Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976, 206. Antunes Engenheiro M, técnico da divisão de Tecnologia e Apreciação de Projetos do planeamento industrial (1973) Área de Concentração de Indústrias de Base, Binário - Revista mensal de arquitetura, construção e equipamento 209/210, Lisboa, Junho-Agosto de 1976 Lynch Kevin (1960) The image of the city, Massachusets Institute of Technology and the President and Fellows of Harvard College AscherF (2001-2008) Le Nouveaux Principes de l’Urbanisme. La fin des villes n’est pas à l’ordre du jour et Le Nouveaux Compromis Urbains. Lexique de la ville plurielle, Paris, França Trías E (1991) Lógica del limite, Barcelona, Espanha

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Leituras Morfotipológicas e os IGT`s Filipa Corais [email protected]

Resumo Esta abordagem foi concretizada no âmbito da elaboração da tese de Mestrado: Corais, F. (2003), “Dinâmicas Territoriais na Aglomeração Urbana de Braga” e foi aplicada no processo de revisão do Plano Diretor Municipal (PDM) de Braga. Pretende-se demonstrar a importância da aplicação da metodologia da caracterização Morfotipológica no apoio à decisão em práticas de planeamento e ordenamento do território. O estudo tipo-morfológico associado aos Instrumentos de Gestão Territorial confere-lhe uma estrutura e garante a prossecução dos cânones identitários da urbe. Deste modo, o desenho urbano e a vertebração dos espaços públicos, como componentes de referência estratégica nas transformações urbanas, constituem os elementos base da forma urbana e de sustentação do modelo de cidade e promovem a sua qualificação vincando a sua identidade. A Forma Urbana Una é uma utopia, dado que é definida por uma associação de partes decorrentes de ações descontínuas no espaço e no tempo. O controlo urbano total é, por conseguinte, um mito. No entanto, quando essa forma geral está controlada significa que sendo uma estrutura orgânica, admite uma certa flexibilidade nas metamorfoses aí operadas, dentro da lógica dessa forma. O todo é, pois, definido pelas interações das partes integrantes que se organizam em relações tipológicas. Daí a importância do estudo das formas urbanas associado às mutações e à complexidade intrínseca aos fenómenos. Por conseguinte, a forma urbana foi analisada através das estruturas morfológicas territoriais, que se designaram por tecidos. Esta análise confina-se à área administrativa do Concelho, pela necessidade de tornar exequível um trabalho desta natureza. Não tendo o intento de contrariar a defesa pela inoperância e obsolescência dos limites administrativos definidos atualmente, a área de estudo deverá ser entendida como um “zoom” que se enquadra numa área muito mais abrangente, cuja análise exaustiva, aqui teve que ser preterida. No entanto, não se prescindiu dessa escala mais ampla e inclusiva nos trabalhos de caracterização territorial. Este estudo visa, assim, uma reflexão sobre a cidade e sobre as regras que lhe estão subjacentes e que são consequência das dinâmicas urbanas operadas no passado que configuram o modelo da cidade atual e incitam a cidade futura. Palavras-chave Braga, Morfologias, tipologias, IGT     PNUM 2016  327

I| Teoria da Forma urbana

Figura 1. Planta dos Tecidos Morfotipológicos

Na abordagem às problemáticas inerentes à cidade não se pode descurar o estudo da estrutura espacial do território em causa. Deste modo, prevaleceu a abordagem à dimensão física e morfológica do território que através do estudo das estruturas territoriais e das tipologias espaciais, enfatiza questões referentes à qualidade do espaço e das formas urbanas e, consequentemente evoca a pertinência do papel do domínio coletivo na materialização do símbolo social. 'LPHQVmRItVLFD “O espaço não é o negativo das formas (...) o espaço que separa – e liga – as formas é também forma”.1 A densidade, a textura, a relação entre o vazio e o cheio, a forma como os edifícios se relacionam com o espaço público, a hierarquia dos padrões de circulação e a malha são exemplos da identidade da forma da cidade. Por outro lado, a adequação ao contexto, à morfologia e à geografia, são fatores que determinam a 1

Távora F (1999) “Da organização do Espaço”;,FAUP publicações, Porto, XXIII. PNUM 2016  328

conjugação da cidade com a paisagem. As primeiras condicionantes da forma da cidade são as características geográficas. O lugar atua como elemento de suporte imprescindível na definição arquitetónica e esta, por sua vez, entrevê implicitamente uma relação orgânica com o seu suporte físico. Da apreensão dos valores físicos subjacentes na implantação e formalização da cidade, depreende-se a essência de tal assentamento e das edificações humanas aí geradas. Por outro lado, a caracterização da forma urbana e a análise Morfotipológica de um território tem relevância para a consciência do processo de formação da cidade e da sua identidade, constituindo uma importante base para posteriores intervenções. Deste modo, na abordagem à cidade e à sua periferia, analisaram-se as tipologias dos padrões espaciais patentes, pela deteção de homogeneidades, abordando as formas básicas de desenvolvimento físico a nível morfológico e funcional. Dimensão Morfotipológica Como crítica ao Planeamento tradicional, alude-se a uma nova abordagem ao território. Assim, o desenvolvimento urbano é analisado à luz do estudo da forma urbana, defendido por Manuel Solá Morales, pela sua decomposição em espaço público, parcela e edifício. Assumiu-se, neste documento (e no seguimento da abordagem de Manuel Solà Morales), a importância prevalente da estrutura viária e do edificado, já que no estudo das parcelas, carece-se de uma análise cadastral abrangente e rigorosa. Por outro lado, à semelhança do estudo urbano que Saverio Muratori realizou para Veneza, determinouse, como explicação primária para a continuidade urbana e para a evolução orgânica da cidade, o conceito estrutural de tipo nas abordagens morfológicas. Assim, através da análise dos tecidos urbanos, aborda-se a evolução da forma urbana e os elementos morfológicos que a determinaram. Dinâmica Política e Urbana A importância deste ponto enceta-se no facto de que um Projeto de Cidade credível e exequível, não pode deixar de olhar para o Passado, de forma articulada com o Presente, ambicionando preparar e antecipar o Futuro. A Forma Urbana é um conceito mais amplo do que a forma física, já que a relaciona com a componente coletiva, com o processo histórico e, por conseguinte, com a sociedade de forma significativa. Assim, o processo histórico da cidade, enquadrando as transformações urbanísticas, sociais e económicas, determina e explicita a sua unicidade.

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A defesa da conceção da cidade como unidade, não reivindica uma construção similar a um edifício, já que a cidade, ao contrário dos edifícios, não poderá ser totalmente definida à priori. O fator fundamental da sua forma é o contínuo processo evolutivo que lhe está inerente e a capacidade de adaptação e a tolerância face a novas diretrizes. Assim, o mais importante na formação da cidade é o processo, o controlo e o carácter orientador com capacidade de reformular os objetivos a qualquer momento. Nesta perspetiva, Kevin Lynch2, afirma: “uma cidade que convida à ordem é certamente melhor do que uma cidade ordenada”. A forma urbana é, pois, fortemente determinada pela articulação de tecidos que se configuram por várias partes. A sua articulação num todo sistémico em que a qualidade das partes corrobora para a qualidade do todo é assim, uma questão fundamental, para a identidade e legibilidade da imagem urbana. “ A qualidade primordial da imagem urbana é ser individualmente identificável. ”3 Redes Urbanas Numa escala mais abrangente a cidade apresenta interdependências com outros territórios estabelecendo relações estruturais com esses, que se refletem em termos económicos, sociais, culturais, nos sistemas de mobilidade, etc. As intervenções deverão, assim, inserir-se no conjunto, na paisagem e na geografia do lugar, de forma a dar coesão ao núcleo genético. Em oposição à metodologia racionalista, concretizada nos planos definidos pelo zonamento de todo o território, a escala macro, pela sua complexidade, impõe abordagens estratégicas direcionadas para políticas urbanas de equilíbrio territorial, defendendo a inserção de cada elemento urbano no contexto global face ao mero somatório das partes. Neste sentido, o estudo da natureza da cidade não descura a sua integração dentro das redes urbanas e o estudo das continuidades e descontinuidades que se podem observar ao longo da história. A perceção destas dinâmicas é essencial para o alcance de novas bases de desenvolvimento estratégico e de ordenamento do território, como uma estrutura una, que tende a adquirir uma nova escala supramunicipal. “a cidade alargada não é um somatório de “não-lugares” mas, ao contrário, um sistema em que cada elemento só pode ser inteligível (cada vez mais) no contexto geral em que se insere.”4 2

Lynch K (1999) A boa forma da cidade, Edições 70, Lisboa,139. g – Schulz C (1977) La Signification dans l ` architecture occidentale ”, Editora Mardaga, 431 . Domingues A (2000) “(os novos mapas da Cidade)”, in ECDJ n.º 3, FCTUC Departamento de Arquitectura; Coimbra, 39. 3 Norber 4

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II| Tipo-Morfologias do Concelho de Braga A metodologia adotada na abordagem ao espaço físico do Concelho de Braga enquadra-se num referencial dinâmico continuamente adaptável à realidade, vincando a capacidade, de ser monitorizado. Por outro lado, evitando que os conceitos utilizados sejam meramente descritivos, estes pressupõe já uma crítica na análise formal. Braga e o seu hinterland

O desenvolvimento do território, efetuou-se pela consolidação de núcleos históricos e de estruturas rurais antigas, constituídas, sobretudo, pelos principais eixos viários de ligação de aglomerados. Novas aglomerações urbanas foram surgindo, face a dinâmicas socioeconómicas recentes e potenciadas pela acessibilidade. Constituiu-se, assim, gradualmente uma aglomeração em torno da cidade de Braga que se estrutura mediante vínculos económicos e migratórios. A “textura” de um aglomerado é uma característica que coopera, ou não, para a sua qualidade urbana. Deste modo, a densidade, a diversidade da malha urbana e a integração urbana, assegurada pela acessibilidade e gerida pela mobilidade, determinam e avaliam a forma urbana. Numa primeira análise, surge a vertente geográfica do estudo: considerando a divisão administrativa ou a real (Concelho versus “Aglomeração”). Considera-se imprescindível ter uma visão mais abrangente do que a própria cidade, inserindo-a e analisando-a num contexto mais amplo. Assim, analisou-se, do ponto de vista socioeconómico, o Aglomerado Urbano (alargado), definido pelas áreas que estabelecem relações com a cidade central. Os movimentos pendulares e outros do Concelho de Braga são demonstrativos da sua capacidade de atracão, promovida pela concentração, neste espaço, de atividades urbanas. De facto a cidade de Braga ocupa, na zona norte do país, um lugar de destaque devido à sua importância como centro polarizador. Daí a grande evolução demográfica verificada nos últimos anos, colocando-a hoje numa posição cimeira entre as cidades médias. Neste sentido, o estudo (à escala supramunicipal) incidiu, nomeadamente, na análise socioeconómica, análise dos movimentos pendulares, na caracterização dos equipamentos e do parque habitacional e distribuição industrial. A importância do estudo, com base nestes parâmetros, versa para a constituição de uma base onde se poderão rever análises multissectoriais concorrentes para o processo de ordenamento, neste território,

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que permitirá o estabelecimento de uma possível estratégia de âmbito global. Dinâmica Urbana

Figura 2. Planta da Dinâmica Urbana.

A compreensão da dinâmica urbana, que caracteriza a cidade de Braga, é importante para a perceção dos fatores que promoveram determinadas configurações que o espaço urbano apresenta. Para uma adequada compreensão das alterações operadas na forma urbana de Braga e análise das dinâmicas urbanas que determinarão o seu futuro, considerou-se oportuno, sistematizar os principais instrumentos que legitimaram ou legitimam essas transformações territoriais, dos quais se destacam: o Plano de De Groer (de 1941), o Plano de Urbanização a Sul de Braga (de 1958) e o "Plano de Reestruturação do Território (de 1981).

O concelho de Braga é dos poucos exemplos, da Região Norte, onde ainda prevalece o modelo centrípeto e uma certa continuidade do tecido construído. A cidade estendeu-se de forma concêntrica em redor do centro dominante de primeira ordem na Aglomeração e o núcleo é o centro nevrálgico do sistema, a nível físico, funcional, sensorial, etc. Na “Planta da Dinâmica Urbana” (Figura 2), denota-se, de facto, uma concentração dos edifícios, anteriores a 1970, no centro consolidado e ao longo dos eixos sedimentares principais. Estes correspondem a tecidos históricos que imprimem continuidade à forma urbana.

Após a década de 70, verificou-se uma afirmação da cidade consolidada, pela concentração de edificações e intervenções na sua envolvente imediata, promovendo o seu alargamento e afirmação. PNUM 2016  332

A cidade implantou-se, assim, inicialmente, ao longo do Vale do Este, configurando uma forma em “fuso” e só a partir da década de 90 é que consubstanciou o alastramento da cidade no sentido Norte – Sul (Palmeira e Lamaçães), alterando a paisagem rural precedente. Tipos de Dinâmica Urbana

Figura 3. Planta de Tipologias de Dinâmicas Urbanas-

A forma urbana tem implícita a função da cidade e a sua génese. Neste sentido, analisaram-se as dinâmicas urbanas decorridas em Braga, na segunda metade do século XX, e enquadraram-se, estas, em tipologias (Figura 3), de acordo com os fatores preponderantes que motivaram o crescimento da cidade. Deste modo, distinguiram-se quatro tipos de dinâmicas territoriais: impulsionadas por processos de continuidade urbana; ou impelidos por uma forte acessibilidade; ou enquadrados em processos “atípicos” e desintegrados, caracterizados por uma forma orgânica ou planificados; ou motivados pela presença de um elemento polarizador.5 a| Continuidade Urbana Verificou-se no entorno da mancha urbana central, um crescimento induzido por Continuidade das malhas urbanas. Assim, distingue-se, pelo menos, três tipos de crescimento urbano postulados pela Continuidade. Um que afirma a centralidade da forma urbana, pela continuidade do tecido da Cidade Tradicional. Outro, pela continuidade do crescimento urbano linear. E, de forma mais difusa, ao longo das vias secundárias capilares. As contiguidades das manchas urbanas e as respetivas densidades demográficas determinam a grande unidade que estrutura este subsistema. b| Acessibilidade Forte O crescimento contínuo da cidade, estruturado por novos eixos viários de grande capacidade, vai consolidando a área periurbana. A localização dos principais nós da rede viária macro, com a rede meso ou micro, permite identificar os principais pontos suscetíveis de catálise urbana (vincando, neste caso, por exemplo a

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O modelo Urbano

Figura 4. Planta dos Tecidos Morfotipológicos

A cidade de Braga implantou-se numa plataforma envolvida por pequenas elevações que, como que a abraçando, vão manter com ela uma relação muito forte. Os montes que a envolvem proporcionam-lhe um enquadramento visual natural nas direções de nordeste a Sul. Deste modo, os condicionalismos geográficos personificam o compromisso da arquitectura com o lugar. A análise da Planta dos Tecidos Tipo-Morfológicos6 (Figura 4) enquadra as especificidades locais, no área de Celeirós, em Braga). c| Processos “Atípicos” Difundindo-se por todo o território, distinguiu-se o crescimento urbano por processos “atípicos” de ações individualizadas ou casuísticas. Definem estruturas urbanas isoladas, morfologicamente autónomas e funcionalmente homogéneas e dependentes dos tecidos mistos. Estes processos atípicos subdividem-se em dois subtipos de acordo com os processos de expansão que promovem: orgânicos ou casuísticos e planificados. d| Presença de um Elemento Polarizador Os elementos polarizadores podem contribuir para a reestruturação do território. Sendo anteriores aos fenómenos urbanos que com eles se relacionam, como é o caso da maioria das grandes superfícies; noutros, vêm colmatar o espaço urbano. A presença de um Elemento Polarizador (equipamentos de hierarquia de topo, referenciais de uma certa centralidade) tem sempre incidências físicas, no território envolvente. 6 1| Núcleo Medieval Corresponde à Cidade medieval, intramuros, e é a área que apresenta uma identidade mais vincada, devido à unidade formal e à perenidade de diversos elementos marcantes, referentes a diversas épocas. Corresponde à área de centralidade primária da urbe. O núcleo medieval, ou o “centro genético” da urbe, constitui, pois, o referencial do território, por excelência, a nível espacial, funcional e sobretudo simbólico. Estes tecidos são caracterizados por edifícios à face, com usos e morfologia mistos, em parcelas e vias estreitas, onde se verifica uma forte densidade de equipamentos, serviços e comércio que se adaptaram às construções preexistentes. Caracteriza-se por uma urbanização compacta, densa, contínua e estabilizada, com uma imagem claramente urbana, onde prevalece a via irregular e de “influência próxima”. PNUM 2016  334

A compacidade e a consolidação urbana que caracterizam este tecido determinam a sua imagem urbana. 2| Cidade Tradicional Braga, constitui uma cidade cujo centro histórico é morfologicamente bem identificado e cujo tecido urbano se estende em continuidade com esse centro. As atividades urbanas são assim, contíguas da cidade “intramuros”. Estes tecidos (do tipo “cidade tradicional), correspondem à área de expansão da cidade medieval, pela consolidação dos “Campos”, até finais do século XIX. Estas texturas, em conjugação com o Núcleo Medieval, assumem uma forte identidade na estrutura da cidade e mantêm uma centralidade física e funcional. 3| Formações Lineares O processo de ocupação territorial, destes tecidos, foi muito vincado pela sucessiva sedimentação ao longo de eixos prioritários de acessibilidade, sobretudo aqueles que relacionam os concelhos circunvizinhos com a cidade, conferindo uma continuidade linear do edificado. Este crescimento, numa primeira fase, deu-se de forma espontânea, a partir do núcleo consolidado e compacto e através das vias interurbanas. Surgem, deste modo, agregados a estes eixos, verdadeiras concentrações de “edifícios-montra” /“Show rooms”, apostando no marketing urbano. Denota-se, pois, uma mudança na função da via, deixando de constituir apenas uma ligação entre núcleos e passando a integrar várias atividades urbanas. Esta nova funcionalidade pode mesmo colocar em causa a primeira, pela miscigenação com o trânsito local, provocando a necessidade de execução de novas vias rápidas. Constituem, assim, formações lineares que prolongam indiscriminadamente a estrutura urbana e são envolvidas, na sua grande maioria, por terrenos rurais. Estes eixos lineares promovem um modelo “radial” em torno do centro. É constituído, geralmente, por vias irregulares, que representam os principais eixos de ligação com as áreas rurais assumindo, assim, uma “influência distante” e apresentam uma grande diversidade de parcelas, usos e morfologias. 4| Núcleos de génese rural Estes núcleos surgem frequentemente com um alto grau de espontaneidade e apresentam uma certa identidade. Na maioria dos casos, estes núcleos estruturam-se e consolidam-se de forma empírica em torno de um edifício religioso, uma casa senhorial, ou um convento, que contribuem para a sua identidade e legibilidade no espaço territorial. A estrutura viária, nestes núcleos, geralmente, caracteriza-se por uma certa irregularidade e a implantação das construções é efetuada à face desses caminhos, num processo sedimentar e empírico. Constituem nucleações periféricas relativamente ao centro, imprimindo, por isso, uma descontinuidade física com o mesmo, embora, apresentem uma dependência funcional, do mesmo, muito forte. As áreas de génese rural estão a perder, de certo modo, o seu carácter rural, devido à tendência descentralizadora do centro e consequente desenvolvimento urbano, apoiado nas indústrias, habitação, serviços, equipamentos, etc. 7| Monótipos Estes espaços exprimem uma forte influência do urbanismo funcional, relacionado com a caracterização do solo através do “Zonning”. São espaços Monofuncionais e Monotipológicos. Pela especificidade funcional, que lhes está inerente, são espaços muito dependentes dos restantes tecidos mistos. Os grandes loteamentos isolados e monofuncionais são o resultado dos processos de crescimento especulativos e isentos de planeamento de escala global. a| Formações urbanas com predominância de habitação unifamiliar Estas formações, constituídas predominantemente por habitações unifamiliares correspondem a um modelo bastante repetido por todo o território, negando a especificidade do contexto local. A rede-viária que suporta estes espaços é, assim, normalmente pouco integrada e a relação dos edifícios com o espaço público estabelece-se, na sua grande maioria, de forma indireta, através dos logradouros privados. Estes tecidos podem ter como génese de formação, o loteamento ou a agregação ao longo de um arruamento estruturante. b| Formações Urbanas com predominância de habitação plurifamiliar São espaços constituídos predominantemente por habitação plurifamiliar, mesmo com a existência pontual de comércio no piso térreo, são predominantemente monofuncionais. Do ponto de vista formal e ideológico, estes tecidos, assentam, de modo geral, nas premissas da cidade moderna. A concentração da construção impele à libertação do terreno envolvente do edifício, afeto ao espaço público ou coletivo. A concentração de edifícios de habitação coletiva é um indicador tipológico da imagem urbana e é nas áreas centrais e envolventes do centro da cidade que se implantam com maior frequência. c| Outros Usos Constituem, grandes parcelas vocacionadas para um determinado uso (distinto da habitação) e normalmente está associada a uma retícula viária que constitui a estrutura base destes espaços com elevadas áreas de construção. Pela particularidade das formas arquitetónicas que lhe estão associadas, pelo uso, pela escala e pelo volume que ocupa, são áreas facilmente identificadas e destacadas no território, constituindo referências no imaginário coletivo da cidade. Por este facto, e pela capacidade de motivarem movimentos pendulares no território com o qual se relacionam e pela grande concentração de pessoas envolvidas, assumem relevância para a consolidação do território unitário. De facto, na constituição destes tecidos, impõe-se uma decisão estratégica pela polaridade de emprego inerente e pela mobilidade que acarreta. PNUM 2016  335

Presente, que servirão de base para as intervenções Futuras. Assim, através da análise dos tecidos urbanos, pretende-se abordar a evolução da forma urbana e os elementos morfológicos que a determinaram, bem como, definir matrizes de desenvolvimento urbano. Nesta planta, detetaram-se os diferentes tipos existentes no território, considerando a relação com a topografia, com a estrutura viária, etc. e a conformidade dos tipos de tecidos com o espaço territorial. A sua análise vinca a identidade deste território de urbanização mais ou menos contínua, em torno do seu centro. A maior densidade de construção verifica-se em seu redor, numa plataforma que ronda os 120200m. A este associam-se formações lineares ao longo dos eixos principais de ligação do mesmo com os territórios circundantes. O processo de desenvolvimento territorial patente é, deste modo, centrolécito. Os tecidos referentes ao Núcleo medieval, Cidade Tradicional, Formações Lineares, Núcleos de génese rural e Formações rurais, conformam os Tecidos sedimentares de uso misto e representam os tecidos cuja relação entre os edifícios, as parcelas e a estrutura viária se encontram estabilizados e que apresentam unidade morfológica que supera alterações pontuais no tecido. Apresentam, pois, um estatuto de urbanidade. Os tecidos da Cidade Tradicional e Formações Lineares constituem extensões em continuidade com o tecido urbano, não negando mas sim, corroborando para a afirmação do centro. As formações lineares, formações rurais e os tecidos monótipos com usos distintos da habitação indiciam um novo tipo de ocupação alternativo ao centro, mas são incapazes de, por si só, gerar uma nova polaridade. Assim, a cidade é centrípeta na medida em que domina, inter-relaciona e estrutura as diversas atividades que nela se localizam. Esta característica, por outro lado, sublima as relações da cidade com o exterior. Por outro lado, verifica-se que à ordem desejada e expressa nos planos, sobrepôs-se, muitas vezes, a espontaneidade do somatório das práticas neoliberais. De facto, denotam-se assimetrias entre a cidade consolidada e as expansões periféricas mais recentes. Estas expansões apresentam, muitas vezes, um défice de desenho urbano que resulta, quer da inexistência de uma consciência coletiva face a esta Estes tecidos encontram-se disseminados pelo território, embora denotando, ainda, forte dependência do núcleo central. Por exemplo, as grandes superfícies comerciais, definem uma estrutura una, na qual, muitas vezes, se integram várias frações de espaços comerciais. Caracterizam-se pela forma unitária e pela localização requerida privilegiadamente junto das vias de grande acessibilidade. Constituem uma alternativa ao comércio tradicional. Estes empreendimentos despontaram expansões urbanas na sua envolvência. 8| Tecidos Emergentes Correspondem a tecidos que se encontram em formação, que ainda não estão consolidados. Constituem-se na maioria dos casos, nos espaços vazios entre o tecido consolidado e as artérias estruturantes e são, muitas vezes, o resultado da fragmentação urbana. Estes espaços potencialmente dinâmicos, por se apresentarem disponíveis para a expansão da cidade, estão imbuídos de uma forte tensão. São estes que verificam a veracidade da reiteração constante de que a cidade nunca está concluída e que deve ser acompanhada por um processo de dinâmica adaptável à realidade circunstancial. Os tecidos, analisados na dissertação, correspondentes aos conceitos Expansões Rurais, Expansões Dispersas, Barreiras Topográficas e Vazios urbanos não foram desenvolvidos na fase de elaboração do PDM. PNUM 2016  336

problemática, quer da desadequação dos instrumentos urbanísticos ou da incapacidade destes abarcarem todo o território. Esta constatação determina a urgência de definir uma estratégia global, de referenciação e coesão capaz de articular as ações individuais no território e tornar os tecidos urbanos legíveis. Caracterização Viária O estudo da forma urbana não descurou a caracterização viária deste território.7 7

Rede Viária Macro: 1| Ligações Interurbanas O Concelho é estruturado por um conjunto de vias de ligação interurbana, que o remetem para outra escala, devido às relações promovidas e potenciadas com os territórios de proximidade. Este conjunto de vias distingue-se das restantes pela generalizada carência de características urbanas. Caracterizam-se pela forte acessibilidade que lhes está patente, estabelecendo ligações principais à escala nacional e regional. Assim, estas vias não assumem um carácter urbano, dando primazia à maximização do fator acessibilidade. Constituindo canais rápidos de ligação, reforçam a importância dos nós de interceção, pela capacidade polarizadora que lhe conferem e pelo potencial urbano que aí poderá gerar no futuro. São, assim, vias com extensão territorial supraconcelhia, dado serem responsáveis pela integração viária dos concelhos circunvizinhos, bem como, das freguesias mais periféricas, com Braga. Rede Viária Meso: 2| Rede Regional Principal Corresponde, na sua maioria, a antigas estradas nacionais que embora possibilitando, ainda, uma relativa fluidez viária e assumindo um carácter de ligação distante, apresentam em alguns troços uma certa concentração de edificações urbanas, fomentando a consolidação dos tecidos compostos pelas formações lineares. Estas gozam desta reciprocidade e dualidade de valoração – acessibilidade / urbanidade – para se maximizarem como “edifícios – fachada”, potenciando as mais diversas atividades económicas. Definindo uma estrutura radial que parte do núcleo central de Braga afirmam a sua centralidade. Apresentam uma unidade morfológica mais ou menos assumida pela regularidade, pela forte integração, pela projeção distante e caracterizada pela existência de construções à face (na generalidade edifícios montra). Têm, pois, um cariz urbano muito mais vincado do que as novas vias rápidas, sustentando, ainda, no entanto, o crescimento urbano. 3| Vias de Distribuição Urbana Relacionando a cidade com estes eixos principais surge a circular urbana que integra a malha de ocupação urbana com o território concelhio e regional. São, assim, vias que articulam as de Distribuição Concelhia com a cidade, ocupando uma posição hierárquica superior, em termos de acessibilidade, relativamente às vias de ocupação urbana. 4| Vias de Reestruturação do Território São vias estruturantes que se impõem no território de forma assumida e que têm capacidade de potenciar o futuro desenvolvimento urbano. Correspondendo, na sua totalidade a ações planeadas, “alicerçam” as áreas expectantes de desenvolvimento prioritário para a autarquia controlando as dinâmicas urbanas. 5| Vias de Distribuição Concelhia Principal Estas vias garantem as principais ligações de âmbito concelhio, entre os núcleos das diversas freguesias e a articulação entre as vias de âmbito regional com as vias de âmbito local. Rede Viária Micro: 6| Vias de Ocupação Urbana São vias cujas características lhe conferem a identidade como elementos da forma urbana. Estes encontram-se integrados no tecido morfológico da cidade pela articulação com as parcelas e com o edificado. Apresentam correspondência com os tecidos da Cidade Consolidada, designadamente, “Núcleo Medieval” e “Cidade Tradicional”. Rede Viária Capilar: 7| Vias de Distribuição Concelhia Secundária Paralelamente, o território é atravessado por uma série de vias de distribuição concelhia secundária, mais ou menos irregulares e que não apresentam grande racionalidade dos traçados, constituindo muitas vezes, caminhos rurais ou caminhos de ligação de freguesias. A paisagem suporte destas vias, é dominada pela presença da natureza, pontuada, de forma descontínua, pela construção de cariz essencialmente agrícola.

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A rede viária do Concelho de Braga, até finais da década de 80, do século XX, é claramente marcada por um sistema radial, centrado na cidade e suportado pelas principais ligações regionais. A esta rede viária, sobrepôs-se a Rede Viária Macro, no final do século XX. Constata-se que as políticas adotadas no âmbito das acessibilidades têm relegado a escala Micro e Capilar (que regra geral, se define como pouco integrada, degradada e descontínua), conferindo relevância à escala Macro de nível regional e nacional. De facto, denota-se, na rede viária de Braga, uma prevalência das características intrínsecas da circulação, face às questões relativas ao desenho urbano do espaço coletivo e à integração urbana. À escala Micro, a rede viária, tem vindo a ser beneficiada, de forma escassa e espartilhada pelo território, sobretudo, através de loteamentos e intervenções individuais. Verifica-se, neste sentido, também ao nível da caracterização da rede viária, que a expansão foi efetuada de forma intuitiva, pouco planeada e articulada, negando uma estrutura global da cidade e do território. A consciência desta divergência entre os eixos estruturais da mobilidade no território a uma escala alargada e a rede capilar, suporte da urbanização, urge. III| Da teoria à Prática O Papel dos estudos Tipo-Morfológicos na definição do PDM de Braga A definição dos Instrumentos de Gestão Territorial pressupõe um minucioso estudo do território, dos seus tecidos e componentes. Neste sentido, e no caso particular dos PDM`s, a leitura Morfotipológica dos espaços constituintes do território concelhio é de suma importância para a respetiva e ulterior definição da planta de ordenamento. Apesar de serem plantas com funções distintas, dado que a planta dos tecidos Morfotipológicos espelha um momento de análise da ocupação territorial e a planta de ordenamento representa um futuro almejado para esse território, fundem-se no objetivo comum de procura de

Correspondem, assim, a vias de carácter secundário ao nível concelhio, definindo, muitas vezes, caminhos de índole rural, caracterizados por uma forte debilidade da capacidade de deslocação, e são responsáveis por uma certa dispersão no território. 8| Vias Panorâmicas e Patrimoniais As vias panorâmicas e patrimoniais constituem persistências de traçados que conferem identidade ao território. São vias com lógicas específicas cuja identidade intrínseca deverá ser explorada e valorizada. Refere-se ao percurso que sustenta a interligação dos Santuários do Bom-Jesus, Sameiro e Falperra; à marginal do Cávado e percursos reminiscentes da época romana com interesse patrimonial. 9|Vias de Ocupação Individualizada Espalhadas por todo o território surgem soluções viárias individualizadas, com fraca integração quase sempre referentes a ocupações de edifícios de habitação unifamiliar ou outros edifícios monofuncionais e monotipológicos que expressam a maximização do interesse privado e o descuramento do interesse público. Refere-se, deste modo, às vias que sustentam as ações individualizadas, definidas pelos loteamentos privados que se espalham por todo o território. Definindo, na maior parte das vezes, situações de “cul-de-sac”, são por esse motivo, vias com fraca integração viária. PNUM 2016  338

homogeneidades visando uma organização territorial. Sendo que a primeira é decisiva para a construção da segunda. Esta metodologia é abonadora do respeito pela identidade territorial, pela continuidade ou asseveração dos modelos instalados e/ou pela consciencialização das mudanças a introduzir para o alcance do modelo almejado. É possível vislumbrar no tecido urbano de Braga que, tal como sucedeu noutros concelhos, nas últimas décadas, a sua configuração atual é, em grande parte, fruto dos muitos processos incrementais desvinculados de programas unitários ou estratégias urbanísticas gerais. Para relançar a sua atratividade e competitividade impunha-se, ao nível do processo de revisão do PDM de Braga, definir uma estratégia de reestruturação territorial a longo prazo refletida numa pluralidade de políticas setoriais articuladas. Neste sentido, enquadrou-se o processo de Revisão do PDM de Braga com a caracterização territorial elaborada no âmbito da tese de Mestrado em referência. De facto, os estudos aí desenvolvidos referentes, nomeadamente, à evolução urbana, à caracterização Morfotipológica, do edificado, funcional e da rede viária, bem como, a visão estratégica que enquadrou a proposta, e o enquadramento regional, foram aplicados à Revisão do PDM de Braga. Devido ao desvio temporal e aos diferentes contextos que revestem uma dissertação de Mestrado e uma revisão de um PDM procederam-se a algumas adaptações. Planta dos tecidos Morfotipológicos e Planta de Ordenamento

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Figura 5. Planta de Ordenamento do PDM de Braga – Planta de Classificação e Qualificação do Solo. Fonte: Câmara Municipal de Braga.

A Planta Morfotipológica é uma peça fundamental na metodologia delineada para alcançar a proposta de Ordenamento, dado que orientou a Proposta de Uso do Solo. A delimitação das categorias funcionais, na Planta de ordenamento do PDMB (Figura 5), 8 encetou nos 1| Espaço Central O espaço central de Braga assume um papel fortemente polarizador da restante área do concelho, bem como da região, pela forte influência que exerce. Corresponde ao espaço central definido pelo Centro Histórico que foi delimitado no âmbito da caracterização dos tecidos Tipo-Morfológicos e pela respetiva A.R.U.. Neste espaço, prevê-se ações que visem a qualificação do espaço público e do edificado em geral e que garantam a diversidade funcional promovendo medidas de incentivo ao estabelecimento das atividades económicas, dos equipamentos e das áreas residenciais. 2| Espaços residenciais Os espaços residenciais destinam-se predominantemente ao uso residencial, admitindo-se, no entanto, a complementaridade com outros usos desde que compatíveis, nas condições aplicáveis a cada uma das subcategorias (ER1 a ER5). 3| Espaços de atividades económicas No sentido de afirmar a competitividade e empreendedorismo do concelho, a revisão do PDMB dá especial destaque a esta categoria de espaço. (AE1- Predominantemente industrial de grande Dimensão; AE2 – predominantemente comercial de grande dimensão; AE3 – predominantemente comercial de pequena e média dimensão; AE4- predominantemente logística; AE5Restauração e bebidas) 4| Espaços Verdes Estes espaços caracterizam-se, em geral, pela função que pretendem cumprir de equilíbrio do sistema urbano fortemente motivada pela presença significativa de arborização ou do coberto vegetal. Deste modo, as ações a

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trabalhos desenvolvidos no âmbito da caracterização Morfotipológica e os conceitos foram adaptados aos definidos no Decreto Regulamentar 11/2009, de 29 de março. Dado o grau de detalhe que se verificou nos trabalhos preparatórios, houve a necessidade de criar subcategorias, em quase todas as categorias funcionais do solo urbano, consubstanciando um maior rigor e pormenorização. Essas subcategorias expressam as diferenciações dentro da respetiva categoria funcional, quanto às tipologias, morfologias, densidades, entre outros. Modelo Estratégico O modelo estratégico de desenvolvimento territorial preconizado para o Concelho de Braga obedece a uma visão que reverte para o reforço do seu caráter centrípeto e que privilegia as ações de consolidação urbana e de promoção da sua imagem. Por outro lado, este modelo não relega a importância da escala supramunicipal, assumindo como um dos domínios estratégicos a importância da escala supramunicipal. IV| Síntese Conclusiva e Prospeções O estudo da forma urbana como base metodológica no enquadramento dos processos de planeamento e no apoio à decisão revelou-se decisivo. De facto, ao garantir um enquadramento teórico e estruturante do território, abona à identidade urbana e é indutor de rigor e de eficiência na organização territorial. A base teórica desenvolvida na dissertação de mestrado e aplicada ao PDM de Braga poderá constituir o mote para a abordagem aos planos intermunicipais, definindo modelos de organização em rede bem estruturados e assentes no estudo da forma urbana.

desenvolver nestes espaços devem determinar a sua qualificação do ponto de vista do ambiente, da paisagem e da adequada integração com o sistema urbano. Deste modo, não se admitem usos que condicionem ou inviabilizem o uso dominante destes espaços. (EV1- Espaços Verdes de utilização colética; EV2- Espaços Verdes de Enquadramento; EV3 – Espaços Verdes de interior de quarteirão; EV4- Espaços Verdes de Proteção a linhas de água ou à REN; EV5 – Espaços Verdes privados destinados a logradouros) 5| Espaços de Uso Especial Equipamentos Estão delimitadas como equipamentos na planta de ordenamento as áreas existentes ou previstas de dimensão relevante, para utilização coletiva, de iniciativa pública ou privada, destinadas a esse fim. Infraestruturas Estão delimitadas como infraestruturas na planta de ordenamento as áreas existentes ou previstas de dimensão relevante destinadas a essa função. 6| Espaços Urbanos de Baixa Densidade Correspondem a áreas predominantemente residenciais de baixa densidade, delimitadas em áreas mais periféricas em relação ao centro da cidade e em terrenos que apresentam algum declive ou se localizam próximo de linhas de água e que se encontram, em geral, nos perímetros dos aglomerados (contíguas às ER5) estabelecendo a transição para o solo rural. Com a localização destas áreas nas franjas urbanas, pretende-se estabelecer uma adequada transição das áreas mais centrais para as áreas mais periféricas e do solo urbano para solo rural. Esta categoria de espaço foi desagregada em duas subcategorias: BD1 e BD2 que correspondem, essencialmente, às áreas delimitadas na Planta dos Tecidos Tipo-Morfológicos como habitação unifamiliar e Elementos rur-urbanos ou núcleos de génese rural. PNUM 2016  341

Neste sentido, e em consonância com o previsto na nova Lei n.º 31/2014, de 30 de maio e com o Decreto-Lei 80/2015, de 14 de maio, perspetiva-se que a alteração da escala de atuação (mais global e menos local) consubstancie a mudança de paradigma para as próximas décadas. Pelas dinâmicas urbanas e pela importância das relações geradas, o modelo urbano deixa de assentar apenas nas cidades e é conduzido para a formação de conurbações a uma escala territorial mais ampla. A presença do “local” na esfera “global” e as exigências impulsionadas pela competitividade mundial promovem novos desafios às políticas territoriais. Esta competitividade depende da eficiência do sistema urbano-regional, em detrimento, dos fatores considerados em décadas precedentes. A ampliação geográfica intensifica a necessidade de contrariar a tendência restritiva dos Planos Diretores Municipais (como base singular para o planeamento dos Concelhos, pensados isoladamente e descontextualizados dos Concelhos circunvizinhos) a favor de atuações mais estratégicas, abrangentes, participativas e consensuais, baseadas em Planos Intermunicipais. As mutações urbanas contemporâneas, pela complexidade das formas inerente às novas conurbações, pela extensão territorial e pela imprecisão dos limites, impõem a necessidade de encontrar novas abordagens nas políticas urbanas e nas formas de regulação. Referências bibliográficas Ascher F (1998) Metapolis. Acerca do futuro da cidade, Celta Editora, Oeiras. Aymonino C (1984) O significado das cidades, coleção dimensões 15; Editorial presença, Lisboa. Bandeira M (1996) A região transfronteiriça de Portugal e Espanha (Minho-Galiza) – perenidade na diferença e na identidade, publicações da Universidade do Porto, Porto. Balducci A, O conceito de incerteza na recente elaboração teórica da urbanística. Borja J, Castells M, Local y Global: La gestión de las ciudades en la era de la información. Camagni R (1990) Strutture urbane gerarchique e reticolari; verso una teorizzazione, in Curti y Diappi (eds) Gerarchie e Reti di Città: tendenze e politiche, Franco Angeli, Milan. Cardoso A, Bandeira M (1992) Mercado de trabalho e sistemas de ensino no concelho de Barcelos e região envolvente algumas perspectivas. Carvalho J (2003) Ordenar a Cidade, Quarteto Editora, Coimbra. Comune di Milano, Assessorato all`Urbanistica (2000) Ricostruire La Grande Milano. Strategie, politiche, regole. Documento di Inquadramento delle politiche urbanistiche comunali. Corais F (2003) Dinâmicas territoriais na Aglomeração Urbana de Braga,Tese de Mestrado, FAUP/FEUP, Porto Corais F, Lemos C (2006) “Braga”, in Domingues, Álvaro, Cidade e Democracia. 30 Anos de Transformação Urbana em Portugal, Argumentum Fundação da Juventude e Ordem dos Arquitetos, 144-153. Costa X, Speaks M, Bouman O, Sóla-Morales I, Bernadó J (2001) Habitats Tectónicas Paisajes, Instituto Español de Comercio e Fomento, Ministério de Fomento, Actar, Barcelona. Domingues A (2000) Os novos mapas da Cidade in ECDJ n.º 3, FCTUC Departamento de Arquitectura, PNUM 2016  342

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Análise Morfológica quanto à Consolidação da Praça XV de Novembro na Paisagem Urbana de Florianópolis- Brasil Marcia R. Escorteganha, Gilberto S. Yunes Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo-Pòs ARQ- Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC Florianópolis -Santa Catarina, Brasil, Telefone: 0 55 4899300633 [email protected] / [email protected]

RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar morfologicamente a consolidação da Praça XV de Novembro na paisagem urbana de Florianópolis, através da formação e evolução urbana do centro histórico da cidade, precisamente, o perímetro da Praça XV de Novembro. Analogamente, a Praça é o marco zero da formação urbana e do povoamento da Vila de Nossa Senhora do Desterro na Ilha de Santa Catarina, hoje, a capital do Estado de Santa Catarina. Esta análise, com base na identificação, levantamento de campo, pesquisa de referênciais documentais em fontes primárias e arquivos, para comprender como foi o processo de construção urbanistica da Praça XV de Novembro. Este procedimento permite analisar, assim, a transformação urbanística no núcleo histórico da cidade- as transformações que ocorreram na Praça XV de Novembro como pré núcleo original, que se mantém até hoje, apesar de seu entorno imediato sofrer alterações com acrescimos urbanisticos, artísticos e arquitetônicos. Em síntese, este artigo faz parte dos resultados obtidos durante a pesquisa de pós-doutorado PósARQ/UFSC, visando contribuir à compreensão histórica, ao reconhecimento da Praça XV de Novembro como ponto nodal e articulador do plano urbano, bem como, valorizar a área verde tal qual um núcleo agregador, com conectividade de espaços e eixos de circulação da paisagem urbana da área central de Florianópolis, visto que o entendimento do estudo morfológico dos centros históricos é indispensável à preservação da paisagem urbana histórica. Palavras-chave: Análise Morfológica; Praça XV de Novembro; Paisagem Urbana; Núcleo Urbano Histórico; Florianópolis.

    INTRODUÇÃO

Uma das ideias mais difundidas como instrumento de avaliação dos espaços urbanos é a análise da paisagem urbana, onde as áreas verdes, a exemplo de praças e jardins têm por função urbanística e organizacional, tornar-se coerente aos fluxos e à implantação das selvas de pedra, tal como instrumentos que compõem e constituem o ambiente urbano.

Para Gordon Cullen, a “paisagem urbana é a arte de tornar coerente e organizado, visualmente,o emaranhado de edifícios, ruas e espaços que constituem o ambiente urbano” (Adam, 2008, 63). Assim, as praças e jardins públicos contribuem para que haja humanização do ambiente urbano, já que são espaços construídos pela ação do homem, incorporam e modelam a vegetação, organizando-a para um determinado escopo. Além de ser pontos nodais de conectividade e convivência social nos espaços conurbados. PNUM 2016 345

  O processo de alteração da ocupação, devido ao crescimento das cidades é um dos elementos morfológicos básicos do desenho da cidade, onde a Praça tem sua função e seu destaque, não representando, apenas, um parcelamento pontual urbanístico, mas também, a célula fundamental na geração de fluxos e eixos urbanísticos. Por este motivo a Praça XV de Novembro em Florianópolis é o foco central das reflexões, pesquisas e estudos de Pós-doutorado PósARQ/UFSC; a fim de contribuir à compreensão histórica das alterações morfológicas que aconteceram e à valorização como área verde pública e marco - ponto nodal e articulador- na construção dos espaços e dos eixos de circulação da paisagem urbana da área central de Florianópolis.

O estudo morfológico da Praça XV tem por base a pesquisa cartográfica, gráfica, documental, fotográfica e bibliográfica, que registra o indício de informação morfológica sobre o perímetro da Praça desde o povoamento da área central da Ilha de Santa Catarina; século XVIII até os dias atuais. Criou-se, assim, um recorte temporal a partir da observação de mapas de época.

A partir da coleta de dados, organizou-se cronologiamente características de cada período abordado e em relação aos principais aspectos das modificações ocorridas em forma gráfica e textual com as respectivas análises. Estas análises possibilitaram identificar cronologicamente as mudanças na forma e no desenho da praça em estudo como uma construção urbanistica integrada ao plano urbano, como um palimpsesto urbano com seus acréscimos e recortes, percebidos com a leitura de camadas temporais sobrepostas. Desta forma, a visualização e análise das camdas temporais foram divididas em fases, para melhor comprender o texto, assim como, agrupar características semelhantes, ou, aspectos correlatos para que haja manutenção da paisagem urbana.

A problemática da Praça, concentra-se na percepção das camadas sobrepostas frente às transformações urbanas durante a formação da cidade e a dinâmica do seu tempo. Salgado (2007 p. 169) avalia que a “velocidade acelerada das transformações dificulta a apreensão da paisagem”, devido ao “processo de constante mudança que ocorre por “substituição de camadas”, que, à maioria, resulta na transformação morfológica paisagística e urbanística. Por esta razão foi escolhida a Praça XV de Novembro como objeto de estudo, com a finalidade de aprofundar a aplicação de critérios morfológicos para compreender e visualizar as características morfológica, históricas, cultural e ambiental; marcas da identidade, que qualificam a praça perante a paisagem urbana: nela, a Praça, preserva-se. Grande parte de sua implantação espacial original permanece, porém com um cenário diferenciado, positivo, quant à conservação de sua morfologia histórica e aspectos paisagísticos essenciais, em consonância às modificações contemporâneas. Permite-se, assim, identificar a Praça XV de Novembro como o pré núcleo original, que se mantém até hoje; mesmo tendo havido algumas alterações, que acompanham a transformação urbanística do seu entorno histórico imediato de Florianópolis. Cidade, que nasceu com a antiga Póvoa de Nossa Senhora do Desterro.

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  1.1 OBJETIVO

Estudar e entender a morfologia urbana da área central da Ilha de Santa Catarina, tendo como enfoque a Praça XV de Novembro, marco zero e ponto nodal na construção da paisagem urbana do centro histórico; valorizando-a como elemento e resultante da rede de conectividade do espaço da paisagem urbana histórica.

1.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Segundo Dieterich (1999, 61) “a elaboração do problema é a delimitação clara do objeto de pesquisa”, no seu desenvolvimento, o “problema enfocado é o ponto de partida da investigação que segue com a estruturação do método de estudo de caso”. Sendo assim, a problemática abordada demonstra como estão sendo feitas as intervenções na recomposição das áreas verdes, praças e jardins e como podem interferir na paisagem urbana. Portanto, o método de investigação será estabelecido pelas “relações de causa-efeito” (Tavares e Veiga, 2004, 3), compreendendo as seguintes etapas de investigação e análise, tendo por base; a metodologia de análise morfológica: 1- Etapa Preliminar - Sondagem Arqueológica de Superfície x Levantamento

documental:

gráfico,

fotográfico,

bibliográfico,

arquivístico,

cartográfico; x Levantamento de campo: coleta dos dados in loco. 2- Etapa Complementar – Fase Reflexiva x Análise reflexiva x Síntese das informações coletadas: triagem dos pontos relevantes; organização dos dados; interpretação, análises e cruzamento das informações obtidas;

3- Etapa Final: elaboração e formulação das conclusões para finalização textual e divulgação dos resultados obtidos.

1.3 LOCALIZAÇÃO DA PRAÇA E SKYLINE DA ÁREA CENTRAL DA ILHA (TERRENO DA PRAÇA)

A Praça XV de Novembro se localiza na área central histórica da Ilha de Santa Catarina, município de Florianópolis, (Latitude „-“27º59’75“ e Longitude- 48º54’98“) ao sul do Brasil. E no corte em perfil, skyline, a área central da Ilha e a

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  ligação com o continente. Pode ser visualizado, em destaque, o terreno da praça está a nível do mar, favorecendo, assim a implantação do primeiro porto e entrada da Vila desde o século XVII. 



Posição si da Praça 



 

Figura 1. Conjunto de imagens com a localização da Praça XV de Novembro – Florianópolis e seu Skyline Fonte: CRUZ, Olga. A Ilha de Santa Catarina e o Continente Próximo; um estudo de geomorfologia costeira.Florianópolis: Editora da UFSC,1998.https://earth.google.com/ 

2 BREVE HISTÓRICO DO POVOAMENTO E A PRAÇA

A Póvoa de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis e capital do Estado de Santa Catarina, foi fundada na planície próxima ao mar, ao pé de uma colina, pelo bandeirante paulista Francisco Dias Velho em 1662, fixou-se permanentemente na Ilha com sua família e agregados, em 1673 (Cabral, 1979, 19). O motivo que gerou este povoamento foi o posicionamento estratégico em razão da existência da rota marítima entre Rio de Janeiro e o estuário do Rio da Prata (Argentina). Além de manter a bandeira do domínio português em terras brasileiras. Logo, o motivo político sobrepuja o econômico. Dias Velho, mantém-se até o ano de 1689, quando piratas atacam a Ilha, incendiando as casas, dizimando sua família e grande parte dos habitantes (Cabral, 1979, 19). Após este ataque, a Póvoa entra no ostracismo até 1678, quando chegam alguns imigrantes, colonizadores açorianos, que demarcam, com a sua chegada; o povoamento PNUM 2016 348

  português. Em 1726, Nossa Senhora do Desterro foi elevada à categoria de Vila. Com isso, D. João VI, em 1738, por motivos políticos, eleva a Ilha e parte da costa continental ao status de Governo Independente, instalando o poder político português na Ilha de Santa Catarina (Várzea, 1985, 10-18).

O espaço da praça central da Póvoa de Nossa Senhora do Desterro nasceu juntamente com o início do povoamento da Ilha de Santa Catarina e com a fixação das primeiras famílias. Em 1763, só existiam três prédios no entorno da Praça: a Capela, o prédio do Conselho (a prefeitura) e o Palácio do Governo. Por conseguinte, a Praça, torna-se um ponto nodal de povoamento, que conserva sua localização até hoje.

3 ANÁLISE MORFOLÓGICA DA PRAÇA XV DE NOVEMBRO

A implantação e o espaçamento da praça que surgiu desde o povoamento da Ilha de Santa Catarina, no séc. XVII, conserva, ainda hoje, sua definição primária neste mesmo posicionamento, apesar, de haver modificações no recorte de sua borda, causado pelo alinhamento das vias de acesso e posterior abertura das ruas. Assim, as mudanças morfológicas da praça serão estudadas através de registros cartográficos e fotográficos- agrupados em fases analíticas, explicitados a seguir.

1ª FASE- A PRAÇA COMO UM CAMPO ABERTO

O primeiro registro que se tem sobre o posicionamento da praça está na cartografia histórica de 1754. Pode-se observar o espaço urbano de traçado irregular e orgânico, resultado do trajeto aleatório, gerado pelo trânsito constante dos moradores que por ali passavam, formando, assim, um desenho de caminhos (Figura 2) que se estendiam até a borda d’àgua, fazendo da praça um campo aberto para os viajantes que ancoravam na baia. Portanto, a praça era como um porto de chegada.

No entorno, se enfileiram os edifícios mais representativos- a Igreja, o Palácio do Governo, a Prefeitura, a Cadeia e os sobrados. Pode-se observar na cartografia do séc. XVIII, no mapa espanhol (datado de 14 de dezembro de 1777), com a configuração urbana do centro da Vila de Nossa Senhora do Desterro; atual Florianópolis. Logo, corrobora com esta informação, as pinturas de Victor Meireles de 1846 (fig. 2 lateral acima) e na aquarela de Jean-Baptiste Debret datado de 1827 (fig. 2 lateral abaixo).

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Praça Pr P raç aça

Praça

   

Praça

  

Praça

  Figura 2. Plano da Villa de N. S. do Desterro da Ilha de S. Catherina. Ano: 1754.Autor: José Custódio de Sá e Faria –Setor de Obras Raras da Biblioteca Mario de Andrade- São Paulo.Fonte: Veiga, 1993, 47 “Vista do Desterro” (circa 1846).Autor: Victor Meirelles de Lima(doação- Família Almirante Lucas Boiteux (1970)Fonte Acervo– Museu Victor Meirelles/Fotógrafo: Eduardo Marques 2008-Fonte: www.museuvictormeirelles.gov.br Plano de la villa de Nuestra Señora del Destierro y sus inmediaciones, capital de la isla de Santa Catarina- Aquarela de Jean Baptista Debret, cerca de 1827 Fonte:http://www.santa-catarina.co/historia/desterro.htm Copyright © Guia Geográfico-Mapa Histórico de Santa Catarina

  2ª FASE- TRATAMENTO E DEFINIÇÃO DE LIMITES E TRAJETOS DA PRAÇA

Apesar do aumento da população da Vila e consequentemente seu arruamento, a praça se mantém como ponto central, mantendo sua configuração, em destaque na cartografia de 1777, ano da invasão espanhola na Ilha de Santa Catarina, que, provavelmente, mais tarde, influenciará no traçado reticulado visível no mapa de 1819 (Figura 3). No século XIX, a praça fica com seus limites mais definidos, configurando uma forma retangular. Dela, irradiam-se os primeiros arruamentos de forma reticulada, aos moldes dos povoamentos ibéricos (espanhóis), conforme o mapa cartográfico de 1819 (Figura 3). Observa-se que o desenho da praça, concretiza e confirma o desenho registrado na planta do Tenente Coelho Peniche de 1823. Na planta do Tenente Peniche, os caminhos representados estão bem definidos e pavimentados (paginados), com passeios em linhas orgânicas e nichos centrais circulares que incentivam “promenade”, passeios de deleite e prazer, ou, realocação de elementos em destaque; canteiros com delimitações de figuras geométricas também estão presentes, inseridos como obras escultóricas e monumentos (área central em forma PNUM 2016 350

  de obelisco), chafariz central e caminhos destinados à “promenade”, que remete ao desenho paisagístico de praça aos moldes dos jardins franceses, estes que se basearam nos jardins renascentistas (Figura 3 ,fotografia lateral abaixo) . Na planta do ano 1823 (Figura 3), observa-se, ainda, a primeira modificação substancial no espaçamento da praça que antes era involuntário e amplo, como um grande palco aberto, que agora será delimitado nas suas extremidades. Divide-se, assim, a ponta da extremidade sul, que se aproximava da borda d’água, em uma praça menor, que receberá o nome de “Praça Fernando Machado” mais tarde. No final da Praça Fernando Machado e junto à borda d’água, é construído o trapiche municipal, em aproximadamente 1785; atracadouro que dava acesso ao centro do povoado (Veiga,1993, 200).

Praça

g 1993, 44 e Arquivo Figura 3. “Planta da Cidade de Desterro-1819”.Mostra o traçado básico do aglomerado urbano. Fonte: Veiga, Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (março/2013). - Desenho: tenente Coelho Peniche Planta da Cidade de Desterro-1823 Posição da Praça XV de Novembro em relação ao traçado e ao relevo. Fonte: Peluso, 1991, 359 -Fotografia da Praça no final so séc. XIX-“Jardim Oliveira Bello,Fonte Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina-IHGSC

 3ª FASE- JARDINS INTERNOS E MUROS DA PRAÇA

A Praça recebeu várias designações, como em 1885, a praça chamava-se “Praça Barão da Laguna”, em homenagem ao ainda vivo, Jesuíno Lamego Costa, almirante e senador do Império. Em 1889, A Praça recebe nome da data da República, “Praça XV de Novembro”, em homenagem a nova ordem representada pelo Presidente da República, Marechal Floriano Peixoto. E ao interior da Praça XV de Novembro é criado o jardim, construído entre 1885 e 1887, denominado “Jardim Oliveira Bello”, em homenagem ao ex- presidente da província, Luiz Alves Leite de Oliveira Bello, inaugurado em março de 1891 (Jornal a República, 11 de abril de 1891 nº 402). No jardim, foram plantadas espécies de grande porte, PNUM 2016 351

  buscadas no Rio de Janeiro – palmeiras imperiais, fícus indianos, cravos da índia e tamareiras. Seu piso recebeu mosaicos feitos com pedras pequenas nas cores preto e branca, petit pavé, decorando a pavimentação com jogo de cores e contrastes, muito comum da época de belle époque, aos mesmos moldes das calçadas cariocas.

Inclusive, foi transplantada para o centro do jardim Oliveira Belo, uma figueira que se encontrava na frente da Matriz, hoje, Catedral Metropolitana. Estima-se que esta figueira tenha sido plantada em 1871, em um pequeno jardim em frente à Igreja Matriz (Veiga, 1993). Em 1891, com 20 anos, a figueira foi retirada do jardim, sendo levada com carretas de boi e replantada no centro da praça em frente a Catedral. Atualmente, a vigorosa e centenária figueira é atração, onde os visitantes e as pessoas que ali descansam sob sua sombra nos dias ensolarados e a tradição ilhoa se perpetua com suas lendas, histórias, desde as mesas com tablados de jogos de xadrez até a tradicional feirinha de artesanato.

Murada em todo o seu entorno, a praça tinha uma função diferenciada dos dias atuais. Era um ponto de encontro da elite, especialmente de políticos. Na entrada principal havia uma construção que servia café e eram vendidos doces e salgadinhos. Desta forma, os escravos juntamente com as camadas populares não eram convidados a entrar. No seu interior havia quatro construções. Ao sul, defronte ao monumento do Coronel Fernando Machado, foram construídos dois cafés, o Café Continental e o Café Royal, pontos de encontros e de reuniões dos comerciantes e de políticos locais. Ao norte defronte a Catedral, encontrava-se um grande quiosque envidraçado, os vidros eram coloridos e importados da França. Havia no Jardim Oliveira Belo, construída na década de 1910, uma gruta artificial de alvenaria, denominada Almirante Gonçalves em homenagem ao Almirante Jerônimo Gonçalves.

Por determinação do decreto n°066, de 08/04/1891, a Praça foi cercada e inaugurada neste mesmo ano, por Gustavo Richard, presidente da província de Santa Catarina, em exercício, substituindo Lauro Müller. O jardim permaneceu cercado, até que em 1912, quando o prefeito Henrique Pupp Jr. mandou retirar as grades que circundavam todo o perímetro da Praça por gradis ingleses, importados de Bermingham por 280 libras esterlinas. Estas grades foram transferidas para várias instituições da cidade, como: Asilo Irmão Joaquim, na Avenida Mauro Ramos; a Igreja São Francisco localizada na Rua Deodoro e o portão da Praça XV, encontrava-se na entrada do cemitério chamado São Francisco de Assis, no bairro Itacorubi (CabralL, 1979, 34).

Ainda na década de 1920, a Praça XV de Novembro está sem os gradis de forma mais aberta a passagem pública, as árvores começam a fazer mais copadas e aumentem suas dimensões. A praça Fernando Machado mantém seu traçado reticulado com caminhos que levam ao centro, em forma de círculo.

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  Porém o Adro da nova Catedral -1922, (antiga Matriz), se separa da praça, permitindo um novo arruamento há conexões viárias, construídas para modernizar a cidade e permitir a circulação de veículos que tinham acesso ao centro pela Ponte Hercílio Luz - recém construída (1926).

Na década 30 a praça não tinha mais os coretos, a gruta e os cafés, havia, simplesmente, bancos móveis que eram colocados dispersos pelos passeios e ao lado dos monumentos militares. Esta área tinha canteiros, mas a Praça Fernando Machado já não era mais ajardinada. As duas praças, Praça XV de Novembro e Fernando Machado, se mantêm desta forma durante as décadas de 30 e 40.

Nos anos 50, o Adro da Catedral se separa definitivamente da Praça, ganhando um canteiro ajardinado. O alargamento do adro, afastando o limite norte da Praça será um espaço importante na implantação de outros equipamentos urbanos nas futuras décadas. Quanto ao porto, localizado no final da Praça Fernando Machado, na baía Sul, junto ao Miramar, tornou-se um elemento de formação urbanística, ponto nodal da Ilha da Santa Catarina (Peruso, 1991, 312). A partir da década de 50 começa um crescimento vertiginoso na área central da cidade, no entanto, a praça mantém seu enquadramento retangular e configuração, existentes desde 1819.

Na década 1960 o espaçamento entre adro da catedral e a Praça XV de Novembro recebe um novo recorte com pavimentação em petit pavé, a estilo da calçada de Copacabana, o desenho de ondas são o tema da nova calçada em frente a Catedral. E a chegada do estilo modernista, presente na paisagem urbana de Florianópolis, nas edificações e na praça, obedece a tendência proveniente do Rio de Janeiro. Além disso, é construída uma pequena edificação a estilo modernista para informações turísticas.

4ª FASE- INCORPORAÇÃO DE AREA ANEXA- A PRAÇA FERNANDO MACHADO, E O MIRAMAR (1928/1974).

Destaca-se que o desmembramento na extremidade sul da praça, dividindo-a em duas, uma praça maior e outra menor, deu lugar ao “primeiro Mercado Público Municipal”. Aconteceu, também, nesta área, a criação e delimitação da pequena praça ao fim da Praça principal como um desmembramento para colocar a “maquete da ponte Hercílio Luz”, que serviu para inaugurar a simbólica obra, com o intuito de simular a realização final da verdadeira ponte Hercílio Luz, pois o Governador estava com câncer e não sobreviveria para ver seu término, fazendo, assim, uma inauguração hipotética antes de sua morte. A praça, então, foi inaugurada como “Praça Fernando Machado” e recebe, alguns anos depois, seu prolongamento e o “Miramar” (1928- 1974). O famoso Miramar- trapiche municipal foi ponto de encontro da elite intelectual da cidade, que desaparecerá com o aterro da Baía Sul, em 1974. Após a existência do Miramar, já demolido no ano de

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  1974, a praça passou por uma reforma no século XX, que incorporou pilares que marcam o local onde ficava a marina próximo ao atual terminal de ônibus da cidade de Florianópolis.

5ª FASE- ATERROS APÓS ANOS 70...DISTANCIAMENTO E RUPTURA…

Na década de 1970, dá-se início às alterações urbanas nas imediações da Praça, principalmente com a implantação do novo sistema viário, a construção das pontes e aterro. Aterro, este que já havia sido pensado no Plano Diretor de 1952, no projeto do arquiteto Luis Felipe Gama d’Eça (responsável planejamento de Florianópolis em 1952-69). Reafirma, logo, a necessidade de um novo planejamento da cidade, numa escala que atendesse: a funcionalidade, o zoneamento, o porto como vetor de desenvolvimento no plano urbano. O arquiteto Luis Felipe Gama d’Eça, adepto ao pensamento planificador, racionalista e desenvolvimentista, responsável pelo Plano Diretor de 1952, tendo por base os princípios da Carta de Atenas e as ideias modernistas de Le Corbusier - “les 7 voies" que são avenidas e vias hierarquizadas, capazes de regular a circulação viária, destacando-se a visão de planejamento regional e o espaço dividido segundo as funções urbanas; a grande metrópole funcional (D'Eça, 1969). Sugere, a implantação de um aterro que atenda as novas necessidades de circulação e transportes, cujo funcionamento na região central estava ficando em situação precária. Previa a introdução de uma avenida principal, fazendo a interligação do centro da cidade com o Norte da Ilha e a Universidade (Beira Mar Norte), além de uma avenida tronco (Avenida Paulo Fontes), com a finalidade de captar o intenso fluxo de veículos no centro antigo e a criação de um espaço para ampliação da área urbana central (Aterro da Baía Sul) como um prolongamento da Praça XV de Novembro, trazendo para cidade uma área, fazendo relação ao parque público, bem como, incluindo o embelezamento paisagístico. Tanto que o projeto paisagístico foi desenvolvido por Burle Max que pretendia fazer uma grande esplanada paisagística aos moldes do aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro (Oléias, 1994, 49)( Figura 4).

Assim, o motivo da construção do aterro da baia sul era expansão urbanística, alargando a área central da Ilha, permitindo a construção das pontes (Colombo Machado Salles(1975) e a ponte Pedro Ivo (08 de março de 1991), para melhorar a circulação viária e o paisagismo de recepção aos visitantes que passavam o verão em Florianópolis . 

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 Figura 4. O aterro baia sul para construção da Ponte Colombo Salles, início década 1970. Proposta para Florianópolis, Plano Diretor de 1952. Fonte: Paiva E, Ribeiro D. e Graeff E. Aterro da Ponte e início da construção do Terminal Rita Maria ao fundo – 1980. Delimitação da Área do Aterro Hidráulico da Baía Sul. Mapa 07/1973, Fonte: Secretaria de Transportes e Obras site: http//pmf.org.br e https://earth.google.com/ 

A intenção da urbanização e paisagismo do Aterro da Baía Sul era ir além, fazer um corredor paisagístico que ligava a praça histórica e o núcleo original da fundação ao mar através de um corredor verde, associando a Praça ao Parque da Baia sul ao novo aterro, idealizado por Gama D’eça em 1952 e projetado por Burle Max nos anos 80 (Figura 4 - flechas em amarelo).Mas não foi esta intenção que prevaleceu, não houve esta conexão ao corredor verde, ligando a Praça e se expandindo em direção ao mar, como uma grande área de lazer público, reafirmando a morfologia da praça, que desde sua origem era ligada ao mar.

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  Depois dos aterros e do novo sistema de vias rápidas de acesso, seccionou e isolou a área nova projetada do centro histórico e da praça. No aterro, foram instalados vários equipamentos urbanos que desconectaram o centro histórico do mar, rompendo com a função natural que sempre havia sido preservada da proximidade e usufruto da beira d’água e o contato direto com o mar. A Praça ficou mais restrita e presa em seus limites, além de ser engolida pela verticalização das edificações de entorno, devido ao adensamento populacional no centro histórico, incentivando e ampliando as verticalizações com o desenvolvimento do comércio e dos serviços, tornando insustentável a preservação do centro histórico como sítio preservado e aprazível. Além disso, o centro se tornou uma área muito mais comercial que residencial, gerando problemas adicionais, como a insegurança, tanto que, após o horário de fechamento do comércio o centro fica às margens de andarilhos, aumentando a insegurança, devido ao alto índice de criminalidade e prostituição nas ruas do centro histórico e na praça.

6ª FASE- A PRAÇA HOJE

A Praça, hoje, se mantém na mesma localização com a configuração adotada após a década de 1970. Hoje é um patrimônio paisagístico relevante para cidade e tombado em 20 de março de 2014, a prefeitura e o SEPHAN-IPUF através do Decreto nº 12.855/2014, faz o tombamento a Praça XV de Novembro, quando recebeu nova pavimentação em pedra portuguesa, contendo quarenta e sete painéis artísticos, de autoria do artista plástico Heidy Hassis, como patrimônio histórico, artístico do município de Florianópolis. Na figura 5 fica evidente, a configuração morfológica atual Praça XV de Novembro.

A praça recebe os cuidados por meio de parceria da prefeitura com a iniciativa privada desde 2012 quando a Empresa Koerich adotou sua manutenção para mantê-la organizada e atraente aos visitantes; e os Cuidados com a centenária figueira é de responsabilidade da FLORAM.

Os órgãos públicos e a prefeitura têm feito esforços para melhorar a situação e devolver o espírito do lugar ao centro histórico de Florianópolis, uma cidade marítima, mas ainda está muito incipiente e distante da sua tradição junto à borda d’água.

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Figura 5. Vista aérea do centro de Florianópolis, Planta da Praça XV de Novembro com sua configuração morfológica. Fonte: https://earth.google.com

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, o levantamento realizado referente às mudanças ocorridas na Praça XV de Novembro em Florianópolis, ao longo do tempo, não chegaram a afetar, substancialmente, a Praça. Esta se mantém como um marco referencial e um ponto nodal, relevante na construção da paisagem urbana com grande significado e uso social.

As aplicações de análises morfológicas possibilitaram a leitura e deram visibilidade à trajetória histórica da Praça, a partir do levantamento cartográfico e fotográfico, que acentuou o valor de seus elementos urbanísticos, além de promover a organização dos dados, emergindo os elementos urbanísticos e paisagístico importantes e de referencial histórico e cultural da cidade, das interações temporais e sociais desta área verde no centro urbanizado, como fatores determinantes para a conservação das paisagens urbanas históricas.

Esta elaboração textual e informativa trouxe avanço como método para abordar as diferentes etapas da modifiação morfológica da Praça, o que vai subsidiar as futuras análises do ponto de vista das teorias do restauro e abordagem da mesma como jardim histórico.

Quanto ao seu isolamento e a perda do contato com o mar e o seu porto natural, é um fator a ser revisto pelas políticas públicas, visto que mais do que um sistema viário caótico. É necessário, um corredor verde e uma reconexão com a borda d’água, retomando nosso espírito do lugar para que a essência da concepção da Praça à beira mar retorne. Portanto, as políticas urbanas devem atuar de acordo com as políticas de preservação patrimonial para que os resultados das PNUM 2016 357

  alterações urbanas e viárias mantenham a qualidade em ações efetivas de planejamento urbano, que visa à preservação histórica da paisagem urbana que caracteriza a identidade e a memória ilhoa.  REFERÊNCIAS Adam R (2008) Analisando o Conceito de Paisagem Urbana de Gordon Cullen, da Vinci, Curitiba, v. 5, n. 1, 61-68. Afonso S, Laner M, Valle A (2006) Da Póvoa de Nossa Senhora do Desterro à Florianópolis do século XX: Uma síntese da evolução do tecido urbano na área central, PósARQ/UFSC, Florianópolis. Baker N, Slater T (1992) Morphological regions in English medieval towns, in J Whitehand, P Larkham (eds) Urban landscapes: international perspectives, Routledge, London, 43-68. Cruz O (1998) A Ilha de Santa Catarina e o Continente Próximo; um estudo de geomorfologia costeira. Editora da UFSC, Florianópolis. D'eça (1969) Cidades : Inovar para Sobreviver. Universidade Federal de Santa Catarina / Núcleo de Estudos Catarinenses, Florianópolis, s.d., 96. _______L (1969) As Grandes Conclusões da Urbanística sobre o Desenvolvimento de Florianópolis, exemplar datilografado, s.d. Dieterich H (1999) Novo guia para a pesquisa científica, Ed. FURB, Blumenau. Gil A (1991) Como elaborar projeto de pesquisa, 3. Ed. Atlas, São Paulo. Google Earth: 2005 NationalGeographicSociety Acessado em 14/04/2016 http://www.piramides.com.br/blog/tag/praca-xv/ Acessado em 22 /04/2016 as 11:12 http://www.turismodaquiparaomundo.com.br/2011/12/historia-em-volta-da-praca-xv-de.html Acessado em 18/04/2015 as 10:23 http://floripendio.blogspot.com.br/2010/05/florianopolis-antigo.html Acessado em 18 /04/2016 as 14:08 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístca. Disponível em http://www.ibge.gov.br Acessado em 20 /04/2016 as 12:32 Oléias V (1994) O Lazer no Aterro da Baía Sul em Florianópolis: o abandono de um Grande Projeto, Dissertação de Mestrado em Sociologia Política, UFSC, 49. Prefeitura Municipal de Florianópolis. Disponível em http://www.pmf.sc.gov.br Acessado em 26 /04/2016 as 15:02 Paiva E, Ribeiro D, Graeff E (1952) Florianópolis : Plano Diretor. Porto Alegre, Imprensa Oficial do Estado do Rio Grande do Sul. Vaz N (1991) O Centro Histórico de Florianópolis. Espaço Publico do Ritual, Ed. da UFSC, Florianópolis. Veiga E (1993) Florianópolis-Memória Urbana, Editora UFSC, Florianópolis. ___________.(2010) Florianópolis: Memória Urbana – 3. edFundação Franklin Cascaes,Florianópolis.  

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4. Da cidade ao território

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Aspetos morfológicos da articulação com a frente de água em Lisboa Rita Ochoa CIES-IUL/UBI Calçada Fonte do Lameiro 6201-001 Covilhã +351275329722 [email protected]

Resumo O presente artigo tem como objetivo compreender as relações entre cidades e frentes de água, a partir do caso de Lisboa, incidindo na análise morfológica das estruturas urbanas que articulam o interior do território com essas mesmas frentes. Dentro dos limites de Lisboa Cidade, serão analisadas as estruturas que possuem relevância urbanística (por serem estruturantes na malha urbana e/ou por encerrarem relevância simbólica através da presença de arte pública) e que estabelecem relação física e/ou visual com a frente de água. Pontualmente e como termo de comparação serão introduzidos alguns exemplos relativos à cidade de Barcelona. Esta análise assume como base metodológica o contacto com o território e a observação direta do espaço, opção que mais eficazmente permite apreender o modo como a morfologia dos eixos de articulação determina aspetos relacionados com o uso do espaço, facilitando o acesso à frente de água, mas também a forma como a própria frente de água é visualmente percebida desde o interior da cidade. O artigo estrutura-se em quatro momentos principais. Primeiramente, será estudada a forma das estruturas de articulação e sua influência na visualização da frente de água (capítulo 2.1). Depois, será abordado o perfil transversal, como aspecto caracterizador das estruturas, que nos informa acerca de questões quantitativas (dimensões dos eixos), mas também qualitativas (tipo e utilização dos espaços que os constituem) (capítulo 2.2). Por definição, todas as estruturas articulam determinadas polaridades na cidade com a frente de água. Mas conquanto estabelecem estas conexões, estabelecem também determinado tipo de relações morfológicas com a sua envolvente urbana. Assim e finalmente, com base nos conceitos de town integration e site integration (Costa, 2002) propõem-se duas escalas para a análise da integração com a envolvente: integração com os tecidos confinantes (capítulo 2.3) e integração com a cidade (capítulo 2.4). Palavras-chave Lisboa, análise morfológica, frente de água, espaço público. PNUM 2016 363

1.

Introdução. Cidade e frente de água

As diversas transformações que têm vindo a ocorrer em cidades marítimas e ribeirinhas remetemnos para o estudo dos territórios definidos como frentes de água 1 . Torna-se assim importante compreender esses territórios e as referidas modificações que têm vindo a sofrer, mas também a forma como se articulam as frentes de água com a cidade interior. Desde logo, dois factores detêm influência sobre esta articulação, levantando problemáticas distintas: 1) grande parte da frente de água encontra-se ocupada, linearmente, por infraestruturas portuárias; 2) grande parte da cidade é atravessada por uma dupla barreira rodo-ferroviária paralela à frente de água. Por outro lado, verifica-se nestas cidades um sistema territorial subjacente à malha urbana, composto por duas lógicas morfologicamente distintas, mas interligadas: 1) um subsistema de estruturas urbanas esquematicamente paralelas à frente de água (no qual se integra a ocupação portuária e a dupla barreira rodo-ferroviária), a lógica horizontal; 2) um subsistema de estruturas urbanas transversais2 à frente de água, a lógica vertical. Pela sua configuração física, este sistema territorial será designado como estrutura em pente (Ochoa, 2011) (Figura 1). O crescimento urbano ao longo da frente de água justificará a lógica horizontal. A necessidade de conectar fisicamente as frentes de água com as restantes áreas da cidade, por diferentes razões, em diferentes períodos históricos e de diferentes formas, justificará a lógica vertical. Como sistema abstracto e dependendo dos mais diversos factores, a estrutura em pente implementa-se de distintas formas no território. Ou seja, embora constituindo um sistema de articulação comum a cidades com frentes de água, a estrutura em pente adquire especificidades em cada uma delas.

No âmbito desta investigação, entende-se como frente de água as áreas com uma unidade territorial morfológica dentro da organização geral das respectivas cidades, que correspondem ao corredor de contacto com a linha de separação entre a terra e a água (Ochoa, 2011). 2 O termo “transversal” será utilizado para designar o desenvolvimento ao longo de uma lógica morfologicamente oposta à da frente de água, não necessariamente “perpendicular” – em diversos casos, as estruturas não são, de facto, perpendiculares à frente de água. Considerando, em abstracto, a frente de água como uma linha horizontal, estas estruturas desenvolvem-se transversalmente a esta linha. 1

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Figura 1. Estrutura em pente na cidade de Lisboa. Estruturação urbana ao longo da frente de água (lógica horizontal) e transversal à frente de água (lógica vertical) (Sobreposição ao Google Earth, 2010).

2.

Aspectos morfológicos da articulação com a frente de água Si las vías curvas son realmente más pintorescas y ofrecen cuadros curiosos, las rectas son de un efecto más monumental que es la expresión esencial que toman las ciudades que quieren afirmar su grandeza y su poder (Jaussely, 1907, 10).

A articulação com a frente de água é uma realidade complexa, que pode ser observada mediante o cruzamento de diferentes perspectivas e interpretada a partir das suas diferentes vertentes. O presente artigo incidirá nos aspectos morfológicos da articulação, a partir da lógica vertical da estrutura em pente, ou seja, das estruturas urbanas que relacionam o interior da cidade com a sua frente de água. Paralelamente, será estudado o modo como os aspectos físicos irão influenciar o uso do espaço e a visibilidade da frente de água, nessas mesmas estruturas.

Dentro das questões morfólógicas, será analisada a forma das estruturas de articulação e sua influência na visualização da frente de água. Seguidamente, o perfil transversal como um aspecto caracterizador das estruturas de articulação – para além do seu significado como elemento gráfico – que nos informa acerca de questões quantitativas (dimensões das estruturas), mas também qualitativas (tipo e utilização dos espaços que as constituem). Por definição, todas as estruturas articulam determinadas polaridades na cidade com a frente de água. Mas conquanto estabelecem estas conexões, estabelecem também determinado tipo de relações morfológicas com a sua

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envolvente urbana. Com base nos conceitos de town integration e site integration (Costa, 2002)3 serão observadas posteriormente duas escalas para a análise da integração com a envolvente: integração com os tecidos confinantes e integração com a cidade.

2.1

Forma

Cada estrutura de articulação é composta por um eixo 4 agregador de um conjunto de espaços públicos de movimento e permanência, os quais definem diferentes tipos de percurso e que podem ou não contemplar acesso físico à frente de água. Assim, a forma das estruturas de articulação é definida pelo modo como se implantam no território esses eixos agregadores, com base numa linha recta ou com base numa linha sinuosa, podendo esta sinuosidade ser mais ou menos acentuada.

Relativamente aos espaços lineares (ruas, avenidas, entre outros), diversos autores procedem a esta distinção, argumentando sobre as formas urbanas que consideram mais vantajosas. A forma recta aparece associada a um crescimento planeado e a forma sinuosa a um crescimento mais informal. Tal como Jaussely (1907), também Stübben (1906) e Sitte (1996) propõem que, tal como no passado, as cidades adoptem mais alinhamentos de ruas curvas e irregulares, para proporcionar vistas dinâmicas, em constante mudança.

Estes dois conceitos são adoptados e desenvolvidos por Costa (2002), a partir dos dois níveis de planeamento propostos em diversos estudos por Unwin: Town planning e Site planning, com o fim de avaliar a integração ou segregação dos espaços criados no âmbito de operações de reconversão de áreas portuárias. 4 O termo “eixo” é aqui utilizado no seu sentido urbanístico, como entidade linear abstracta, que pode materializar-se em espaços públicos tais como ruas, avenidas, entre outros. No Dictionnaire de l´urbanisme et de l´aménagement o conceito de eixo aparece associado a desenvolvimento urbano (axe de développement). O crescimento ao longo de um ou mais eixos preferenciais é apontado como uma das formas de expansão das cidades que melhor possibilita uma urbanização contínua, bem como uma maior heterogeneidade do espaço urbano (Merlin e Choay, 1988: 84). Por sua vez, a obra La morfología de las ciudades, (Capel, 2002) aborda o papel do eixo como elemento estruturador do tecido urbano e que, materializado na rua/calle, configure a forma urbana que mais directamente traduz a sua função: a de relacionar polaridades importantes no território. Assim, para além de gerador de desenvolvimento urbano, o eixo possui ainda um significado referencial, definindo perspectivas de relação entre diferentes contextos, articulando física e visualmente diferentes polaridades. Visualmente, o eixo integra componentes externas no seu interior, como é o caso da frente de água, nas estruturas de articulação. Tendo como base física o eixo, estas permitem a observação de dentro para fora da cidade, de fora para dentro e são também elas próprias visíveis, a partir de pontos exteriores ou mais elevados no espaço urbano. Dentro do conceito de eixo, podemos ainda considerar outra das suas possíveis materializações no espaço urbano: o eixo monumental (Capel, 2002) enobrecido através de uma combinação de factores: desde a largura das vias, às características do edificado, às funções que alberga e, em particular, à utilização de arte pública ao longo do seu percurso físico e frequentemente com um claro início e com uma terminação simbólica e monumental. 3

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Atendendo à relação entre a morfologia e as qualidades visuais do espaço, verifica-se que a forma das estruturas, com base numa linha recta ou sinuosa, influencia a apreensão da frente de água, ao longo dessas mesmas estruturas. Por definição, todas possuem a frente de água como fim comum (e como factor referencial) e todas contemplam a sua visualização. Estruturas em linha recta apresentam condições 5 para que a frente de água possa ser visualizada de forma constante. Estruturas sinuosas apresentam condições para que a frente de água seja “descoberta” progressivamente, de forma fraccionada.

2.2

Perfil transversal

O perfil transversal revela, no âmbito morfológico, diversas informações sobre a articulação. Por um lado, aspectos quantitativos: a largura e a altura dos vários pontos dos percursos de acesso à água, bem como a relação proporcional entre estes dois parâmetros6. Por outro lado, aspectos qualitativos: o tipo e a utilização dos espaços compõem as estruturas. O perfil transversal permite-nos comparar as diferentes estruturas, mas também, dentro da mesma estrutura, eventuais variações nos espaços.

Dentro da caracterização qualitativa, a largura das estruturas de articulação consiste na medida entre os planos verticais delimitadores do espaço público (fachadas, muros, ou outros elementos de demarcação de propriedade privada) nos espaços de movimento ao longo do eixo agregador. Numa mesma estrutura, a largura pode ser constante ou sofrer variações devido ao alargamento dos espaços de movimento ou à intersecção com os espaços de permanência.

A altura das estruturas de articulação, num determinado ponto, consiste na medida dos planos verticais delimitadores do espaço público. Dado que esta é variável, também a altura da estrutura será variável 6 . Em princípio, uma maior simetria e também uma maior semelhança nos planos Para além da forma, outros aspectos condicionam o modo como a frente de água é visualizada – daí que se argumente que as estruturas “apresentam condições” para que a frente de água seja visualizada de um determinado modo. Ao longo do artigo, serão explorados estes aspectos e a sua influência na visualização da frente de água. 6 Na obra El espacio urbano, Krier (1981, 26) aborda os efeitos do perfil transversal, bem como dos diferentes tipos de fachadas, sobre o espaço urbano. 6 Não sendo esta uma investigação de cariz quantitativo, não interessa analisar a altura como valor absoluto e calcular, por exemplo, valores médios de altura nas estruturas de articulação. Interessa sim verificar, através do perfil transversal, as dinâmicas de altura que se verificam ao longo da estrutura; se é constante ou se sofre mais ou menos variações; se existem pontuações do espaço, através de elementos mais elevados. Será assim fundamental observar as estruturas como um todo, conjugando a análise do perfil transversal com outros elementos, tais como fotografias da edificação e de percurso, fotografias áreas das estruturas e fundamentalmente o perfil longitudinal. 5

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delimitadores origina uma maior noção de encaminhamento em direcção à frente de água. Este aspecto poderá ser reforçado pela largura das estruturas. Estruturas mais estreitas potenciam um enquadramento da frente de água mais direccionado e, por conseguinte, um maior encaminhamento em direcção à frente de água.

Assim, outro dos factores que, para além da forma, contribui para o modo como a frente de água é visualizada, é a relação entre a largura e a altura dos planos delimitadores, ao longo das estruturas. A proporção entre a largura e a altura, num determinado ponto, é outro dos aspectos quantitativos informados pelo perfil transversal.

Confrontanto o perfil transversal das estruturas com a sua envolvente urbana, verifica-se que: 1) dentro de uma malha urbana homogénea, as estruturas tendem a apresentar um perfil transversal constante (mesma largura e a altura homogénea7 ao longo da estrutura); 2) estruturas pertencentes à mesma malha urbana homogénea possuem perfis transversais semelhantes. Estas duas premissas e a ocorrência de uma maior uniformidade entre as estruturas de articulação que integram uma mesma malha urbana verifica-se relativamente a malhas homogéneas em Lisboa, tal como o conjunto do Restelo, da Baixa ou do Parque das Nações. Mas confirma-se de forma ainda mais evidente na malha do Eixample, em Barcelona8.

Numa abordagem de carácter qualitativo e atendendo ao tipo de espaços que integram as estruturas, do ponto de vista da utilização, identificam-se três tipos de perfis transversais: 1) pedonal; 2) pedonal + viário; 3) pedonal + viário + ferroviário. Em cada um destes tipos de perfis, verificam-se determinadas particularidades, tais como a existência ou não de faixas de estacionamento, a ocorrência de vegetação e a forma como esta se encontra posicionada, ou ainda as características do terreno no sentido transversal (existência de muros de suporte, etc.). É ainda possível aferir a proporção de cada uma destas valências nas estruturas (predominantemente pedonal, predominantemente viária, ou se há equilíbrio entre ambas), bem como a organização relativa dessas

E maior simetria nos planos verticais delimitadores do espaço público. Todas as estruturas em estudo para Barcelona que pertencem ao Eixample verificam então as seguintes características: 1) estruturas em linha recta 2) estruturas com perfis transversais semelhantes; 3) cada estrutura com um perfil transversal genericamente constante relativamente à largura; variável, mas com poucas discrepâncias, relativamente à altura.

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mesmas valências, que nos traduzirão por sua vez diferentes acepções de espaço público. Por exemplo, o paradigma modernista da utilização de pilotis com vista à libertação do solo, para espaços de lazer encontra-se presente no conjunto da Avenida Infante Santo, em Lisboa. Por sua vez, em Barcelona, a grande maioria das ruas que compõem o Pla Cerdà, medem 20m de largura. Cerdà defendia a igualdade de larguras, por ser “una de las variables que más directamente influyen en la expropiación…, en la eficiencia de la circulación, en el precio de las áreas industriales y por último en la salubridad de las casas”. Era necesario “evitar las preferencias y los monopolio naturales de algunas calles a costa de otras, que serían consecuencia de la desigualdad de anchura” (Cerdà, em Grupo 2C, 2009, 21). De facto, a altura das edificações não deveria ser superior à largura das ruas, dando origem a um perfil uniforme de 20mx20m.

2.3

Integração com os tecidos confinantes

No âmbito desta análise, a integração com os tecidos confinantes consiste no tipo de relação morfológica que as estruturas de articulação estabelecem com a malha urbana envolvente. Considera-se que existe integração na malha urbana (1) quando a estrutura de articulação e respectivo sistema de espaços públicos fazem parte de uma malha urbana homogénea. Considerase que existe não integração na malha urbana (2) quando a estrutura de articulação e respectivo sistema de espaços públicos não fazem parte de uma malha urbana homogénea9.

Como exemplo de integração na malha urbana (1), a estrutura correspondente à Avenida D. Vasco da Gama que vai até à Praia de Algés e a estrutura que se inicia no Jardim Ducla Soares e termina no Jardim da Torre de Belém. Ambas se encontram integradas no conjunto urbano do Restelo, cuja malha é composta por dois tipos de eixos: radioconcêntricos e transversais à frente de água. Para além de verificarem a condição de integração numa malha urbana homogénea, estas estruturas possuem inclusivamente um papel relevante nessa mesma malha, correspondendo a eixos estruturantes, na medida em que: a) a sua largura é superior à dos restantes eixos; b) são os únicos eixos de toda a malha do Restelo a efectivar a articulação com a frente de água; c) possuem carga simbólica (incluem arte pública).

A maior parte das estruturas de articulação atravessa diferentes contextos urbanos, pelo que podem incluir mais do que uma das situações referidas (integração ou não integração na malha urbana). Por exemplo, várias as estruturas na zona mais oriental da cidade apenas verificam uma integração na malha urbana no espaço correspondente ao Parque das Nações.

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Como exemplo de não integração na malha urbana (2), verificam-se, por sua vez, duas situações: a) malha urbana preexistente e sobreposição das estruturas de articulação; b) estruturas de articulação preexistentes 10 , funcionando como charneira entre malhas urbanas distintas, correspondentes a etapas de crescimento urbano distintas. Dentro da primeira hipótese, as estruturas dificilmente estabelecem ligações com os tecidos confinantes; dependendo das suas características e da sua utilização poderão mesmo configurar uma barreira no território. Dentro da segunda hipótese, as estruturas mantêm-se e verifica-se uma adaptação das malhas urbanas que surgem posteriormente. Neste sentido, as estruturas actuam como marcos morfológicos (Capel, 2002) que condicionam a génese e o crescimento de formas urbanas subsequentes. As estruturas de articulação podem adaptar-se progressivamente às malhas urbanas confinantes e a partir delas serem delineadas outras estruturas urbanas.

2.4

Integração com a cidade

A integração com a cidade refere-se à maneira como as estruturas de articulação com a frente de água se ligam a áreas mais interiores do território, ou seja, a forma como a frente de água é “exportada” para a cidade. A integração com a cidade depende de dois factores: 1) a extensão (comprimento) das estruturas de articulação; 2) a sua continuidade com outras estruturas urbanas.

Uma maior extensão das estruturas não implica necessariamente uma ligação a áreas urbanas mais distantes da frente de água. Nas estruturas em linha recta e perpendiculares à frente de água, quanto maior é a sua extensão, mais distância da frente de água atingem. Já nas estruturas com sinuosidades e/ou não perpendiculares à frente de água, o distanciamento da frente de água é proporcional à sua extensão. Quanto à continuidade com outras estruturas urbanas, as que se prolongam através de outras estruturas11, possibilitando a articulação com áreas mais distantes da frente de água serão designadas como estruturas abertas. As estruturas que não possuem prolongamento para o interior do território serão designadas como estruturas fechadas. As estruturas “La permanencia del trazado viario es verdaderamente asombrosa. Hay caminos prehistóricos que se convirtieron en calles y si conservan así todavía” (Capel, 2002, 79). Através de cartografia histórica, é possível constatar a preexistência de algumas das estruturas de articulação, que aparecem total ou parcialmente correspondendo a antigos caminhos ou a estradas primitivas. 11 A delimitação da extensão das estruturas de articulação foi definida pela sua pertença a uma determinada lógica urbana, bem como por uma homogeneidade de características. E ainda pela percepção que permitem da frente de água, para além da ligação física que estabelecem (ainda que aquela possa não ser constante ao longo de toda a estrutura). É por esta razão que se consideram aqui determinadas estruturas urbanas como um prolongamento e não como pertencendo às estruturas de articulação com a frente de água: porque pertencem a outra lógica urbana e porque já não contemplam uma relação visual com a frente de água. 10

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de articulação fechadas, por serem intersectadas por algum tipo de incidente físico (linha de caminho de ferro, espaços verdes, espaços privados, entre outros) ou simplesmente por não estabelecerem conexões com outras estruturas urbanas, não possibilitam uma continuidade da frente de água com o interior do território.

Mediante os factores antes mencionados – forma, extensão e continuidade – cada estrutura de articulação permite um determinado prolongamento da frente de água para o interior do território. Em alguns casos a articulação é mais profunda, noutros casos a articulação dá-se com contextos mais próximos. Por sua vez, o conjunto das estruturas de articulação define, em cada cidade, um determinado grau de prolongamento da frente de água para o interior do território. Mas para uma melhor compreensão do prolongamento da frente de água para o interior do território há que ter em consideração, para além do ponto de vista físico, o ponto de vista visual. Só com a conjunção destes dois vectores é possível compreender, em todos os seus âmbitos, a “exportação” da frente de água para a cidade.

Em Lisboa, devido a uma topografia mais acidentada, a frente de água é apreendida a partir de mais pontos da cidade; em algumas estruturas, a visualização da frente de água é inclusivamente contínua. Todavia, factores como: a) existência de estruturas de articulação sinuosas, não perpendiculares à frente de água, por vezes pouco extensas e nem sempre contemplando uma continuidade com outras estruturas; b) uma significativa extensão da frente de água encontra-se vedada por infraestruturas portuárias e, em alguns casos, a continuidade do acesso é interrompida pela dupla barreira rodoferroviária; contribuem para que, apesar de uma mais dinâmica relação visual com a frente de água, se verifiquem algumas deficiências na sua articulação física com o interior do território.

A cidade de Barcelona possui uma menor relação visual com a frente de água; com excepção de duas pequenas cadeias de lombas uma vez superado o Llano, a topografia é pouco acentuada, pelo que, de uma forma geral, apenas é possível visualizar a frente de água praticamente junto à mesma. Quanto à articulação física da cidade com a frente de água, podemos identificar duas situações distintas: em cerca de metade da cidade – da Villa Olímpica ao Rio Besòs –, a malha do Eixample possibilita uma uniforme “exportação” da frente de água para o interior do território. Factores como: a) estruturas de articulação em linha recta, perpendiculares à frente de água, mais extensas e

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contemplando continuidade com outras estruturas; b) acesso físico público à frente de água em toda a extensão da cidade, até ao Moll de Barcelona (onde começa a frente portuária vedada); contribuem para que, apesar de uma frente de água menos visualizada que em Lisboa, esta parte da cidade esteja fisicamente melhor articulada com o interior do território. Já na outra metade da cidade – da Villa Olímpica ao Rio Llobregat – o Eixample não permite uma articulação da cidade com a frente de água, tal como descrita nos moldes anteriores. Por um lado, devido ao fechamento da frente de água pelas infraestruturas portuárias, a ocidente do Moll de Barcelona (resultantes da progressiva ampliação do porto para oriente do Port Vell). Por outro lado, devido à presença do Casco Antigo e de Montjuïc; embora constituindo estruturas físicas de naturezas distintas, ambos funcionam como obstáculos ao prolongamento do Eixample em direcção ao Mar. Assim, a articulação é garantida não por uma malha uniforme, mas por grandes eixos transversais12 que rompem a mallha urbana e abrem a frente de água à cidade.

3.

Conclusões

Ao longo deste artigo, foram analisadas as estruturas de articulação com a frente de água mediante parâmetros pertencentes ao âmbito da morfologia urbana. No entanto, neste sistema territorial, interessa também observar as relações entre a morfologia urbana e as qualidades visuais do espaço. As diferentes características das estruturas de articulação implicam determinados modos de ligação. Mas implicam também determinados modos de ver (e perceber) a frente de água – a articulação física tem influência na articulação visual. Por outro lado, o usufruto da frente de água não requer obrigatoriamente um acesso físico à linha de separação entre a terra e a água; pode simplesmente passar pela sua visualização. Tirar partido da frente de água, não implica necessariamente uma substituição de tecidos por espaços públicos novos ao longo de toda a frente de água, ou seja, não implica ter uma frente de água totalmente desocupada.

A integração da frente de água passa assim pela criação de vistas e pela não obstrução das vistas existentes. Pensar a articulação significa que, para além de uma frente de água requalificada há que integrá-la física e visualmente no interior da cidade, tirando assim partido deste território, mesmo em áreas mais distantes. Mais do que a possibilidade de aceder fisicamente ao espaço de separação entre a terra e a água, o usufruto da frente de água prende-se com uma correcta integração das

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Nomeadamente, a Ronda del Mig; a Avinguda del Paral.lel; a Rambla; e a Via Laietana.

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infraestruturas e dos elementos de ruptura, potenciando ligações físicas ou simplesmente visuais com a frente de água.

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Favela como padrão de ocupação e produção habitacional Eber Marzulo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) Av. José Bonifácio, 561/702, Porto Alegre, Brasil/ + 55 51 92849193 [email protected]

Resumo A presente comunicação analisa a favela como aglomerado de habitação produzida sem projeto e, por principio, através da autoconstrução cuja característica é o emprego do material construtivo disponível em cada época no interior da sociedade brasileira. Assim, em seu primeiro momento, ainda no início do século xx, teve como característica o emprego do adobe ou terra local e cobertura com vegetação; em seguida, a partir dos anos 1930 se intensificando após 1950, com o processo de urbanização e industrialização do país e consequentemente dos processos construtivos, o emprego na produção habitacional de material industrial descartado pela própria construção civil, indústria e comércio, em especial madeiras e latas – usadas para os telhados; com a formalização das relações de trabalho e a proliferação da produção em alvenaria, a partir dos anos 1970, os moradores das favelas, em grande parte da população masculina historicamente mão-de-obra da construção civil, incorporam a alvenaria na sua produção habitacional; mais recentemente com o desenvolvimento na indústria da construção civil do emprego do concreto armado este passa a ser intensamente utilizado na produção habitacional das favelas brasileiras. Cada um desses padrões históricos altera a imagem da favela: primeiro o barraco de barro com telhado de capim, reproduzindo o modelo da habitação pobre do Brasil rural; depois o casebre de madeira com telhado de lata, também tratado como barracão de zinco na música popular; mais tarde a produção em alvenaria; e na virada do século xx para o xxi a favela verticalizada tendo como marca a existência da laje que serve tanto como espaço de lazer e serviço das habitações como fundação para ampliação da moradia, seja para atender a reprodução familiar ou colocação no mercado de imóveis. A velocidade das transformações nos padrões construtivos, devido às contemporâneas tecnologias cada vez mais disponíveis que produzem edifícios com impressionante velocidade, característica que marca, aliás, a cidade contemporânea, também incide sobre as favelas brasileiras. Algumas dinâmicas mais recentes de regularização fundiária e urbanização de favelas brasileiras, particularmente na última década do século xx, e a ocupação policial no Rio de Janeiro nos últimos anos, colocam problemas típicos de áreas ocupadas pelas classes populares, a saber: a gentrificação e a deterioração. A análise do padrão construtivo e morfológico da favela torna-se incotornável para a compreensão do processo de formação da cidade brasileira, seja devido a sua incidência sobre a malha das cidades, seja por seu padrão construtivo ser expressão das condições de cada período histórico.

Palavras-chave favela, padrão construtivo, processo sócioespacial, cidade brasileira PNUM 2016 375

1. Sobre a indissociabilidade entre a favela e o urbano no Brasil Se a relação entre tipologia e morfologia passa por alterações ao longo do tempo nas cidades ocidentais, em virtude de transformações nos processos construtivos, padrões arquitetônicos e modelos urbanos não deveria espantar a constatação que o mesmo ocorra com a favela, afinal tal padrão de ocupação e produção habitacional faz parte da constituição da cidade brasileira. No entanto, o que traz elementos para a reflexão é o fato que as modificações encontradas ao longo do tempo na relação entre a tipologia habitacional e a morfologia das favelas não corresponde aquelas da cidade formalmente estabelecida. Formalmente, no sentido que as cidades brasileiras foram estabelecidas ao longo do tempo, sejam aquelas constituídas como cidades históricas sejam as projetadas, com algum padrão de formalização em termos urbanísticos e jurídicos. A favela não. Por definição as favelas são formas de ocupação que estão fora das formalidades urbanísticas e/ou jurídicas. Assim, seu processo de transformação guarda, conforme o contexto sócio-histórico, graus de autonomia em relação às transformações na cidade formal. Essa distinção entre cidade formal e a informalidade urbana deve ser relativizada, pois se encontra uma tendência equivocada na opinião corrente e mesmo em estudos acadêmicos a associar a informalidade urbana à ilegalidade e a ocupação pela classe popular. Equivocada, pois cada vez mais se constata a existência de ocupações pela classe média e burguesia, enfim, pelos extratos médios e superiores da estrutura social brasileira, de áreas não destinadas ao uso urbano e/ou habitacional. A ilegalidade do padrão de ocupação favela pode ser questionada a luz da constatação empírica nas mais antigas que o processo esteve em muitos casos ancorado em informações sobre a possibilidade de instalação de moradias desde atores do poder público e empreendedores imobiliários, além de serem em muitos casos áreas devolutas, isto é, áreas sem proprietário formal ou ainda não demarcadas. Tenha-se presente que as favelas mais antigas nas grandes cidades brasileiras têm mais de meio século. Estabelece-se que: 1) a informalidade urbana não é característica da classe popular e; 2) a definição de ocupação ilegal não reconhece o problema da falta de formalização das áreas na época do inicio das ocupações pelas favelas. Esse segundo item merece especial atenção, na medida em que as favelas ao ocuparem áreas não formalizadas e/ou urbanizadas foram responsáveis por parte da urbanização das cidades brasileiras. Por um lado então, a cidade brasileira se constitui historicamente através de padrões formais de ocupação cuja formalização ocorre conforme a sociedade institui instancias e definições político-jurídicas sobre a propriedade fundiária, no caso a urbana. Aqui não deixa de ser relevante incluir o fato que o país terá sua primeira legislação nacional especificamente urbana apenas com o Estatuto da Cidade em 2001. Por outro lado, há uma grande parcela da cidade que se configura paralelamente ao estabelecimento da cidade formal, pelo menos a partir do século xx, e que não é incorporada nos processos de regulação urbanística, embora se localize em geral junto a polos de desenvolvimento da ocupação formal e/ou econômicos. O emblemático bairro de Copacabana na icônica cidade do Rio de Janeiro é um caso exemplar, na medida em que a ocupação pelas favelas dos morros no entorno ao bairro urbanizado ocorre por famílias que constroem os edifícios que caracterizam a paisagem de Copacabana. Atenção: as áreas nos morros ocupadas pelas favelas não eram urbanas. Uma toponímia pode ser esclarecedora. A

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favela do Pavão-Pavãozinho no morro situado na divisa entre os bairros de Copacabana e Ipanema tem seu nome derivado da existência de aves, em especial pavões, na área. Aves que ali se encontravam pela ocupação dos morros por trabalhadores nos casarões localizados nas ruas. Isto antes da explosão de construções de edifícios com vários pavimentos nos anos 1940-50. Quando as primeiras casas foram construídas ali na futura favela por famílias de trabalhadores na construção civil que construíam os edifícios que desenhariam a paisagem atual do bairro de Copacabana, o aglomerado de casebres ficou conhecido pelas aves que ali estavam antes: o Pavão. Em seguida, a área contígua passa a ser ocupada. No inicio por uma quantidade menor de casas que aquelas situadas no Pavão. Daí o diminutivo: Pavãozinho. Essa relação dos primórdios da favela com a ocupação de caráter rural dos morros antes da urbanização intensiva do bairro é fenômeno recorrente em grande parte das favelas mais antigas nas grandes cidades brasileiras. Por isto não há nenhum jogo linguístico na nomenclatura da famosa favela da Rocinha situada entre os bairros da Gávea e São Conrado, também no Rio de Janeiro. Afinal, quando começou a ocupação pelos trabalhadores da construção civil da área o que se tinha ali eram roças realizadas pelos trabalhadores das famílias abastadas que moravam em grandes casarões do tipo maison. Favela então é fenômeno urbano indissociável da urbanização das cidades brasileiras de modo exponencial. Quanto mais áreas eram urbanizadas e ocupadas de modo formal mais atraíam trabalhadores e suas famílias para viverem próximos nas áreas do entorno não urbanizadas causando demandas futuras para a expansão da urbanização. Na altamente valorizada Zona Sul carioca, a favela do Pavão-Pavãozinho é exemplo da associação entre urbanização formal do bairro de Copacabana e a ocupação da favela e da inexorável tensão entre as morfologias das duas áreas (Figura 1).

Figura 1. Mapa do Pavão-Pavãozinho. Fonte Marzulo, 2005.

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2. De dentro pra fora e de fora pra dentro: a urbanização informal As favelas foram configurando uma particular forma urbana, a partir de demandas pela expansão da urbanização formal que iria se articular com a urbanização executada pelas próprias famílias em dinâmicas de melhoramento da área de suas habitações. Becos e vielas no interior das favelas vão aparecendo para ligarem os espaços de moradia entre si e à cidade formal. Energia elétrica e água são puxadas desde as redes da cidade formal para atenderem aos poucos e paulatinamente aos casebres das famílias das favelas. Desse modo, a favela se urbaniza. Um modo informal que, todavia, não deixa de ser interessante aos proprietários fundiários e agentes imobiliários ao permitir a moradia dos trabalhadores da construção civil próxima às áreas de expansão urbana e, logo, o custo da habitação incidindo menos no salário. Papel importante cumprem também as mulheres das favelas ao se constituírem como mão de obra para atividades domésticas nos apartamentos de classe média e mesmo burguesas dos novos bairros adensados pela ação da construção civil e do mercado imobiliário. Aliás, embora constitutiva das relações familiares brasileiras, as atividades domésticas só foram regulamentadas com direitos trabalhistas em 2013 e apenas em 2015 o conjunto dos direitos dos trabalhadores foi expandido ao trabalho doméstico. Esta favela clássica dos anos 1940 até os anos de 1960, diferente daquela seminal do início do século xx marcada pelas construções em adobe e telhados de capim santa fé, tem seus casebres construídos com sobras da construção dos edifícios e restos de outras atividades comerciais, em particular as latas de azeite usadas pelos restaurantes que serão adaptadas como telhados. A ocupação ao longo desse período se intensifica, porém em grande parte alternando densificação dos lotes com a expansão dos limites das favelas. Térreos, os casebres em geral tinham um padrão de ocupação com área no entorno para atividades de lazer, domésticas e mesmo agropastoris com pequenas hortas e animais, particularmente galinhas. Em muitos casos se encontrava um padrão morfológico particular com as casas situadas em círculo com as entradas voltas para um pátio interno. Disposição derivada da forte composição das favelas por afro-descendentes e, logo, da prática de cultos religiosos de origem africana. Tal morfologia ainda se encontra na disposição das casas nos chamados quilombos – espaços ocupados na origem por escravos libertos ou seus descendentes. Enquanto os moradores da favela verticalizavam as grandes cidades brasileiras ao mesmo tempo construíam seu espaço de moradia térrea com pátio, pequenas plantações e criação de animais de pequeno porte, em uma adaptação densificada e urbana do rancho pobre que caracterizava a população dependente da economia de subsistência no campo que migrou para a cidade. E abriam caminhos de ligação internos e com o traçado da cidade por becos de chão batido e muitas vezes após chuvas torrenciais comuns no clima tropical com a elevação do lençol freático com esgoto escorrendo entre as moradias. Becos estreitos de chão batido, esgoto a céu aberto, casebres construídos com madeiras e telhas de latas e lotes com animais domésticos e hortas constituem uma imagem clássica da favela brasileira de meados do século xx até os anos de 1970 cujos exemplares ainda se encontra hoje (Figura 2).

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Figura 2. Barracos no Núcleo Bandeirante, em Brasília. Fonte: Farkas, 1960.

3. Efeito alvenaria O intenso uso na urbanização das cidades da alvenaria entre as décadas de 1950-1970, com especial intensificação no final do período, tornou este material mais acessível em termos de custo e sua manipulação plenamente dominada pelos trabalhadores pobres da construção civil. Condições que associadas à diminuição do uso da madeira nas obras na cidade formal permitiram o emprego da alvenaria na favela. A partir dos anos de 1970, a favela se consolida com a produção de habitação em alvenaria em uma dinâmica intensa de transformação não apenas em termos tipológico, mas também morfológico. Em alvenaria, as habitações passam sistematicamente a ocuparem os limites dos lotes diminuindo paulatinamente o espaço no entorno para hortas e criação de animais. Esta densificação deriva da continuidade das migrações populacionais do campo e pequenas cidades para as grandes cidades e regiões metropolitanas, mas também do aumento significativo da reprodução vegetativa da população brasileira, particularmente das famílias mais pobres que predominantemente habitam as favelas. Embora as precárias condições urbanas, as famílias moradoras das favelas usufruíam dos restos da sociedade urbano-industrial alcançando melhores condições de vida (moradia, saúde, renda, trabalho) do que as existentes no campo. O rápido aumento das famílias e a chegada de novos contingentes populacionais do campo ou de cidades pequenas gera a necessidade de expansão das moradias. A densificação construtiva é, assim, concomitante a uma impressionante densificação populacional que altera a paisagem anterior da favela de barracos de madeira e zinco com áreas de criação de animais e pequenas hortas. Nesse novo momento, as crianças e adolescentes andam pelos becos acompanhados por seus cachorros domésticos, dando um ritmo cotidiano extremamente movimentado a vida nas PNUM 2016 379

favelas. Movimentação urbana que paradoxalmente desaparecia em muitos dos novos bairros e áreas residenciais dos extratos superiores da estrutura social brasileira, na medida em que o zoneamento de funções urbanas se consolidava a partir de uma ordem da cidade marcada pelos princípios do racionalismo. Na favela brasileira se encontra a animação urbana que se perdia na cidade formal, de maneira similar a narrada por Jacobs (2001) ao analisar a vida nos cortiços e áreas tradicionais na Nova Iorque do final dos anos de 1950. A favela se transforma materialmente com efeitos morfológicos, porém ainda mantendo a mesma ruptura na forma urbana com o tecido da cidade formal. Enquanto as moradias em alvenaria passam a ocupar os lotes em seus limites, os becos tem breve expansão para permitirem o acesso de automóveis e motos ao interior da favela. Os becos, antes vias de circulação unicamente peatonal, se alargam, particularmente nas áreas próximas ao tecido formal, possibilitando o acesso de veículos privados ao interior da favela, mesmo que limitado. No interior das favelas o acesso segue sendo exclusivamente peatonal. Este novo padrão morfológico de ocupação até os limites dos lotes por construções de alvenaria e a mudança dos antigos becos peatonais em vias de circulação veicular, transforma a vida urbana da favela e sua dinâmica cotidiana (Figura 3). Nas vias de maior uso, por conectarem o interior da favela ao tecido formal, constata-se a disputa e convívio entre motos, veículos e pedestres, enquanto os antigos espaços de convivência semi-privados nos pátios e jardins frontais das moradias desaparecem. O efeito dessa alteração morfológica leva ao uso dos becos peatonais no interior das favelas e as vias de circulação veicular nas fronteiras com a cidade formal como o espaço de uso público. E também configura as condições para a alteração posterior.

Figura 3. Beco entre casas de alvenaria. Fonte: Rocha, 2013.

4. Do domínio e difusão da tecnologia construtiva: a favela vertical e a o concreto armado Desde a proliferação da arquitetura moderna, em especial a construção de Brasília, no Brasil ocorre um impressionante desenvolvimento das técnicas construtivas para responder as necessidades criadas pelo PNUM 2016 380

modernismo. Particularmente no que se refere aos grandes vãos, cujo paradigma é o do edifício do MASP de Lina Bo Bardi de 1947 (1997), e as curvas de Oscar Niemeyer (2005), consagradas pelo desenho do conjunto dos edifícios públicos de Brasília. A construção de Brasília permitiu o desenvolvimento de tecnologias construtivas cuja difusão irá décadas depois incidir na paisagem da favela. Se a utilização da técnica do concreto armado tem impacto na construção da cidade formal, através de uma difusão que rapidamente deixa de estar restrito aos projetos modernistas se difundindo no conjunto da produção edificada no Brasil, o incremento de seu uso gerará a diminuição de seu custo. E um simultâneo processo cognitivo de controle do modo de fazer pelos trabalhadores da construção civil. Esse processo cognitivo de domínio das técnicas construtivas (Ferro, 2010), em geral negligenciado, apresenta-se como fator fundamental na melhoria das condições de moradia das favelas. Na medida em que a ação estatal de políticas públicas de habitação não existe ou é de remoção das famílias moradoras das favelas para conjuntos habitacionais gigantes e distantes da área urbana, a melhoria das moradias pela autoconstrução e aplicação dos domínios técnicos adquiridos na atividade profissional se torna a melhor alternativa para os moradores. Os pobres urbanos trabalhadores na construção civil moradores das favelas passam a empregar o concreto armado para a produção de área superior sobre as casas de alvenaria. Essa nova área criada pela laje de concreto recupera para o espaço doméstico o espaço de lazer e serviço que a densificação dos lotes derivado do aumento da população havia retirado. Ao mesmo tempo, oferece as condições materiais para a futura expansão das moradias decorrente da chegada à vida adulta das crianças e adolescentes do período anterior e consequentemente formação de novos núcleos familiares (Figura 4).

Figura 4. Favela verticalizada. Fonte: Rossi, 2012.

Grande parte do surgimento do mercado imobiliário no interior das favelas em muitas grandes cidades brasileiras ocorre pela recomposição dos núcleos familiares que cria um estoque de moradia nas favelas verticalizadas. Políticas recentes de regularização fundiária e urbanização, no particular contexto latinoamericano onde as políticas focais de um Estado mínimo se constituem como políticas sociais radicais, em favelas junto aos bairros dos extratos médios e superiores às transformam, pelo menos em suas áreas mais próximas aos bairros formais, em espaços com infraestrutura urbana, em particular com vias PNUM 2016 381

veiculares pavimentadas. Salvo exceções, porém, a morfologia urbana das favelas segue separada do traçado formal da cidade. A aglomeração de habitações pobres e térreas que foram uma das principais características da imagem da favela brasileira se transforma profundamente. A favela agora se verticaliza e tem intensificada sua densificação construtiva em ritmo ainda mais acelerado que a modificação anterior ao passar do casebre para a moradia em alvenaria. A mudança na paisagem da favela implica necessariamente em uma profunda mudança da paisagem urbana brasileira (Figura 5). Esta é a favela do início do século XXI: densa, em termos construtivo e demográfico, e verticalizada com um mercado imobiliário intenso.

Figura 5. Favela atual verticalizada. Fonte: Dana, 2011

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CRESCIMENTO PERIFÉRICO E PERIURBANO EM ITABIRITO-MG, ESTUDO DE CASO DO VETOR LESTE Alfio Conti, Débora Meirelles Professor do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da UFMG; Arquiteta e Urbanista Rua Paraíba, 697, Belo Horizonte/MG / Tel.: (31) 3409-8834 [email protected]; [email protected]    Resumo Este trabalho investiga o processo de crescimento e expansão urbana da cidade de Itabirito e elegendo como estudo de caso o vetor de expansão leste, analisa suas características, os processos em curso e busca desenhar alguns cenários de curto e médio prazo. A estrutura deste trabalho é dividida em quatro partes. A primeira parte analisa a cidade de Itabirito tratando as questões associadas ao sítio, à localização e à sua inserção dentro do aglomerado urbano de Ouro Preto, Mariana e Itabirito. A segunda parte investiga o processo de crescimento desde suas origens até o dia de hoje. A terceira parte investiga o crescimento atual da cidade, caracterizando o formato urbano e os vetores de expansão existentes. A quarta e ultima parte analisa detalhadamente, do ponto de vista morfológico e funcional o vetor de expansão leste e, como forma de conclusões, traça alguns cenários para o vetor leste e para a cidade de Itabirito como um todo. Palavras-chave: Cidades Médias; Crescimento Urbano; Vetor de Expansão.

   1) Itabirito, um centro emergente na região dos Inconfidentes O município de Itabirito pertence a Mesorregião Metropolitana de Belo Horizonte e à microrregião de Ouro Preto que é constituída pelos municípios de Itabirito, Ouro Preto, Mariana e Diogo de Vasconcelos, e insere-se na região denominada de Quadrilátero Ferrífero, famosa pelas reservas de minério de ferro. O município possui uma área de 549,22 km2 fazendo divisa com os municípios de Moeda, Brumadinho, Nova Lima, Rio Acima, Santa Bárbara e Ouro Preto, e a sede do município está a 848 metros de altitude. Itabirito possui, além do distrito sede, mais três distritos: São Gonçalo do Monte, Acuruí e São Gonçalo do Bação.

Segundo o último censo do IBGE de 2010, Itabirito tem um total de 45.848 habitantes, a maior parte deles moradores do distrito sede. A cidade possui hoje um centro bem definido, onde se concentram as atividades de comércio e os serviços mais sofisticados. O centro encontra-se em um processo de especialização e verticalização, com a saída paulatina do uso residencial que acaba se concentrando principalmente na zona pericentral, a qual, por sua vez, sofre um processo de transformação morfológica que se manifesta no preenchimento dos poucos vazios urbanos existentes, na substituição das antigas residências por novas de melhor padrão, e no aparecimento, em algumas de suas partes, de edificações residenciais de múltiplos pavimentos. Do ponto de vista funcional na zona pericentral, há a consolidação PNUM 2016 385

de alguns importantes subcentros lineares ao longo das ruas principais (Amorim Filho, Sena, 2005). As periferias contínuas se encontram em um processo de crescimento que se manifesta, nas suas franjas, através do crescimento horizontal, e há o aparecimento, na periferia descontínua, de loteamentos em formato de condomínios fechados para moradores com padrão de renda médio-alta e alta. A população de Itabirito cresceu com altas taxas de crescimento nos últimos vinte anos, tendo uma média de 1,81% ao ano entre a década de 1990 e 2000, e passando para uma média de 2,0% ao ano na década de 2000 a 2010.

Em termos de hierarquia urbana, Itabirito é considerado um centro emergente, colocando-se no limiar mais alto desta categoria com a possibilidade concreta de se tornar, em tempos breves, em uma cidade média propriamente dita (Amorim Filho, Rigotti, Campos, 2007). Sua economia, que produz o 5,94% do total da riqueza produzida dentro da microrregião de Ouro Preto, é baseada na indústria, principalmente na indústria ligada à mineração, mas o setor de comércio e de serviços vem-se tornando cada vez mais importante, constituindo uma base sólida em constante crescimento, garantindo e consolidando a polarização do seu entorno geográfico administrativo, chegando a extrapolar os limites municipais, com novas polarizações nos distritos e nas localidades próximas pertencentes ao município de Ouro Preto, tais como Coelhos, Amarantina e, em parte, Cachoeira do Campo.

2) Itabirito e o aglomerado urbano de Ouro Preto-Mariana e Itabirito As polarizações da cidade de Itabirito, como foram mencionadas, transpõem os limites municipais envolvendo distritos pertencentes ao município de Ouro Preto. Este feito sinaliza o aparecimento de importantes relações intermunicipais que tem sua transposição física na implantação de novos loteamentos e no crescimento dos distritos e das localidades com a ampliação da zona periurbana de Itabirito. Se isso é verdadeiro, e é suficiente percorrer a BR 356 de Itabirito até Ouro Preto, é verdadeiro também dizer que o mesmo acontece para a zona periurbana de Ouro Preto e de Mariana. Para estas últimas duas cidades, não fosse a inércia devida à topografia acidentada, a conurbação seria consagrada como uma realidade, entretanto, o espaço geográfico entre Itabirito e Ouro Preto, outrora predominantemente rural, está se transformando e urbanizando cada vez mais, de tal forma que se é audacioso pensar em um processo de conurbação entre Ouro Preto e Itabirito, pelas características do relevo após Cachoeira do Campo, na altura do Viaduto do Funil, é possível imaginar uma conurbação com baixa densidade entre Itabirito e Cachoeira do Campo. As razões são várias, entre elas vale destacar: o crescimento e alastramento da cidade de Itabirito e de Ouro Preto. Para esta última, a inexistência de áreas de expansão próximas do distrito sede, faz com que parte da população encontre no espaço regional entre Ouro Preto e Itabirito a maneira de resolver a questão da moradia; a existência de uma rede urbana formada por um número significativo de núcleos urbanos e distritos, de implantação antiga; a existência de uma rede viária que permite ainda rápidos deslocamentos e um relevo suavemente ondulado facilitando a ocupação. Este processo físico-morfológico de ocupação e de preenchimento do espaço geográfico em PNUM 2016 386

questão é sinal e conseqüência de um processo de ordem funcional e socioeconômico que corre paralelo e que precisa ser salientado. O que se observa é que as cidades de Itabirito, Ouro Preto e Mariana estão fortalecendo, cada vez mais, suas relações dentro de um processo de complementação funcional que precisa ser investigado mais a fundo. Os fluxos de mercadorias e pessoas ao longo da BR356, artéria viária que liga os três centros são, cada vez mais, fluxos cuja origem e destino é dentro da microrregião envolvendo as três cidades. Por isso, torna-se cada vez mais difícil analisar uma dessas cidades sem considerar as outras próximas, e a tese de que se possa falar de um aglomerado urbano já foi colocada por parte de Conti (2009, 2012).

3) Itabirito e seus vetores de crescimento O município de Itabirito tem tido um crescimento bastante elevado nos últimos anos e é especialmente a partir de 2005 que se acentua de forma significativa. Segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo de Itabirito, os loteamentos aprovados a partir de 2005 foram 19, sendo que a maioria deles nos últimos quatro anos (Figura 1).  

 Figura 1: Eixos de crescimento em Itabirito. Fonte: Prefeitura Municipal de Itabirito. Organizado por Débora Coelho. Dez., 2013.

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O mais importante eixo de expansão da cidade de Itabirito tem-se concretizado na direção leste em direção ao distrito de Acuruí e à divisa municipal com o município de Ouro Preto, no espaço polarizado pelo dinâmico distrito de Cachoeira do Campo e no qual se encontram os distritos de Santo Antônio do Leite, Glaura, Amarantina e um grande número de povoados (Figura 2).   

Figura 2: Vetor leste-sudeste de crescimento de Itabirito. Fonte: Prefeitura Municipal de Itabirito. Organizado por Débora Coelho. Dez., 2013.



   Neste vetor de expansão, concentram-se mais da metade dos novos loteamentos aprovados após 2005, atingindo um total de 10 em 16. O vetor se estrutura a partir de três eixos viários distintos, sendo estes: A Rua Antônia Augusta de Andrade que, por sua vez, estrutura o bairro Álvaro Maia; A Rua Dr. Francisco José de Carvalho que, por sua vez, estrutura o bairro São José; Nova rua paralela à BR 356 a partir do quilometro 58. PNUM 2016 388

 3.1) O primeiro eixo de expansão do vetor leste Os bairros Álvaro Maia e Itaubira, situados na porção mais ao oeste, constituem parte do primeiro eixo de expansão e estão localizados na margem direita da BR356 para quem se desloca de Ouro Preto em direção a Belo Horizonte. A implantação destes loteamentos remonta ao final da década de 1990 e início de 2000 e se distribuem geograficamente em sequência, constituindo um eixo perpendicular à rodovia e radial com relação ao centro da cidade (Figura 3).  



 Figura 3: Vista aérea com delimitação dos bairros do primeiro eixo de expansão do vetor leste. Fonte: Google Earth. Organizado por Alfio Conti. Dez., 2013.

   O bairro Álvaro Maia tem uso essencialmente residencial e a população moradora apresenta um perfil socioeconômico associado a grupos de alta renda. O bairro encontra-se ainda em fase de consolidação, apresentando uma tipologia de lotes de 12 metros de frente e 25 de comprimento. Vários lotes ainda não são ocupados e encontram-se várias residências ainda em fase de construção em diferentes estágios.

O bairro Itaubira tem uso predominantemente residencial, embora seja visível a presença de comércios e serviços de primeira necessidade, principalmente na Rua José Carlos de Oliveira, rua esta que é continuação da Antônia Augusta de Andrade, rua de maior importância no bairro. A população moradora deste bairro pertence a grupos de renda média e médio-baixa, o traçado do bairro é regular formando quadras compridas. Encontra-se em um processo avançado de consolidação e adensamento.

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Na porção noroeste deste primeiro eixo de expansão do vetor leste de Itabirito está sendo implantado o loteamento Assunção, em uma área considerada como zona de expansão, sendo esta ainda uma dos poucos vazios existentes no tecido urbano do distrito sede. O acesso ao bairro Quintas dos Inconfidentes se dá através do trevo considerado como o Acesso 2 da cidade de Itabirito. A implantação deste bairro remonta à década de 1970. Hoje em dia apresenta uso predominantemente residencial com a população moradora que tem um perfil socioeconômico associado a grupos de renda baixa. Nota-se também, na sua porção central, a presença de um processo de ocupação informal que, embora iniciado recentemente, evolui rapidamente conformando assim um dos primeiros assentamentos informais da cidade de Itabirito.

Considerando o primeiro eixo no seu conjunto, o que chama a atenção é a falta de bens de uso coletivo, serviços e comércios necessários para suprirem necessidades imediatas da população moradora que é obrigada a se deslocar aos bairros vizinhos ou ao próprio centro.

3.2) O segundo eixo de expansão do vetor leste O bairro principal desse eixo é o São José, que surgiu na década de 1970 com uma ocupação que ocorreu de maneira linear ao logo da Rua Dr. José Francisco de Carvalho, resultando na conformação atual do bairro.

Somente a partir do início de 1990, novos bairros começaram a ser implantados como é o caso dos bairros Monte Verde, Veneza, Pedra Azul e Floresta a oeste da Rua Dr. José Francisco de Carvalho e os bairros Liberdade e São Mateus a leste; todos estes com uma ocupação ainda em curso e pautada por grupos de renda médio-baixa (Figura 4). 

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 Figura 4: Vista aérea com delimitação dos bairros do segundo eixo de expansão do vetor leste. Fonte: Google Earth. Organizado por Alfio Conti e Débora Coelho. Dez., 2013.

 O bairro São José recebendo equipamentos urbanos importantes na área da saúde, educação e abastecimento, além abrigar usos comerciais e de serviços, tornou-se o centro desta parte da cidade.

O bairro Novo Itabirito, localizado na margem direita do bairro São José, próximo à BR356, teve início também na década de 1970, mas sua efetiva ocupação e expansão ocorreu a partir da década de 1990. A partir de então, o bairro começou a adquirir cada vez mais importância nesta parte da cidade, contribuindo de forma significativa para o crescimento deste vetor.

Atualmente três novos loteamentos foram implantados, e estão em processo acelerado de ocupação e consolidação e localizados de forma a dar continuidade ao tecido urbano do bairro São José.

Nesta região, a dotação das infraestruturas básicas é precária, especialmente no que diz respeito ao saneamento básico e a coleta de resíduos sólidos. A ausência de parte da rede de esgoto resulta evidente pelos lançamentos feitos diretamente no Córrego Criminoso cujas águas estão fortemente poluídas e pela degradação de suas margens com o depósito de lixo doméstico e bota-fora.

O transporte coletivo que atende esta região responde de forma satisfatória à demanda da população que se desloca diariamente em direção ao centro de Itabirito por trabalho ou para ter acesso aos bens de uso coletivos e institucionais que se encontram unicamente no centro da cidade.

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Este eixo se configura como uma parte importante do vetor de crescimento leste da cidade constituindo uma nova centralidade de fato, motivos pelo qual este local deve ser objeto de atenção, estudo, planejamento e investimentos por parte do poder público municipal.

 3.3) O terceiro eixo de expansão do vetor leste O terceiro eixo de expansão do vetor leste de Itabirito se estende ao longo da BR 356, que é uma importante via de ligação regional, conectando Itabirito à capital mineira e aos municípios da microrregião à qual pertence, principalmente Ouro Preto e Mariana. Seis loteamentos estão sendo implantados ao longo deste eixo a partir de uma rua implantada paralelamente à BR 356 a partir do Km 58.

Todos eles com exceção de um (condomínio Vale Imperial) se localizam na margem esquerda da BR 356 saindo de Itabirito em direção a Ouro Preto e estão ganhando uma conformação radial à via estruturadora que ainda encontra-se sem nome (Figura 5).

 Figura 5: Vista aérea com delimitação dos bairros do terceiro eixo de expansão do vetor leste. Fonte: Google Earth. Organizado por Débora Coelho. Dez., 2013.

   Os loteamentos da margem esquerda da rodovia somam um total de 1.262 lotes. O uso predominante é o residencial e é prevista sua ocupação por parte de grupos de renda média alta a alta. O acesso pode se dar também através do bairro Novo Itabirito por meio da Rua Érico Veríssimo, que dá em uma estrada municipal com pavimentação asfáltica; e pelo bairro Adão Lopes, por uma estrada de terra que fica no fim do bairro, ligando este ao loteamento/condomínio Caquende.

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É importante destacar que os novos loteamentos estão apontando para um crescimento em direção a São Gonçalo do Monte e Acuruí, ambos distritos de Itabirito. O loteamento/condomínio Vale Imperial, localizado à direita da rodovia possui um total de 238 lotes e tem uso residencial predominante.

Considerando que nesta parte de Itabirito, ao longo da rodovia, encontram-se a rodoviária, novos supermercados, a nova unidade de pronto atendimento da cidade, além de indústrias, restaurantes, casas de eventos e a provável nova sede do novo Fórum, pode-se dizer que o vetor leste de Itabirito está se tornando uma centralidade cada vez mais importante e estratégica para o crescimento urbano equilibrado de Itabirito.

4) Conclusões Itabirito é uma cidade extremamente dinâmica do ponto de vista do crescimento da sua mancha urbana, que ocorre de forma equilibrada, associando ao crescimento populacional a dotação de serviços e equipamentos urbanos e regionais. Para a cidade de Itabirito, é possível identificar a presença de alguns vetores de expansão urbana com características e forças diferentes onde se destaca o vetor leste que é aquele que mais cresce e que chama atenção pelo seu tamanho e complexidade; para o vetor leste os loteamentos implantados nos últimos anos chegam a um total de 11, somando 2310 lotes residenciais e 52 comerciais, com uma população estimada na ordem de dez mil novos habitantes, representando quase um quarto a mais da população total do município de Itabirito. Outro aspecto que chama atenção é a complexidade morfológica do processo de ocupação que levou à constituição de um vetor composto, como foi visto, de três eixos de expansão, cada um dos quais com características próprias, especialmente no que diz respeito ao perfil socioeconômico da população moradora. Nesse sentido, aponta-se que este vetor não apresenta um aspecto homogêneo, mas configura a presença de enclaves com perfis socioeconômicos diferentes. Assim, se os primeiros dois eixos de expansão se articulam morfologicamente e funcionalmente em volta do bairro São José, subcentro do distrito sede, e apresentam características quase parecidas, sendo compostos por loteamento com população pertencente a grupos de renda média a médio-baixa e em alguns casos baixa; o terceiro eixo se configura como um eixo cujos empreendimentos são destinados exclusivamente para população de renda média-alta a alta, e é neste terceiro eixo que irá se formar um novo subcentro de Itabirito. O fato de

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existirem ligações viárias muito frágeis entre os dois primeiros eixos e o terceiro, leva a crer que esta divisão socioespacial será mantida no futuro.   Referências Bibliográficas



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O processo de difusão urbana no espaço perimetropolitano de Belo Horizonte, o estudo de caso do espaço regional entre Itabirito e Ouro Preto. Alfio Conti, María Florencia Sosa, Amanda Andrade Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais Tel. 0055-31-34098834 [email protected], [email protected], [email protected]

Resumo O presente trabalho tem como objetivo investigar o processo de difusão urbana em curso no espaço regional entre as cidades brasileiras de Itabirito e Ouro Preto. Este espaço foi escolhido por ser um espaço dinâmico, com a presença numerosa de novas urbanizações resultado do processo de difusão urbana norteado pelo processo de crescimento de Ouro Preto, Itabirito e da Região Metropolitana de Belo Horizonte, e por ser um espaço regional estratégico, já que se trata do eixo Itabirito-Ouro Preto do aglomerado urbano de Ouro Preto, Mariana e Itabirito. O trabalho se compõe de seis partes: na primeira parte é feita uma contextualização do espaço em estudo dentro do espaço perimetropolitano de Belo Horizonte e dentro do aglomerado urbano de Ouro Preto, Mariana e Itabirito, na segunda parte é feita uma análise das características ambientais, morfológicas e funcionais associadas a este espaço, na terceira parte são investigadas as novas urbanizações com uma análise morfológico funcional, detalhando a tipologia e o papel que cada uma tem dentro do espaço regional em estudo, na quarta parte são analisados os processos em curso e as potencialidades existentes neste espaço, na quinta parte são apresentados alguns cenários para este espaço regional destacando a importância da elaboração de instrumentos urbanísticos e de planejamento que sejam capazes de compreender as características do espaço e os processos em curso para poder nortear um processo de desenvolvimento que seja equilibrado, na sexta e última parte é analisado o papel estratégico que este espaço possui para as cidades de Ouro Preto e Itabirito, apontando como seja necessário, para garantir um crescimento equilibrado para as duas cidades, estruturar um sistema de planejamento conjunto em âmbito intermunicipal.

Palavra-chave: difusão urbana, morfologia, espaço periurbano, aglomerado urbano.

1. Introdução É propósito desta investigação obter uma melhor compreensão do atual processo de difusão urbana que o espaço perimetropolitano de Belo Horizonte vem experimentando. Nesse espaço se apresentam tanto a difusão urbana sobre os espaços rurais como os processos de urbanização do campo, que foram facilitados pelas melhorias da infraestrutura viária regional melhorando a ligação com os centros urbanos próximos das regiões metropolitanas. Segundo Indovina (1998), o processo de difusão e dispersão territorial constitui uma forma diferente e mais PNUM 2016 395

ampla de construir inter-relações e interdependências; uma forma distinta de produção de “cidades”, afinal uma nova cidade. Esse fenômeno é relativamente recente no panorama urbano e regional brasileiro, e envolve cidades pertencentes a diferentes níveis hierárquicos, entre os quais se destacam aqueles concernentes às cidades médias1. Esse grupo de cidades estrutura espaços regionais complexos, formando sistemas urbanos com diferentes graus de complexidade e novos aglomerados urbanos, e organiza a estrutura urbana/regional necessária como suporte para que os processos de difusão urbana possam aparecer e se desenvolver, para mais além das regiões metropolitanas. Na realidade brasileira, e na mineira em particular, o fenômeno dos aglomerados urbanos, em geral, compostos pela associação de três ou mais centros geograficamente próximos entre si e pertencentes à categoria de cidades médias (Sá, 2001), é algo comum no espaço perimetropolitano (Conti, 2009; Conti, Pereira, 2013) e o fato de terem uma dimensão demográfica e socioeconômica parecida pode estimular o desenvolvimento de relações horizontais de complementariedade (Conti, 2009; 2012), o que chega a colocar em discussão, na escala urbana e regional, o formato tradicional de cidade, propondo -se como novos organismos urbanos; hipótese ainda mais plausível quando há um processo de difusão urbana nos espaços periurbanos estruturados pelos eixos viários de ligação entre as cidades (Conti; Pereira, 2013). Esses processos descritos levam à emergência de novas morfologias, que precisamos entender para responder aos novos problemas metropolitanos que com elas aparecem. Serão investigados neste trabalho os indícios do processo de difusão urbana, com ênfase na dimensão morfológica, no espaço periurbano entre as cidades de Ouro Preto e Itabirito as quais conformam o aglomerado urbano de Ouro Preto, Mariana e Itabirito e que fazem parte do espaço perimetropolitano de Belo Horizonte. Adota-se um processo dedutivo em etapas, abordando essas três escalas na analise. Para investigar o espaço periurbano entre Ouro Preto e Itabirito, utilizou-se um abrangente e exaustivo trabalho de campo suportado pelo Google Earth, pelo software ArcGIS e pelos bancos de dados disponibilizados pelo Laboratório de Geoprocessamento do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.

1A

respeito dessa questão, sugere-se a leitura do trabalho de Amorim Filho, Rigotti e Campos (2007) sobre os níveis hierárquicos das cidades de Minas Gerais.

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2. O espaço perimetropolitano de Belo Horizonte O espaço perimetropolitano de Belo Horizonte se compõe de cinco regiões com características específicas e peculiares; três delas apresentam uma estrutura urbana complexa, e duas se caracterizam por serem predominantemente rurais2 (Conti, 2009). A mais importante em dimensão e por apresentar um sistema urbano maduro e articulado é a Centro-Oeste, que apresenta um sistema urbano complexo, sustentado por uma importante rede de infraestrutura viária, com um número significativo de cidades médias que polarizam sub-regiões específicas. A segunda região em ordem de importância e de complexidade é a Leste-Sudeste, caracterizada por apresentar um conjunto de aglomerados urbanos que polarizam seu entorno imediato. Ao não possuir um caráter de homogeneidade, é difícil reconhecê-la como uma região específica, pois não é estruturada por um sistema urbano único senão pela existência de sistemas urbanos em formação, com diferentes graus de consolidação (Amorim Filho, 2007; Amorim Filho, Rigotti, Campos, 2007). A terceira é a Norte-Noroeste, que se distingue das outras por ter um menor número de cidades e um sistema urbano consolidado, mas mais simples, remetendo ao modelo christalleriano. As duas últimas regiões, a Norte e a Sudoeste, predominantemente rurais, são tratadas como regiões deprimidas principalmente em decorrência do isolamento físico-geográfico propiciado pela presença de acidentes geográficos difíceis de serem transpostos. É na região Leste-Sudeste que se encontra o aglomerado Ouro Preto, Mariana e Itabirito, objeto desse estudo. Ouro Preto e Mariana são as cidades principais (cidades médias propriamente ditas) e conformam o núcleo central do aglomerado urbano. Ouro Preto (considerada o centro principal do aglomerado) e Mariana são cidades próximas, separadas por aproximadamente 8 quilômetros e ligadas pela rodovia federal BR-356 (Rodovia dos Inconfidentes). Ao núcleo central soma-se o centro urbano de Itabirito (centro emergente que ocupa o limiar superior desse nível hierárquico), localizado a uma distância de 29 quilômetros de Ouro Preto. Do ponto de vista morfológico, o aglomerado tem uma conformação linear, sendo estruturado pela BR-356, ao longo da qual estão localizados os centros de Itabirito, Ouro Preto e Mariana, nessa sequência no sentido oeste-leste.

2A

respeito desse tópico, sugere-se a leitura do livro A zona perimetropolitana de Belo Horizonte, de Alfio Conti.

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3. O espaço periurbano entre Ouro Preto e Itabirito O espaço periurbano entre Ouro Preto e Itabirito desvenda as características e as dinâmicas associadas ao processo de difusão urbana em curso no espaço perimetropolitano. É o eixo mais dinâmico do aglomerado, servindo, assim, como referência para compreender a evolução e as configurações possíveis desse elemento morfológico-funcional dos aglomerados urbanos. Serão resumidamente apresentados os aspectos analisados ao investigar esse espaço, como explicação complementária que ajudam a compreender as mudanças experimentadas e que derivaram na atual conformação

morfológica:

os

limiares,

a divisão sub-regional,

as

condicionantes topográficas

e

geomorfológicas e a estrutura viária e os fluxos. Ao definir os limiares considerarou-se principalmente a presença de barreiras físico-geográficas (físicogeográfico), e as mudanças nas polarizações dos centros urbanos aos quais esse espaço e suas novas urbanizações fazem referência (geográfico-funcional) (Conti, 2009). Observando a Figura 1, percebe-se que se por um lado os limiares físico-geográficos são claramente marcados, por outro os limiares geográfico-funcionais são caracterizados pela escassa articulação regional, em decorrência da presença de ligações rodoviárias frágeis.

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Figura 1. Limiares, subdivisão regional e novas urbanizações.

Ao respeito das condicionantes topográficas e geomorfológicas, esse espaço regional é o coração do quadrilátero ferrífero, embora as minerações instaladas nele são periféricas. Compõe-se, do ponto de vista geomorfológico, de uma superfície até certo ponto homogênea, com ondulações suaves e a presença de morros arredondados, sem acidentes geográficos significativos, fator que facilita o processo de ocupação e urbanização desse espaço, se considerarmos que no seu extremo leste a cidade de Itabirito é limitada pela Serra das Serrinhas, e no oeste, Ouro Preto é enclausurada pelo Parque Estadual do Itacolomi e por um espigão da Serra do Espinhaço e Caraça. Foram traçadas quatro subdivisões regionais, com duas subdivisões internas, definidas graças à notável heterogeneidade na distribuição das novas urbanizações e sobre a rede viária. Partindo da mais importante: a sub-região A, caracterizada pelo espaço que se relaciona diretamente com a BR-356, é a estrutura central desse espaço regional, onde se encontram as maiores urbanizações e onde há,

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de fato, um centro polarizador, conformado pelas urbanizações de Cachoeira do Campo e Amarantina, constituindo o núcleo central do eixo. Temos também o espaço próximo de Ouro Preto (subdivisão A1), que por causa das condicionantes topográficas, não obstante a presença da BR-356, resulta ser quase vazio, tendo núcleos isolados, como Rodrigo Silva, Bocaina e Caieiras. A segunda, sub-região B, se articula diretamente com Itabirito através de uma ligação rodoviária municipal. A urbanização mais importante aqui é o distrito de São Gonçalo do Bação, pertencente ao município de Itabirito, que polariza esse espaço, atraindo a implantação de novas urbanizações e tornando-se a centralidade que dinamiza a sub-região. A terceira, sub-região C, é uma região deprimida com presença de poucas urbanizações. Possui a subdivisão C1, que se encontra estagnada com a presença do pequeno distrito de Miguel Burnier, pertencente a Ouro Preto. A última, sub-região D, se constitui como um espaço marginal dentro da região. Apresenta quase nenhuma urbanização e pouquíssimos acessos, sendo composta em boa parte por uma área de preservação e por vertentes com declividades significativas. Ao analisar a estrutura viária e os fluxos (Figura 2), temos a citada rodovia federal BR-356, que estrutura esse espaço na direção leste-oeste, marcando esse eixo e ligando as cidades de Itabirito e Ouro Preto e ao longo da qual há importantes urbanizações que se beneficiam dos fluxos de mercadoria e pessoas que a percorrem. Há também a rodovia estadual MG-030, que liga Itabirito às cidades de Rio Acima e Ouro Branco, e um conjunto de estradas municipais que forma uma rede capilar, ligando as novas urbanizações entre si e estas com as cidades aos vértices desse eixo.

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Figura 2. Fluxos e rede viária.

4. Analise morfológico funcional das urbanizações e as novas urbanizações A presença de numerosas novas urbanizações é a indicação mais clara do processo de difusão urbana nesse espaço. Um fator importante que impulsionou a urbanização desse espaço regional é a existência de uma estrutura de suporte composta de um conjunto de núcleos urbanos antigos e uma estrutura viária com formato dentrítico e capilar, com uma clara organização hierárquica; ao que se somam as características físicogeográficas favoráveis à implantação de assentamentos e a presença de duas cidades importantes às extremidades leste e oeste desse espaço regional.

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Figura 3. Tipologias das novas urbanizações.

Analisando as tipologias morfológicas das novas urbanizações (FRQW; CDUUDFHGR; VHFVOLU, 2005) (Figura 3), são encontradas cinco tipologias neste espaço:

‒ urbanizações, com 6 casos. Cachoeira do Campo, Amarantina, Santo Antônio do Leite, Glaura, Acuruí e São Gonçalo do Bação; todas originadas a partir de um núcleo urbano mais antigo que se complexificou e se inseriu em uma nova lógica regional. São entre as tipologias das novas urbanizações aquelas com maior complexidade e com uma importância que transcende a mera dimensão física, pois operam e conduzem um processo de dinamização do espaço ao seu redor.

‒ assentamentos pontuais, com 15 casos. Tipologia presente de forma difusa em todo o espaço regional. Há de recente implantação, localizados próximo das urbanizações; e de mais antiga implantação, localizando-se a uma distância de cinco a 10 quilômetros das urbanizações, como é o caso de Engenheiro Correia, Bocaina, Rodrigo Silva, São Bartolomeu, Soares, Maracujá e Coelhos; e assentamentos pontuais localizados perto de Itabirito, como São Gonçalo do Monte e Cruz das Almas, constituindo um segundo anel de novas urbanizações do espaço periurbano de Itabirito, após aquele constituído pelos agregados;

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‒ novos assentamentos, com 16 casos. Essa tipologia não é difusa uniformemente no espaço, mas geralmente aglutina-se às urbanizações. Assim, cinco estão localizados juntos a Cachoeira do Campo, e cinco junto a Acuruí. Os seis remanescentes continuam a mesma lógica, três deles sendo próximos de urbanizações: Glaura, Amarantina e São Gonçalo do Bação; e três próximos de assentamentos pontuais: Bocaina, Maracujá e Cruz das Almas;

‒ agregados, com 3 casos: Bação, Portais e Chaparral, todos próximos da cidade de Itabirito, constituindo um primeiro anel de novas urbanizações;

‒ mutações, com um caso, Miguel Burnier, sustentada pela presença de minerações ao seu redor. Não foram encontrados casos das tipologias de filamentos e de agregações lineares. Com relação à análise da distribuição, parece claro como as novas urbanizações ocupam pontos estratégicos no espaço regional, tornando-se os elementos que definem a qualidade desse espaço e suas dinâmicas.

Figura 4. Diagrama das polarizações e das centralidades.

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Os espaços periurbanos das cidades às extremidades do eixo apresentam uma diferenciação clara entre eles: para Ouro Preto esse espaço é quase vazio, em decorrência, muito provavelmente, das adversas condicionantes topográficas. Já o espaço periurbano de Itabirito é diferente, por ser ocupado por agregados, formando um primeiro anel de novas urbanizações no espaço periurbano imediato e por um segundo anel, formado por assentamentos pontuais e um novo assentamento. As condicionantes topográficas são, nesse caso, favoráveis à implantação de novos empreendimentos, mas assim como Ouro Preto há a presença de um espaço vazio, sem novas urbanizações e da mesma dimensão daquele de Ouro Preto, com a diferença de que nele se encontram usos comerciais ao longo da rodovia. Entende-se esse espaço vazio como um espaço amortecedor que cria uma descontinuidade entre o espaço periurbano imediatamente dependente das cidades e o centro do eixo, mas não se entende ainda o motivo da existência desse espaço, a razão de encontrar-se ainda sem novas urbanizações. Analisando a distribuição, serão resgatados esses espaços periurbanos das duas cidades, pois exercem um papel importante e estratégico, conforme demonstrado no diagrama da Figura 4. A diferença entre os espaços periurbanos imediatos é a primeira e talvez única discrepância da simetria que ocorre nesse espaço ao longo da BR-356, simetria que acaba sendo reforçada pela presença desses dois espaços de amortecimento. A estrutura central se compõe de um centro principal, a urbanização de Cachoeira do Campo, e novas urbanizações que orbitam em volta dela, organizadas em dois anéis, que mantêm uma relação equidistante entre o centro e o primeiro deles, e entre este e o segundo. O primeiro anel é composto em sua maioria de novas urbanizações importantes, enquanto o segundo é composto por urbanizações menores, nas quais domina a tipologia dos assentamentos pontuais. Essa distribuição, estruturada por estradas pavimentadas, remete à ideia de um sistema urbano em miniatura e reforça mais ainda a definição diagramática dos eixos que possuem um centro dinâmico. Outro padrão que chama a atenção na distribuição das novas urbanizações nesse espaço diz respeito às urbanizações de Acuruí e São Gonçalo do Bação, que, afastadas da BR-356 e ao mesmo tempo ligadas a Itabirito, possuem uma localização simétrica entre si com relação à BR-356, ocupando e polarizando porções periféricas do espaço regional de estudo. As centralidades (Figura 5) organizam esse espaço regional de forma marcante. Identificou-se uma centralidade multifuncional, dividida entre multifuncional complexa (Cachoeira do Campo), e multifuncional simples (Amarantina). Ambas possuem, além do uso residencial, uma base econômica importante de comércio e serviços, com um grau de sofisticação que transcende a dimensão da urbanização, gerando uma polarização, associada a um processo de dinamismo espacial com a criação de novas urbanizações no seu entorno. Ambas as centralidades, pela proximidade espacial, estão em processo de conurbação, com a perspectiva de formarem uma única grande centralidade multifuncional. Aparecem de uma forma difusa na

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maioria do espaço regional centralidades residenciais que a causa das amenidades que possuem, como a dotação de comércio e serviços de primeira necessidade e as condicionantes ambientais favoráveis, atraem novas urbanizações ao seu redor, na maioria das vezes no formato de condomínios fechados.

Figura 5. Centralidades e subdivisão regional.

5. Os processos em curso e os possíveis cenários Esse espaço urbano possui vários processos em curso: a continuação do processo de difusão urbana; o processo de complexificação das centralidades existentes com a incorporação de usos comerciais e de serviço cada vez mais sofisticados; com um processo de conurbação entre as duas centralidades, que poderá desenvolver uma única centralidade multifuncional complexa, que irá adotar um formato linear; com um processo de adição de novas urbanizações. As centralidades residenciais poderão continuar seu processo de crescimento por adição de novas urbanizações, com a possibilidade de uma sofisticação do setor de comércio e serviço para poder atender a

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população residente. Esse processo tem uma possibilidade maior de acontecer nas centralidades residenciais autônomas e isoladas, como São Gonçalo do Bação e Acuruí. Outro processo em curso é a transformação do tipo de moradia, com a passagem de moradia temporária (casa de veraneio) para moradia definitiva. Com relação aos espaços de amortecimento descritos, para Ouro Preto é provável que continuem a permanecer como tal já que é gerado pelas características físico-geográficas, enquanto que para Itabirito é possível o desenvolvimento de um processo de adensamento e sofisticação de usos comerciais e de serviços já presentes, sem a necessária implantação de novas urbanizações. Com relação ao processo de difusão urbana já mencionado, é necessário dizer que ele é direcionado e sustentado por agentes internos, caracterizados por grupos de interesses econômicos associados às famílias locais, incluindo-se comércio e serviços, destacando-se o ramo imobiliário e as atividades de suporte ao setor da construção civil. Há também evidências claras de um processo de segmentação e segregação socioespacial, notável pela existência de lotes de condomínios fechados recém-implantados, com residências ocupadas por famílias de renda média alta a alta; lotes de parcelamentos, com residências ocupadas por famílias de renda média alta a média; lotes de parcelamentos ou ocupações antigas, com residências ocupadas por famílias de renda média a baixa, localizados nas áreas centrais das urbanizações e dos assentamentos pontuais mais antigos. 6. Conclusões Esta investigação mostra que se trata de um espaço fruto do processo de difusão urbana na escala do aglomerado urbano e na escala do espaço perimetropolitano de Belo Horizonte. De importância clara se se considera seu papel estratégico para o aglomerado urbano, particularmente para as cidades que estão nas extremidades deste eixo. O crescimento se dá através da espacialização de perfis específicos de moradores em decorrência da presença de produtos imobiliários específicos. A lógica de implantação das novas urbanizações é clara e atrelada à presença de urbanizações mais antigas, que funcionam como elementos catalizadores. Os cenários que se abrem para esse espaço indicam como elemento comum a continuação do processo de ocupação e difusão urbana, com a implantação de novas urbanizações e a concreção da tendência das centralidades multifuncionais se conurbarem e virarem uma única grande centralidade linear multifuncional na parte central do eixo, ao longo da BR-356 como elemento estruturador, atraindo usos e funções mais sofisticadas, principalmente associadas ao setor do comércio e dos serviços.

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Cabe definir, entretanto, de que maneira esse processo irá ocorrer, já que hoje em dia, acontece incorporando lógicas estritamente associadas ao livre mercado, com a produção de arranjos que poderiam ser potencializados se houvesse uma política conjunta por parte das duas administrações municipais que pretenda dotar esse espaço de melhores infraestruturas viárias e de transporte, de uma rede de bens de uso coletivos que fosse hierarquizada e pensada a partir das caraterísticas e das demandas das novas urbanizações. Diante dessa situação, torna-se urgente a elaboração de novos instrumentos de planejamento que possam ultrapassar a visão incorporada nos planos diretores em vigor, que se focaliza e concentra no centro urbano principal e rotula o espaço em análise como periférico, um espaço de divisa entre os dois municípios, e por isso algo secundário. Incorporar essa nova visão significa entendê-lo como um espaço central, dentro de estratégias político-administrativas locais que deveriam incorporar o âmbito regional ou intermunicipal como âmbito de atuação compartilhada, já que esse espaço regional, além de ser dotado de um caráter especifico, tem e terá cada vez mais responsabilidade para o futuro das cidades de Ouro Preto e Itabirito. Referências bibliográficas Amorim Filho O (2007) A morfologia das cidades médias. Goiânia: Vieira. Amorim Filho O, Rigotti J, Campos J (2007) Os níveis hierárquicos das cidades médias de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial, PUC Minas, Belo Horizonte, CAMINHOS de Minas (2015) Disponível em: . Acesso em: 12 nov. Conti A (2009) O espaço perimetropolitano de Belo Horizonte: uma análise exploratória, 625 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Departamento de Geografia, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. Conti A (2012) New Urban Formats: the Challenge of Urban and Regional Planning in the East Southeast Part of Belo Horizonte’s Perimetropolitana Area. In: INTERNATIONAL PLANNING HISTORY SOCIETY CONFERENCE, 15. São Paulo. Proceedings… Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2016. Conti A, Pereira A (2013) Espaço periurbano e novas urbanizações: a análise preliminar do caso de Conselheiro Lafaiete, Congonhas e Ouro Branco in ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 15, Recife,

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Mudança do ambiente térmico em Guimarães (1984-2014): o impacte da urbanização difusa Catarina Pinheiro, Maria Manuela Laranjeira, Miguel Bandeira Departamento de Geografia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho Campus de Azurém, Guimarães, 253 510 560 [email protected]

Resumo A questão ‘urbana’ assumiu uma relevância sem precedentes no século XXI, não só pela crescente área e população, mas sobretudo pelos impactes da urbanização sobre o ambiente, que se manifestam da escala local à global (Weng, 2011). A análise da urbanização, enquanto padrão e processo, constitui uma temática central da geografia e impulsionou a investigação alicerçada na deteção remota, que possibilita uma perspetiva única sobre a expansão urbana e a mudança dos usos do solo, considerando a visão sinótica e repetitiva do território que faculta. A urbanização implica a conversão de áreas naturais em superfícies impermeáveis antrópicas, com maior capacidade de armazenamento de calor, onde a evaporação é muito reduzida e a transpiração não se processa, resultando no aumento significativo das temperaturas de superfície (Ts). Este fator contribui para o sobreaquecimento do ar nas áreas urbanas (Kuttler, 2008) – um dos problemas ambientais mais relevantes da atualidade. Neste estudo avaliou-se o efeito da urbanização difusa sobre o ambiente térmico em Guimarães, com base no arquivo do satélite Landsat, entre 1984 e 2014. Decorridos 30 anos, verifica-se uma diminuição generalizada da vegetação, associada a: aparecimento de novos eixos viários; expansão da cidade de Guimarães; crescimento de Silvares e consolidação do núcleo urbano de Pevidém; e, dispersão urbana, nas áreas exteriores ao perímetro urbano. Esta transformação na superfície/território refletiu-se de forma inequívoca no aumento disseminado de Ts, ocorrendo as mudanças mais acentuadas fora do perímetro urbano. As condições de calor passaram a ser dominantes no ambiente térmico de Guimarães, originando um padrão complexo e interconectado de Ts elevadas (área de calor moderado e acentuado) que, para além de alienar a metáfora da ‘ilha’ de calor urbano superficial, traduz ambientalmente o fenómeno da metamorfose da ‘cidade para o urbano’, de Françoise Choay.

Palavras-chave urbanização difusa; deteção remota; ambiente térmico; temperatura de superfície; Guimarães

Introdução Guimarães apresenta, segundo Portas (2012), um modelo singular de urbanização, pois “é, por um lado, uma cidade canónica de matriz medieval e, por outro, parte maior de uma região urbanizada de base industrial, também já secular” (p.13). Nos últimos 30 anos verificou-se a intensificação da urbanização difusa, resultado do processo de crescimento por extensão-agregação, a partir dos núcleos tradicionais e ao longo das infraestruturas viárias, e do processo de crescimento por dispersão, nas áreas de transição urbano-rural (Ribeiro e Ferrão, 2014). A atual extensão territorial e complexidade deste fenómeno desafiam, por isso, cada vez mais o conceito tradicional de cidade, que “de centrípeta passou a centrífuga (…), de coesa e contínua passou a difusa e fragmentada” (Domingues, 2010, 59). PNUM 2016 409

A questão ‘urbana’ assumiu uma relevância sem precedentes no século XXI, não só pela crescente área e população, mas sobretudo pelos impactes da urbanização sobre o ambiente, que se manifestam da escala local à global (Weng, 2011). Com efeito, a urbanização implica a conversão de áreas naturais em superfícies impermeáveis antrópicas, com maior capacidade de armazenamento de calor, onde a evaporação é muito reduzida e a transpiração não se processa, contribuindo para o aumento significativo das temperaturas de superfície (Ts). A elevação de Ts associada às superfícies artificiais constitui um dos fatores responsáveis pelo sobreaquecimento do ar nas áreas urbanas (Kuttler, 2008) – um dos problemas ambientais mais relevantes da atualidade. A análise da urbanização, enquanto padrão e processo, constitui uma temática central da geografia e impulsionou a investigação alicerçada na deteção remota, que possibilita uma perspetiva única sobre a expansão urbana e a mudança dos usos do solo, considerando a visão sinótica e repetitiva do território que faculta. Trata-se de ‘ver’ as áreas urbanas tal como Portas (2012) expressa – não só de cima mas por inteiro: cidade, entre-cidades e campos. Nesta sequência, no presente estudo avaliou-se o efeito da urbanização difusa sobre o ambiente térmico em Guimarães, com base no arquivo do satélite Landsat, entre 1984 e 2014.

Dados e Metodologia Este estudo foca-se na área urbana de Guimarães. Esta foi definida a partir das freguesias classificadas como ‘Área Predominantemente Urbana’ (APU), pelo Instituto Nacional de Estatística em 2014, que intercetam o perímetro urbano definido pela Câmara Municipal de Guimarães em 2010, às quais se acrescentou a freguesia de São João de Ponte, também classificada como APU (Figura 1). Selecionaram-se duas imagens da mesma estação do ano – 22/07/1984 (Landsat 5 TM) e 9/07/2014 (Landsat 8 OLI) –, de modo a minimizar diferenças na inclinação do Sol, condições atmosféricas (baixa cobertura de nuvens) e estado fenológico da vegetação. Estas imagens foram georreferenciadas para o sistema de coordenadas ETRS89_Portugal_TM06.

Figura 1. Área urbana de Guimarães em 1984 e 2014

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Para extrair Ts foi necessário recalcular os valores de radiância espectral no sensor a partir do número digital dos pixéis da banda do infravermelho térmico – banda 6 do Landsat 5 TM e banda 10 do Landsat 8 OLI. Posteriormente, e sob o pressuposto de uma emissividade uniforme, converteram-se os valores de radiância espectral em Ts. Para estas operações foram seguidos os procedimentos descritos por Chander e Markham (2003), no caso do Landsat 5 TM, e em USGS (2013), para o Landsat 8 OLI. O NDVI (Normalized Difference Vegetation Index) foi derivado a partir das bandas do infravermelho próximo (IVP) e do vermelho (V), segundo a equação NDVI= (dIVP-dV)/ (dIVP+dV), em que dIVP e dV correspondem, respetivamente, aos números digitais associados a cada pixel das bandas 4 e 3 do Landsat 5 TM, e das bandas 5 e 4 do Landsat 8 OLI. Para tornar possível a comparação multitemporal, os valores de NDVI e de Ts foram normalizados, em função do valor mínimo e do valor máximo na área de estudo (Carlson e Arthur, 2000). Utilizando o NDVI normalizado (N*), a fração de vegetação (Fr) foi calculada como Fr= (N*)2. Fr traduz a percentagem de vegetação ao nível do solo numa determinada área (como, por exemplo, um pixel), com base na sua projeção vertical (Liang et al., 2008). Assim, quando um pixel é apenas composto por vegetação, Fr=100%. De seguida, as Ts normalizadas (que variam de 0 a 1) foram dividas em cinco classes, de modo a caracterizar o ambiente térmico, do seguinte modo: 0 a 0,2 – área de frescura acentuada (classe 1); 0,2 a 0,4 – área de frescura moderada (classe 2); 0,4 a 0,6 – área mediana (classe 3); 0,6 a 0,8 – área de calor moderado (classe 4); e, 0,8 a 1 – área de calor acentuado (classe 5), (Fang, 2015). Esta classificação do ambiente térmico permite avaliar o efeito da ilha de calor urbano superficial, servindo de base para quantificar as mudanças que ocorreram entre 1984 e 2014. Aplicando a técnica de diferenciação de imagens (Lu et al., 2004) identificaram-se as áreas onde nos últimos 30 anos ocorreram as mudanças de maior magnitude. Neste sentido, as diferenças em Ts entre os dois anos considerados foram calculadas com base na classificação ordinal atribuída anteriormente; assim, se a mudança se processar de valores muito baixos de Ts (classe 1) em 1984 para valores muito altos de Ts (classe 5) em 2014, o valor da tendência será igual a 4 (5-1). Utilizando este procedimento são possíveis nove valores de tendência, variando entre -4 e 4. Estes valores foram posteriormente agrupados em três grandes tendências, designadamente de grande diminuição (de -4 a -2), pequena variação (de -1 a 1) e grande aumento (de 2 a 4), de acordo com Chen et al. (2016). O grau de associação espacial das classes que caracterizam o ambiente térmico foi determinado para 1984 e 2014 através da análise Hot Spot (Getis-Ord Gi*), de modo a identificar clusters espaciais de valores elevados (hot spots) e de valores baixos (cold spots) estatisticamente significativos, num raio de 1150m. De acordo com o processo estatístico Incremental Spatial Autocorrelation esta é a distância a que os processos espaciais que promovem a clusterização na área de estudo são mais significativos.

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Resultados e Discussão Na área urbana de Guimarães, em 1984, destacam-se três áreas onde a cobertura de vegetação é muito reduzida (Figura 2): o núcleo tradicional da cidade (centro da área de estudo), o núcleo industrial de Pevidém (limite SW da área de estudo), e em São João de Ponte (setor N da área de estudo), localizado no exterior do atual perímetro urbano. Já em 2014 verifica-se uma diminuição generalizada da vegetação (Figura 2), em clara associação com (i) o aparecimento de novos eixos viários, (ii) a expansão da cidade de Guimarães para N, S e W, (iii) o crescimento de Silvares (junto ao limite NW do perímetro urbano) e a consolidação do núcleo urbano de Pevidém, e (iv) a dispersão urbana, nas áreas exteriores ao perímetro urbano, de que se destaca a freguesia de São João de Ponte.

Figura 2. Fração de vegetação em 1984 e 2014

O contraste térmico, verificado em 1984, entre os núcleos urbanos mais densos (caracterizados pelas áreas de calor moderado e acentuado) e o resto da área em análise (mais fresca), esbateu-se consideravelmente devido à urbanização difusa, decorridos trinta anos (Figura 3).

Figura 3. Ambiente térmico superficial em 1984 e 2014

A área urbana de Guimarães perdeu importantes ‘ilhas’ de frescura e o ambiente térmico passou a ser dominado pelas condições calor. Esta mudança traduziu-se, em 2014, no predomínio da classe mediana de calor em toda área de estudo, em detrimento da maior representatividade da classe de frescura moderada registada em 1984 (Figura 3). Além disto, o processo de urbanização difusa originou um

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padrão complexo e interconectado das áreas de calor moderado e acentuado (hot spots), por oposição ao modelo clássico da ‘ilha’ de calor urbano superficial, bem percetível em 1984 (Figuras 3 e 4).

Note-se, porém que a densificação da vegetação nas áreas florestais, em particular no monte da Penha (setor E da área de estudo), contribuiu localmente para a diminuição de Ts (Figura 3) e individualização de um cluster de frescura (cold spot; Figura 4).

Figura 4. Associação espacial de Ts (classes do ambiente térmico superficial)

As constatações anteriores tornam-se ainda mais evidentes ao observar-se a Figura 5. O processo de urbanização, entre 1984 e 2014, traduziu-se de forma inequívoca no aumento disseminado de Ts, sendo nas áreas de expansão, sobretudo as exteriores ao perímetro urbano, que se denotam as mudanças mais intensas (grandes aumentos) no efeito da ‘ilha’ de calor urbano superficial. Estas constituem áreas críticas para o planeamento urbano, na medida em que sofreram uma agravada degradação do ambiente térmico.

Figura 5Intensidade da mudança no ambiente térmico superficial entre 1984 e 2014

Notas Conclusivas Na área urbana de Guimarães verificou-se, entre 1984 e 2014, uma diminuição generalizada da vegetação, associada a: aparecimento de novos eixos viários; expansão da cidade de Guimarães;

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crescimento de Silvares e consolidação do núcleo urbano de Pevidém; e, dispersão urbana, nas áreas exteriores ao perímetro urbano, de que se destaca a freguesia de São João de Ponte. Esta transformação na superfície/território refletiu-se de forma inequívoca no aumento disseminado de Ts. Em 30 anos, as condições de calor passaram a ser dominantes no ambiente térmico, originando um padrão complexo e interconectado de Ts elevadas que, para além de alienar a metáfora da ‘ilha’ de calor urbano superficial, traduz ambientalmente o fenómeno da metamorfose da ‘cidade para o urbano’, de Françoise Choay. O caso paradigmático da urbanização de Guimarães sempre constituiu um claro desafio para os modelos clássicos de planeamento e ordenamento do território assentes na dicotomia urbano (cidade) rural (campo). Esta dicotomia também não é evidente em termos ambientais (climáticos), dado que a urbanização difusa conduz a um ambiente térmico muito distinto do modelo tradicional, em que as ‘ilhas’ de calor apresentam um centro bem definido, circunscrito por áreas mais frescas. Na realidade, em Guimarães a transição espacial entre as condições de calor moderado e acentuado e as condições de frescura é feita através de áreas com características medianas (Figura 3) que, entre 1984 e 2014, passaram a ocupar uma grande parte do território analisado (de 27,9% para 50,3%), atenuando por isso mesmo os contrastes térmicos que promovem as trocas convectivas de calor entre áreas quentes e frescas. Por consequência, a regulação climática neste território tem vindo a enfraquecer, estando cada vez mais dependente da permanência da ‘ilha’ de frescura acentuada do monte da Penha (Figura 3). As opções de planeamento a definir para as áreas com ambiente térmico mediano irão determinar até que ponto estes locais se tornarão mais frescos ou mais quentes no futuro. Entre outros aspetos, salienta-se a implementação de espaços verdes (localização e tipologia). Com efeito, a localização peferencial dos espaços verdes públicos no perímetro urbano (cerca de 57,4%) deixou até à data o restante território municipal com uma clara situação deficitária, sendo que as áreas que exibem uma maior carência “são aquelas que se encontram em pleno processo de expansão urbana, não obstante a recente criação de novos parques urbanos (concluídos em 2015)”, (Macedo, 2016,63). Em suma, os resultados deste estudo vêm reforçar a asserção de Portas (2005, 15) de que “não faz sentido a preocupação tradicional com os Perímetros Urbanos, apesar das leis insistirem em fazê-los nos PDM´s”, particularmente ao se constatar que as mudanças mais significativas no ambiente térmico ocorreram fora desta delimitação administrativa nos últimos 30 anos, no território que fica “entre-cidades”.

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A Dança das Densidades no Contexto do Crescimento Urbano Maria do Rosário Jorge, Luís Vicente Baptista, João Pedro Nunes, Nuno Neves CICSNOVA, Faculdade Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa Av. de Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa-Portugal Telefone/fax: 00 351 217908300 (ext.1218) - 00 351 217908308 [email protected];[email protected]; [email protected]; [email protected]

Resumo O centro histórico da cidade de Lisboa, densamente povoado no final do século XIX e grande parte do século XX, perde a sua importância demográfica e a função residencial, que passa progressivamente para novas áreas do município. A dinâmica de crescimento urbano vai-se impondo, quer à volta do centro tradicional quer ao longo dos principais eixos rodoviários e ferroviários. Na segunda metade do século XX, a cidade de Lisboa sofre um decréscimo demográfico acentuado, acompanhado do envelhecimento da sua população, da incapacidade de fixação de jovens e de rejuvenescimento de áreas residenciais. Paralelamente, o processo de metropolização da região de Lisboa intensifica-se e aumentam as densidades, populacionais e da área construída, nos restantes concelhos da Área Metropolitana. O objectivo desta comunicação consiste em identificar as mudanças das densidades, populacional e de edifícios na cidade de Lisboa e na Área Metropolitana, medindo-as e localizando-as no espaço e no tempo da génese e consolidação do território da aglomeração, discutindo o modo como essas mudanças resultam de factores económicos, sociais e políticos, mas também as suas consequências sobre a morfologia urbana e a ocupação do território. Desde modo, a partir dos dados dos recenseamentos da população e habitação do Instituto Nacional de Estatística, identificam-se períodos de crescimento da cidade de Lisboa, e respectiva distribuição da densidade de edifícios e populacional, e analisa-se o processo de metropolização, que resulta da complexificação da divisão social e espacial do trabalho e se manifesta morfologicamente na territorialização de habitação, quer sob a forma de grandes conjuntos habitacionais, compostos por imóveis com um elevado número de alojamentos e de ocupantes, quer sob a forma de uma ocupação pouco estruturada em termos urbanísticos e de habitação que ainda cresce em extensão e em altura. A identificação de processos simultâneos de densificação e desdensificação animam a metrópole numa dança de densidades que ajuda a explicar as reconfigurações morfológicas e sociais resultantes do crescimento urbano.

Palavras-chave Área metropolitana, densidade populacional e de edifícios, morfologia urbana, suburbanização.

Dinâmicas demográficas e morfologia urbana: uma análise da área metropolitana de Lisboa Durante a segunda metade do século XX, muitos autores estudam os processos de urbanização, suburbanização e metropolização, analisando modelos de interpretação da estrutura da cidade, o declínio das cidades centrais e o surgimento de outros centros urbanos, salientando a crescente pluralidade territorial que caracteriza os subúrbios metropolitanos, caracterizando o desenvolvimento urbano e a PNUM 2016 417

reestruturação regional, identificando práticas e representações do espaço urbano e suburbano, compreendendo a cidade na sua pertença a uma rede global. As mudanças dos territórios metropolitanos podem ser analisados como resultado da sobreposição de três tipos morfológicos de crescimento: a periurbanização (dilatação progressiva das coroas externas e ramificação tradicional dos sistemas urbanos, com redução tendencial dos núcleos centrais), a difusão reticular (tecidos mistos residenciais e produtivos – industriais, terciários, agro-industriais, turísticos por força de uma descentralização metropolitana de raio alargado) e a rurbanização (crescimento a partir de estruturas rurais pré-existentes (Pereira, 2004). As mudanças nas infra-estruturas de comunicação e transporte favoreceram o surgimento de novos espaços de trabalho nos territórios metropolitanos. O aumento da mobilidade altera os critérios de localização das actividades ligadas à habitação, à indústria, aos serviços, ao comércio e aos equipamentos. Nas áreas metropolitanas surgem estruturas de back-office, sedes de empresas, universidades, laboratórios, espaços industriais de ponta, campos de golfe, grandes superfícies comerciais e lugares de acumulação e distribuição de mercadorias. Adicionalmente, emergem novas exigências de força de trabalho para manter e apoiar estas actividades, ou seja, as estruturas produtivas procuram localizações mais excêntricas que são acompanhadas por estruturas de apoio também elas geradoras de trabalho. Todavia, a cidade continua a atrair as actividades económicas que marcam os símbolos e as estruturas da global city (Sassen, 1991), que são simultaneamente as mais geradoras de emprego e serviços, como os bancos e os serviços financeiros, as sedes das grandes empresas, as grandes universidades, as empresas de tecnologia, publicidade, advocacia, as sedes e filiais de organismos e instituições internacionais. A análise da distribuição e da densidade de populações e de actividades é um contributo fundamental para qualquer um dos temas referidos. Na cidade e na região metropolitana de Lisboa, o estudo retrospectivo das densidades e das dinâmicas da distribuição da população no território permite identificar diferentes fases do ciclo de vida da cidade que, neste artigo são analisadas a partir, por um lado, dos dados dos recenseamentos da população e da habitação e, por outro lado, de diferentes contributos de autores como Matias Ferreira (1987), Baptista (1994), Ferreira (2004), Pereira (2004) e Nunes (2011). A escala da densidade de edifícios, definida a partir da análise do número de edifícios construídos antes de 1919 até 2011, permitiu distinguir áreas de acordo com cinco categorias, desde as áreas de grande densidade com mais de 5000 edifícios por km2, às áreas de baixa densidade com menos de 500 edifícios por km2. O território da AML foi também classificado de acordo com a densidade populacional, no entanto, as diferentes reorganizações administrativas que levaram à alteração dos limites das freguesias, impõem algumas limitações na georreferenciação das densidades populacionais para os mesmos momentos censitários e unidades territoriais, pelo que se optou por representar os dados da população por subsecção estatística para 2011 e por freguesia para os períodos anteriores. A escala da densidade da população define como áreas densamente povoadas as que têm mais de 30000 residentes por km2, e as áreas pouco povoadas, as que têm densidades inferiores a 5000 habitantes. Importa ainda salientar que, do ponto de vista metodológico, o cálculo das densidades apresenta algumas limitações. Se, por um lado, se revela bastante eficaz nas unidades territoriais mais homogéneas, a análise das densidades pode ser menos eficaz em territórios com maiores áreas naturais e/ou sem ocupação habitacional. A metodologia seguida

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e a opção pela espacialização da informação, sempre que possível, ao nível da subsecção estatística, permitiram reduzir desvios na leitura das densidades. Todavia, uma leitura da ocupação e uso do solo devem complementar a análise das densidades, uma vez que permitem pôr em evidência as características específicas do território. O processo de urbanização da cidade Antes de 1919, as áreas de maior densidade de edifícios situavam-se principalmente na coroa central da cidade e algumas localidades dispersas pela região, com actividades económicas que favoreciam a concentração da população (Figura 1). Já entre 1920 e 1945, esta coroa de novas construções densificase e alarga-se à volta do núcleo inicial. Neste período, a função residencial passa progressivamente para novas áreas do município fora do centro histórico, que assumem nas décadas seguintes densidades de edificado mais elevadas. São áreas que beneficiam de transportes urbanos electrificados e estradas ou avenidas que lhes conferem maior acessibilidade. O acentuado crescimento populacional da cidade de Lisboa entre 1920 e os anos cinquenta “à razão de cem mil habitantes por década” (Baptista, 1994), está na origem do alargamento das áreas residenciais dentro da cidade: neste período, o concelho passa de 480 mil para 783 mil habitantes. Mas Lisboa não volta a ter ritmos de crescimento tão elevados e, em 1960, atinge apenas 802 mil habitantes. De igual modo, enquanto em 1930, a cidade concentra 72% da população da área metropolitana, em 1960 este valor desce para 53%, o que revela uma significativa perda da importância demográfica no contexto da área metropolitana (Meirinhos, 2011).

Figura 1. Densidade de edifícios antes de 1919 e de edifícios construídos entre 1920 e 1945 Fonte: Mapas elaborados pelos autores, a partir de dados do INE

A expansão da cidade para o exterior dos seus limites: o arranque e a consolidação da suburbanização Entre 1960 e 1970, a cidade densifica-se, torna-se mais “compacta”, alargando-se num crescimento centrípeto, mas também definindo eixos de áreas de construção de densidade intermitente (Figura 2). As actividades terciárias em desenvolvimento privilegiaram as localizações centrais, o aumento do preço das PNUM 2016 419

habitações e a melhoria dos acessos levam à progressiva perda de população do núcleo central e à formação de um sistema urbano distendido, descontínuo e fragmentado, que forma um território urbano complexo.

Figura 2. Densidade de edifícios em 1960 e de edifícios construídos entre 1960 e 1970 Fonte: Mapas elaborados pelos autores, a partir de dados do INE

Paralelamente, o processo de metropolização da região intensifica-se e aumentam as densidades, populacionais e de edifícios, nos restantes concelhos da Área Metropolitana. Enquanto a cidade perde residentes, o crescimento da população da AML é sempre positivo, sendo mais acentuado entre 1960 e 1981 (65%). Para tal, muito contribuíram as iniciativas públicas de planeamento urbano1 e de planeamento económico2, para a promoção do investimento público em habitação. Em 1969, é criado o Fundo de Fomento da Habitação com o objectivo de promover a centralização e coordenação política, técnica e financeira do investimento público no sector. Nesta década é ainda relançado o programa das Habitações de Renda Económica3, que está na origem dos primeiros grands ensembles lisboetas – Olivais Norte e Olivais Sul (Nunes, 2013), contribuindo para o aumento significativo da habitação de cariz social, promovendo o arrendamento como forma de ocupação privilegiada da oferta pública de alojamento e autorizando a edificação em altura. Nos anos 1960, a rápida e intensa suburbanização transformou a aglomeração de Lisboa em metrópole (Baptista, 1994). A frente avançada da suburbanização é composta por um edificado residencial de diversas formas e origens: os grandes conjuntos residenciais, os bairros resultantes da urbanização de quintas, os bairros de barracas e a habitação dita “clandestina” (Nunes, 2011). Mas a construção na cidade é manifestamente insuficiente e, numa primeira fase, os novos edifícios concentram-se nas áreas próximas do limite da cidade, fundamentalmente na margem norte do Tejo (Figura 2): Algés, Amadora, Pontinha, Odivelas, Moscavide. São áreas de acesso facilitado pelo transporte colectivo (comboio ou eléctrico) ou áreas onde a localização de actividades industriais atrai habitantes, tais como o eixo Amadora-Sintra e Vila Franca. Os acessos permitem também a concentração de população

Plano Director do Desenvolvimento Urbanístico da Região de Lisboa, do Ministério das Obras Públicas, em 1960. Plano Intercalar de Fomento (1965-1967) e o III Plano de Fomento (1968-1973). 3 A Habitação de Renda Económica constituía um novo produto: o apartamento, destinado a alojar populações que, por via do seu vínculo laboral, estivessem inscritas em regimes de quotização para a Previdência Social, e consequentemente aptas a ingressar no programa (Nunes, 2007). 1 2

PNUM 2016 420

residente nos concelhos situados em Cascais, Sintra, Oeiras, Loures e Vila Franca de Xira. O curso demográfico de três concelhos da área metropolitana exprime bem o ritmo e o volume da suburbanização em curso: em Almada registavam-se 23 mil habitantes em 1940, 43 mil em 1960, e 107 mil habitantes em 1970; em Loures registavam-se 35 mil habitantes em 1940, 102 mil em 1960 e 166 mil em 1970; e, finalmente, a população residente em Oeiras, que à data incluía a freguesia da Amadora e o lugar de Algés, passou de 37 mil habitantes em 1940 para 97 mil em 1960, ultrapassando, em 1970, os 180 mil habitantes. Já na margem sul, as densidades destacam-se nas áreas junto ao rio, com ligação fluvial a Lisboa e áreas dinamizadas por actividades locais, como Almada, Barreiro e Seixal. Em Alcochete, no Montijo, no Barreiro, na Moita, no Seixal e em Almada, o número de residentes passou de 195 mil, em 1960, para 296 mil, em 1970. A necessidade de habitação e a complacência do Estado Novo levam ao aumento das formas de crescimento urbano marginal, nomeadamente as práticas de loteamento e de construção de habitação clandestina, dando origem a uma “transformação informal do território” (Bruno Soares, cit. por Nunes, 2013). Surgem também nas frentes da urbanização de iniciativa privada, edificação de outros conjuntos residenciais, como os de Carnaxide, Miraflores, Santo António dos Cavaleiros, ou a Reboleira (Nunes 2011). Entre 1970 e 1981, Lisboa ganha novamente residentes, fundamentalmente pela entrada de portugueses vindos das antigas colónias, atingindo cerca de 808 mil habitantes no recenseamento de 1981, que corresponde ao valor mais elevado da sua história. A seguir, as variações intercensitárias negativas são muito elevadas, fundamentalmente entre 1981 e 1991 (-18%) e entre 1991 e 2001 (-15%) e menos acentuadas em 2011 (-3%). O decréscimo demográfico da cidade é acompanhado do envelhecimento da população e da incapacidade de fixação de jovens e do consequente rejuvenescimento de áreas residenciais. A consolidação metropolitana é bem evidente nas densidades de construção de edifícios em 1980 (Figura 3). Nas décadas seguintes, até à data do último censo, a área metropolitana continua a atrair residentes oriundos de outras regiões do país e da própria cidade, onde o preço da habitação é mais elevado. No entanto, a nova construção na cidade apresenta densidades bastante baixas, enquanto a da área metropolitana apresenta-se dispersa e frequentemente a contribuir para um aumento da densificação de áreas dispersas por toda a região (Figura 3, mapa da densidade de construção entre 2005 e 2011. As mudanças funcionais e de densidade na cidade e no território metropolitano de Lisboa deram origem ao que Pereira (2004) designa por “cidade distendida, descontínua, fragmentada, dispersa”. Neste novo ciclo urbano, as periferias caracterizam-se pela fragmentação do espaço, em que coexistem usos com diversos conteúdos sociais, cada vez mais autónomos, que se distribuem de forma descontínua, em espaços intersticiais livres mais ou menos alargados, que resultam em baixas densidades médias brutas. A autora associa esta metropolização à utilização extensiva e alargada do território, que corresponde a crescimentos populacionais fracos ou estáveis, à proliferação da habitação unifamiliar, à emergência de novas centralidades e à estruturação funcional, mobilidade pluri-direccional e uso intensivo dos espaços naturais.

PNUM 2016 421

Nas últimas décadas, a habitação secundária assumiu igualmente um papel importante na explicação do aumento do número de alojamentos, principalmente nos concelhos de Lisboa, Almada, Sintra, Cascais e Seixal, concelhos onde se regista o maior número de alojamentos de uso sazonal em 2001.

Figura 3. Densidade de edifícios em 1980 e edifícios construídos entre 2005 e 2011 Fonte: Mapas elaborados pelos autores, a partir de dados do INE

As densidades populacionais são também o resultado dessas dinâmicas e, se em 1991 as maiores densidades estão situadas em algumas freguesias de Lisboa e nos principais eixos de acesso ou em áreas com actividades económicas geradoras de emprego, como é o caso das freguesias de Setúbal; já em 2011 a região densifica-se e a mancha alarga-se consideravelmente à volta da cidade, quer na margem norte quer na margem sul.

PNUM 2016 422

Figura 4. Densidade populacional nas freguesias da AML em 1991 e 2011 e por subsecção em 2011 Fonte: INE, Censo da População 1991, 2011

Novos passos para esta dança: movimentos pendulares e atracção/repulsão na AML As grandes mudanças habitacionais e populacionais, que levaram à reconfiguração do espaço metropolitano, explicam-se à luz da forte expansão da rede viária e ferroviária ocorrida nas últimas décadas. Diminuiu a distância-tempo dos espaços periféricos e tradicionalmente rurais da área metropolitana de Lisboa e a heterogeneidade e a fragmentação do território é especialmente notória em torno dos eixos de expansão suburbana, que se formam a partir dos territórios limítrofes ao município de Lisboa. Estes eixos estendem-se, na margem norte do rio Tejo, ao longo das vias de comunicação rodoviárias e ferroviárias, designadamente nas linhas de Sintra e de Cascais e na linha da Azambuja, envolvendo os territórios de Loures e de Vila Franca de Xira; e, na margem Sul do Tejo, destaca-se o arco Almada-Montijo e a área centrada na cidade de Setúbal. Mais recentemente, a rede de acessos é marcada pela passagem do modelo radial para um modelo radioconcêntrico mais estruturado (Pereira, 2004), que compreende a beneficiação de eixos, a criação das radiais Loures-Torres Vedras, Ponte Vasco da Gama, radiais de Odivelas e Pontinha e de circulares4. Novas condições de mobilidade que potenciam alterações acentuadas no uso do solo e abrem novas frentes de urbanização. O contínuo crescimento populacional da AML, expresso ainda no último censo, parece indicar que o processo de metropolização da região de Lisboa não está consolidado. Ao contrário do que se verifica em cidades como Madrid ou Barcelona, em 2011 a AML continuava a atrair novos residentes, com uma taxa de atracção5 de 5%. A concentração crescente da população do continente na AML, que atinge no último

A CRIL (Circular Regional Interior de Lisboa), a CREL (Circular Regional Exterior de Lisboa) e a CRIPS (Circular Regional Interior da Península de Setúbal). 5 A taxa de atracção total corresponde à relação entre a população residente que 5 anos antes residia noutra unidade territorial e a população residente na unidade territorial. Taxa de repulsão interna: relação entre a população residente que 5 anos antes residia na unidade territorial e já não reside e a população residente na unidade territorial. 4

PNUM 2016 423

censo o valor mais elevado (28%), parece indiciar um agravamento da tendência de litoralização da população portuguesa, bem evidente na análise das disparidades demográficas das regiões situadas no litoral norte e centro e no litoral algarvio, relativamente ao território continental. Inversamente, em 2011, a cidade de Lisboa tem uma reduzida capacidade de atracção de novos residentes (11%) quando comparada com outros concelhos com taxas de atracção mais elevadas, tais como Alcochete (18%), Mafra (17%), Montijo (17%), Sesimbra (15%) e Odivelas (14%), onde a proximidade de Lisboa já não parece ter a mesma importância. A proporção de novos residentes é mais reduzida, na margem sul, nos concelhos de Setúbal (8%), Moita e Barreiro (ambos 9%) e, na margem norte, em Sintra, Lisboa e Vila Franca de Xira (todos 11%). Já a taxa de repulsão é mais elevada em Lisboa (13%) e Amadora (10%) e inferior em Mafra (6%), Setúbal, Cascais, Palmela, Montijo (todos com 7%) e Seixal (8%), o que mais uma vez revela a menor influência da proximidade de Lisboa na localização da residência. Todavia, Lisboa continua a receber grandes volumes de população diariamente (Figura 5). O processo de metropolização da região é acompanhado pela intensidade dos movimentos pendulares da população. A grande maioria das pessoas (78%) que trabalha ou estuda na cidade de Lisboa reside fora do concelho. Simultaneamente, a cidade apresenta a menor proporção de residentes que se deslocam diariamente para fora (9%), o que é revelador da concentração de actividades geradoras de trabalho na cidade. Entre 2001 e 2011, há uma ligeira diminuição da importância relativa dos movimentos pendulares de entrada em Lisboa (-1,8%) e um ainda mais ligeiro aumento da importância dos residentes que saem diariamente da cidade (0,5), o que revela alguma perda de “entradas” e ganho de “saídas”, mesmo que não seja possível inferir tendências. Oeiras e Alcochete são os concelhos com maior peso relativo de pessoas que trabalham no concelho e viver noutro concelho (34% e 24%, em 2011, com um aumento de 8% e 10%, respectivamente). Entre os concelhos com maior importância de habitantes a trabalhar ou estudar fora do concelho de residência, destacam-se Odivelas, Amadora, Oeiras e Loures, ou seja os mais próximos de Lisboa.

Local de residência (2011)

Proporção da população que entra na unidade territorial (movimentos pendulares) (%)

Proporção da população residente que sai da unidade territorial (movimentos pendulares) (%)

2001

2011

2011-2001

2001

2011

2011-2001

9,5

9,7

0,2

3

2,6

-0,4

Cascais

12,8

11,8

-1,0

26,3

24,5

-1,8

Lisboa

79,5

77,7

-1,8

8,2

8,7

0,5

Loures

15

16,5

1,5

34,1

30,5

-3,6

Mafra

9,7

8,5

-1,2

20,1

25,9

5,8

Oeiras

26,3

34,3

8,0

37,1

31,7

-5,4

Sintra

8

8,4

0,4

31,8

29,1

-2,7

Vila Franca de Xira

11,4

10,4

-1,0

29,9

30,7

0,8

Amadora

15,3

17,4

2,1

38,3

32,8

-5,5

Odivelas

7,3

9,1

1,8

39,1

35,3

-3,8

3,6

3,4

-0,2

16,8

16,0

-0,8

14

24,3

10,3

29,1

32,4

3,3

Grande Lisboa

Península de Setúbal Alcochete

PNUM 2016 424

Almada

18

16,7

-1,3

26,9

24,2

-2,7

Barreiro

12,5

12,9

0,4

28,8

25,9

-2,9

Moita

5,2

6,7

1,5

33,1

30,3

-2,8

Montijo

16,5

14,8

-1,7

19,5

25,7

6,2

Palmela

25,4

24,0

-1,4

24,7

25,3

0,6

Seixal

6,8

7,1

0,3

34,2

31,1

-3,1

Sesimbra

7,3

6,0

-1,3

22,7

27,5

4,8

Setúbal

15,9

13,5

-2,4

14,8

15,8

1,0

Figura 5. Movimentos pendulares: população que entra e que sai nos concelhos da AML em 2001 e 2011 Fonte: INE, Censo da População 2001 e 2011

A dança das densidades: notas finais As recentes dinâmicas de mobilidade e residência do território da AML parecem confirmar a já estudada dominação de Lisboa (Baptista, 1994), enquanto centro polarizador da região, e não permitem identificar uma rede sustentada de centralidades urbanas. Nesta análise identificaram-se processos simultâneos de densificação e desdensificação que, ocorrendo primeiro numa lógica centrípeta (de concentração na cidade), depois numa lógica centrífuga (de alargamento à área metropolitana) e, finalmente, em movimentos centrífugos e centrípetos, em que a cidade continua a atrair diariamente um número elevado de pessoas, mesmo que esteja a perder residentes. A ausência de estatísticas da população e da habitação mais actuais não permite analisar as mudanças dos últimos anos. No entanto, estudos recentes de cariz qualitativo revelam alterações significativas no centro urbano, cada vez mais permeável aos processos de elitização e de gentrificação. Se, por um lado, a intensificação da especulação imobiliária levou à ocupação pela classe média alta, por outro lado, a recente estratégia municipal de promoção do turismo e o aumento da entrada de utilizadores temporários na cidade estão na origem de formas de ocupação do centro urbano por novos grupos sociais e de novas formas de reabilitação do edificado que, nas últimas décadas do século XX, tinha sofrido processos de desvalorização social, decréscimo populacional e degradação do edificado. Já no território metropolitano de Lisboa se, por um lado, a intensidade de construção de habitação parece estar a diminuir, por outro lado, coexistem espaços de proximidade com características socioeconómicas distintas, revelando um território heterógeno e fragmentado, tendo em conta as características do parque habitacional e da população residente (INE, 2014). Debilidades territoriais e ambientais marcam grande parte destes territórios, onde o modelo de organização assenta no elevado consumo de solo e de energia, em elevados custos de infraestruturas e de serviços que servem áreas de baixa densidade. Apesar de, tendencialmente, estar assegurada a legalidade urbanística das novas construções, ao contrário do que aconteceu em períodos marcados pela construção clandestina, o crescimento do tecido urbano continua a assentar numa gestão pouco eficaz e económica e socialmente pouco qualificada. Os desafios que se colocam para o futuro destes territórios obrigam a repensar estratégias e meios que contribuam para uma gestão integrada e sustentável do território metropolitano de Lisboa. Ora, repensar o sistema urbano PNUM 2016 425

metropolitano obriga a alterar a intervenção pública, os instrumentos de gestão urbana e do território e as formas de governo, permitindo integrar, em diferentes escalas, os interesses e objectivos dos grupos sociais que utilizam e habitam o território. Bibliografia Archer F (2004) Introduction. Les sens du mouvements: modernités et mobilités, in S Sallemand, F Archer, J Levy (dir.) Les sens du Mouvement, Belin, Paris, 21-36. Baptista L V (1994) Dominação demográfica no contexto do século XX português: Lisboa, a capital, SociologiaProblemas e Práticas, 15, 53-77. Baptista L V (1999) Cidade e Habitação Social. O Estado Novo e o Programa das Casas Económicas em Lisboa, Celta Editora, Oeiras. Bordreuil J-S (2000) La ville desserré, in T Paquot, M Lussault, S Body-Gendrot (dir.), La ville et l’urbaine, l’état des savoirs, La Découverte, Paris, 169-182. Ferreira M J, Leitão N (2004) Reconfigurações territoriais e mobilidade residencial das elites urbanas: o caso de Telheiras e Parque Expo, em Lisboa, V Congresso de Geografia Portuguesa – Portugal: Território e Protagonistas, Universidade do Minho. INE (2014) Tipologia Socioeconómica das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto – 2011, www.ine.pt. Lamas J (2004) Morfologia urbana e desenho da cidade, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, Porto. Lourenço N, Jorge M R, Machado, C R (2000) A Qualificação dos Recursos Humanos e o Desenvolvimento de Zonas Periféricas, Universidade Atlântica, Barcarena. Matias Ferreira V (1987) A cidade de Lisboa: de Capital do Império a centro da Métropole, Dom Quixote, Lisboa. Meirinhos V (2011) Mobilidade metropolitana: níveis de motorização e padrões de sinistralidade pedonal da cidade de Lisboa, Forum Sociológico, 21, 2011. Nunes J P (2011) Florestas de Cimento Armado. Os grandes conjuntos residenciais e a constituição da metrópole de Lisboa (1955-2005), Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa. Nunes J P (2013) O programa Habitações de Renda Económica e a constituição da metrópole de Lisboa (1959-1969) Análise Social, 206, xlviii (1.º), 2013, ICS, Lisboa. Pereira M (2004) As Metamorfoses da Cidade Dispersa, GeoNova 10, Lisboa. Sassen S (1991) The Global City : New York, London, Tokyo Princeton University Press. Stébé J-M (1999) La crise des Banlieus: Sociologie des Quartiers Sensibles, PUF (col. Que sais-je ?), Paris. Wiel M (2005) Ville et mobilité: un couple infernal?, Éditions de l’Aube, La Tour d’Aigues.

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Implementação do estatuto das cidades em Cabo Verde: desafios e propostas de solução Simão Varela1 Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ- Brasil Av. Pedro Calmon, n.º 550, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro – Brasil, Telefone: (21) 39381767 / 002389333211 Email: [email protected]

Resumo

 A comunicação centra-se sobre a análise da implementação do estatuto das cidades em Cabo Verde, tendo em consideração a entrada em vigor da Lei n.°77/VII/2010, de 23 de agosto, que estabelece o regime da divisão, designação e determinação das categorias administrativas das povoações, tendo cerca de 62% da população a residir em áreas urbanas, seguindo assim a tendência mundial. No entanto, as cidades e as urbes cidades devem ser criadas com base em critérios bem definidos, definir os timings e mobilizar os recursos necessários a sua concretização, para que venham a desempenhar efetivamente as suas funções, nomeadamente urbanísticas, de gestão e de cidadania. Ainda, o fenómeno urbanístico passou a exigir planeamento e a gestão dos espaços urbanos, com particular realce para cidades, o que nem sempre tem verificado, e o atual estado de desenvolvimento urbano em Cabo Verde, exige cada vez mais, melhor utilização dos espaços urbanos já existentes, a planificação, a produção e a ocupação de novos espaços urbanos, tendo sempre presente um melhor enquadramento e organização e desenvolvimento dos municípios e do país. O trabalho examina fontes de literatura e outros documentos sobre a temática e, sendo assim, os instrumentos de planeamento, gestão urbanística e de ordenamento do território, com realce para o Decreto-Lei n.º 15/2011, de 21 de fevereiro, que regula o Estatuto das Cidades e define as orientações da política de capacitação de espaços urbanos, e ficou evidente que, as cidades cabo-verdianas devem oferecer condições, enquanto espaços para habitação, trabalho e lazer, educação, saúde e segurança, prestação de serviços, planeamento, preservação do património cultural, natural e sustentabilidade urbana, constituindo assim em desafios a serem encontradas as soluções com medidas de políticas e estratégias assertivas.

Palavras-chave Estatutos das cidades; funções urbanas; implementação; Cabo Verde.

1.Nota introdutória Cabo Verde, pelas suas caraterísticas e condições adversas, nomeadamente insularidade, desertificação, fragilidade dos ecossistemas, a par das limitações de recursos financeiros, humanos e da vulnerabilidade económica e ambiental, enfrenta desafios sobre ordenamento do território, planeamento e gestão urbanísticos. A

Pós-doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ -Brasil).

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Administração Pública Central e Local reconheceu um conjunto de situações que necessitavam de resolução, sobretudo o crescimento desordenado das cidades, as deficiências habitacionais, infraestruturais, de equipamentos públicos, infraestruturas e serviços, condicionando assim o desenvolvimento urbano e a capacitação das cidades. No entanto, as ações desenvolvidas não têm conseguido apagar as disfunções territoriais, apesar dos esforços para se encontrar soluções. Ainda, as atuações territoriais casuísticas têm vindo a verificar, embora sejam em menor frequência e as estruturas urbanas e territoriais estão a transformar-se, requerendo maior capacidade orientadora e reguladora da Administração. Em Cabo Verde, os PDM, através da classificação dos solos, estabelecem e definem as formas de ocupação, transformação e uso dos solos urbanos, cujo objetivo é capacitar e desenvolver os espaços urbanos para o desempenho das suas funções sociais e da propriedade numa perspetiva de sustentabilidade urbana. Entretanto, deparam-se com desafios a serem ultrapassados com base nos instrumentos e na governação da política de cidades, na gestão democrática dos espaços urbanos, cujo objetivo é garantir melhores condições de vida às pessoas.

2. Estatuto das cidades e a realidade cabo-verdiana

As funções sociais da sociedade moderna estabelecidas na Carta de Atenas nos anos 30 eram habitação, trabalho, circulação e recreação2, e para atender as necessidades da sociedade pós-moderna, o Conselho Europeu de Urbanistas (CEU) reuniu-se em 1998, a fim de propor a Nova Carta de Atenas, a qual foi revista em 2003, passando a denominar-se Carta Constitucional de Atenas 2003, enquanto visão do Conselho Europeu de Urbanistas sobre das Cidades para o Século XXI3. No entanto, a conjuntura internacional [e nacional] do século XXI é bastante adversa para a concretização dos direitos humanos, económicos, sociais e ambientais e, sendo assim, das funções das cidades4 referidas anteriormente e ao longo deste trabalho. Através da Carta de Atenas de 2003, o CEU estabeleceu uma nova visão das cidades, elencando dez funções para a cidade pós-moderna, nomeadamente que “a cidade seja para todos, participativa, um refúgio, um lugar adequado para o bem-estar e a solidariedade entre as gerações, saudável, produtiva, inovadora, um lugar que tenha como funções os movimentos racionais e a acessibilidade, cultural e de caráter contínuo5. Assim, as cidades devem desempenhar as suas funções sociais em três esferas, nomeadamente urbanísticas (habitação, trabalho, lazer e mobilidade), cidadania (educação, saúde, segurança e proteção) e gestão (prestação de serviços, planeamento, sustentabilidade urbana e preservação do patrimônio cultural e natural). 

Cfr. Meirelles H (1985) Direito municipal brasileiro, São Paulo apud Bernardi J (2006) Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos, Curitiba.,39. 3 Vide Bernardi J (2006), op. cit, 41. 4 Sobre o direito à habitação (moradia), Fernandes E, Alfonsin B (coords) (2014) Direito à moradia adequada, o que é, para que serve, como defender e efetivar, 14. 5 A esse respeito, vide Meirelles H (1985) apud Bernardi J (2006), ibid, 

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Em relação a Cabo Verde, com a entrada em vigor da Lei n.°77/VII/2010, de 23 de agosto, que estabelece o regime da divisão, designação e determinação das categorias administrativas das povoações, verificou-se o surgimento de novas cidades6 e vilas, tendo mais de 60% da população a residir em áreas urbanas, seguindo assim a tendência mundial, sem que as mesmas reúnam as condições para desempenharem as suas funções. Ao considerar que a cidade resulta do conjunto dos subsistemas que, ajustados entre si, se tornam necessários à vida e ao bem-estar da coletividade e dos cidadãos que a integram7, e nessa linha de pensamento, R art. 2.º do Decreto-Lei n.º 15/2011, de 21 de fevereiro8, estabelece normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana, visando o bem-estar e segurança coletivos, bem como o equilíbrio ambiental, e no art. 3.º encontra-se definido que a cidade pode ser considerada como todo o aglomerado populacional contínuo, com um núcleo urbano que integre equipamentos estruturantes, onde a atividade fundamental é a função de serviços, nomeadamente nas áreas político-administrativas, e saúde, hotelaria, cultura, educação, banca e indústria. Entretanto, em Cabo Verde, as cidades estão a carecer, de forma geral, sem equipamentos sociais e capacidades para a prestação de determinados serviços indispensáveis a nível de saúde [como são os casos de exames e operações médicos] e de educação [formação técnica e superior], recorrendo na maioria das vezes às cidades de Assomada e da Praia na ilha de Santiago e do Mindelo na ilha de São Vicente, com todas as consequências daí advenientes, e com reflexo negativo a vários níveis, com realce para a exclusão social, contrariando os objetivos constantes do programa nacional de desenvolvimento urbano e capacitação das cidades9. É de acrescentar que o art.. 4.º do diploma supra consagra que a política de cidades tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade dos espaços urbanos, independentemente da sua localização, dimensão territorial ou demográfica, mediante os princípios gerais, o que não tem acontecido em Cabo Verde conforme o estabelecido, com realce para a conservação e valorizar o património natural e cultural por forma a minimizar, prevenir eventuais riscos e assegurar a sustentabilidade da indústria e do turismo, a democratizar a gestão dos espaços urbanos por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, indo assim, em certa medida, ao encontro da tese de Ricardo

Com a entrada em vigor da Lei n.°77/VII/2010, de 23 de agosto, Cabo Verde passou a ter mais 18 cidades, ou seja, de 6 para 24 cidades, sem que as mesmas reúnam as condições para o desempenho das suas funções sociais e garantir melhores condições de vida às pessoas.  Sobre essa matéria, vide Santos J, Filho C, (2006) Comentários ao estatuto da cidade, Lei 10.257, de 10.7.2001 e MP 2.220, de 4.9.2001 do Brasil, 4.  Cfr. No Decreto-Lei 15/2011, de 21 de fevereiro, que regula o estatuto das cidades e define as orientações da política de capacitação de espaços urbanos em Cabo Verde. No entanto, a tradução prática desse diploma passa, necessariamente, pela implementação efetiva da Resolução n.º 24/2012, de 25 de abril, que aprova o programa nacional de desenvolvimento urbano e capacitação das cidades em Cabo Verde, o que não tem verificado, tendo em consideração os objetivos traçados e, sendo assim, os resultados esperados. 9 Sobre os eixos estratégicos, objetivos e resultados estabelecidos sobre o desenvolvimento urbano e capacitação das cidades em Cabo Verde, vide a Resolução n.º 24/2012, de 25 de abril. 

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Lira10 ao afirmar que, “nos países em via desenvolvimento, a ocupação do espaço urbano faz-se marcada pelo deficit habitacional e deficiência na qualidade dos serviços de infraestrutura, ocupação de áreas inadequadas, pelos serviços de transportes deficientes, estressantes e poluentes, pela agressão ao meio ambiente natural e ao meio ambiente construído, pela deslegitimação da autoridade pública fomentando um sentimento generalizado de impunidade”.

Para a sobrevivência da cidade, hão de estar presentes fatores relativos aos serviços públicos, comércio e indústria, presentação de serviços, saúde, educação e moradia, permitindo assim uma contínua relação entre as pessoas para a satisfação dos seus próprios interesses11, condições essas cada vez mais precárias, particularmente num país como Cabo Verde. Em relação a concretização dos objetivos da política de cidades, prevê-se, ainda, no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 15/2011, de 21 de fevereiro, a instituição de eixos estratégicos de intervenção, com realce para a energia e sustentabilidade, mobilidade e inovação tecnológica, política de solos e de habitação, saneamento ambiental e ordenamento e planeamento territorial, o que requer a implementação efetiva de medidas de políticas públicas e estratégias assertivas, nem sempre fáceis para um país como Cabo Verde que depara com constrangimentos de várias ordens, nomeadamente económico-financeiro, técnico, científico e tecnológico, a par da fragilidade do ecossistema e do défice do capital social comunitário e organizacional e, sendo assim, institucional, condicionando assim a cidadania territorial e urbana e a implementação do estatuto das cidades.

O art. 7.º do Decreto-Lei supra faz referência aos instrumentos de gestão territorial já consagrados na Lei de Bases de Ordenamento do Território e Planeamento Urbanístico (LBOTPU) e no Regulamento Nacional de Ordenamento do Território e Planeamento Urbanístico (RNOTPU) de Cabo Verde. Assim, tanto o LBOTPU como o RNOTPU medidas preventivas a serem levadas em consideração durante a elaboração dos Planos Diretores Municipais12 para que haja adequação na sua implementação, após a sua entrada em vigor, o que por serem facultativas, não têm produzido os efeitos desejados em matéria de gestão urbanística e, sendo assim, na implementação do estatuto das cidades em Cabo Verde. Para Fernanda Oliveira13 o ordenamento do território, enquanto política pública, visa o desenvolvimento socioeconómico harmonioso e equilibrado, a melhoria da qualidade de vida e a gestão responsável dos recursos naturais, a proteção do ambiente e a utilização racional do território. No entanto, Dulce Lopes considera que, “se os instrumentos de ordenamento do território, planeamento e execução urbanísticos se, pela positiva, encurta a distância entre planeamento e gestão urbanística, pelo surgimento de 

Cfr.Lira R (2011) Direito urbanístico, estatuto da cidade e regulação fundiária, 3. Vide Santos J, Filho C (2006), op. cit , 4. 12 Para o melhor conhecimento sobre essa questão, vide. Varela S (2012), A importância das medidas preventivas para uma adequação na execução dos planos directores municipais, 90-111. 13 Sobre essas e outras questões sobre planeamento, gestão urbanística e ordenamento do território em Cabo Verde, vide Oliveira F (2015), Direito do ordenamento do território e do urbanismo em Cabo Verde, 17. 

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mecanismos que servem funções de verdadeira programação constitutiva e sistemática do território, criam-se, pela negativa, regimes jurídicos paralelos que, em certa medida, contornam os efeitos típicos assinalados aos instrumentos de planeamento municipal, com desprimor para os objetivos de segurança e certeza jurídicas que o princípio de tipicidade visa assegurar”.14

De acordo com o estipulado dos arts 9.º a 13.º do Decreto-Lei 15/2011, de 21 de fevereiro, para a implementação dos instrumentos de gestão territorial devem ser levadas em consideração, os instrumentos específicos da política de cidades, nomeadamente os programas operacionais, as parcerias para a renovação e a reabilitação urbana, redes urbanas para a mobilidade, conetividade, competitividade e a inovação, ações inovadoras para a gestão sustentável dos solos, desenvolvimento urbano inclusivo e propiciadoras de ampliação das redes sociais em favor do reforço da identidade cultural, do desporto, da cidadania, da tolerância e cultura da paz, áreas e equipamentos estruturantes do sistema urbano .Ainda, o art. 15.º prevê a política de reabilitação urbana, estando estabelecidos dos arts. 16.º a

18.º

a governação da política urbana, com realce para administração central e local,

Implementação da política de cidades, e dos arts 19.º e 22.º a gestão democrática das cidades que se quer que tenha a participação popular, gestão orçamental participativa, promoção da participação popular pelas autarquias locais, Conselho Nacional e Municipal das Cidades, para no art. 23.º consagrar o programa nacional de capacitação das cidades, instrumentos esses que não têm sido implementados conforme o previsto nesse Decreto-Lei, bem como nos demais diplomas e instrumentos a esse respeito. Através dos procedimentos urbanísticos e da gestão democrática dos espaços urbanos, pode-se implementar, em Cabo Verde, o estatuto da cidade, o que não seria fácil pela auto-governação dos indivíduos por serem, em certos casos, incontornáveis os conflitos de interesse que os colocam em posições de antagonismo.15 Assim, com a intervenção do Estado, haverá maior possibilidade para que as cidades possam efetivamente desempenhar as suas funções sociais e da propriedade, posição essa igualmente defendida pelos autores como Heley Meirelles, ao fazer menção à crítica de Eiras Garcia sobre a falta da consciência social dos indivíduos, a inércia fiscalizadora do Estado, bem como a necessidade de uma efetiva coordenação e articulação entre esses atores de desenvolvimento a respeito da ordem urbanística, ao afirmar que “ não se compreende urbanismo isolado; não se realiza urbanismo particular; não se faz urbanismo por conta própria; nem há imposições urbanísticas sem norma legal e geral que as determinem.16 Sobre essas questões, e de acordo com as teses de Alex Ferreira Magalhães17, “almeja-se garantir o desenvolvimento ordenando e racional das favelas [ em Cabo Verde designados de bairros degradados], bem como deixar marcado que o Estado não mais está ausente dessas áreas, que deixariam de se configurar como espaços literalmente excluídos do Sobre essa questão, vide Lopes, D (2008) Planos de pormenor, unidades de execução e outras figuras de programação urbanística em Portugal, 17.  &IUSantos J, Filho C (2006), ibid, 5. 16 O autor faz referência à Carta de Atenas de 1933, resultado das recomendações aprovadas pelo Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, 377-3778.  Vide o livro sobre direito das favelas, Magalhães A (2013), Letra Capital, 21. 14

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planjeamento e ordenamento da cidade, sem qualquer espécie de esforço por parte do Estado de aí exercer o seu poder de regulação jurídica”.

Ao analisar o Decreto-Lei n.º 15/2011, de 21 de fevereiro, depreende-se que, o mesmo, não estabelece, a semelhança da Lei 10.257, de 10.7.2007, que define o estatuto da cidade do Brasil, as diretrizes gerais da política urbana, incluindo assim as diretrizes gerais e sua classificação, diretrizes governamentais, sociais, económicofinanceiras e relativas ao solo urbano, bem como outros aspetos relevantes, nomeadamente parcelamento, edificação e utilização compulsórios, desapropriação urbanística sancionatória, usucapião especial de imóvel, direito de superfície, o que tem constituído para o caso de Cabo Verde, numa limitação desse importante instrumento jurídico, a par de outros desafios a sua implementação, com destaque para falta de recursos humanos qualificados nas áreas de urbanismo, a ineficiência na implementação dos instrumentos de planeamento, gestão urbanístico e de Ordenamento do Território e dos demais dispositivos legais a esse respeito, défice de articulação entre os Poderes Locais e Central, entre estes e os demais atores de desenvolvimento, falta de fiscalização e uma certa impunidade [ a não responsabilização] dos agentes da administração pública pelo incumprimento, bem como dos particulares pelas contra-ordenações, o que tem vindo a condicionar, de certa forma, o desenvolvimento sustentável das cidades.

Como afirma António Cândido de Oliveira, não é fácil lidar com a ocupação e transformação do solo que ocorrem e que se traduzem em formar, ampliar ou transformar urbes18. Sendo assim, poderia até pensar-se que o esforço jurídico de pôr ordem, nesse fenómeno, é um esforço sem resultado e que aí estaria a explicação para a distância que ocorre entre o direito do urbanismo legislado e o direito do urbanismo praticado (aquele que se deveria ver no terreno). No entanto, ceder à tentação de considerar ingovernável a ocupação e uso do solo é a via mais fácil e não deve ser esse o caminho19. Assim, para Vernon Henderson “urbanization and economic development are closely intertwined. While urbanization per se does not cause development, sustained economic development does not occur without urbanization”20, e nessa linha de pensamento, pode-se afirmar que, a semelhança do que tem verificado em Cabo Verde, a criação de mais cidades e vidas, por si só, não são sinónimos de desenvolvimento e devem crescer-se com bases em regras e dotadas de condições para que venham efetivamente a desempenhar as suas funções. 4. Considerações finais e sugestões Com a realização deste trabalho conclui-se que é fácil, administrativamente, criar cidades, e que devem ter por base em critérios previamente definidos, estabelecidos os recursos económicos e financeiros importantes e definidos os “timings” necessários para a sua concretização.



A esse respeito e sobre as questões urbanísticas, vide Oliveira António ( 2 0 0 8 ) A situação actual da gestão urbanística em Portugal, pp. 9-16.  Cfr. Oliveira António, op. cit., 9-16.  Vide, o artigo científico de Henderson J. (2009), 1.

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Não se pode ignorar, apesar da sua limitação na sua conceção, enquanto um dos instrumentos jurídicos para o desenvolvimento urbano e a capacitação das cidades, a importância do Decreto-Lei n.º 15/2011, de 21 de fevereiro, cuja finalidade é regulamentar a política urbana. Contudo, constata-se que o Poder Local e, sendo assim, os administradores públicos municipais não dão a devida importância a esse relevante instrumento legal de gestão urbana. Em Cabo Verde requer-se novos cenários de desenvolvimento urbano e a permanente mobilização de parceiros de desenvolvimento, e é urgente um maior controlo sobre a expansão urbana e apostar, ainda mais, na sua reabilitação e requalificação, combater a sua excessiva horizontalidade e dispersão territorial. Há necessidade premente de soluções adequadas aos problemas urbanos e implementação de políticas para a criação de condições e oportunidades que reforcem a afirmação das cidades como espaços privilegiados para o cumprimento das suas funções sociais e da propriedade, o que requer medidas de políticas públicas e estratégias assertivas, nem sempre fáceis para Cabo Verde, tendo consideração, sobretudo a conjuntura internacional e nacional. A implementação do estatuto das cidades e o desenvolvimento sustentável das cidades em Cabo Verde requer, ainda, o reforço do capital social institucional, sobretudo dos Poderes Central, Regional e Local (municipal e inframunicipal) e da sociedade civil, uma melhor articulação e coordenação entre os atores de desenvolvimento dos espaços urbanos, a par de uma maior autonomia, sobretudo administrativa, financeira do Poder Local e da cidadania territorial e urbana, por forma a mobilizar mais recursos e dotar esses espaços de condições para o desempenho das suas funções, garantido assim melhores condições de vida às pessoas que aí residem ou os visitem. Bibliografia

Bernardi J (2006) Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos, Centro de Ciências Exatas e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba. Cabo Verde. Resolução n.º 24/2012, de 25 de abril, que aprova o programa nacional de desenvolvimento urbano e capacitação das cidades, CM, Praia. .Decreto-Lei n.º 15/2011, de 21 de fevereiro, que regula o estatuto das cidades e define as orientações da política de capacitação de espaços urbanos em Cabo Verde, CM, Praia. . (2010) Constituição da República de Cabo Verde, PCV, Praia. .Decreto-Lei n.º43/2010, de 27 de setembro, que define o regulamento nacional do ordenamento do território e planeamento Urbanístico em Cabo Verde (RNOTPU), CM, Praia. .Lei n.°77/VII/2010, de 23 de agosto, que estabelece o regime da divisão, designação e determinação das categorias administrativas das povoações em Cabo Verde, PCV, Praia.

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_.Decreto-Legislativo n.º6/2010, de 21 de junho, que altera o Decreto- Legislativo n.º1/2006, de 13 de fevereiro, que estabelece as bases do ordenamento do território e Planeamento urbanístico em Cabo Verde, CM/PCV, Praia. Fernandes E, Alfonsin B (coord.) (2014) Direito à moradia adequada, o que é, para que serve, como defender e efetivar, Fórum., Belo horizonte, 14. Henderson

J

(2009)

Cities

and

development,

retrieved

from

http://www.brown.edu/Departments/Economics/Faculty/henderson/papers/Cities%20and%20Development0609.pdf Lira R (2011) Direito urbanístico, estatuto da cidade e regulação fundiária, R Coutinho, L Bonizzato (coords) Direito da cidade: novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano, Lumen Juris, Rio de Janeiro. Magalhães A (2013) O direito das favelas, Letra Capital, Rio de Janeiro. Meirelles H (1985) Direito municipal brasileiro, RT, São Paulo. Lopes D (2008) Planos de pormenor, unidades de execução e outras figuras de programação urbanística em Portugal, Direito Regional e Local: CEJUR, 03 (4), 17. Oliveira A ( 2008 ) A situação actual da gestão urbanística em Portugal, Direito Regional e Local: CEJUR, 02(3), 9-16. Oliveira F (2015) Direito do Ordenamento do território e do urbanismo em Cabo Verde, Uni-CV, Praia. Santos J, Filho C (2006) Comentários ao estatuto da cidade, Lei 10.257, de 10.7.2001 e MP 2.220, de 4.9.2001 do Brasil, Lumen Juris, Rio de Janeiro. Varela S (2012) A importância das medidas preventivas para uma adequação na execução dos planos directores municipais, UMinho, Braga.

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&,'$'(6'2/,725$/(05('( 3DUDQi %UDVLO H$OJDUYH 3RUWXJDO  -XVVDUD6LOYD10DIDOGD3DFKHFR27HUHVD+HLWRU2. 1: Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Positivo, [email protected] 2: CEris, Departamento de Engenharia Civil, Arquitectura e Georrecursos, Instituto Superior Técnico, UL, [email protected]; [email protected]

5HVXPR Paranaguá é a cidade mais antiga do Estado do Paraná, no Brasil, e a sua história remonta ao século XVI, quando a colonização portuguesa iniciou-se de forma efetiva no Brasil. Do outro lado do Atlântico, na região do Algarve, em Portugal, localiza-se a cidade de Faro, que constituiu um ponto estratégico durante as viagens marítimas portuguesas durante os séculos XV e XVI. Considerando as características geomorfológicas (relevo, linhas de água) e antrópicas (estrutura viária, localização dos assentamentos urbanos) das orlas costeiras do Paraná e do Algarve existe uma diferença da estrutura geral das redes viária e urbana. A costa algarvia remete para uma organização linear, estruturada em forma de “pente”, enquanto a costa paranaense, organiza-se em forma de “tridente”. Este artigo analisa a posição topológica dos acessos rodoviários na malha urbana, a Rodovia Federal BR277 (Paraná) e a Estrada Nacional N125 (Algarve), bem como a posição dos centros históricos das capitais regionais Paranaguá (Paraná) e Faro (Algarve), e das cidades mais próximas. O estudo é realizado através da comparação das redes das cidades de Paranaguá e Faro e a configuração espacial intra-urbana destas cidades e dos centros urbanos mais próximos, ou seja, Paranaguá e as cidades de Antonina, Matinhos, Morretes e Pontal do Sul, e Faro e as cidades de Albufeira, Quarteira, Olhão e Tavira. As propriedades configuracionais dos acessos rodoviários e dos centros urbanos serão analisadas a partir da modelação e representação sintática, aplicando a Teoria da Sintaxe Espacial; as características da forma serão estudadas para identificar o padrão do traçado viário, através da posição dos eixos, suas proporções e continuidades/descontinuidades. Os resultados alfanuméricos permitiram a comparação e diferenciação da configuração espacial intra-urbana e posição dos eixos viários de conexão entre as cidades pertencentes a cada uma das redes estudadas.

3DODYUDVFKDYHrede de cidades, configuração urbana, teoria da sintaxe espacial, cidades do litoral. PNUM 2016 435

,QWURGXomR A rede urbana é formada pelo sistema de cidades, no território de cada país interligadas umas às outras através dos sistemas de transportes e de comunicações, pelos quais fluem pessoas, mercadorias, informações. As cidades são os nódulos dos sistemas de fluxos que, por sua vez, dinamizam a rede urbana e estruturam o território. A maioria dos contornos rodoviários próximos às cidades foi absorvida pela malha urbana, exercendo funções intraurbanas. O potencial de concretizar acessibilidade e mobilidade induz ao crescimento urbano de sua região lindeira. Contudo, as rodovias surgem sob interesses internacionais, nacionais e regionais, e não considera a sua relação com o espaço intraurbano (Villaça, 2001). As interfaces entre as rodovias e a cidade ocasionam alterações na acessibilidade, mobilidade, padrões de uso e ocupação do solo urbano e consequentemente alterações na segregação de classes sociais ao longo destes eixos. Estas dinâmicas, no entanto, ocorrem em momentos, escalas e intensidades diferentes, variando conforme o porte de cada cidade. Faz-se necessário a realização de estudos que identifiquem a influência ocasionada pela inserção de rodovias no espaço intraurbano das cidades. O processo de estruturação espacial das redes das cidades das costas paranaense e algarvia foram por um lado condicionadas pelo ambiente natural e de outro, pelo movimento, característicos das rodovias que ligam estas cidades entre si e as capitais. As infraestruturas regionais, como contornos viários, anéis e rodovias, podem influenciar de forma intensa um determinado setor da cidade, cujo principal variável é a maneira como se insere na malha urbana (Pinto, 2012). Neste artigo são analisadas as cidades em rede das costas paranaense: Paranaguá (polo), Antonina, Morretes, Pontal do Paraná e Matinhos e algarvia: Faro (polo), Albufeira, Quarteira, Olhão e Tavira e as interfaces dessas cidades e com as rodovias que lhe dão acessos. Conforme a natureza do fenómeno que neste artigo se quer investigar, qual seja a do movimento em diferentes escalas territoriais – rede e intraurbano – tornam-se favorável a representação e simulação em ambiente virtual da influência dos elementos – ruas – sobre a estruturação espacial. Diante da complexidade do fenómeno do movimento e a abrangência territorial do estudo buscou-se os indicadores da Teoria da Sintaxe Espacial para as leituras e análises. As propriedades configuracionais dos acessos rodoviários e dos centros urbanos foram analisadas a partir da modelação e representação sintática, aplicando a Teoria da Sintaxe Espacial, seus métodos e PNUM 2016 436

ferramentas. Uma das premissas da Sintaxe Espacial é que o movimento do traçado urbano é gerado pela própria configuração deste traçado. A leitura sintática permitiu a análise e interpretação da relação dos eixos rodoviários e o espaço urbano consolidado e as implicações destes eixos na estruturação do sistema de circulação. Assim, os resultados obtidos ajudaram na compreensão do grau de influência da rodovia/via na estruturação do tecido urbano e o próprio funcionamento urbano. Através da modelação da rede axial auxiliada pelo software Depthmap (©UCL, 2010) foi possível a descrição qualitativa do fenómeno baseada em dados quantitativos obtidos com as medidas sintáticas: Integração Global (HH), Integração local (HH3) e Choice (escolha). A análise individual das malhas urbanas integrantes de cada rede regional, bem como a identificação das regularidades e diferenças entre elas, e a busca de relações entre as características próprias e as suas posições na rede, permitiu reconhecer tipologias espaciais que exprimem a relação dos tecidos urbanos com a conexão e posição dos eixos viários. O estudo foi realizado através da comparação das redes viárias regionais das cidades de Paranaguá e Faro e da configuração espacial intraurbana destas cidades e dos seus centros urbanos mais próximos, ou seja, Paranaguá e as cidades de Antonina, Matinhos, Morretes e Pontal do Sul, e Faro e as cidades de Albufeira, Quarteira, Olhão e Tavira.  &LGDGHVFRVWHLUDVGR3DUDQi A área do litoral paranaense está localizada a uma distância de aproximadamente 100 km da Região Metropolitana de Curitiba, mantendo um forte vínculo com a capital do estado í Curitiba. A área é composta pelos municípios de Paranaguá, Guaraqueçaba, Antonina, Morretes, Pontal do Paraná, Matinhos e Guaratuba. A conexão entre as cidades litorâneas e a capital – Curitiba é feita através das três rodovias federais: BR277, BR376 e BR116, o que remete ao desenho de um “tridente” )LJXUD 

)LJXUD. Costa do Paraná (98 km) com as rodovias e os centros urbanos (população total de cada município). PNUM 2016 437

Com população de 265.392 habitantes (IBGE, 2014), o litoral do Paraná recebeu, entre 1997 e 2004, uma média de 1,5 milhões de turistas por ano, segundo pesquisa realizada pela SETU. Segundo o estudo de demanda turística (SETU, 2006), a maior parte dos turistas é proveniente da capital do estado do Paraná – Curitiba. A população permanente verificada no último Censo (2010) distribui-se de forma muito desigual entre estes sete municípios, o que, combinado com a diferença de área territorial, resulta em densidades bem diferentes. Os extremos, Paranaguá, com apenas 14% da superfície total e 53% dos habitantes, e Guaraqueçaba, com 33% da superfície total e apenas 3% da população. A densidade populacional média é de 46,43hab/km², mas varia entre 3,9hab/km², em Guaraqueçaba, e 249,93hab/km², em Matinhos, seguido por Paranaguá, com 169,92hab/km². O setor Norte é formado somente pelo município de Guaraqueçaba, local que concentra atrativos vinculados ao ecoturismo, pela importância da conservada Mata Atlântica. No setor Sul encontra-se Matinhos e Guaratuba, localidades com maior grau de urbanização e que concentram as áreas de veraneio do Estado. Os municípios de Antonina, Paranaguá, Pontal do Paraná e Morretes formam o setor Central, apresentando como destaque a concentração do património histórico-cultural. De acordo com dados da "Paraná Turismo", atualmente a maior parcela do universo de visitantes que visitam o litoral destina-se ao setor central, totalizando 66% dos visitantes. O setor Norte, que compreende o município de Guaraqueçaba, atrai apenas 1% dos visitantes do litoral; enquanto que o setor Sul concentra 12% do total de visitantes que passam pelo Litoral Paranaense.  &LGDGHVFRVWHLUDVGR$OJDUYH A área do Litoral Algarvio está localizada ao sul do país e a uma distância de aproximadamente 250 km da Região Metropolitana de Lisboa, sendo as principais ligações rodoviárias feitas pela autoestrada A2/IP1 ao Algarve-Centro, pela Estrada Nacional N125 que atravessa longitudinalmente toda a região e pela via rápida IP2/IC2, esta estrutura viária remete ao desenho de um tridente )LJXUD . A região é composta pelos concelhos de Albufeira, Alcoutim, Aljezur, Castro Marim, Faro, Lagoa, Lagos, Loulé, Monchique, Olhão, Portimão, São Brás de Alportel, Silves, Tavira, Vila do Bispo e Vila Real de Santo António )LJXUD  , tendo uma área de 5.412 km² e uma população de 451.005 habitantes (Censos, 2011). Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, a região recebeu, em 2012 cerca de 3,05 milhões de turistas. A população permanente verificada no último Censo (2011) distribui-se de forma desigual entre estes sete municípios o que, combinado com a diferença de área territorial, resulta em densidades diferentes. Destaca-se Loulé, com maior percentagem da superfície total (15%), maior percentagem da população (21%) e menor densidade; e Faro com apenas 4% da superfície total e com 19% dos habitantes e maior densidade.

PNUM 2016 438

 )LJXUD. Costa do Algarve (160 km) com as rodovias e os centros urbanos (população total de cada município).

  &LGDGHVHPUHGHPHGLGDVVLQWiWLFDV A Sintaxe Espacial (também conhecida como Teoria da Lógica Social do Espaço) foi desenvolvida, em Londres, por Bill Hillier e colaboradores, nos anos 1970, na University College London e editada no livro “The Social Logic of Space”, em coautoria com Julienne Hanson (Hillier e Hanson, 1984). A análise configuracional sintática das cidades em rede permite o exame e medição das relações topológicas existentes na malha de espaços públicos de circulação e a verificação de correlações com fenómenos urbanos. A medida sintática de integração é a principal, em que a integração pode ser local ou global. A integração global, denominada também de integração Raio-N (RN), é a integração de uma linha com todas as outras linhas de todo o sistema (em que "n" é o número total de linhas axiais do sistema avaliado) (Medeiros, 2006). A integração local corresponde à posição relativa de cada espaço com todos os demais, até uma profundidade limitada (RN). A medida sintática denominada “choice” (escolha) é a mais apropriada para apreender rotas de movimento. Assim, enquanto a medida de integração revela a tendência de concentração de fluxos de veículos e pessoas, a medida de “choice” expressa quantas vezes um determinado eixo é atravessado para a realização dos percursos relacionados com o caminho topológico mais curto. Os resultados são apresentados de forma gráfica e alfanumérica pelo programa Depthmap. Na representação gráfica, as cores indicam a integração dos eixos, em que as mais quentes (tendentes ao vermelho) indicam eixos mais integrados, e as cores mais frias (tendentes ao azul) indicam eixos mais segregados. A )LJXUDexpressa as análises dos mapas axiais, com as medidas sintáticas de integração global (HH) e "choice". A integração está associada ao movimento de atração condicionado aos níveis de acessibilidade dados pela configuração da malha. A medida de "choice" está vinculada às rotas possíveis de deslocamento entre origens e de destinos. PNUM 2016 439

/LWRUDODOJDUYLR

a)

b)    /LWRUDOSDUDQDHQVH

c) d)   )LJXUD. Cidades do litoral algarvio (a, b) e paranaense (c, d) em rede: Mapas axiais de "choice" (a, c) e integração global (b, d). PNUM 2016 440

Quanto à posição dos eixos viários na malha dos centros urbanos, foram identificadas três situações: inserida, tangente e terminal. Para uma aproximação de leitura, os valores de integração HH, HH3 e "choice" foram divididos em quartis e identificados os valores das medidas sintáticas das linhas axiais pertencentes às rodovias e posicionadas segundo os quartis, conforme demonstrado na )LJXUDE. a) Comparação de medidas sintáticas das redes de cidades.

Choice (escolha) número de linhas axiais mínima média máxima

Cidades

Integração Global (HH)

Integração Local (HH3)

mínima

média

mínima

minima

média

máxima

Litoral algarvio

6 284

0

0,010

0,833

0,207

0,325

0,494

0,333

1,431

4,046

Litoral paranaense

6 308

0

0,009

1,155

0,113

0,401

0,659

0,333

1,687

4,938

b)

Comparação da posição de eixos viários e medidas sintáticas na malha urbana. RODOVIAS

CIDADES

DENOMINAÇÃO



NÚMERO DE LINHAS AXIAIS



POSIÇÃO NA MALHA URBANA

terminal

tangente

MEDIDAS SINTÁTICAS - QUARTIS

Choice (escolha)

inserida 1

2

3

Integraçaõ global (HH) 4

1

2

Integraçaõ global ( HH3)

3

4

1

2

3

4

33%

33%

33%



LITORAL ALGARVIO ALBUFEIRA

 

QUARTEIRA

 FARO

 

OLHÃO

 

TAVIRA



N395

6

100%

83%

17%

M526

9

100%

78%

22%

N396

2

100%

M527-2

5

N125

4

25%

22%

100%

78% 100%

100%

100%

20%

75%

100%

25%

20%

60% 75%

IC4

2

100%

100%

100%

N2

1

100%

100%

100%

M522

8

N125

4

N516-3

5

40%

100%

N2-6

3

100%

100%

N125

13

100%

N270

1

100%

N397

3

M514-2

2

13% 20%

40%

50%

88%

100%

100%

100%

62%

13%

88% 13%

20%

20%

20%

100%

50%

100%

40% 100%

31%

46%

100%

100%

88%

54% 100%

67%

33% 50%

50%



LITORAL PARANAENSE



PARANAGUÁ

 MORRETES



ANTONINA MATINHOS PONTAL DO PARANÁ

BR277

2

100%

100%

100%

PR407

1

100%

100%

100%

100%

100%

PR508

4

100%

PR411

3

100%

100%

PR408

13

77%

100%

PR408

3

PR412

18

PR508

6

PR412

18

PR407

1

15%

8%

100% 17%

6%

78%



94% 100%

23%

23%

33%

33%

33%

28%

6%

94%

33%

6%

100% 28%

100% 6%

100% 8% 44% 100%

44%

22%

100% 100%

)LJXUD Comparação entre as redes de cidades: medidas sintáticas (a) e a posição dos eixos viários na malha urbana (b).

PNUM 2016 441

46%

94% 100%

Sabe-se que são diversos os fatores que influenciam a escolha dos caminhos entre origens e destinos nos sistemas urbanos. Entre esses fatores estão aqueles que são influenciados pelas variáveis configuracionais. Assim, a relação da medida de integração com o movimento foi aplicada na interpretação da posição dos eixos viários dentro da classificação de quartis. Esta medida revela a tendência de concentração de destinos de viagens provenientes de diferentes origens, dispersas na malha da rede como um todo. Os eixos viários que se situam no quarto quartil são as mais integradas no sistema, quer globalmente, e/ou localmente. No sistema rodoviário do litoral algarvio destacam-se os eixos: N396 (Quarteira), IC4 e N2 (Faro) e N2-6 (Olhão). Contrariamente, os valores mais baixos, no primeiro quartil, encontram-se nos eixos N397 e M514-2 (Tavira). No sistema rodoviário do litoral paranaense destacam-se os eixos que dão acesso à cidade de Paranaguá, BR277, PR407 e PR508, com todos os valores no quarto quartil. A comparação direta entre os dois sistemas redes, do litoral algarvio e do litoral paranaense, permitiu identificar algumas observações relevantes quanto à relação dos eixos viários na rede geral e no sistema urbano. Identificou-se que o sistema rodoviário do litoral algarvio é composto por dois eixos viários principais paralelos à margem, a N125 e a A22. Estas infraestruturas viárias exibem diferentes importâncias de "escolha" ao longo do seu percurso, sendo que na região do Barlavento (a poente de Faro) destaca-se com maior "escolha" a N125 e no Sotavento (a leste de Faro) a A22 ()LJXUD D), originando relações distintas com os núcleos urbanos que servem. Em Albufeira, a estrada municipal M526 faz a ligação entre o centro do núcleo urbano com a N125, à semelhança de Faro, que também tem uma estrada municipal que liga à N125, e de Olhão, cruzada pela mesma estrada nacional, sendo estes três casos exemplos da relação "terminal", ou seja, o eixo termina no centro urbano. Contrariamente, Quarteira e Tavira não têm uma infraestrutura viária de grande "escolha" que atravesse o núcleo urbano, mas sim que bordeja a periferia, sendo exemplo do tipo de relação "tangente" ()LJXUDVD-H . O sistema rodoviário do litoral paranaense é composto por dois eixos de distribuição perpendiculares: o grande eixo que liga Curitiba a Paranaguá (BR277) e que segue para o litoral (PR407) e a perpendicular (PR412) que acompanha a margem entre Pontal do Paraná e Matinhos. A relação deste último eixo de grande "escolha" com estes dois centros urbanos é semelhante: a grande "escolha" ao longo do seu percurso perde-se na chegada à rede local do núcleo urbano, ou seja, são do tipo "terminal" na periferia ()LJXUDVLe M). Pelo contrário, o núcleo urbano de Paranaguá recebe o cruzamento destes três eixos (BR277-PR407-PR412) sendo um exemplo de redes viárias "inseridas" no núcleo urbano ()LJXUD K). Resta-nos a relação do eixo BR277 no núcleo urbano de Morretes, do tipo "terminal", e Antonina que, ficando em situação periférica, tem o eixo PR408 do tipo "terminal" de baixa "escolha" )LJXUDVIe J).

PNUM 2016 442

a)

b)

f)

g)

c)

d)

e)

h)

i) j)    )LJXUD. Relação das rodovias nos núcleos urbanos das cidades: Mapas axiais de "choice": a) Albufeira, b) Quarteira, c) Faro, d) Olhão, e) Tavira, f) Antonina, g) Morretes, h) Paranaguá, i) Matinhos e j) Pontal do Paraná.

 &RQVLGHUDo}HVILQDLV Os contrastes a serem destacados referem-se às estruturas gerais das costas, em termos de dimensão e desenho. Em relação aos dados populacionais, o litoral do Paraná recebe uma média de 1.5 milhões de turistas por ano, enquanto que o Algarve recebeu 3.05 milhões de turistas no ano de 2012. Na costa Paranaense, existe um grande salto entre o grupo das pequenas cidades (entre 10.000 e 30.000 habitantes) e a grande cidade de Paranaguá (140.469 habitantes). Na costa algarvia, existe uma maior homogeneidade, variando entre 26.000 e 70.000 habitantes, aproximadamente. A partir do resultado destas combinações foram alertadas questões referentes à acessibilidade que refletem diretamente no desempenho do sistema urbano, principalmente para as questões turísticas. Apesar das limitações que o método utilizado acarreta, é possível fazer uma leitura transversal a diferentes escalas í região e municipal í, relacionando de forma quantitativa os centros urbanos com as suas redes urbanas. A identificação de "tipos" de relação í terminal, tangencial e inserida í entre eixos viários e malhas urbanas, em dois casos de estudo distintos (Brasil e Portugal) permitirá aplicar este método noutras análises congéneres. Será de esperar que continuem a ser feitas leituras complementares, em particular à escala local, confrontando região-município-freguesia, colmatando esta PNUM 2016 443

investigação com um estudo pormenorizado da área envolvente à chegada dos eixos viários mais integrados/maior índice de "escolha". 5HIHUrQFLDVELEOLRJUiILFDV Hillier B, Hanson J (1984) 7KH6RFLDO/RJLFRI6SDFH, Cambridge University Press, Cambridge. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2014) &HQVR [acesso em www.ibge.gov.br/ em 11/03/2015]. Medeiros V (2006) 8UELV%UDVLOLDHRODELULQWRGDVFLGDGHVEUDVLOHLUDV. Brasília: EdUnB. Ministério do Turismo (PRODETUR/Brasil) (2012) 3ODQR GH'HVHQYROYLPHQWR,QWH

JUDGR GR7XULVPR 

6XVWHQWiYHO (PDITS) – Polo Turístico do Litoral Paranaense, Curitiba. Pacheco M, Siva J, Heitor T (2015) Mapping urban change. The adaptive capacity of coastal fishing villages: The Algarve (Portugal) and Paraná (Brazil), WK,QWHUQDWLRQDO6SDFH6\QWD[6\PSRVLXPLondon. Pinto A (2012) $ ,PSODQWDomR GH &RQWRUQRV5RGRYLiULRVH  $V 7UDQVIRUPDo}HV GD)RUPD8UEDQDGH3HTXH QDV &LGDGHV (VWXGR GH&DVRGD 5RGRYLD 56 HP6mR)UDQ FLVFR GH$VVLVH6DQWLDJR56 , dissertação de mestrado, Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. SETU (Secretaria de Estado do Turismo/Paraná) (2006) (VWXGRGHGHPDQGDWXUtVWLFD/LWRUDOGR3DUDQi2000-2006, SETU: Curitiba. acesso em www.setu.pr.gov.br em 11/03/2015]. Silva J, Pacheco M, Heitor T (2014) Orlas costeiras do Paraná e Algarve: similaridades e contrastes, ;9,&RQJUHVVR ,EHURDPHULFDQRGH8UEDQLVPR Sintra. Silva J, Pacheco M, Heitor T, Pereira G (2015) Paisagens urbanas em transformação: as cidades litorâneas de Paranaguá (Brasil) e Faro (Portugal). Uma análise configuracional, 31805HGH/XVyIRQDGH0RUIRORJLD8UEDQD 3RUWXJXHVHODQJXDJH1HWZRUN2I8UEDQ0RUSKRORJ\ Brasília. Villaça F (2001) (VSDoRLQWUDXUEDQRQR%UDVLO, Nobel, Fapesp, Lincoln Institute od Land Police, São Paulo.

PNUM 2016 444

Mobilidade acelerada: o hinterland entre Sines e Madrid João Teixeira, Paulo Tormenta Pinto Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), DINAMIA-CET-IUL, Lisboa, Portugal Avenida das Forças Armadas Edifício ISCTE 1649-026 Lisboa, Portugal, Telefone/fax: 00 351 210 464 031 [email protected]

  Resumo No início do séc. XX, na revista Ilustração, o jornalista Reinaldo Ferreira publica num dos seus artigos o sonho «juliovernesco» de um engenheiro alemão, em que todos os continentes estariam ligados através de uma grande infraestrutura: a ponte. O Velho Continente ligar-se-ia ao Novo e em Lisboa erguer-se-ia a Gare Europa-América, uma infraestrutura de múltiplos usos e comodidades que alteraria completamente a dinâmica urbana desta cidade da periferia europeia. Em 1980, com o projeto Euralille, Rem Koolhaas acabaria por confirmar a capacidade dinamizadora de uma infraestrutura igualmente múltipla na cidade francesa de Lille, aparentemente confinada à sua condição industrial e fronteiriça. Em Portugal, a cidade de Sines - única cidade portuária do litoral alentejano – aparenta padecer, desde 1970, de uma condição industrial inerte. O grande embate infraestrutural que sofreu, com a criação de um grande porto de águas profundas, não foi suficiente para despontar o crescimento industrial e urbano ambicionado. As infraestruturas sempre foram elementos decisivos na conexão e desenvolvimento das cidades com o território, permitindo o controlo securitário e a exploração do mesmo. No entanto, a atuação num sistema infraestrutural global é uma oportunidade de transformação que atingirá e alterará os sistemas micro, e essa atuação pode e deve ser questionada. O país contemporâneo apresenta uma organização territorial diferente daquela que tinha no início do século XX. Sobretudo nos últimos vinte anos, Portugal infraestruturou-se reforçando a sua integração na Europa. O último grande plano de conexão é o Comboio de Alta Velocidade (CAV). O principal troço deste projeto é a ligação Lisboa-Madrid que, ao ser estabelecida, conectará a Europa Ocidental à Europa Central. No entanto, entre Sines e a Estremadura espanhola existe um território quase esquecido. Quais as vantagens que o Alentejo poderá ter com a passagem do CAV? Conseguirá a alta velocidade potenciar a competitividade do porto de Sines? As novas realidades infraestruturais foram (serão) um impulso para desencadear as relações de enlace e sobreposição gramatical entre o urbano e o rural. O discurso contemporâneo vira-se para estes territórios em ebulição, sôfregos de entendimento, e nos quais as infraestruturas têm um papel fulcral no seu desenvolvimento. Mas, por ventura, não estaremos a caminhar em direção a uma morfologia territorial e urbana totalmente equilibradas? Palavras-chave Infraestrutura, Mobilidade, Mutação territorial PNUM 2016 445

1. Infraestrutura e globalização Na Lisboa dos anos de 1920, no rescaldo do Futurismo Português e da 1a República, a sociedade portuguesa delira com as reportagens do mais famoso jornalista do início do século XX, o Repórter X. Nos seus trabalhos, Reinaldo Ferreira (1897-1935) descreve da forma mais fantasiosa os sonhos, as conspirações e os enredos da sua contemporaneidade. Num dos seus textos, publicado a 16 de Novembro de 1926 na revista Ilustração, o jornalista preconiza um quadro de globalização eminente. Partindo dos primeiros planos para a abertura do Túnel da Mancha em 1805, descreve em “O Sonho das Pontes Transoceânicas” a visão de um engenheiro alemão, na qual todos os continentes estariam ligados através de uma grande infraestrutura: a ponte. Apesar de cessados os planos para o grande túnel submarino, o Repórter X acredita que “(...) não faltam nas almas as vibrações de solidariedade humana que levam, arrastam os homens para um mais íntimo convívio, reduzindo as distâncias e facilitando os meios prácticos de comunicação”.1 Neste grande sonho "juliovernesco” alemão, a grande ponte teria duas conexões de realização urgente: a ponte do Estreito de Gibraltar, para ligar a Europa a África, e a ponte transatlântica para ligar o Velho ao Novo Continente, que partiria de Lisboa em direcção a Boston. Ao afirmar que “(...) o embarque lógico seria em Lisboa [,] Em Monsanto se ergueria a gare Europa-América”2, o relato do jornalista português ganha uma entoação arquitectónica:

(...) seria um gigantesco edifício de oito andares, levantado sobre a cova onde se encontra actualmente o presídio. Dentro da gare de Monsanto o viajante encontraria as comodidades civilizadas para se demorar o tempo que lhe apetecesse. Hóteis, restaurantes, music halls, cinemas, grillrooms, dancings...3 Permanentemente, a estação teria cinco mil pessoas e “no último andar ficava a plataforma da ponte que atravessaria o Atlântico”, onde grandes máquinas “(...) de quarenta e tantos vagões” partiriam.4 Tal como Reinaldo Ferreira, também Rem Koolhaas recorre ao seu discurso para expressar a “(...) sua ideia sobre o que ‘a cidade poderia ser’”.5 No fim da década de 1980, em consequência da abertura do já mencionado Túnel da Mancha, o visionário arquiteto holandês é a grande aposta para “(...) um novo FHUUHLUDR (2002) O Sonho das Pontes Transoceânicas, Jornal Arquitectos, 206, 97 -101. Idem. 3 idem. 4 idem. 5 LRXUHVMF(2006) Fronteiras do projecto: previsibilidade e imprevisibilidade, IX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, São Paulo. 1 2

PNUM 2016 446

paradigma de urbanismo (...)” pensado para a cidade francesa de Lille, “(...) lugar estratégico da Europa das regiões e de cruzamento dos grandes eixos de comunicação”6 – a Euralille. Através da capacidade dinamizadora de uma infraestrutura múltipla, o novo centro da capital da Flandres francesa iria ganhar uma “(...) estação de TGV, um pavilhão de congressos e sala de concertos, centros comerciais, casino, hotéis, edifícios de escritórios e de habitação (...)”.7 No entanto, nos cerca de sessenta anos que separam o Repórter X de Koolhaas, é interessante descortinar nos dois discursos a noção de imprevisibilidade associada a tais projectos. “Pode-se lá descrever o que seria então a vida de Lisboa?!” - pergunta Reinaldo Ferreira, rematando o seu texto;8 “(...) it is the arduous task of the final part of this century (...) to deal with the extravagant and megalomaniac claims, ambitions and possibilities of the Metropolis openly.” – afirma Koolhaas.9 Ao longo da História, as infraestruturas foram o elemento que permitiu a exploração e a apropriação do território, possibilitando a formação de aglomerados urbanos e rurais. É na própria condição geográfica do território, na qual assentaram as primeiras vilas e cidades, que se reconhece o primitivo sistema infraestrutural: linhas de festo, linhas de cumeeira, promontórios, meia encosta, vales, rios, baías, etc. Será este sistema infraestrutural natural que, funcionando “(...) como estrutura esquelética de suporte inicial (...)”, permitirá assimilar física e geograficamente os aglomerados, verificando-se a coexistência e sobreposição de elementos-chave territoriais e urbanos10. É possível afirmar que, até um certo período, a persistência de um traçado, em detrimento dessa mesma condição geográfica, impôs ao território e à paisagem a sua incorporação, fazendo com que este ganhasse importância identitária e desencadeasse novas transformações adjacentes a si11. As persistências infraestruturais, que o geógrafo Milton Santos identifica como “rugosidades”, denunciam a “(...) passagem do tempo sobre um lugar”12 e são fatores importantes para a compreensão da cidade enquanto organismo vivo e mutável, “(...) que se organiza no tempo e não simplesmente se substitui.”13 Contrariamente, a ação infraestrutural atual parece descurar qualquer suporte geográfico-tipo para se instalar, “(...) condicionando a ocupação do território” por um lado, ao mesmo tempo que promove o seu consumo14. Tal facto deve-se, sobretudo, à mudança desta realidade infraestrutural que, outrora apenas física, passou também a ser virtual, potenciando o “efeito de relação distância-tempo” ao invés do “efeito AQGUDGH S (2011) Lille, a cidade-máquina da arquitectura, Público online. Idem. 8 FHUUHLUD, R (2002) O Sonho das Pontes Transoceânicas, Jornal Arquitectos, 206, 97 -101. 9 LRXUHV M F(2006) Fronteiras do projecto: previsibilidade e imprevisibilidade, IX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, São Paulo. 10 GUDoD J L C (2002) Metamorfose, Jornal Arquitectos, 206, 8-1. 11 BRJpD M; FUDQFRF M (2006) Desvios, Jornal Arquitectos, 225, 105-120. 12 Idem. 13 Idem. 14 LRXUHQoR N (2006) A arquitectura dos suportes, Jornal Arquitectos, 225, 38-41. 6 7

PNUM 2016 447

de proximidade”. A conectividade, a fluidez e a velocidade de ligação, passaram a ser fatores preponderantes nas “(...) lógicas do habitar, da escolha dos trajectos, dos meios de locomoção, [e] dos factores de actividades (...)”15, atuando como agentes que viabilizam e equilibram as cidades. Na segunda metade do séc. XX, a construção de um porto de águas profundas, na cidade de Sines, marca o início do processo de globalização contemporâneo português. No entanto, o grande embate infraestrutural que a cidade e a região sofreram não foi suficiente para despontar o crescimento industrial e urbano ambicionado. O sistema infraestrutural global, ainda que numa outra escala, é fundamental como suporte de um sistema económico e social estável. Visto que “(...) as actividades e pessoas localizam-se de forma a adquirir vantagens, (...) possibilidades de escolha (...)”, fazendo muito em pouco tempo, os elementos infraestruturais são um forte contributo para a competição geográfica, económica e social entre as grandes cidades mundiais16. No entanto, o confronto entre a escala global e local de uma cidade pode, por vezes, criar ruturas difíceis de restabelecer. O gesto infraestrutural aparenta reger-se, principalmente, segundo uma necessidade de modernização do sistema (além da facilidade de financiamento), deixando para segundo plano fatores de viabilização e competência do serviço, e para terceiro o seu desenho. É importante entender que intervir nesse sistema é uma oportunidade de transformação que atinge e altera os sistemas micro.17

18

Deste modo, os aeroportos, as autoestradas, as barragens, as grandes linhas

ferroviárias e os portos, são elementos transitórios fundamentais entre as escalas que a cidade e o território apresentam. 2. (Infra)Estrutura urbana e rural O país de hoje é muito diferente daquele que o Repórter X descrevia nos anos de 1920. ”Não há paisagens para sempre” 19, e aos olhos de Vidal de la Blanche, fundador da moderna geografia humana e regional, as paisagens devem ser tidas em conta como vestígios de constantes modificações, da “(…) forma como a sociedade se situa, apropria e transforma um território e tira partido do que lá possa existir.”20 Deste modo, observando o território português é possível entender o quão notórias são as grandes forças de mudança que sobre ele atuaram: o país infraestruturou-se; as vias de comunicação passaram a ter um enorme papel na transformação de todo o território, quer seja urbano quer seja rural. A facilidade de circulação de bens, serviços, pessoas e informação tornou possível alcançar lugares “(…)

'RPLQJXHVÈ (2006) Cidade e Democracia: 30 anos de transformação urbana em Portugal, Lisboa. LRXUHQoRN(2006) A arquitectura dos suportes, Jornal Arquitectos, 225, 38-41. 17 idem. 18 BDER A P (2006) Dos serviços à infraestrutura que os possibilita, Jornal Arquitectos, 225, 42-45. 19 DRPLQJXHV Á(2011) Vida no Campo, Porto, 15-68. 20 Idem. 15 16

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que antes se explicavam com o isolamento, pelo encravamento geográfico, ou pela falta ou má qualidade das comunicações (…)”.21 Estas transformações territoriais sucessivas permitem-nos entender que o discurso urbanístico e arquitetónico sobre o território é confuso e incapaz de descrever todos os fenómenos e transformações que nele acontecem. Atualmente, encontramo-nos “(…) na presença de uma nova realidade urbana (…) resultado da conformação de uma ‘geografia global’”22. De facto, quando observamos a Península Ibérica, numa imagem de satélite tirada à noite, é notória essa similitude urbano-geográfica global patente num território com algumas diferenças. Tanto em Portugal como em Espanha, existe um limite fronteiriço habitado entre o continente e o oceano. Um grande perímetro urbano que, à medida que cresce, se vai expandindo lentamente em direção ao vasto interior, por sua vez um território inóspito. Em Portugal, o geógrafo Álvaro Domingues identifica esse perímetro como sendo a “cidade linear”, uma mancha urbana litoral que se estende de Valença do Minho até Faro e onde vive atualmente a maioria da população portuguesa.23 No entanto, esta mancha urbana linear, resultante da conurbação24, acaba por se caracterizar por “um manto indistinto de matrizes diversas, construído sobre o somatório de gestos aparentemente decisivos, resultante da diversidade de políticas (…)”25, tornando “(…) conceitos hierarquizados de centro/periferia, urbano/rural ou cidade/campo (…) insuficientes para, sozinhos, permitirem a compreensão do funcionamento urbano”.26 Comummente, e segundo Álvaro Domingues, entendemos estes conceitos consoante uma sequência de factos: “a cidade cresce sobre o território ex-agrícola, absorvendo a população do êxodo rural. Esta população, por sua vez, alimenta o subúrbio e as periferias urbanas.” Por outro lado, o geógrafo também chama a atenção para outro fenómeno de transformação, a “mutação in situ da ruralidade (…)”27 Ao longo do séc. XX, à medida que as grandes cidades foram crescendo por via do desenvolvimento industrial e de serviços, também o campo sucumbiu às transformações da vida moderna com a industrialização da agricultura e sectores ligados à produção artesanal. De norte a sul do país, “(…) a metamorfose do urbano acompanha a metamorfose do rural, (…) acumulam traços de variegada origem e os remisturam em combinações inusitadas.”28 Esta transformação, sobretudo por via da industrialização e não por via da urbanização, é um dos principais fatores que explica “ (…) a metamorfose dos campos in Idem. )XUWDGR*0DFHGR5 (2012) Rural e Urbano: Da Urbanização do Rural à Ruralização do Urbano, Arqa, 101, 106-109. 23 PLQWR37 (2013) Pela CRIL de Algés à Expo com Pedro Botelho, PASSAGENS, 1, 242-248. 24 Conurbação – unificação da malha urbana de várias cidades em consequência do seu crescimento 25 PLQWR P T (2011) Suburbia: Metropolitanismo no Portugal Contemporâneo, Pós – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitectura e Urbanismo da FAUUSP, 30, 44-55. 26 MDUWLQV, I P (2012) A cidade é continua, o campo continua!, Arqa, 101, 102-105. 27 DRPLQJXHVÁ(2011) Vida no Campo, Porto, 15-68. 28 Idem. 21 22

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situ (…)”29: a implementação e desenvolvimento de uma industria local especializada, em conformidade com o legado do campo, saberes e produção artesanal tradicionais. O processo de modernização acabou por baralhar a designação de rural, considerado como tudo aquilo que subsiste económica, social e tradicionalmente pela atividade agrícola (agroflorestal e pecuária), e tornar-se-ia “(…) uma tendência de mecanização, especialização e industrialização que acabaria com o campesinato e com as especificidades das sociedades e culturas camponesas, os seus territórios e paisagens tradicionais.”30 Em boa verdade, mesmo com a modernização dos meios, o grande pico de atividade agrícola em Portugal deu-se a meio do século:

Em meados do século a agricultura e a sociedade rural alcançaram a sua maior expressão demográfica. A população activa atingiu, em 1950, mais de 1,5 milhões de pessoas, o que correspondia a um acréscimo de 300.000 nos últimos vinte anos e de cerca de 100.000 na década de 40. O declínio foi mais rápido: 1970 a quebra era já de um terço em relação ao úmero de 1950 e, onze anos depois, de mais de metade (…). Desde 1960 para 1970 a população activa agrícola diminuiu 30%. Em 1970 a parte da agricultura na população activa baixara para 30% e a sua contribuição para o Produto Interno Bruto caíra para 17% (…). No continente, em 1970-1974, a área semeada anualmente já caíra 23 % em relação a 1960-1964.31 Deste modo, começaram a ser sentidos os efeitos da desruralização: a dissipação da atividade económica agrícola, que se tornara improdutiva, e a alteração dos modos de vida e cultura rurais. Visto que “a evolução histórica do mundo mostra-nos uma tendência constante para a urbanização do modo de vida”32, a condição urbana acabaria por se sobrevalorizar em detrimento da condição rural. Contudo, essa sobrevalorização através da “(…) invasão de gramáticas operativas urbanas (…)”33 acabaria por proporcionar, não a extinção, mas a aproximação de dois mundos, até então distintos. Assim, surgem conceitos como o de “rurbanização” e “contra urbanização”, ambos fundamentados nos anos de 1970, que acabam por suportar um terceiro conceito: a “idealização do rural” ou “mundo rural não agrícola”.

Idem. DRPLQJXHV Á (2011) Vida no Campo, Porto, 69-76. 31 CRUGRYLO F, A política Agrícola e Rural Comum e a União Europeia, in DOMINGUES, Álvaro – Vida no Campo, Porto, 83. 32 LRXUHQoR N (2006) A arquitectura dos suportes, Jornal Arquitectos, 225, 38-41. 33 FXUWDGR G; Macedo R (2012) Rural e Urbano: Da Urbanização do Rural à Ruralização do Urbano, Arqa, 101, 106-109. 29 30

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A “contra urbanização”, conceito apresentado pelo geógrafo Brian Berry, assenta essencialmente na condição espácio-temporal da cidade no séc. XXI. Com o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, as relações económicas estabelecidas ganharam um novo dinamismo ao desprenderem-se de um lugar próprio para subsistir. Como o próprio nome indica, a “contra urbanização” prevê um distanciamento ou rutura (se formos mais radicais) face à grande cidade, pois a importância económica, laboral e capitalista que esta representava deixou de ser física para passar a ser virtual.34 Com esta alteração, os sistemas urbano e social acabam por se ajustar estabelecendo e dando importância a outro tipo de relações e fatores, nomeadamente aos naturais e humanos. No entanto, não devemos encarar a “contra urbanização” como uma procura da génese rural mas uma “ (…) procura [de] melhores condições de vida em ambiente rural.”35 Esta, também se irá dever graças à transformação que tal ambiente acabará por sofrer em consequência da “contra urbanização”, denominado “rurbanização”. Este conceito acaba por denominar um novo estádio, ou mesmo um novo fluxo, da condição rural, no qual o campo recebe a população urbana e esta, sucumbindo aos hábitos e rotinas da cidade, acaba por implementar no novo ambiente o “(…) estilo de vida da cidade.”36 Suportado por estes dois fenómenos, a “idealização do rural” contempla toda e qualquer referência que o ser urbano tem em relação ao campo. Poder-se-ia dizer que tenta atuar como uma máquina do tempo, conservando e protegendo os resquícios rurais da globalização. Na década de 1950, o filósofo alemão Martin Heidegger já previa esta ameaça. Os primeiros debates sobre a condição das cidades modernas sempre interpretou o mundo rural como sendo “ (…) o lugar de partida (…)”37, e no seu texto “Construir, Habitar, Pensar”, Heidegger explora a condição humana e os laços mantidos com o “ambiente existencial”, ao classificar a génese do habitar como uma crise não entendida como tal. Num cenário póssegunda Grande Guerra, em que grande parte da Europa se encontrava completamente destruída, Heidegger defendia que “(…) o ‘esquecimento do ser’ afastara o homem moderno do verdadeiro habitar (…) que o problema residia no ‘desenraizamento’ do habitante”.38 Com um discurso claramente antiurbano, a procura de Heidegger por uma autenticidade e poética rurais, acabaria por marcar e impor “(…) uma lógica conceptual dualista que tem persistido na teoria e na prática arquitectónicas”.39 A partir destas premissas, foram vários os teóricos que abordaram a necessidade de valorizar e preservar, quase de forma imaculada, as “(…) práticas do território rural ameaçado”.40 Segundo o geógrafo João Ferrão, o fenómeno da “idealização do rural” contempla três aspetos: “a conservação dos valores naturais, a CDOKHLURV A; DXTXH E J (2012) A Contraurbanização: paisagem e humanidade, VII Congresso Português de Sociologia, Porto 35 FXUWDGR G; MacedoR (2012) Rural e Urbano: Da Urbanização do Rural à Ruralização do Urbano, Arqa, 101, 106-109. 36 Idem. 37 DRPLQJXHV Á (2011) Vida no Campo, Porto, 69-76 38 BDSWLVWD LS (2012) Persistências rurais: entre a revelação crítica da realidade e a proposta ingénue da sua transformação, Arqa, 101, 20-21. 39 Idem. 40 Idem. 34

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procura de autenticidade face a um mundo cada vez mais globalizado e alienado, e a exploração turística dos espaço”.41 No entanto, a globalização é galopante e as ações de estratégia para a preservação desses elementos resumem-se sobretudo à sua teatralização, musealização e sacralização: Junto com o arado e a roda, marcas do próprio processo civilizacional, tudo o que vem das artes e dos ofícios da agricultura – carros, mós, noras, pipos, espigueiros, etc. – se converte em objecto cujo registo simbólico se desdobra ao mesmo tempo em relíquia, exorcismo, identidade, recordação (…). O rural contemporâneo vive do branding – as Aldeias de…qualquer coisa (…)42 3. Novos território: novas mobilidades, novas oportunidades? “As marcas e as memórias do Portugal profundo vão-se decompondo (…)”43 à medida que o campo se reorganiza e reconfigura por via da globalização. Pensemos no metropolitano de superfície do Mondego, planeado para romper o grande Pinhal Interior Norte e ligar os “subúrbios” à grande cidade. Que promessa de progresso poderá trazer ao interior português quase deserto? Para Rem Koolhaas, estes “territórios deixados para trás”, cuja referência identitária se perdeu para dar lugar a fenómenos de globalização, são um território “(…) estranho para experimentação genética (…)” e razão suficiente para o arquiteto afirmar que irá “voltar costas à cidade”.44 De facto, a ação infraestrutural em Portugal tem “(...) funcionado como modo de integração (...)”45 na Europa, e o último grande plano de conexão é o Comboio de Alta Velocidade (CAV). O principal troço deste projeto é a ligação Lisboa-Madrid que, ao ser estabelecida, conectará a Europa Ocidental à Europa Central. No entanto, entre a cidade linear portuguesa e a estremadura espanhola existe um território quase esquecido, abandonado. Quais as vantagens que o Alentejo poderá ter com a passagem do CAV? Conseguirá a alta velocidade potenciar a competitividade do Porto de Sines? Ao sucumbir a todas estas transformações, o discurso sobre o território português contemporâneo vira-se para estes territórios novos, cujas micro-estruturas, com funcionamento, regras e capacidade resiliente próprias, ajudam à sua coordenação. Porém, não estaremos a assistir ao início de um equilíbrio territorial? Com o fim de certezas e separações entre meios distintos (rural e urbano) e o início da sua

FHUUmR J (2000) Relações entre o mundo rural e o mundo urbano: evolução histórica, situação catual e pistas para o future, EURE, 16 (78). 42 'RPLQJXHVÈ (2011) Vida no Campo, Porto, 15-68. 43 DRPLQJXHV Á (2011) Vida no Campo, Porto. 44 In http://www.architectsjournal.co.uk/news/daily-news/rem-koolhaas-turns-back-on-cities/8221130 article 45 LRXUHQoRN(2006) A arquitectura dos suportes, Jornal Arquitectos, 225, 38-41. 41

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sobreposição e enlace, não caminharemos em direcção a uma morfologia territorial urbana totalmente equilibradas? Este é o território do caos, de incertezas, e ao mesmo tempo de “(…) persistência e mudança [e] sem identidade aparente (…)”46 de onde, acredita o arquitecto Eduardo Souto de Moura, sairá o homem novo.47

Referências bibliográficas FHUUHLUD R (2002) O Sonho das Pontes Transoceânicas, Jornal Arquitectos, 206. LRXUHVM F (2006) Fronteiras do projecto: previsibilidade e imprevisibilidade, IX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, São Paulo. AQGUDGH S (2011) Lille, a cidade-máquina da arquitectura, Público online. LRXUHV M F (2006) Fronteiras do projecto: previsibilidade e imprevisibilidade, IX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, São Paulo. GUDoDJ L C(2002) Metamorfose, Jornal Arquitectos, 206. BRJpDM; FUDQFR FM (2006) Desvios, Jornal Arquitectos, 225. LRXUHQoRN (2006) A arquitectura dos suportes, Jornal Arquitectos, 225. DRPLQJXHVÁ (2006) Cidade e Democracia: 30 anos de transformação urbana em Portugal, Lisboa. BDER AP(2006) Dos serviços à infraestrutura que os possibilita, Jornal Arquitectos, 225. DRPLQJXHV Á (2011) Vida no Campo, Porto. FXUWDGR G; MDFHGR5 (2012) Rural e Urbano: Da Urbanização do Rural à Ruralização do Urbano,  Arqa, 101. PLQWR P T (2013) Pela CRIL de Algés à Expo com Pedro Botelho, PASSAGENS, 1. PLQWR P T (2011) Suburbia: Metropolitanismo no Portugal Contemporâneo, Pós – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitectura e Urbanismo da FAUUSP, 30. MDUWLQV , P (2012) A cidade é continua, o campo continua!, Arqa, 101. CDOKHLURV A; DXTXH E J (2012) A Contraurbanização: paisagem e humanidade, VII Congresso Português de Sociologia, Porto BDSWLVWD L S (2012) Persistências rurais: entre a revelação crítica da realidade e a proposta ingénue da sua transformação, Arqa, 101. 

46 BDSWLVWD L S (2012) Persistências rurais: entre a revelação crítica da realidade e a proposta ingénue da sua transformação, Arqa, 101, 20-21. 47 Eduardo Souto de Moura conversa com José Adrião e Ricardo Carvalho (2006) Jornal Arquitectos, 225, 54-65.

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5. Práticas e experiências didáticas

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Aplicação do método das escolas inglesa e italiana de morfologia urbana na análise das cidades históricas de Minas Gerais: o caso de Tiradentes Larissa Bertu, Renata Pedrosa, Maria Cristina Teixeira, Marieta Maciel, Natália Achcar Laboratório da Paisagem. MACPS. Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais Rua Paraíba, 697, salas 404C e 201 – Funcionários. Belo Horizonte. Minas Gerais. Brasil. CEP 30130-140 Telefone/fax: +55 (31) 34098861 [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected]



Resumo O presente trabalho consiste na apresentação da experiência da aplicação de métodos das escolas inglesa e italiana de Morfologia Urbana na cidade histórica de Tiradentes/MG. O ensino sobre a morfologia urbana foi introduzido na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EAUFMG) pela disciplina de Morfologia Urbana oferecida no curso de Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável (MACPS). No ano de 2015, além dessa disciplina, o MACPS realizou o Curso de Extensão em Morfologia Urbana, com a participação não somente dos alunos e professores do mestrado, mas também da graduação e comunidade externa. Nesse curso, os alunos e professores tiveram a oportunidade de conhecer e discutir os conceitos de cada uma das escolas e os respectivos métodos de aplicação das teorias a partir de debates, apresentações de trabalhos e estudos de casos nacionais e internacionais. O curso foi estruturado em sete dias de aulas teóricas e dois dias de trabalho de campo. A cidade escolhida para aplicação dos conceitos das referidas escolas foi Tiradentes, uma cidade mineira de meados do século XVIII, que vem sofrendo várias transformações ao longo do tempo. Foi feita uma análise da cidade em diferentes bairros e enfoques, com o objetivo de reconhecer seu processo de formação a partir do estudo das formas e edificações, identificar os processos de expansão da cidade, compreender sua dinamicidade territorial e propor diretrizes urbanísticas que zelem pela preservação da paisagem urbana histórica de forma equilibrada com as necessidades de desenvolvimento e expansão urbana. Justifica-se tal escolha devido ao acelerado processo de transformação da forma urbana da cidade, com introdução de novas tipologias, ameaçando os aspectos morfológicos de formação cultural, especialmente de caráter colonial, além do fato de aproximar a comunidade acadêmica da população local. Para tal, a cidade foi dividida em 3 zonas de características distintas: o centro histórico, as áreas de expansão recente e os espaços livres de edificações. Em cada zona foi desenvolvida uma temática específica: os estudos tradicionais sobre a formação e evolução da paisagem urbana; as investigações sobre as transformações tipológicas advindas das políticas públicas e das expansões urbanas recentes; e as questões ambientais referentes aos espaços livres e à recuperação das paisagens. Cada eixo temático foi explorado por três equipes de trabalho à luz dos conceitos e metodologias das escolas inglesa e italiana de morfologia urbana, analisando a cidade em suas diversas escalas, do território à edificação, a partir da evolução da sua paisagem. Palavras-chave Morfologia Urbana, Cidades Históricas, Minas Gerais, Tiradentes. 

Introdução O método das escolas inglesa e italiana de morfologia urbana vem sendo aplicado na análise das cidades históricas de Minas Gerais pela equipe de estudiosos da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EAUFMG). O curso de extensão em Morfologia Urbana foi criado a partir da disciplina de Morfologia Urbana do Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável (MACPS) desta escola. Ele foi estruturado para apresentar conceitos das escolas de morfologia inglesa e italiana e sua aplicação na realização do trabalho de campo em Tiradentes, Minas Gerais, no qual buscou-se entender a área de estudo pela historicidade da sua paisagem. O objetivo desse curso foi instrumentalizar e trabalhar conteúdos e habilidades para interpretar situações que envolvessem identificação da forma



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urbana em cidade coloniais de Minas Gerais, bem como identificar abordagens relacionadas à estrutura urbana, lidar com conceitos e intervenções em conjuntos urbanos de preservação cultural e apresentar estratégias e propostas de intervenção. Pretende-se que, a partir da análise morfológica do território, possase avaliar as transformações ali ocorridas e definir políticas de planejamento da cidade que atendam tanto à necessidade de preservação quanto de transformação e expansão. Breve histórico da cidade de Tiradentes Tiradentes (Figura 1) é uma cidade localizada a 190 km de Belo Horizonte, originária do ciclo do ouro no período colonial brasileiro e que impulsionou a ocupação de Minas Gerais no fim do século XVII e no século XVIII. Localizada entre o Rio das Mortes e a Serra São José, surgiu de pequenos pousos instalados ao longo da rota que ligava a região ao litoral, que deram origem aos primeiros povoados, entre eles o de Santo Antônio do Rio das Mortes, hoje Tiradentes, fundado em 1702 (Campos, 2006).



Figura 1. Mapa de localização de Tiradentes Fonte: , acessado em 2016

Durante o século XVIII, a cidade teve sua primeira fase de forte expansão devida à atividade de extração do ouro. Em 1705 passou a Arraial Velho do Rio das Mortes, sendo promovida a Vila São José Del Rei em 1718 e a cidade em 1860, sob o mesmo nome. Somente após a proclamação da república, em 1889, recebeu o nome atual de Tiradentes. A ocupação do centro histórico se deu durante o século XVIII e início do XIX. Em meados do século XIX, a extração do ouro entrou em declínio e a cidade sofreu um processo de esvaziamento e abandono, mas devido à conservação do seu acervo arquitetônico e paisagístico, foi tombada em 1938 pelo SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje IPHAN. Para Salgado (2007), o tombamento contribuiu para a divulgação e valorização do acervo da cidade, ressaltando   PNUM 2016 458

seu potencial turístico. Nas décadas de 1960 e 1970, o turismo, ainda incipiente, alavancou o processo de recuperação da cidade. Os principais atrativos eram sua paisagem bucólica, emoldurada pela Serra São José, a tranquilidade, culinária e boa preservação de seu acervo histórico. A atividade turística se consolidou a partir da década de 1980, impulsionada pela criação de eventos na cidade, que passaram a ser sua principal atividade econômica e grande atrativo. Na década de 1990 essa atividade se intensificou, apoiada nas ideias de "cidade mercadoria" e "city marketing" (Campos 2012), provocando um aumento expressivo da população nos finais de semana. Muitos desses eventos são totalmente alheios à história da cidade e atraem públicos diversificados, que alteram significativamente sua dinâmica. Os conceitos das Escolas Inglesa e Italiana de Morfologia Urbana Os primeiros estudos morfológicos surgiram na Itália, nos anos de 1950, como questionamento da atuação dos modernistas nas cidades, especialmente, pelas propostas do tipo “arrasa quarteirões”, relacionandose, então a preservação histórica (Del Rio, 1990). Porém, a definição consensual do conceito da Morfologia Urbana remete aos anos de 1980 (Del Rio, 1990), o que, conforme Pereira Costa e Gimmler Netto (2015, 31), “é o estudo da forma urbana, considerando-a um produto físico das ações da sociedade sobre o meio, que vão edificando-o, ao longo do tempo”. A escola inglesa de morfologia urbana, representada por Michael R. G. Conzen, apresenta o conceito da visão tripartite do território, visão na qual o espaço urbano deve ser estudado em três escalas, a do plano urbano, a do tecido urbano e o padrão de uso e ocupação do solo. Com o objetivo de estudo da evolução das formas urbanas, busca-se a identificação e o entendimento do território nestas três categorias, o que permite visualizar a sobreposição de camadas históricas, que resultam em formas urbanas distintas. A metodologia da escola inglesa consiste na análise inicial do plano urbano, uma visão mais abrangente e que consiste na definição do arruamento e da estruturação territorial. Em seguida, o estudo foca no tecido urbano, "formado pelas quadras e lotes com tipos edilícios semelhantes" (Pereira Costa; Gimmler Netto, 2015, 65) e que, assim como o plano urbano, apresenta modificações perceptíveis a longo prazo. Investigando alterações no uso e na ocupação do solo, é possível, através dos remembramentos e desmembramentos dos quarteirões e lotes inferir mais precisamente sobre a velocidade e o modo evolutivo da cidade, intimamente relacionado a aspectos econômicos, culturais e sociais. O conjunto das diferentes análises define os processos evolutivos formais na paisagem. A Escola Italiana, fundada pelo arquiteto Saverio Muratori, elabora estudos a partir das tipologias edilícias, que são consideradas as estruturas da cidade mais próximas ao homem, analisando especialmente os tipos residenciais. Conforme Pereira Costa e Gimmler Netto (2015), os estudos tipológicos refletem o caráter social, econômico e cultural de um lugar e apontam que, em cada momento da história, o modo de construir se manisfesta a partir de questões culturais de um povo. “Esse fazer é inerente às pessoas e já enraizado como um protótipo na mente de alguém que se propõe a construir uma casa” (Pereira Costa; Gimmler Netto, 2015, 154), é a   PNUM 2016 459

chamada ‘consciência espontânea’, que, para os italianos, quer dizer que um edifício pode ser construído e reproduzido como um modelo, por representar a cultura de um grupo social, aflorada por suas tradições e heranças também culturais. Essa é a definição de tipo, que nesse caso de estudo envolve as edificações, suas variações e transformações ao longo do tempo (Pereira Costa ; Gimmler Netto 2015). Os tipos edilícios são definidos em básico e especializados. A tipologia básica é representada pelas residências – unifamiliares e multifamiliares –, consideradas as edificações mais próximas e de maior relação do homem com a cidade, onde ele permanece e vive por um longo período. Já os tipos especializados “são aqueles que têm funções específicas e se diferenciam na malha urbana da cidade por possuírem características mais complexas e apresentarem maiores proporções” (Pereira Costa , Gimmler Netto, 2015, 157). São representados por igrejas, instituições públicas, etc., ou seja, por edifícios que se tornam marcos referenciais com valores simbólicos, devido às suas funções, monumentalidade e localização (Pereira Costa ; Gimmler Netto, 2015). Ainda segundo Pereira Costa e Gimmler Netto (2015), Saverio Muratori faz uma analogia ao corpo humano, definindo que os edifícios são células que configuram os tecidos urbanos, que, conjuntamente, conformam os assentamentos humanos e a cidade. Com isso, pode-se dizer que a cidade é um organismo vivo composto por tipologias edilícias básicas e as especializadas. Em termos operacionais, uma análise tipomorfológica corresponde à identificação dos edifícios especializados e seus usos e à seleção e classificação das tipologias básicas residenciais. Após essa etapa, é definida a unidade edilícia básica mais representativa, que passa ser o objeto de análise (Pereira Costa ; Gimmler Netto, 2015). O curso de Morfologia Urbana O curso iniciou-se com o módulo teórico em que foram expostos os principais conceitos das duas escolas de morfologia urbana, além de estudos de caso de aplicações práticas dessas teorias em cidades brasileiras e estrangeiras. As aulas foram ministradas por professores da EAUFMG, convidados da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Universidade do Porto, Portugal. Foram realizados também estudos dirigidos e debates de textos que embasaram o trabalho de campo. A equipe contava com 9 professores e 27 alunos, que foram divididos em 3 grandes grupos com eixos temáticos distintos. O território da cidade também foi divido em 3 grandes áreas (Figura 2): centro histórico (1), novas ocupações (2) e áreas verdes livres (3), com a seguinte configuração: Grupo 01 – Área 1 – os estudos tradicionais sobre a formação e evolução da paisagem urbana. Grupo 02 – Área 2 – as investigações sobre as transformações tipológicas advindas das políticas públicas e das expansões urbanas recentes. Grupo 03 – Área 3 – as questões ambientais referentes aos espaços livres e a recuperação das paisagens.

 

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Figura 2. Divisão do território de Tiradentes em três áreas de estudo. Fonte: Curso de Extensão - Morfologia Urbana EAUFMG 2015 / editado pelos autores

No módulo prático na cidade de Tiradentes, os grupos se dividiram em subgrupos e buscaram, cada um em sua respectiva área, evidências espaciais das camadas históricas sobrepostas responsáveis pelas características paisagísticas atuais. Cada subgrupo analisou um aspecto específico da paisagem em sua área de estudo, à luz de uma das duas escolas de morfologia urbana. A aplicação dos métodos das tradicionais escolas de morfologia urbana para identificação da evolução urbana e tipológica requer certa aproximação entre indivíduo e território com o propósito de descortinar a imagem atual e compreender o processo evolutivo, para posteriormente apresentar reflexões, conclusões e proposições para a cidade. Após o trabalho de campo, foi realizado um workshop no qual cada grupo apresentou seus primeiros resultados e indicação para o trabalho final. Nos meses subsequentes, foram elaborados artigos com análises e conclusões de cada subgrupo, com o objetivo não só de apresentar a experiência e resultados desse trabalho, mas também servir de referência para outras cidades em situações semelhantes às de Tiradentes, com necessidade de conciliar evolução e crescimento com preservação da paisagem histórica. Aplicação dos métodos nos grupos de estudos

O grupo 1 aplicou metodologias das duas escolas, amparadas pelo levantamento histórico, afim de identificar e analisar as transformações no centro histórico (Figura 3). Seguindo conceitos da escola inglesa, buscou primeiramente reconhecer o caminho tronco, traçado orgânico originário da povoação, que, 

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acompanhando a topografia, delimitava ruas principais que ligam igrejas e edifícios públicos. Essa configuração definia grandes quarteirões com lotes longitudinais estruturados a partir da rua Direita no final do século XVII. As edificações deste período são alinhadas à testada do lote, com quintais ao fundo e ausência de afastamentos frontais ou laterais. Inicialmente térreas, na segunda metade dos setecentos, evoluíram para sobrados com funções comerciais e residenciais (Campos 2006), características abordadas para análise segundo a metodologia da escola italiana. A ampliação do sistema viário com o crescimento da cidade no século XVIII, acompanhou os acessos primários. A dinamização comercial e migratória da cidade teve como consequência a criação de caminhos que resultaram em novas articulações viárias até alcançar o traçado urbano identificado atualmente. Analisando as tipologias, identifica-se a substituição de usos das antigas residências centrais, hoje tomadas pelo comércio, restaurantes e pousadas, processo que culminou na expulsão da população autóctone e acelerada expansão urbana periférica. A análise geral dos quarteirões permitiu concluir que não houve mudança no traçado das quadras mas sim dos lotes que deixaram de ser tradicionais alongados e sofreram desmembramentos, porém, nota-se a permanência de vegetação nos centros dos lotes, fator importante na percepção ambiental e na qualidade paisagística. A intensa atividade turística e a concepção da cidade como cenário, bem como restrições advindas do tombamento, ocasionam “pastiches”, imitações de estilo que produzem falsos históricos e também contribuem para a descaracterizações do centro histórico original.



Figura 3. Imagem do centro histórico de Tiradentes. Fonte: Trabalho de campo - Curso de Extensão - Morfologia Urbana EAUFMG 2015



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 O grupo 2 atuou na área das novas ocupações com o objetivo de compreender o processo de evolução

urbana da cidade, a influência das políticas públicas no surgimento das novas ocupações e o impacto dessas transformações na paisagem urbana. O resultado foi a identificação de regiões morfológicas, ou seja, regiões com características morfogênicas semelhantes, de acordo com seu traçado, dimensão e formato dos lotes e densidade de ocupação. Ao longo do século XX a legislação exerceu forte influência no espaço urbano. Seu primeiro grande impacto veio com o tombamento do centro histórico em 1938, cuja conservação provoca a expansão da cidade para a periferia, movimento reforçado pela pressão da atividade turística nas décadas seguintes. Observa-se que a legislação existente não abrange a questão da paisagem urbana, que vem sofrendo descaracterizações constantes. As normas do IPHAN restringem-se à ideia de monumento isolado e não englobam a preservação da paisagem ou diálogo das áreas de expansão com o núcleo tombado. A lei 6766/79 de Parcelamento do Solo, ao fixar o tamanho dos lotes e quarteirões, determinou um traçado rígido em algumas zonas de ocupação recente, ignorando a topografia e questões da paisagem (Salgado 2007), contrastando com o traçado do centro histórico. É notável também a presença de grandes condomínios nas zonas de expansão, que apresenta tipologias bastante diferenciadas do restante da cidade. A Lei Orgânica Municipal previa a implantação do plano diretor desde 2006, uma vez que é um instrumento obrigatório para todas as cidades integrantes de áreas de especial interesse turístico. Mas em 2015 o mesmo ainda se encontrava em fase de aprovação. Campos (2012) considera que a falta do plano diretor é um dos maiores problemas de Tiradentes, proporcionando seu crescimento desorganizado.

O grupo 3, elaborou análises sobre as questões ambientais referentes aos espaços livres e à recuperação das paisagens, o estudo dos espaços livres públicos das praças, largos, ruas e cursos d’água e focou também nas unidades das faixas de hiato urbano, que são consideradas, pela morfologia urbana, como composta por espaços de uso institucional, com baixa densidade e com a predominância dos espaços livres em relação às áreas residenciais próximas (Figura 4). 

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Figura 4. Uso das edificações das unidades da faixa de hiato urbano identificadas em Tiradentes/MG Fonte: Maciel M, Simão K, Achcar N, Belo J, 2015. 

O estudo da morfologia urbana fez-se imprescindível para a compreensão da evolução dos centros urbanos históricos e para o entendimento da configuração territorial atual. A caracterização da paisagem urbana como produto da história cultural da região em que se insere está escrita no seu arranjo físico. A identificação dos períodos históricos e dos elementos morfológicos recorrentes em cada um deles demonstra como a paisagem se modifica e como esta deve ser gerida para que haja manutenção de características essenciais que permitam sua identificação e valorização.

Agradecimentos As autoras agradecem o apoio recebido da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Cientifico – CNPq e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES para o desenvolvimento desta pesquisa e apresentação deste artigo.   Referências bibliográficas Campos H R (2006) Transformações urbanas recentes em Tiradentes-MG: anos 80 e 90 do século XX. 183f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.



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Campos H R (2012) Espaço urbano e turismo em Tiradentes-MG in Revista Espaço Acadêmico, n°132, mensal, ano XI, ISSN 15196186. Cannigia G (2001) Architectural Composition and Building Typology-Interpretating basic building,Alinea, Florence. Conzen M R G (1981) Historical townscapes in Britain: A Problem of applied Geography,The Urban Landscape: Historical Development and Management - Papers by M.R.G. CONZEN, Academic Press, London, 56-74. Conzen M P (2004) Thinking about Urban Form: Papers on Urban Morphology, 1932-1998, Michael P. Conzen, Peter Lang AG, European Academic publishers, Bern. Del Rio, V (1990) Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento, Pini. , São Paulo. Gimmler Netto M M, Pereira Costa S,Lima T (2014) Bases conceituais da escola inglesa de morfologia urbana,In Revista Paisagem e Ambiente, V 33, USP, São Paulo, 29-48. Gimmler Netto M M (2014) A Paisagem de Ouro Preto, Dissertação Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável, Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Malfroy S (2011) Structure and Development Process of the city: The Morphogenetic Approach of SaverioMuratori, Structuralism Reloaded, Rule – based in Architecture and Urbanism, Edited ByTomášValena,Edition Axel Menges/ Stuttgart/ London. Marat-Mendes T, Cabrita M (2012) Morfologia Urbana em Portugal: percurso e visibilidade, in Sampayo, M., André, P., Marat-Mendes, T. (eds.) Morfologia Urbana nos Países Lusófonos,Atas da Conferência Internacional PNUM 2012 Portuguese Network ofUrbanMorphology,ISBN: 978-989-732-023-1 [http://hdl.handle.net/10071/3633], 1750-1781. Marat-Mendes T, Oliveira V (2013) Urban planners in Portugal in the middle of the twentieth century: Étienne de Groër and Antão Almeida Garret, Planning Perspectives, 28(1), 91-111. Meneguetti K,Pereira Costa S (2015)The fringe-belt concept and planned new towns: a Brazilian case study,Urban Morphology,19(1), 25-33. Moudon A (1997) Urban Morphology as an Emerging Interdisciplinary Field,Urban Morphology Forum,Birmingham,1.310. Oliveira V (2011),Avaliação em Planejamento Urbano, UPORTO editorial. Pereira Costa S(2006) As Paisagens urbanas históricas na Inglaterra – Um Problema de Geografia Aplicada. Tradução do artigo de Michael R.G. CONZEN HISTORICAL townscapes in Britain: A Problem of applied Geography. Pereira Costa S, Teixeira M (2014) The study of Urban Form In Brazil. ISUF, Dorchester. Journal of the International Seminar on Urban Form Dorchester: Dorset Press, V.18 , Number 2, 119-129. Pereira Costa S,, Gimmler Netto M M (2015) Fundamentos de Morfologia Urbana, Editora C/ Arte, Belo Horizonte. Rosanelli A,Pinsly D(2009) Forma urbana de que modo? Uma entrevista com Anne VernezMoudon,Vitruvius,Out/ Nov. Ano 9. V. 40. 75.



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Transformação de um Vazio Urbano Romano numa Nova Urbanidade para Romanina Tiago Rente1, Alexandra Saraiva1,2 Faculdade de Arquitectura e Artes, Universidade Lusíada Norte – Porto1 Rua Dr. Lopo de Carvalho 4369-006 Porto, Portugal, Telefone/fax: 00 225 570800 [email protected] [email protected] Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), DINÂMIA’CET-IUL2 Av. das Forças Armadas, Edifício ISCTE, Sala 2W4-d, 1649-026 Lisboa, Portugal [email protected] 

Resumo Este artigo resulta da investigação desenvolvida por Tiago Rente e orientada pela Professora Alexandra Saraiva e que coincidiu com a dissertação de Mestrado em Arquitectura, apresentada na Universidade Lusíada Norte-Porto, em Dezembro de 2015. A temática incide sobre os Vazios Urbanos, e questiona as suas utilizações como parte integrante da cidade, e de que forma compõe a sua identidade coletiva, de modo a poderem resistir aos avanços da cidade moderna atualmente globalizada. A proposta de concretização centrava-se num vazio urbano, na periferia da cidade de Roma, mais propriamente na região de Romanina, proposta desenvolvida na unidade curricular do Laboratorio di Sintesi Progettazione Urbanística, na Universidade de La Sapienza, em Roma. Autores como Guiseppe Strappa (2012), Saverio Muratori (2012), Gianfranco Cannigia (2002) foram determinantes, para o entendimento da cidade romana e as suas características. O ensaio projetual proposto divide-se em três momentos, a um cenário à macro escala, analisando toda a área e os pontos de interesse que a englobavam, em grupo. Em seguida e de forma individual, a proposta de intervenção à escala 1.1000 e finalizando, a concretização à escala 1.500. No fim, valida-se e reconhece-se a importância do ordenamento do território, bem planeado da cidade, feito, através de uma boa análise e leitura, não gerando os espaços expectantes, ou vazios urbanos.

Palavras-chave Vazio Urbano; Periferia; Intervenção; Roma; Romanina

 Morfologia Italiana: o lugar, a forma e a cidade Ao longo da segunda metade do século XX e da primeira década deste século, arquitetos como Gianfranco Caniggia, Gian Luigi Maffei ou Giancarlo Cataldi, tinham como ideia central, a história como processo do sentido de continuidade na prática arquitetónica. Por outro lado, Muratori define e desenvolve vários conceitos ligados entre si, que são fundamentais para o entendimento do território: tipo, tecido, organismo e história operativa. (Mareto, 2012) Segundo este arquiteto, o conceito de tipo não se individualiza senão numa aplicação concreta. O PNUM 2016 467

 

tecido não se individualiza na sua envolvente que é o organismo urbano. Por fim, o valor do organismo urbano só se concretiza na sua dimensão histórica, numa construção temporal que parte sempre das condições sugeridas pelo passado. Para Muratori, a crise arquitetónica que se vivia nos anos 50, baseava-se na presunção de se poder operar na cidade com maior eficácia, dividindo os fenómenos urbanos em aspetos cuja validade dependia de cada contexto concreto. O Planeamento urbano como a teoria do desenho urbano deixaram de ser instrumentos culturais enraizados na história, refletindo-se assim, no crescimento de uma abordagem positivista em relação ao edifício. Nos anos de reconstrução do pós-guerra, Muratori envolveu-se profundamente nos planos de habitação do Instituto Nazionale delle Assicurazioni (INA). Este arquiteto foi responsável, enquanto líder do grupo por alguns distritos da cidade de Roma, como por exemplo o Tuscolano. E concluído em 1963, Muratori foi responsável pelo notável atlas ‘Studi per una operante storia urbana di Roma’. Este estudo foi bastante contestado por jovens estudantes e por colegas do corpo docente de Roma, que não apoiavam os formalismos e tecnicismos do movimento moderno. Estas propostas entraram também em conflito com as propostas introduzidas alguns anos antes por Bruno Zevi, para quem Muratori era um académico e um tradicionalista. Convidado por Muratori, Caniggia aplicou o método de interpretação nos estudos sobre como uma cidade planeada de origem Romana. A interpretação do desenvolvimento urbano como processo de avanço e recuo no tempo, permitiu-lhe compreender, as casas em banda Romanas1. A preocupação fundamental de Caniggia2 era transmitir as ideias de Muratori em termos arquitetónicos, como tal Caniggia procurou simplificar e reduzir o seu sistema teórico. (Mafei, 2002) Giuseppe Strappa, dentro da mesma temática insurge-se e questiona, Quale método suggerire nello studio della periferia urbana-metropolitana non sapendo ancora cosa possa rivelare e quali aspetti, tra i tanti, - pur se incidentalmente incontrati ma non ancora noti- si vorrà analizzare, e infine, come essere conscienti che si tratti di quelli ricercati non avendone ancora piena conoscenza? (SWUDSSD,201278)

 Tendo sido o mote para uma investigação sobre o processo de formação das casas-pátio.



Este autor elege as cidades de Florença, Luca, Pisa e Bolonha, como os melhores exemplos de malha urbana, tipicamente romana. Cannigia organizou e analisou uma série de documentação gráfica apresentada cronologicamente. A formação da estrutura primitiva de cada uma das cidades foi analisada sobre mapas cadastrais e atuais, e ao mesmo tempo comparadas com a estrutura e material histórico existente, tendo como objectivo a reconstrução da ‘textura’ urbana, não comprometendo a restruturação e as demolições nas cidades atuais 



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Trata-se, afinal de questões aparentemente sem resposta que representam o non adozione de critérios de pesquisa, que são baseados nos dados sensíveis de conhecimento, quando o arquiteto procurava ainda o conhecido. A questão em aberto seria a relação sujeito/objectohermeneuta, que estava implícito no estudo de uma área periférica. Esta questão, tal como foi defendida por Strappa (2012), serve como introdução aos estudos sobre a questão dos serviços na zona periférica, mais precisamente na zona leste da cidade de Roma. Este arquiteto analisa as questões que giram em torno do problema geral da interpretação do espaço e da forma urbana, propondo uma reflexão crítica com base na essência dos vestígios visíveis em certos locais, dando uma interpretação através de sinais convencionais, que surgiram em alguns mapas históricos (Figura 1) que descreviam as paisagens romanas no século XVII. Este pensamento, gerou o problema das ‘terras’ periféricas, para um organismo urbano, que nos dias de hoje é bastante representado pelas medidas fenomenológicas. …della campagna campagna romana nel XVI secolo, ponendo il problema più generale di come e cosa cogliere del território periférico a un organismo hodierno, troppo spesso recepito e consapevolmente rappresentato nella forma soggettiva della noesi mediata dal vissuto intenzionale fenomenológico. (SWUDSSD, 201278)

         

  Figura 1. Plano Moderno de Roma [Fonte: http://www.maphouse.co.uk/antique-maps/italy/romesouth/M2146-rome-plan-of-modern-rome/]

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O espaço urbano surge, contrariamente a todas as visões sociais e com o objetivo de superar e reconhecer a historicidade. Cada leitura é constantemente submetida a um processo de análise seletiva, sendo um ato crítico e não dominado. Este discurso abre uma janela para o fenómeno da interpretação em busca do ‘necessário’ e é explicado através da natureza. Nesta relação entre a realidade objetiva com o seu elemento de valor (os sinais), Strappa refere o sistema dialético que o próprio sujeito deverá ter a um nível crítico, através da leitura das entidades reais, que expressam uma dualidade de ações praticadas. Onde qualquer mudança, refere o arquiteto, constitui uma leitura da realidade construída, e só faz sentido se for inserido no mesmo contexto. …è proprio dell’agire critico del soggetto operante in cui modificazione e lettura appaiono come enti (reali) che esprimono un dualismo funzionale di azioni concettualmente interdipendenti: “ogni modificazione, scrive, costituisce anche una lettura della realtà costruita ed ha senso se inserita nel contesto che, insieme, genera e dal quale è modificato. (SWUDSSD, 201279)

Simultaneamente Strappa (2012) abre a possibilidade de interpretar os fenómenos complexos, como é o caso da periferia, assumindo instrumentos de leitura projectual que unem inseparavelmente: a perceção da realidade e a sua consequente modificação. Piacentini, algumas décadas antes, em La Grande Roma sabe que deve distinguir entre as imagens e o conteúdo do arquiteto, incluindo papéis importantes em Roma, e funções urbanas que incluíam casos de resistência inovadora e casos de conservação. Piacentini entendia que deveria ter o trabalho de mediação entre o novo e o velho, incluindo programas públicos e desenhos particulares, encontrando assim, um papel importante da pessoa, no espaço da gestão da Arquitetura, em particular na cidade de Roma. (Vannelli, 2010) Strappa também divide o planeamento da cidade em partes, città por parti, composta por modelos arquitetónicos extraídos a partir da história da Arquitetura. Tentando entender os arredores de Roma, explicando os aspetos complexos do sistema periférico urbano. Pode-se afirmar que Roma foi uma cidade condicionada por vários arquétipos, por vários planos e vários fatores que a conduziram ao que encontramos nos dias de hoje. O maior desenvolvimento urbanístico aconteceu na época imperial, quando a cidade é dividida em 14 regiões. A cidade de Roma é pontuada de monumentos e praças de elevado valor histórico, enaltecendo a importância da historicidade numa grande barreira para o planeamento urbano da cidade. Dentro deste planeamento, a paisagem urbana de Roma distingue-se claramente da ortogonalidade das ruas e da altimetria dos edifícios. A cidade de Roma teve ao longo do tempo,



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três paisagens urbanas diferentes: a massa construída de cidade imperial, os núcleos dispersos da cidade medieval e a organização das ruas e monumentos. Roma é caracterizada por uma densa malha urbana, constituída por pequenos quarteirões e interrompida com momentos de pausa, onde surgem monumentos e praças. Segundo Aymonimo (1975174) ‘A cidade é um espaço constituído (…) pelo atropelamento de construções num espaço relativamente exíguo, pela constante sobreposição de monumentos nas mesmas zonas’. Roma é também caracterizada por ser uma cidade Europeia com um passado absolutamente singular, que nunca deixou de se renovar e de produzir novos tecidos urbanos e qualificados. Ayomonino (1990) durante a década de 70 realizou vários estudos e publicou-os dando conta da realidade italiana. 

  Figura 2. Plano Diretor de Roma, 1962 Fonte: RossiPO (2000) Roma guida all'architettura moderna, 1909-2000.Laterza, Bari, 237-249

 Em 1962, Roma desenvolve o plano diretor (Figura 2) num lento e contínuo processo de adição, sobreposição, intersecção e interpretação. Ao mesmo tempo, com o excesso de regulamentos e a

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falta de controlo, acaba por produzir uma situação descontrolada no planeamento da cidade, resultando, mais uma vez as áreas vagas, ou ‘vazios urbanos’. O novo plano pretende transformar radicalmente a qualidade urbanística da capital italiana, com o objetivo de estruturar toda a área metropolitana. Este plano define o controlo do crescimento da cidade e da sua área metropolitana, através de uma forte operação entre o crescimento urbano e a funcionalidade dos meios. Assim, este plano visa redimensionar o plano estrutural da rede de transportes públicos ferroviários e rodoviários, completando as vias já existentes e criando novos nós de ligação entre o metro e o comboio, que permitem responder às deslocações das populações, de modo a facilitar a descentralização. Esta medida veio combater o descongestionamento da zona central e qualificar a periferia urbana. Proposta de Intervenção O novo plano de Roma, adotado pelo conselho da cidade em 2003, envolve a construção de ‘novos centros urbanos e metropolitanos’, sendo um forte processo de requalificação urbana. O principal objetivo do novo plano é transformar a estrutura urbana de Roma, numa cidade monocêntrica para policêntrica, através da criação de polos de caráter urbano forte, capazes de definir uma nova centralidade. Ao longo da última década, a cidade estava a tornar-se numa cidade com a maior taxa de crescimento de empresas privadas, em particular no domínio da investigação, da inovação tecnológica e das comunicações. A ‘nova centralidade’ é sempre interpretada com fator de grande atratividade. Os novos centros são reconhecidos como ‘projetos urbanos’, caracterizados por uma elevada qualidade de design, rápida acessibilidade, qualidade do ambiente circundante, e forte integração de funções. A área de Romanina é um desses novos centros dentro da região metropolitana. O objetivo é transformar a área em branco, num coração novo para um setor urbano da cidade. O município de La Romanina está localizado no quadrante sudeste da cidade, numa área marcada por fronteiras urbanas da auto-estrada de Roma – Nápoles e pela estrada circular de Roma, mais conhecida por Via Tuscolana. A forma geral da área é caracterizada pelos contornos regulares, determinados pela presença destas estradas, e de diferentes partes do tecido edificado. No edificado verifica-se uma clara diferenciação nos usos, a parte mais a norte, perto da auto-estrada para Nápoles com edifícios para o comércio e escritórios, enquanto na parte a sul, principalmente com edifícios residenciais. Estas duas áreas diferentes estão divididas por uma faixa verde. A área de intervenção (Figura 3) é um vazio dentro de uma área urbana que já foi construída. O setor urbano



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em questão faz parte do X Município, com uma população de cerca de 181.000 habitantes. Esta parte da cidade tem sido historicamente desenvolvido ao longo da Via Tuscolana com a formação de algumas ‘vilas’. 

 Figura 3. Fotografia aérea de Romanina, com indicação da área de intervenção sombreada. Fonte: Fotomontagem do autor

No geral, a população deste setor urbano é de cerca de 67.300 habitantes (37% da população de todo municipio). A norte, a área é delimitada a partir da via Roma-Nápoles, para além da Segunda Universidade de Roma, Tor Vergata, com cerca de 600 hectares, dos quais uma parte já implementada e outra parte ainda em construção. Esta universidade desenvolve-se segundo um modelo de campus universitário com amplos espaços abertos. A área de Romanina é acessível a partir do aeroporto internacional Leonardo da Vinci, através da auto-estrada Roma-Fiumicino e da GRA3 e que sai do cruzamento com a Via Tuscolana. O segundo aeroporto de Roma, Ciampino encontra-se bastante perto, a aproximadamente dois quilómetros e acessível a partir da Via Appia Nuova através da GRA. A partir do centro de Roma, Romanina é acessivel da estação Termini com a nova estação Tiburtina. Para a realização do caso de estudo, o corpo docente da Università La Sapienza - Roma, definiu algumas restrições para o desenvolvimento do projeto. Pela dimensão o projecto e pela especificidade da Unidade Curricular 4 o trabalho pressuponha a utilização e manipulação de diferentes escalas de trabalho. A proposta desenvolvida à escala 1/1000 foi elaborada em grupo5, e  Grande Raccordo Anulare



Unidade Curricular de Urbanistica II, no ano lectivo 2013/2014, da responsabilidade do professor regente Domenico Cecchini. A informação disponibilizada aos alunos nesta unidade curricular ainda está disponível para consulta em: [http://www.cittasostenibili.it] (consultado em 30 de abril de 2016) 5 O grupo era constituído por três elementos: Eleonora Svegliati, Leonora Simiele e Tiago Rente. 

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só posteriormente à escala 1/500 é que cada elemento de grupo trabalhou apenas numa secção da áerea total de intervenção. O tamanho da zona de implantação correspondia a 92,6 hectares. A dimensão do projeto urbanístico consistia num volume de 1.600.000 metros cúbicos correspondentes a cerca de 500.000 metros quadrados de espaço. As funções tinham que seguir a lógica dos 25% do espaço de ocupação do solo para uso residencial e 75% do espaço de ocupação do solo para não residencial, podendo ocorrer uma certa flexibilidade. As normas técnicas do novo plano, previam a possibilidade de ser criado um novo núcleo central. Os modelos de planeamento determinavam uma área total de aproximadamente 36 hectares, dos quais pelo menos 20 hectares consistiam em áreas verdes públicas; os restantes 13 hectares seriam para realizar os parques de estacionamento públicos e cerca de 3 hectares de serviços básicos para as zonas residenciais. A partir da Via Tuscolana, mesmo na fronteira do recente plano de habitação pública, encontra-se a avenida arborizada de encontro a Officine Marconi6. Este edificio devia ser mantido e a avenida reutilizada, pois era um elemento significativo do ponto de vista histórico e que devia ser salvaguardado. A viabilidade do novo plano incluía uma série de construção de estradas públicas, cruzando a avenida, criando assim pontos de acesso à nova centralidade. Era tarefa dos alunos avaliar as oportunidades, qualidade e hierarquia destes acessos e caracterizá-los como acesso local, enquanto a acessibilidade principal poderia ocorrer com a artéria existente a norte. O projeto proposto deveria ter em consideração a questão da máxima integração com a área circundante. Isso significava definir padrões de acessibilidade com os bairros vizinhos e, quando possível, em continuidade com o tecido urbano existente. Com o objetivo de tornar a cidade permeavel á utilização dos próprios cidadãos. Deveria garantir a integração máxima de funções, dentro da nova localidade, perseguindo a meta de eliminação da segregação. E ao mesmo tempo direcionar as atenções para a construção do espaço público, como espaço contagiante coletivo e social. Dotando o espaço público como o coração da nova cidade: praças, ruas, aumentanto a qualidade e a atratividade deste. A rede viária, deveria implementar um sistema hierárquico ao viário e proporcionar acessibilidades a toda a área. Esta nova área, pretendia ser um marco urbano, reconhecido e identificado em toda a área urbana de Romanina.

  Um edifício marcante construído entre os anos trinta e os anos cinquenta, usado por um longo período de tempo pela empresa telefónica nacional como um centro de transmissão para chamadas internacionais.



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Deste modo foi particularmente importante a experimentação concretização da proposta 7 utilizando diferentes escalas de planeamento. Ao mesmo tempo, foi necessário a relação de hipóteses, critérios e reflexões sobre como proceder para permitir, por um lado, manter o valor de ‘sinal urbano reconhecível’ de todo o projeto e por outro lado, a qualidade arquitetónica generalizada e consistente. Os espaços verdes não demonstravam condições para serem utilizados, sendo meramente espaços expectantes ou espaços sobrantes, devido à transformação da cidade histórica, como foi referido anteriormente. Estas características negativas traduziram-se na falta de qualidade do edificado e/ou no seu abandono. Os quarteirões existentes eram caracterizados pelo seu encerramento, tornando-os desse modo em quarteirões privados, com pátios interiores acessíveis apenas aos moradores. A proposta previa quarteirões fragmentados, com passagens permeáveis até ao seu interior, acessíveis ao público através de pequenas aberturas estratégicas, ligando as estradas principais e também conectando com o grande espaço verde, do parque arqueológico. Uma vez que a fragmentação do quarteirão em bloco retiraria o espaço de convívio dos estudantes entre blocos, foi proposto a inclusão de ‘Pontes pedonais’. Estas pequenas passagens faziam cumprir o Plano Regulador de Roma, no espaçamento entre blocos. Ao mesmo tempo, estas pontes tinham também o intuito de contemplação dos utilizadores, que percorrendo e atravessando estes passadiços, poderiam vislumbrar todos os espaços verdes criados. Conclusão A proposta de intervenção é um modelo adaptado à realidade de Romanina. A centralidade urbana e metropolitana defendida pelo novo plano, considera Romanina uma microcidade, com uma identidade local significativa e ligada por relações especificas. A proposta final pretende ser uma resposta às necessidades deste local e da sua população garantindo a integração social e cultural desta comunidade. Impulsionando a reorganização, bem como, forçando a revitalização do tecido urbano existente. A comparação entre percursos concorrentes e divergentes, o reconhecimento da malha urbana, a compreensão da lógica induzida  Todos os elementos gráficos que foram entregues na Unidade Curricular estão publicados na dissertação de Tiago Rente (2015). Os elementos seguintes fazem parte do trabalho desenvolvido em grupo: Ambiti di programmazione strategica:quadri di unione - escala 1/20000; Centralità e Funzioni – escala 1/50000; Dal Centro storico alla Città storica – escala 1/50000; Infrastrutture per la mobilità – escala 1/50000; Sintese PGR – escala 1/50000; Tessuti e Centralità– escala 1/50000. Bem como os apêndices VII, VIII e IX, que correspondem a proposta de Tiago Rente de um sector da área total, desenvolvidos e apresentados à escala 1/1000 e 1/500. 

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na própria localização bem delimitada, são alguns dos meios de interpretação e de reconhecimento da estrutura morfológica das cidades e um processo indispensável para a compreensão da complexidade das cidades do presente. Em Romanina, a área de intervenção correspondia a um grande vazio urbano. O projecto proposto compreendeu a grande complexidade e a extensão das questões arquitetónicas, ambientais e sociais, implícitas a uma intervenção deste tipo. Potenciando assim um clima de igualdade de oportunidades e desenvolvimento para a área de Romanina.

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Além dos muros da Universidade: Intervenção urbana como forma de inclusão social - O caso da Comunidade da Margem da Linha em Campos dos Goytacazes/RJ Antonio Godoy, Clarisse Luna, Carolina Barreto, Daniela de Oliveira, Danielly Aliprandi, Fagner Oliveira Insituto Federal Fluminense, campus Campos Centro R. Dr. Siqueira, 273 - Parque Tamandaré, Campos dos Goytacazes - RJ, 28030-131 [email protected], [email protected], [email protected], [email protected] [email protected], [email protected]

Resumo O objetivo do artigo é demonstrar a importância da Universidade como elo entre a sociedade e o discente, quando os “muros” da academia são rompidos e os conhecimentos obtidos em sala de aula passam a ser aplicados na prática. Propomos apresentar como a prática didática pode impactar a cidade, como no caso da Comunidade da Margem da Linha em Campos dos Goytacazes/RJ, e como ela é indispensável na formação do aluno como cidadão e futuro profissional. Para isso, entende-se que a produção de conhecimento só se realiza plenamente se houver uma unidade entre os elementos da tríade: Ensino + Pesquisa + Extensão Universitária e deve ser tomada como base para o entendimento dos princípios dessa proposta. Assim, a Universidade não está focada apenas na formação de futuros profissionais, mas também na formação de mentes críticas. Este artigo aborda os resultados das experiências do Programa “Arquitetura, inclusão e cidadania: projetos de extensão para áreas de habitação de interesse social em Campos dos Goytacazes/RJ”, programa agregador de pesquisas e projetos de extensão do curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto Federal Fluminense. O programa que vem atuando na Comunidade da Margem da Linha, na qual alunos e professores vêm, em parceria com os moradores, com o Centro Juvenil São Pedro e com o Escritório Coletivo de Arquitetura e Urbanismo Social (ECAUS), escritório modelo do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF, desenvolvendo ações e projetos de intervenção urbana, qualificação de espaços livres e requalificação da moradia. Além disso, vem proporcionando argumentos em favor da dinâmica de luta por direitos da comunidade. A partir dos conceitos de extensão na Universidade e os exemplos de intervenções urbanas na Margem da Linha, conclui-se que a extensão interliga a Universidade nas suas atividades de ensino e de pesquisa com as demandas da população e possibilita não apenas a formação do profissional cidadão, mas também resultados significativos que aos poucos procura a superação das desigualdades sociais existentes. Palavras-chave Ensino. Pesquisa. Extensão Universitária. Inclusão Social.

 INTRODUÇÃO Diante da problemática das desigualdades sociais enfrentadas por comunidades carentes, mediante a exclusão socioeconômica no Brasil, os cursos de arquitetura e urbanismo focam, cada vez mais, não somente na formação de futuros arquitetos, mas também na formação de mentes críticas quando assume um compromisso social e, de alguma forma, seja por pesquisa, extensão ou ensino, intervem na realidade na qual está inserida. Nas suas atividades, possibilita resultados significativos, que aos poucos buscam não somente atender as demandas da população, mas também superar obstáculos das desigualdades existentes, conduzindo à reflexão, ao compromentimento ético e a alteridade. Busca-se uma prática aliada à teoria com o intuito de melhorar o ensino, gerar conceitos críticos e cidadania no aluno e futuro profissional, de forma que “nos tornamos capazes de comparar, de intervir, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos” (Freire, 1996, 16). PNUM 2016 477

A partir disso, este artigo objetiva reafirmar o papel da Universidade com o meio social, apresentando o exemplo do Programa “Arquitetura, inclusão e cidadania: projetos de extensão para áreas de habitação de interesse social em Campos dos Goytacazes/RJ”, que agrega pesquisas e projetos de extensão do curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF). Suas ações vêm gerando resultados significativos na comunidade carente local desde 2014, quando alunos e professores, em parceria com moradores, com o Centro Juvenil São Pedro (CJSP) e com o Escritório Coletivo de Arquitetura e Urbanismo Social (ECAUS), iniciaram ações e projetos de intervenção urbana, qualificação de espaços livres e requalificação da moradia. Em paralelo, argumentam em favor da luta por direitos da comunidade e da qualidade de vida dos moradores que resistem ao processo de remoção.

Ao longo do artigo, serão abordados temas como a importância da Universidade como elo entre sociedade, comunidade e discentes a partir do ensino, pesquisa e extensão; revisões bibliográfica e reflexões sobre a necessidade de ações sociais em comunidades excluídas; e, como exemplo, será apresentado o caso real e os resultados do programa de extensão atuante na Comunidade da Margem da Linha em Campos dos Goytacazes/RJ.

1 UNIVERSIDADE ALÉM DOS MUROS

Considerada, relativamente nova, a universidade brasileira surgiu na primeira metade do século XX, mas somente no final da década de 1950, o movimento estudantil organizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) chamou a atenção para as práticas nas universidades, iniciando uma nova perspectiva sobre o assunto. No fim dos anos 1950, início dos anos 1960, os estudantes universitários brasileiros, organizados na União Nacional dos Estudantes - UNE, empreenderam movimentos culturais e políticos reconhecidos como fundamentais para a formação das lideranças intelectuais de que carecia o país. Estavam assim definidas as áreas de atuação extensionista, antes mesmo que o conceito fosse formalmente definido. O fortalecimento da sociedade civil, principalmente nos setores comprometidos com as classes populares, em oposição ao enfraquecimento da sociedade política, ocorrido na década de 1980, em especial nos seus últimos anos, possibilita pensar a elaboração de uma nova concepção de universidade, baseada na redefinição das práticas de ensino, pesquisa e extensão até então vigentes. (FORPROEX, 2000/2001,1).

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Em meio ao cenário político da década de 1980, o empreedorismo das instituições em movimentos sociais desencadeou questionamentos quanto a aplicação das práticas de ensino, pesquisa e extensão, afirmando que estas deveriam ter um compromisso com a cidadania, com competência técnica e política. Isso fica evidente nos antecedentes do Plano Nacional de Extensão Universitária1 (PNEU) (2000/2001) mencionado no FORPROEX sobre o final da década de 1980:

A pesquisa, tanto a básica quanto a aplicada, deveria ser sistematicamente direcionada ao estudo dos grandes problemas, podendo fazer uso de metodologias que propiciassem a participação das populações na condição de sujeitos, e não na de meros espectadores. Esse tipo de extensão, que vai além de sua compreensão tradicional de disseminação de conhecimentos (cursos, conferências, seminários), prestação de serviços (assistências, assessorias e consultorias) e difusão cultural (realização de eventos ou produtos artísticos e culturais) já apontava para uma concepção de universidade em que a relação com a população passava a ser encarada como a oxigenação necessária à vida acadêmica (FORPROEX, 2000/2001).

Desta forma, o PNEU (2000/2001) define que as universidades públicas brasileiras são instituições criadas para atender às necessidades do país. Distribuídas em todo o território nacional e em toda a sua existência sempre estiveram associadas ao desenvolvimento econômico, social, cultural e político da nação, constituindo-se em espaços privilegiados para produção e acumulo de conhecimento e formação de profissionais cidadãos.

A partir deste plano, cria-se nova perspectiva e sentimento de responsabilidade social, a universidade passa a desenvolver a tríade: Ensino, Pesquisa e Extensão; com o objetivo de beneficiar a sociedade, gerar resultados significativos e produzir troca de conhecimentos sistematizados, acadêmico, cultural e popular, e consequentemente democratização do saber.

Na concepção de Libâneo (1994), o ensino é um meio de instruir e educar, mesmo não sendo o único, ele é o principal, pois se ajusta as ações, os meios e as condições na qual está inserido. O conceito de pesquisa, por sua vez, é amplo, e recebe várias conotações. A pesquisa deve ser vista como processo social que perpassa toda a vida acadêmica, do professor e do aluno. Não se pode falar de Universidade sem pesquisa se a compreendermos como descoberta e criação. Pesquisar, assim, é sempre produzir



Elaborado pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras e pela Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação e do Desporto apresenta histórico, concepção, conceitos, objetivos, metas, entre outros, para que, a partir de tais diretrizes, as universidades elaborem seus próprios planos de Extensão Universitária.

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conhecimento do outro para si e vice-versa. Pesquisar coincide com a vontade de viver, de mudar, de transformar, de recomeçar (Demo, 2005).

Com relação à extensão, Silva (2001) relata que os programas de extensão universitária possibilitam ao aluno vivenciar o fazer, o criar e o construir. Esta vivência é concretizada com a participação dos discentes em projetos oferecidos pelo curso em um processo de integração daquilo que ocorre fora da sala de aula e que possibilita o enriquecimento do processo de formação profissional. Por meio de projetos de extensão, são expostas as dificuldades encontradas e a clara intenção de mostrar a validade deste contexto, possibilitando ao acadêmico ter contato direto com o meio no qual está inserido.

Aragão et al. (1999) une estas três definições, afirmando que: o ensino é o ponto de partida para a apreensão do conhecimento; na pesquisa, o desconhecido é definido ou redefinido em termos sociais, partindo dos conhecimentos já existentes; e a extensão traduz–se pela importância do conhecimento apreendido e ampliado, aumentando seu alcance, menos assistencialista e mais caracterizada como intervenção no contexto social.

Percebe-se que o conceito da tríade Ensino-Pesquisa-Extensão se apresenta como importante ferramenta dentro das instituições de ensino, que, possibilita a participação das universidades nas discussões e na disseminação de conhecimentos. A partir desses conceitos, nosso objetivo é garantir à comunidade local mais próxima da nossa Instituição, qualidade de vida digna, respeitando as necessidades sociais, culturais e estéticas, buscando o equilíbrio do ambiente construído. Essa intervenção não possui fins lucrativos, apenas o ganho da vivência social, a troca de experiências práticas entre comunidade, discentes e docentes.

2 COMUNIDADES SOCIALMENTE EXCLUÍDAS

Ao se pontuar os conceitos de pobreza e de exclusão social, é possível notar as semelhanças entre eles. De acordo com Yasbek (2012), são pobres aqueles que, de modo temporário ou permanente, não dispõe do mínimo de bens e recursos sendo, assim, excluídos em graus diferenciados da riqueza da sociedade. A exclusão social, por outro lado, pontuada por Xiberras (1993 apud Zione, 2006, 21) como dificuldade de integração ou inserção na sociedade, existindo normas ou níveis os quais muitos indivíduos não conseguem alcançar.

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Portanto a população que vive na margem da sociedade convive com o sentimento de exclusão e, consequentemente, esquecimento, por não usufruir de seus direitos elementares e por participarem de um universo promovido pela rejeição de outras classes sociais. Nota-se, assim, que a pobreza e a exclusão social estão enraizadas na sociedade atual.

A tendência de discutir e analisar sobre esses temas da sociedade, ganha força a partir das mudanças, decorrentes das várias transformações no quadro socioeconômico e resultado do processo de globalização da economia capitalista, cria nova perspectiva da ordem social, como afirma Maricato (2008).

[...] a globalização também está produzindo um novo homem e uma nova sociedade por meio de transformações nos Estados, nos mercados, nos processos de trabalho, na estética, nos produtos, nos hábitos, nos valores, na cultura, na subjetividade individual e social, na ocupação do território, na produção do ambiente construído e na relação com a natureza (Maricato, 2008, 2).

Além de levantar debates, a busca pela mudança no cenário atual de exclusão social e pobreza faz com que ações acadêmicas ganhem maior expressão, visando interagir e modificar as atuais condições de desigualdade e exclusão na sociedade que está inserida. Um dos principais aspectos que afeta a questão da desigualdade social no Brasil é a moradia, sendo, objeto central de ações políticas. Ao longo dos anos, a administração pública recorreu a diversos projetos com o intuito de abranger questões relacionadas à habitação social. As intervenções feitas pelos governos Federal, Estadual e Municipal possibilitaram o acesso à moradia.

Desta forma, ações praticadas no IFF neste campo são as do programa “Arquitetura, Inclusão e Cidadania”, iniciado em abril de 2014, e as do ECAUS, buscando garantir o acesso de pessoas em comunidades em situação de vulnerabilidade social à uma assistência técnica gratuita2. Através desse Programa, foram realizadas atividades na Comunidade da Margem da Linha em Campos dos Goytacazes (Figura 1), com o objetivo de integração social e de requalificação da área para melhoria de vida dos moradores que enfrentam processo de remoção. As ações praticadas foram desenvolvidas em parceria com o ECAUS e o CJSP, que facilitou o contato com a comunidade, proporcionando maior proximidade da Universidade com a população.

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Com base na Lei nº 11.888/08.

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Figura 1. Localização da Comunidade da Margem da Linha no município de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro/Brasil. Fonte: Dos autores sobre Google Earth, 2015.

 A Comunidade surgiu a mais de quarenta anos no município, à margem da linha férrea, e sua remoção levanta discussões importantes e expõe questões políticas e sociais enfrentadas na cidade. Nos últimos anos, vem ocorrendo valorização imobiliária do entorno da comunidade, com empreendimentos de alto padrão na área: condomínios de luxo e Shopping (Figura 2). Concomitantemente, a comunidade começa a sofrer processo de remoção. Contudo a justificativa dada pela Municipalidade é que a comunidade se encontra em área de risco devido a proximidade com a linha férrea, não respeitando o afastamento necessário do eixo da linha até as construções, devendo-se, por isso, ser realocada para um conjunto habitacional do Programa Municipal de Habitação Social, denominado Morar Feliz, localizado em bairro periférico3.



Vale destacar que a Lei Federal nº 6.766/1979, alterada pela lei 10.932/2004, estabelece a faixa de domínio de ferrovias em 15m e o município de Campos dos Goytacazes, em sua prerrogativa consitucional de ordenador urbano, por meio da Lei Municipal nº 7.975/07, estabelece esta mesma faixa em 21m.

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 Figura 2. Empreendimentos de alto padrão imobiliário no entorno da comunidade Margem da Linha no município de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro/Brasil. Fonte: Acervo programa – Arquitetura, inclusão e cidadania: Projetos de extensão para áreas de habitação de interesse social no município de Campos dos Goytacazes/RJ, 2015.

  3 INTERVENÇÃO URBANA NA COMUNIDADE MARGEM DA LINHA

As políticas públicas nas comunidades carentes nem sempre atendem a necessidade do local e não se atentam para o potencial da área. Intervir num espaço como este é tarefa difícil, uma vez que faz parte do cotidiano e da indentidade cultural do moradores. Assim, qual é a melhor forma de intervenção em comunidades carentes?

Bueno (2000) mostra as possibilidades de intervenção nas favelas no Brasil, onde a primeira opção é o desfavelamento, remoção ou erradicação de favelas. Esse costumava ser o discurso do Banco Nacional PNUM 2016 483

da Habitação (BNH). Essa proposta já havia sido tentada desde os anos 1940, em diferentes cidades brasileiras, sendo ainda implementada em situações específicas relacionadas a grandes interesses imobiliários. A segunda, aceitação da favela enquanto fenômeno urbano, não aceita a forma e a tipologia urbanística e habitacional que ela revela, levando à demolição da favela e reconstituição de tudo no mesmo lugar, com um padrão urbanístico e arquitetônico semelhante à linguagem dominante. Esse tipo de intervenção, que Bueno denomina de reurbanização, também tem sido aplicado em favelas suscetíveis a marés e com problemas de inundação. Por último, a urbanização, ou seja, dotação de infraestrutura, serviços e equipamentos urbanos nas favelas, mantem-se as características do parcelamento do solo e as unidades habitacionais, postura adotada mais amplamente a partir dos anos 1980 (Bueno, 2000, 162).

A primeira opção apresentada, desfavelamento e remoção, foi também a escolha da prefeitura no caso citado. Porém, em tal ação, desconsiderou-se a identificação social e cultural dos moradores com o local onde vivem e, por isso, parte dos moradores resistem a remoção.

Com esse fato, o programa de extensão “Arquitetura, Inclusão e Cidadania”, formou uma equipe técnica multidisciplinar e propôs uma ação coletiva e participativa de projetos contra o processo de remoção, fundamentando-se na opção de urbanização.

A lei 11.888/20084, nos artigos 5º e 6º, consolidam o direito da comunidade a assistencia técnica gratuida e a viabilidade da execução dessas propostas. O primeiro incentiva a criação de convênios e parcerias entre o público responsável e os programas de capacitação profissional, residência ou extensão universitária nas áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia, com o objetivo de capacitar os profissionais e a comunidade para a assistência técnica. O segundo torna este tipo de serviço executável, a partir de recursos dos fundos federais direcionados à habitação de interesse social, públicos orçamentários ou privados (BRASIL, 2008).

O artigo 4º desta lei permite profissionais inscritos em programas de residência acadêmica em arquitetura, urbanismo ou engenharia ou em programas de extensão universitária, por meio de escritórios-modelos ou escritórios públicos com atuação na área, dar suporte a projetos complexos e de baixo custo (BRASIL, 2008).



Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social.

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Com esta justificativa, o projeto iniciou-se com visitas de campo à comunidade em um trecho de aproximadamente 1,5 km, com a finalidade de realizar levantamentos, entrevistas e observações do entorno, gerando dados e materiais para análise. Através das entrevistas pôde-se observar a necessidade que os moradores possuem em ter um local com melhores condições em relação à infraestrutura e saneamento, como todo cidadão, garantido pelo Estatuto da Cidade 5 . Há também a necessidade de espaços de convivência e lazer. Foi observado também que, apesar dos problemas, a maioria dos entrevistados gostam de morar ali.

3.1 Algumas das experiências das práticas didáticas

O programa de extensão, após levantamentos, elaborou um caderno de diagnósticos apontando possíveis soluções para uma série de questões: saneamento básico, pavimentação, espaços livres, energia elétrica e transporte público. Foi proposto, por exemplo, que a linha férrea, figura tão representativa existente na comunidade, tenha nova utilização com a implantação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), transporte com conforto urbano, sonoro e ambiental.

Com isso, nosso programa propõe a urbanização da comunidade, visando à melhoria da qualidade de vida dos moradores, que se encontram em meio a um processo de remoção. A proposta demonstra que a remoção dos moradores não é a única alternativa existente e que o argumento da área de risco, neste caso, não é suficiente para a remoção6.

Foram realizadas diversas reuniões e discussões em grupo, com leituras bibliográficas sobre o tema, um encontro com moradores da comunidade, através do qual foi apresentado o programa, o que possibilitou melhor entendimento sobre as reais necessidades dos moradores, assim como melhor compreensão, por parte das famílias presentes, das atividades a serem realizadas na comunidade. 



LEI No 10.257, DE 10 DE JULHO DE 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. 6 Segundo o parágrafo 2º do artigo 216 c/c o artigo 100, do Plano Diretor Participativo de Campos dos Goytacazes, dentre as moradias localizadas em “áreas de risco” ou em “áreas inadequadas à ocupação” estão aquelas localizadas nas faixas de domínio de rodovias e ferrovias, e estarão sujeitas a realocação, apenas quando não for possível a correção dos riscos para garantir a segurança da população residente no local e na vizinhança. Salienta-se, ainda, que de acordo com o artigo 48 da Lei Federal nº 11.977/09, respeitadas as diretrizes gerais da política urbana estabelecidas na Lei no 10.257/01, a regularização fundiária observará o seguinte princípio: ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística, social e ambiental.  5

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Figura 3. Reunião com os moradores da Comunidade da Margem da Linha. Fonte: Acervo programa – Arquitetura, inclusão e cidadania: Projetos de extensão para áreas de habitação de interesse social no município de Campos dos Goytacazes/RJ, 2014.

 Somente a partir da conscientização e aceitação das propostas pelos moradores da comunidade, é que foram iniciados os trabalhos de campo, como levantamentos técnicos e entrevistas.

Em 2015, outro projeto foi criado para trabalhar em conjunto com o programa: “Habitação de Interesse Social no município de Campos dos Goytacazes/RJ”, tendo como objetivo identificação, mapeamento e levantamento das comunidades da cidade com intuito de torná-las alvo de intervenções futuras. Tornouse também parceiro o projeto: "Elementos Sustentáveis de Habitação" que visa atender necessidades dos moradores da comunidade, em termos de habitação, saneamento e conforto ambiental, desenvolvendo projetos sustentáveis, dotados de soluções arquitetônicas utilizando materiais de fácil acesso, que possam ser implementadas nas residências através de mutirões e mão de obra da própria comunidade.

Existem também os trabalhos realizados em conjunto com o ECAUS, que desenvolveram a criação de um pequeno espaço de convivência com materiais alternativos, cuja função é promover a criação de novos lugares voltados para a comunidade. Outro objetivo é a elaboração e execução do projeto de uma praça, feita com matérias reutilizados, em maiores proporções da realizada até então (Figura 4 e 5).

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Figura 4e 5 E spaço de convivência construído na Comunidade da Margem da Linha.    5. Fonte: Acervo programa – Arquitetura, inclusão e cidadania: Projetos de extensão para áreas de habitação de interesse social no município de Campos dos Goytacazes/RJ, 2015

 CONCLUSÃO Os problemas sociais são evidentes e as necessidades de intervenções urbanas nas regiões em que se concentram são cada vez maiores. Sensível aos problemas e apelos da sociedade, os projetos de extensão do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF interagem com grupos sociais, trocando conhecimentos e experiências. O IFF torna-se uma ponte e fornece a troca de conhecimentos entre professores, futuros arquitetos e comunidade. Desta forma, os conceitos de ensino, pesquisa e extensão e o exemplo real de intervenção urbana na Comunidade da Margem da Linha serviram de base referencial, que tornou possível concluir que a Universidade nas suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, possibilita resultados significativos e concretos, superando aos poucos, questões sociais e as problemáticas urbanas existentes nas comunidades excluídas. A relação proporcionada pela Universidade, da comunidade com os estudantes de arquitetura, trouxe nova perspectiva da sociedade e da realidade profissional. A prática desencadeou novas reflexões nas disciplinas do curso quanto ao papel social do arquiteto. Experiência única criou relação de confiança e esperança entre comunidade e instituição contra a exclusão social. Acredita-se que este trabalho servirá de inspiração para futuros projetos urbanísticos e sociais dentro das Universidades, como uma extensão da mesma.  REFERÊNCIAS Aragão W, Boaventura R, Aragão R, Barros K (2001) Variabilidade e correlações entre caracteres morfológicos reprodutivos em cultivares de coqueiro anão (Cocos nucifera L.Var. NANA). Agrotrópica, Itabuna, 13 (1), 27-32. BRASIL (2008) Lei nº 11888, de 24 de janeiro de 2008. Assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social e altera a Lei no 11.124, de 16 de junho de 2005. Brasília, DF, DOU - Diário Oficial da União. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2016.

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Bueno L (2000) Projeto Favela: metodologia para projetos de urbanização. 176 p. Tese (Doutorado) - Curso de FAU USP, São Paulo. Demo P (2005) Pesquisa: princípio científico e educativo. Cortez, São Paulo. FORPROEX (FÓRUM DE PRÓ-REITORES DE EXTENSÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS) (2000/2001) Avaliação da Extensão Universitária. Disponível em: < http://www.renex.org.br/documentos/Colecao-Extensao-Universitaria/01-Plano-NacionalExtensao/Planonacional-de-extensao-universitaria-editado.pdf >. Acesso em: 18 abr.2016. Freire P (1996) Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, Paz e Terra, São Paulo. IBGE (2003) Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios– PNAD: síntese de indicadores 2002, Rio de Ja neiro. Libâneo J (1994) Didática, Cortez, São Paulo. Maricato E (2008). Globalização e política urbana na periferia do capitalismo. Territórios, 18, 183-205. Silva M, L. F S (2001) Análise das dimensões afetivas nas relações professoraluno. Relatório técnico apresentado como exigência de conclusão de bolsa de pesquisa da Faep, Faculdade de Educação UNICAMP. Zioni F (2006) Exclusão social: noção ou conceito. Saúde e Sociedade,15 (3). Yazbek M (2005) A pobreza e as formas históricas de seu enfrentamento, Revista de Políticas Públicas. Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA, São Luís, 9(1).

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$&,'$'(&202(;3(5,0(17$d®2&5,$7,9$ 80&2175,%8723$5$$/,7(5$&,$85%$1$ 0DIDOGD3DFKHFR13DWUtFLD/RXUHQoR17HUHVD+HLWRU1 1: CEris, Departamento de Engenharia Civil, Arquitectura e Georrecursos, Instituto Superior Técnico, UL, [email protected]; [email protected]; [email protected]

5HVXPR A morfologia urbana, ao permitir uma construção metodológica de suporte ao estudo da forma material da cidade, constitui um instrumento privilegiado de leitura do espaço urbano. A sua divulgação a um público alargado como objecto de reflexão e análise crítica sobre as lógicas de organização das cidades é também uma forma de provocar o debate sobre as condições de uso do espaço urbano e a qualidade de vida urbana, de chamar a atenção para a responsabilidade dos cidadãos na melhoria dessas condições e de incentivar comportamentos proactivos na resolução de problemas que afectam os lugares que habitamos. Este artigo relata uma experiência didática sobre o tema ID]HU FLGDGH dirigida a estudantes pré-universitários e desenvolvida em contexto informal, no âmbito do Mestrado Integrado em Arquitetura do Instituto Superior Técnico, envolvendo um total de 300 participantes e a realização de 50 propostas. A partir da exploração dos elementos que constituem a forma urbana e com o objectivo de construir "percursos urbanos", foram gerados diferentes fragmentos de cidade com variações ao nível das condições morfológicas da paisagem, das infraestruturas, dos equipamentos, dos espaços de vivência e da linguagem arquitectónica adoptada. Ao objectivo implícito de uma educação para a literacia urbana e arquitectónica, juntou-se a vontade de promover entre os jovens estudantes a capacidade de pensar criativamente a cidade (Tonucci, 1997) e o de proporcionar a estudantes mais velhos a experiência de coordenação do trabalho de equipa e de transmissão de conhecimentos adquiridos no curso. Os resultados originaram uma exposição de um "percursocidade" com 25 metros de comprimento, observado, discutido e vivenciado pela comunidade do FDPSXV da alameda do IST. Com base nesta acção, este artigo propõe uma reflexão sobre os modos de ver e entender a cidade, tendo como foco (i) os elementos estruturantes da forma urbana; (ii) relações entre espaços exteriores e edificados, (iii) as funções e actividades urbanas; (iv) noções de escala e de espaço-tempo. O artigo está organizado em três partes. Na primeira faz-se o enquadramento da acção. Explicitam-se os objectivos de aprendizagem e a metodologia adoptada. Na segunda descreve-se a acção desenvolvida e na terceira parte discutem-se os resultados obtidos.

3DODYUDVFKDYH Forma da cidade; literacia urbana; aprendizagem activa. PNUM 2016 489



,QWURGXomR A morfologia urbana ao permitir uma construção metodológica de suporte ao estudo da forma material da cidade, constitui um instrumento privilegiado de leitura do espaço urbano. A sua divulgação a um público alargado como objecto de reflexão e análise crítica sobre as lógicas de organização das cidades, é também uma forma de provocar o debate sobre as condições de uso do espaço urbano e a qualidade de vida urbana, de chamar a atenção para a responsabilidade dos cidadãos na melhoria dessas condições e de incentivar comportamentos proactivos na resolução de problemas que afectam os lugares que habitamos. $UTXLWHFWXUDQR9HUmR,678/  Anualmente, a Universidade de Lisboa organiza uma acção de Ocupação de Tempos Livres no Verão, destinada aos jovens do ensino básico e secundário (do 7º ao 12ºano), com o objectivo de proporcionar aos futuros universitários um contacto directo com vocações profissionais e a vida académica. O evento tem a duração de uma semana, na qual os jovens experienciam diferentes actividades de áreas de conhecimento, incluindo a arquitectura, sendo acompanhados por alunos dos respectivos cursos. São cinco dias em que os jovens respondem a vários desafios que lhes são colocados, interagindo de forma dinâmica nos laboratórios, centros de investigação, salas de aula e demais instalações da universidade. No âmbito desta actividade, o Departamento de Arquitectura do Instituto Superior Técnico proporciona a estes jovens uma semana dedicada à temática da Arquitectura, propondo-lhes dinâmicas sobre o papel do arquitecto na sociedade e no desenvolvimento das cidades. O presente artigo relata, analisa e lança novos desafios sobre esta experiência didática de ensinar a "fazer cidade". A actividade "Arquitecto por três horas" decorreu durante 10 dias, contou com a participação de 300 jovens, organizados em equipas de 5-6 elementos, em 20 turnos (manhã ou tarde), realizando um total de 50 projectos sobre a cidade ()LJXUD).

)LJXUDMaterial didático utilizado no workshop: painéis de divulgação da actividade "Arquitecto por 3 horas"; exemplo de uma ficha-síntese de arquitecto" e respetiva maqueta.

  



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$UTXLWHFWRSRUWUrVKRUDV O desafio consistiu na criação de um percurso de cidade, tendo como premissa a integração de dois equipamentos, segundo os referenciais e modos de projectar de diversos arquitectos. Foi criado assim o imaginário da actividade: colaborar durante as três horas no atelier de um arquitecto cuja obra é reconhecida. Integrados em equipa, os alunos fizeram uma aproximação à arquitectura, ao tecido urbano e às condicionantes de contextos geográficos e programas específicos. Durante as três horas passaram por diferentes etapas de um processo de aprendizagem: a pesquisa, a reflexão e análise crítica, o esboço das primeiras ideias, o nascimento do projecto como solução do programa e condicionantes, a concepção de modelos tridimensionais, de desenhos representativos e por fim a exposição oral da sua ideia/proposta a um júri, integrando uma dinâmica de concurso. Com base nesta experiências, os jovens tiveram contacto com o percurso biográfico e a obra de 20 arquitectos, representando a prática profissional da arquitectura nos cinco continentes. O objectivo era que os jovens estabelecessem relações entre a obra, o percurso académico e profissional do autor, bem como referências sociais, culturais e políticas, e ainda influências do contexto geográfico. Foram introduzidos princípios de sustentabilidade ambiental, debatidos ao longo do desenvolvimento das propostas, nomeadamente na adequação das formas, materiais e tecnologias aos lugares e aos utilizadores. As combinações entre “arquitecto” e “equipamento” foram geradas de forma aleatória, originando 50 combinações diferentes de programa/desafios. A partir da exploração de diferentes elementos espaciais que constituem o espaço urbano – a praça, a rua, os equipamentos, a vegetação, etc. – e com o objectivo de construir "percursos urbanos", foram projectados diferentes fragmentos de cidade com variações ao nível das condições morfológicas da paisagem, das infra-estruturas, dos equipamentos, dos espaços de vivência e da linguagem arquitectónica adoptada. Ao objectivo implícito de uma educação para a literacia urbana e arquitectónica, juntou-se a vontade de promover entre os jovens estudantes a capacidade de pensar criativamente a cidade (Tonucci, 1997) e de proporcionar aos estudantes finalistas, futuros arquitectos, a experiência de coordenação do trabalho de equipa e de transmissão de conhecimentos adquiridos no curso de arquitectura. Os resultados originaram uma exposição de um "percurso-cidade" com 25 metros de comprimento, constituído pelas 50 propostas, cujos percursos urbanos se interligam. A exposição foi visitada, discutida e vivenciada por toda a comunidade do campus da alameda do IST ()LJXUD). Nos capítulos seguintes são apresentados os resultados da experiência e as principais conclusões relacionadas com a análise dos resultados, nomeadamente: i) identificação dos elementos estruturantes da forma urbana; ii) relações entre espaços exteriores e edificados, transição entre os espaços dos domínios público e privado e condições de mobilidade e de permanência; iii) funções e actividades urbanas; (iv) representação tridimensional, noções de escala e espaço-temporais.



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)LJXUDDecorrer da actividade"Arquitecto por três horas"; visita dos alunos do Jardim Infantil do Campus IST à exposição da cidade-maqueta do Verão IST/UL'15; e cartaz de divulgação da exposição.

A actividade foi estruturada segundo quatro eixos: pesquisa, representação, concepção, discussão e comunicação. O eixo da SHVTXLVD consistiu na primeira etapa da actividade e também o primeiro contacto com a arquitectura. Nesta fase foram apresentados os arquitectos, algumas das suas obras de referência e as características principais. Uma vez conhecido o enunciado, usou-se o desenho como ferramenta de UHSUHVHQWDomR de ideias, pensamento e criação, que antecede a FRQFHSomR tridimensional da ideia em maqueta. Segundo Maciel, a expressão gráfica "não é apenas a representação de uma ideia mas um momento de compreensão e construção dessa ideia" (Maciel, 2003). Essa relação desenvolve-se a partir do jogo de perguntas e respostas que são colocadas entre os dois momentos. A construção da maqueta é ponto forte do exercício, o que exige uma gestão a vários níveis, nomeadamente da organização e distribuição de tarefas da equipa, da identificação de estratégias para a representação das propostas através da tridimensionalidade e da selecção dos materiais, a partir da reutilização de materiais disponíveis nas salas de aula. A comunicação do projecto a terceiros é feita com o apoio da maqueta, mas também com o desenho como ferramenta de representação. Em cada sessão, a actividade termina com um concurso, onde os projectos são apresentados e discutidos com o público e o júri, e cujo feedback é partilhado em tempo real através de plataformas de internet, onde os alunos continuam a acompanhar a actividade além da sua participação. "Arquitecto por três horas" encerra com uma exposição final onde estão reunidas todas as maquetas dos "percursos-urbanos".



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3HUFXUVRVXUEDQRV Os modelos tridimensionais dos "percursos-urbanos" projectados foram representados sob a forma de maquetas à escala 1:200 e reflectem o imaginário, idealização e reflexão dos jovens sobre o espaço urbano na actualidade e a forma como os jovens interpretaram e representaram a “arquitectura” de cada um dos autores que lhes foi atribuído. A elaboração da maqueta envolve um raciocínio sobre escala, proporção e domínio do dimensionamento, ferramentas essenciais para o conhecimento e estudo dos elementos da cidade. A definição de um espaço de permanência face a um percurso, a demarcação de seu carácter público ou privado são directamente determinados pelas suas dimensões. Portanto, segundo Maciel, o dimensionamento é fundamental, em primeira instância, para um domínio das demandas de espaço a que correspondem as diversas actividades e, em segunda instância, para a definição de hierarquias e demarcação de diferenciações claras entre os espaços de naturezas distintas (Maciel, 2003). A relevância dos elementos urbanos seleccionados pelos alunos para integrarem o programa das propostas urbanas, a sua hierarquização, escala de representação e organização espacial, permitem leituras interpretativas sobre os valores que associam à vivência do espaço urbano e à cidadania. Em seguida apresentamos a variedade de estratégias presentes nas propostas para os percursos e mobilidade; as relações de edificações e de vazios; e interpretações sobre os arquitectos de referência. 3HUFXUVRVH0RELOLGDGH O exercício parte de uma base em cartão (50x50cm) para a concretização de uma parte de “cidade” (correspondente a 100x100m), onde são marcados o início e o fim do percurso, em arestas aleatórias da base, podendo ocorrer em arestas opostas ou em arestas adjacentes. A análise das 50 propostas permitiu a identificação de três estratégias de projecto relativamente ao desenvolvimento do percurso urbano: percurso simples, percurso de contorno ou percurso multidireccional ()LJXUD). A maioria dos jovens encarou o percurso urbano como um SHUFXUVR VLPSOHV, composto por um eixo rodoviário directo (70% das propostas), que une os dois pontos do trajecto previamente estabelecidos ()LJXUDD). Nalguns casos foi criado um SHUFXUVRGHFRQWRUQR, alternativo, que envolve a “cidade” numa lógica de quarteirão ()LJXUD E) e noutros um SHUFXUVR PXOWLGLUHFFLRQDO, onde foram acrescentadas novas direcções, para além das definidas no “enunciado”, garantindo a acessibilidade a todos os pontos da área em estudo/maqueta-cidade, incrementando os níveis de mobilidade ()LJXUDF). Em 65% dos percursos, independentemente do tipo de estratégia de ligações estabelecidas, foram propostos percursos alternativos para ciclovias e/ou peões, com um perfil transversal de dimensões inferiores ao perfil da via rodoviário e assinalado com um tratamento gráfico diferente, recorrendo à cor, texturas e materiais. Se na maioria dos casos este percurso acompanha a via principal, destinada à circulação automóvel, nalgumas propostas o caminho pedonal/ciclovia ganha autonomia e estabelece-se como percurso alternativo ()LJXUDG).



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Detectou-se que o foco da mobilidade está centrada no automóvel particular, pela ausência de áreas destinadas ao peão em variadas propostas, na diminuta referência ao transporte colectivo e nas frequentes propostas de parques de estacionamento. A urbanidade está presente no cruzamento dos eixos viários, por norma desnivelados através de viadutos ou túneis, e de rotundas ()LJXUDV H e I), sendo rara a proposta com um simples cruzamento de nível. A água como um elemento presente no espaço urbano também foi considerada em diversos percursos, chegando a ser um elemento de mobilidade, com a inclusão de barcos como proposta de meio de transporte ()LJXUDH).

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)LJXUDPropostas de percursos/mobilidade urbana.

  (GLILFDo}HVH9D]LRV A maioria das propostas (61%) reduziu a implantação do edificado a menos de 25% da área total disponível, destacando-se a importância do espaço não edificado na idealização da cidade, seja como praça, jardim, parque ou floresta. A presença da água também é uma constante, sendo representada em forma de fonte, lago, rio ou cais em cerca de 50% das propostas. O espaço não edificado representado refere-se, na maioria dos casos, a espaço de uso público, sendo o parque e o jardim urbano os mais comuns ()LJXUD ). No entanto, algumas propostas incluem o vazio privado, quer sob a forma de pátio/jardim terreno vedado, quer sob a forma de divisão de terrenos para exploração agrícola. A área verde é ainda usada por vezes como estratégia de “remate” da cidade.



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14%

praça

8%

floresta

8%

parque

6%



jardim

5%

20%

7%

lago cais estacionamento

16%

16%

rotunda monumento

)LJXUD. Principais espaços não edificados propostos para os percursos urbanos.

)RUPDVGHSURMHFWDUHSURFHVVRFULDWLYR Experimentar a obra, é apre(e)nder arquitectura, pelo que aos arquitectos mais conhecidos pelos alunos e o conhecimento real e sensível das suas obras (p.e. Gaudi, Calatrava e Pardal Monteiro) corresponde a uma maior facilidade na representação de elementos icónicos da(s) sua(s) obra(s), tornando mais evidente o seu reconhecimento. Esta conclusão reforça a importância da experiência sensível e sensorial na formação dos jovens e a importância da relação directa através da vivência de espaços de qualidade como forma de aprendizagem e construção de referenciais fundamentais para o desenvolvimento de uma capacidade analítica do mundo e de uma cidadania mais responsável. A linguagem e os conceitos teóricos associados a cada arquitecto foram bem apreendidos e representados na maioria dos casos ()LJXUD ). A informação disponibilizada inicialmente na fase de pesquisa foi assim, trabalhada de forma analítica e crítica, sendo assimilada e integrada nas respostas dadas pelos jovens, por exemplo, a proposta segundo o arquitecto Le Corbusier que contemplou a separação dos usos e funções no planeamento do percurso urbano. Os arquitectos de referência foram representados através de elementos formais, mas também por elementos caracterizantes da localização geográfica de actuação, sendo possível identificar territórios “quentes”, como por exemplo reminiscências do Egipto enquanto terreno de actuação de Hassan Fathy, do México na obra de Luís Barragán, mas também de territórios "frios", como a Finlândia enquanto área de actuação do arquitecto Alvar Alto.

 )LJXUD. Três propostas para o percurso urbano segundo a linguagem do arquitecto mexicano Luís Barragán.

 



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A observação das estratégias adoptadas para a concretização do desafio proposto, a organização/divisão do trabalho e as formas de construção do modelo permitiram identificar factores comuns, transversais a todos os grupos de trabalho mas também identificar singularidades e factores diferenciadores. Estas observações permitem identificar factores condicionantes ou, de algum modo, relacionados com os processos criativos e também com as dinâmicas de trabalho de grupo. Um momento inicial de discussão foi partilhado por todos os grupos, sendo corrente o surgimento de jovens com um perfil mais impositivo e entusiasmado sobre as suas ideias. A divisão de tarefas também foi uma estratégia habitual nos grupos, sendo a divisão mais comum para a execução do modelo tridimensional entre percursos; jardins/espaços abertos e edifícios. A estes três grupos de elementos correspondeu também uma hierarquia de prioridade/importância, surgindo primeiro os eixos viários, depois os arranjos exteriores, o programa/equipamento e só depois a habitação.  &RQVLGHUDo}HVILQDLV O exercício visou a possibilidade do contacto com as temáticas da Arquitectura e da cidade, a divulgação do curso de Arquitectura do IST/UL e, sobretudo, estimular a pesquisa, o projecto, a experimentação e a troca de conhecimentos através da competição dinâmica e proactiva entre equipas, de forma lúdica e intuitiva, entre potenciais futuros alunos de arquitectura e os actuais alunos de arquitectura í futuros arquitectos. O ensino da prática da arquitectura deve assentar na execução de exercícios que desenvolvam a habilidade de projectar pois ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. Outras pedagogias semelhantes têm vindo a ser implementadas noutras universidades, das quais destacamos a "Gincana Arquitetura +20", realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2012 (Sansão, 2013) e a migração da actividade "Arquitecto por três horas" para a Universidade Positivo de Curitiba, na actividade "ARQ15", em 2015. As próximas experiências passam pela dinamização de pedagogias semelhantes com jovens de contextos geográficos, sociais e culturais diversos, o que permitirá identificar homogeneidades e heterogeneidades na idealização da cidade.  5HIHUrQFLDVELEOLRJUiILFDV Barros A, Andrade P (2015) Uso do raciocínio analógico na concepção projetual em ensino introdutório de projeto arquitetônico, YLWUXYLXV. DUTXLWH[WRV180.01, 5551, 1 - 13. Maciel C (2003) Arquitetura, projeto e conceito (1), YLWUXYLXV. DUTXLWH[WRV043.10, 633, 1 - 8. Sansão A, Pessoa A (2013) Outra forma de aprender: o ensino de arquitetura como um jogo, YLWUXYLXV. DUTXLWH[WRV 152.03, 4636, 1 - 10. Tonucci F (1997) /D FLXGDG GH ORVQLxRV  8QPRGRQXHYR  GH SHQVDUOD  FLXGDG, Fundación Germán Sánchez Ruipérez, Madrid. Walberg H, Paik S (1999) 3UiWLFDVHGXFDWLYDV(ILFD]HVUniversidade de Illinois, Chicago.



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A Abordagem tipo-morfológica da Escola Muratoriana Xose Suarez Univesidade de A Coruña, Escuela Técnica Superior de Arquitectura Campus da Zapateira, 15071 A Coruña - 03082 España, [email protected]

Armando Fernandes CIESG, Escola Superior Gallaecia, Largo das Oliveiras, 4920-275 Vila Nova de Cerveira, +351 917549190 - [email protected]

Adriana Vieira CIAUD - Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, Rua Sá Nogueira, Pólo Universitário, Alto da Ajuda - 1349-055 Lisboa, [email protected]

Fernanda Gorghi UFSJ – Universidade Federal de São João del-Rei, Campus Tancredo Neves, São João del- Rei/Minas Gerais – 36301-360 Brasil, [email protected]

Resumo O documento apresentado tem como base a experiência didática realizada no âmbito do PNUM workshop 2015, ocorrida entre os dias 30 de junho a 4 de julho de 2015 na Faculdade de Engenharia do Porto, tendo como tema “As Diferentes Abordagens no Estudo da Forma Urbana”. A localização da área de estudo proposta para o caso foi a uma parte da cidade do Porto, especificamente a Rua Costa Cabral e algumas das suas ruas adjacentes. De entre as abordagens apresentadas, a metodologia da Escola Muratoriana – a tipo-morfológica, foi a selecionada para a realização deste caso de estudo. Entendida como um processo analítico do projeto de leitura, apoiada instrumentalmente num conjunto unificador de critérios e capaz de permitir a análise da forma urbana, organismo percecionado como consequência antrópica, é realizada a partir do seu interior, intrínseco no seu processo de formação e transformação ao longo da história, com a decomposição das suas partes constituintes. Os trabalhos realizados no decurso do exercício, tiveram como base este processo analítico, com uma primeira abordagem na observação da cartografia e legislação históricas disponíveis, identificando o momento inicial da abertura da estrutura viária, o consequente emparcelamento e os loteamentos resultantes, bem como as características do elemento morfológico rua - a Costa Cabral. Na continuidade do processo, realizou-se a análise tipológica, com a identificação e decomposição dos vários elementos existentes, agregando-os por tipologias, assumindo assim a edificação como determinação histórica (espaciotemporal) do processo tipológico e em que os resultados obtidos permitiram a identificação do desenho das diversas morfologias constituintes da forma urbana deste fragmento da cidade do Porto.

Palavras-chave Muratori, processo tipológico, morfologia e forma urbana, Porto

Enquadramento teórico e metodológico da abordagem aplicada

De entre as abordagens apresentadas, a metodologia da Escola Muratoriana – a tipo-morfológica, foi a selecionada para a realização deste caso de estudo. Esta abordagem deriva diretamente dos estudos PNUM 2016 497

realizados por Saverio Muratori durante os anos cinquenta, tendo o seu epílogo disciplinar na sua publicação “studi per una operante storia di Venezia” nos anos de 1959. Primeiro como aluno e depois como assistente de Muratori, Gianfranco Caniggia assume durante os trinta anos seguintes o magistério na teoria e bases metodológicas da leitura histórico-tipológica do ambiente urbano e da sua aplicabilidade no projeto (Pozo, 1997). Gian Luigi Maffei ou Giancarlo Cataldi preconizam nos anos seguintes, fins da segunda metade do séc. XX e inícios desta, a continuidade dos conhecimentos teóricos de Muratori e Caniggia, tendo como ideia principal a verificação do tecido urbano histórico, detetando e descrevendo os seus componentes e na classificação dos seus elementos – o processo tipológico.

A edificação é compreendida, como determinação histórica (espácio-temporal) - de um conjunto de elementos que ocupam um certo lugar e existem num dado tempo, e que a partir de certas características comuns se agrupam, se identificam e se classificam como sendo de um certo tipo da mesma área cultural - o processo tipológico. Portanto, teremos de entender estes conjuntos de elementos - neste contexto como edifícios - num todo e denominado por aglomerações (Caniggia G Maffei G 1995), em que a reciprocidade de funções atribuídas a cada elemento se identifica como pertença de um organismo, e que neste caso em especifico é entendido como um organismo urbano. A partir deste, na relação entre o seu edificado e forma como este se dispõem – a sua forma - serve-nos como instrumento para compreender e ordenar a estrutura da cidade, entendida como uma continuidade histórica de um processo, podendo ser analisada por tempos ou momentos cronológicos, em que a chave de leitura nos é dada pelo seu processo tipológico e/ou respetivas morfologias identificadas. Com base no conhecimento dos estudos da abordagem aplicada e posterior identificação das suas principais caraterísticas, agregamos metodologicamente o trabalho a realizar num conjunto de fases: Fase A – a compreensão da dimensão histórica - o valor do organismo urbano só se concretiza na sua dimensão histórica, numa construção temporal que parte sempre das condições sugeridas pelo seu passado. Fase B – o processo de individualização do tecido urbano, a identificação das suas principais caraterísticas, permitindo o reconhecimento das diversas unidades morfológicas que constituem a forma urbana analisada. FASE C – o papel da arquitetura menor e mais repetitivo - converte-se em elementos decisivos para a explicação dos diferentes tecidos constituintes da forma urbana. FASE D – a caracterização tipológica a partir dos diversos contextos históricos – com a identificação de elementos que são decisivos na procura da explicação dos vários componentes da forma urbana (morfologia vs. tipologia: tipo concreto vs. tipo abstrato). Isto permitiu-nos a sistematização da informação no processo de evolução e consolidação urbana, bem como na identificação tipo-morfológica do tecido edificado da Rua Costa Cabral e consequente produção de informação gráfica e escrita que comprova o estudo realizado. A limitação do objeto de estudo e a informação observada

A área de estudo proposta foi uma parte da cidade do Porto, mais especificamente a Rua Costa Cabral e algumas ruas adjacentes. Conforme se identifica na Figura 1, o limite apenas contempla o tramo mais a PNUM 2016 498

norte e de final de rua, entre a passagem da via de cintura interna (a sul) e a estrada da circunvalação (a norte). Durante a realização do evento, assumiu-se como estratégia de trabalho a designação de um limite mais curto, mas realizável – a zona mais a sul do limite inicial - e sobre a qual recaiu a apresentação final do trabalho. No entanto e desde o seu início, foi proposta do grupo a continuidade dos trabalhos pós-evento tendo por finalidade a publicação do estudo no seu todo, complementado com uma pesquisa mais profícua sobre os autores de referência e com a produção de mais elementos gráficos para o efeito.

Figura 1. O tecido urbano existente da rua Costa Cabral.

O ponto de partida para a realização dos trabalhos teve na observação direta, in situ, uma primeira abordagem ao organismo urbano (Caniggia GMaffei G 1995), com o respetivo registo fotográfico nas suas várias componentes. Outro dos elementos observado foi o material disponibilizado pela organização do evento, a cartografia da área em estudo e alguma da cartografia histórica – a mais relevante para o efeito. A partir da base digital, em conjunto com a cartografia histórica, realizou-se a sobreposição dos vários elementos, o que permitiu concretizar um conjunto de análises e consequentes constatações, intuindo e percecionando a evolução do já referido organismo urbano. Nesta fase, exige-se a referência ao contributo do trabalho realizado pelo arquiteto Vítor Oliveira, com a sobreposição e redesenho planimétrico, a partir das diversas cartografias históricas, cartas militares, levantamentos topográficos e planos de melhoramentos que constam na sua publicação – A evolução das formas urbanas de Lisboa e Porto nos séculos XIX e XX (Oliveira, 2013). A leitura das principais iniciativas legislativas à época (Oliveira, 2013), em conjunto com a observação dos elementos históricos observados, possibilitou a comprovação de realidades atuais constantes no tecido urbano e das suas unidades morfológicas (Coelho, 2013), evidenciado nas suas implantações, dos alinhamentos entre si, nas áreas constantes, as distâncias identificadas, o parcelário existente e do PNUM 2016 499

edificado resultante, entre outros fatos. Por fim, uma leitura do tecido urbano em dois momentos distintos: 1) a análise da sua forma num dado instante e 2) na intuição e justificação a partir de acontecimentos que lhe podem ter dado origem. Consecutivamente procedeu-se à segmentação do tecido nos seus diversos componentes – as unidades morfológicas – agrupadas pelas mesmas características e articuladas da mesma maneira: a rua e os quarteirões, assumindo na sua decomposição elementar a identificação do traçado urbano, do seu parcelário e consequente malha resultante (Coelho, 2013) como instrumentos operativos para a intuição de fatos históricos, a explicação do edificado, a caraterização tipológica e a justificação para a sua forma.

Momentos históricos alvitrados a partir da cartografia

A leitura e o estudo dos vários elementos tipológicos e morfológicos reconhecíveis na Rua Costa Cabral, a área de estudo em causa, desenvolveu-se segundo algumas hipóteses gerais acerca de certos fenómenos urbanos, que verificados parcialmente evidenciaram algumas constatações. O método consistiu em tentar controlar a validade das hipóteses através de uma análise experimental dentro de um campo bastante definido e circunscrito. Tratava-se de aprofundar a possibilidade de estabelecer uma relação direta entre o desenvolvimento morfológico da Rua Costa Cabral e na individualização tipológica de algum do seu edificado mais comum. Consequentemente, encontrada e estabelecida esta relação, verificava-se se esta era constante no tempo, sob diversos acontecimentos históricos ou se mutava e de que forma. Por conseguinte tentou-se individualizar alguns momentos da história da rua, a partir das relações de determinada forma urbana e parte do seu edificado (Pozo, 1997).

Como “primeiro momento” – figura 2a), fator percursor do tecido urbano, é identificado com a abertura da estrutura viária e que para efeitos do caso de estudo denominamos de período pré-industrial. Em meados do séc. XIX, com a apresentação do novo plano de estradas do Reino, o trajeto de ligação entre Douro e Minho, mais concretamente da cidade do Porto às cidades de Guimarães, Braga e Penafiel, sendo de acesso vital para as ligações às regiões minhotas e durienses. Como tal foi aberta uma grande e moderna via de acesso até ao Porto, em alternativa à Rua do Lindo Vale, tendo como paternidade o nome de um político contemporâneo à época, António Bernardo de Costa Cabral. A rua era no entanto reconhecida pela Estrada da Cruz das Regateiras, porque no seu extremo mais a norte se encontrava o Largo da Cruz das Regateiras, próximo de onde hoje se encontra o Hospital Conde de Ferreira e que atravessava terrenos rurais com as suas quintas e casas. Apesar das várias vicissitudes dos acontecimentos políticos nos finais do séc. XIX, o nome Costa Cabral acabou por singrar tanto na toponímia portuense como nas suas gentes. Um “segundo momento” – figura 2b), consequente da revolução industrial, dos finais do séc. XIX, é de sobre maneira definido pelo período Fontista, marcado pelo fomento de obras-públicas e modernização das infraestruturas do país, que tem consequência para o Porto nos Planos de Melhoramentos da Cidade do Porto, enquadrada pelo Decreto-Lei de 19 de Janeiro de 1865 e com o Plano de Melhoramentos da Cidade do Porto de 1881, do então presidente da Câmara Correa de Barros, com preocupações ao nível da PNUM 2016 500

definição do sistema viário, da edificação de equipamentos e na resolução de abastecimento e higiene urbana (Oliveira, 2013). Um “terceiro momento” - figura 2c), o do nascimento da periferia, no primeiro quartel do séc. XX, reconhecem-se nos processos de loteamento para a construção de habitação. Um “quarto momento” – figura 2d), num período pós-guerra, de teor modernista, mas com um edificado de leitura nitidamente subvertida deste pensamento, com uma ocupação também linear ao longo da rua e com colmatações ao nível do parcelário realizado no período anterior.

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Figura 2. evolução | momentos de a) a e) do tecido urbano da rua Costa Cabral

O último e quinto momento” – figura 2e), já num periodo da democracia portuguesa, pós 25 de Abril, em que se acentua a implantação de diversos modelos de conjuntos habitacionais e de iniciativa privada, denotando-se também uma certa reconfiguração do antigo parcelário para um uso mais intenso para a habitação coletiva.

A caracterização tipológica e as morfologias identificadas

Na continuidade do processo, realizou-se a análise tipológica, com a identificação e decomposição dos vários elementos existentes, agregando-os por tipologias, assumindo assim a edificação como determinação histórica (espaciotemporal) do processo tipológico e em que os resultados obtidos permitiram a identificação do desenho das diversas morfologias constituintes da forma urbana deste fragmento da cidade do Porto. No que se refere à estratégia na realização do trabalho, foram identificadas algumas amostras, de tipos de edificação e formas urbanas da Rua Costa Cabral, o que permitiu individualizar uma relação, dialética mas não casual, entre tipologia edificada e morfologia urbana. A variação desta relação ao longo do tempo histórico e assinalado por momentos, no que ao estudo da rua se refere, abre um conjunto de incertezas e mesmo alguns problemas de leitura mais assertivas, no entanto estas análises permitem precisar e mesmo apresentar variadas caraterizações tipológicas, com a justificação da consequente forma urbana, enunciando-se para estudos mais aprofundados. Como forma de apresentação, a componente gráfica exemplifica e demonstra o estudo realizado, apresentado na forma do tecido edificado, com apontamentos de projeção ortogonal e axonométrica para a uma leitura tridimensional do contexto em análise. PNUM 2016 501

Conforme já foi referido, o “primeiro momento” foi percursor da urbanidade dentro de um contexto rural, traduzido na abertura de uma grande via para acesso e saída da cidade do Porto, seguindo os princípios dos primeiros Planos de Melhoramentos para a Cidade do Porto. O “segundo momento” acentua o cariz reformista da época e comprova-se a partir do reconhecimento no tecido edificado, um mais especializado e um outro mais de base (Caniggia G, Maffei G 1995).

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b Figura 3. a) tipo especializado - o Hospital Conde de Ferreira e b) tipo de edificação - habitação/comercio com uma implantação linear.

Aqui se encontra a justificação para a implantação da primeira construção de raiz feita para a psiquiatria em Portugal, o Hospital Conde de Ferreira – figura 3a) - criado por Joaquim Ferreira dos Santos e inaugurado em 1883, para uso sanitário, com uma implantação isolada, marcada pela sua circunstância hospitalar especifica, de cariz monumental, muito reconhecido em equipamentos da época, nos finais do séc. XIX. O restante edificado – figura 3a) - intui-se e justifica-se pelo parcelário ainda atual, demonstrado pela edificação própria da época, como uma implantação linear ao longo da Rua Costa Cabral e ruas adjacentes mais próximas, seguindo o mesmo método – em linha e ao longo das ruas, caracterizado por um tipo de PNUM 2016 502

casa pequena (±50 mt2), de frente curta (±5 metros), habitualmente de um piso, no limite da parcela (±150 mt2), muito associada à habitação para o proletariado e/ou pequenos comércios, tirando partido da passagem de acesso.

No “terceiro momento” reconhecem-se os processos de loteamento (áreas de ±6 hectares) para a construção de habitação (±150 mt2), com um afastamento de 5 metros ao limite do lote (±350 mt2), por conseguinte de uma parcelário muito identificado com proposta de moradias em banda e isolada – figura 4 - associada a habitação de classes emergentes na sociedade portuense. Ao “quarto momento” atribui-se a um tipo habitação multifamiliar, de implantação (±240 mt2) no limite da parcela (±1000 mt2), com edificação em altura (±1200 mt2 de área construída), com um afastamento ±16 metros ao eixo rua, de leitura nitidamente subvertida do pensamento modernista, com uma ocupação também linear ao longo da rua e de colmatação ao nível do parcelário realizado no período anterior.

Figura 4. tipo de loteamento – moradias em banda.

Por último, “o quinto momento” assenta na decomposição tipológica a partir de blocos isolados, constituídos pela junção de diversos lotes (±500 mt2) na parcela (±1500 mt2), com afastamentos (de 3 a 18 metros em linha) ao limite da rua, com 7 a 13 pisos (de ±4000 mt2 a ±8000 mt2 de e área construída), assumindo formas lineares, em torre e na conjugação formal das duas, associados à promoção privada – figuras 13 – 14 – 15.

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Figura 5. tipo a) blocos isolados em linha, de habitação multifamiliar e serviços, tipo b) blocos isolados em torre, de habitação multifamiliar e tipo c) blocos isolados mistos, de habitação multifamiliar e serviços.

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Em suma, as figuras apresentadas demonstram a relação entre a caracterização tipológica, da maneira que se ensaiou e a morfologia urbana apresentada, constatando a procura de modelos representativos para a exposição dos vários fenómenos urbanos que ocorreram na Rua Costa Cabral durante os últimos 150 anos. A experiência didática realizada no âmbito do PNUM workshop 2015, tendo como área de estudo proposta a Rua Costa Cabral e algumas ruas adjacentes, teve por objetivo a aplicação da metodologia da Escola Muratoriana – a abordagem tipo-morfológica. Foi um exercício teórico e de base muito experimental, mas que permitiu ensaiar uma leitura e o estudo dos vários elementos tipológicos e morfológicos reconhecíveis na Rua Costa Cabral. A partir do desenvolvimento de um conjunto de hipóteses acerca de fenómenos urbanos ocorridos, verificaram-se parcialmente a sua evidência permitindo algumas constatações. Tratouse de aprofundar a possibilidade de estabelecer uma relação direta entre o desenvolvimento morfológico da Rua Costa Cabral e a sua individualização tipológica do seu edificado mais comum. Encontraram-se e estabeleceram-se estas relações, verificando a sua constância no tempo, sob diversos acontecimentos históricos, reconheceram-se as hipotéticas alterações e confirmaram-se se estas ocorreram. Posteriormente tentou-se individualizar alguns momentos da história da rua, a partir das relações de determinada forma urbana e parte do seu edificado. Realizou-se a análise tipológica, com a identificação e decomposição dos vários elementos existentes, agregaram-se por tipos, assumiram-se assim a edificação como determinação histórica (espaciotemporal) do processo tipológico e em que os resultados obtidos permitiram a identificação do desenho das diversas morfologias constituintes da forma urbana da Rua Costa Cabral. Por conseguinte, a experiência realizada serviu para demonstrar que na relação entre o tecido edificado e a configuração de como este se dispõem – a sua forma - serve-nos como instrumento para compreender e ordenar a estrutura da cidade, entendida como uma continuidade histórica de um processo. Em suma, uma história operativa.

Referências Caniggia G, Maffei G (1995) Tipologia da la edificacion - estrutura del espacio antrópico, Celestes Ediciones, Madrid. Coelho D (2013) Os elementos urbanos, Argumentum, Lisboa. MuratoriS (1959) Studi per una operante storia urbana di Venezia, Libreria dello Stato, Roma. Oliveira V (2013) A evolução das formas urbanas de Lisboa e do Porto nos séculos XIX e XX, UPorto, Porto. PozoA (1997) Análises Urbano, Textos: Giangrafnco Caniggia, Carlo Aymonino, Massimo Scolari, ETSArquitetura, Sevilha.

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Análise e modelagem da morfologia urbana em um contexto de Conservação Urbana Fabiano Diniz, Ana Rita Sá Carneiro, Raphael Melo, Danielle Rocha Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pernambuco Av. Prof. Moraes Rego, 1.235 - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50670-901 | Fone/Fax: 55 81 2126-8771 [email protected] / [email protected] / [email protected] / [email protected]

Resumo A disciplina de Projeto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico 7, do Curso de Arquitetura e Urbanismo-CAU da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE, tem como foco a intervenção sobre sítios históricos numa abordagem de Conservação. No Projeto Pedagógico do CAU-PPC-2010, essa disciplina se dedica à intervenção no antigo (o patrimônio construído) segundo ações de conservação arquitetônicas e paisagísticas, visando ao “controle da mudança das estruturas ambientais urbanas” (Zancheti e Lapa, 2012). O PPC-2010 estabelece três pressupostos: interdisciplinaridade, integrando o ato projetual arquitetônico, urbano e paisagístico em uma única disciplina; indissociabilidade dos problemas espaciais da cidade/paisagem/edifício; aprendizagem baseada em problema, com uma compreensão crítica da cidade para resolução de problemáticas concretas. A estrutura pedagógica do CAU se organiza segundo matérias de três ordens: conceitual, aportando conceitos, princípios, teorias e ideias para intervenção/criação; instrumental, respondendo pela aplicação de técnicas ou instrumentos projetuais; integrativa, buscando a prática projetual integrada como ato de organizar os espaços para as atividades humanas. Em Projeto 7, os aspectos morfológicos ocupam um lugar especial nas análises e no desenvolvimento de propostas de intervenção. Entende-se a forma urbana como “uma realidade para a qual contribuiu um conjunto de fatores socioeconômicos, políticos e culturais [que não tem] apenas a ver com concepções estéticas, ideológicas, culturais ou arquitetônicas, [mas também com] comportamentos, a apropriação e utilização do espaço, e a vida comunitária dos cidadãos” (Lamas, 1992). Como aponta Panerai (2008), “conhecer a forma das cidades, reconstituir sua história, trata-se também de orientar uma maneira de projetar”. No campo conceitual, busca-se apoio na Teoria da Conservação Integrada, que trata de aspectos chaves para essa compreensão do sítio e da natureza da ação de Conservação: autenticidade, integridade e significância; valores e atributos dos bens patrimoniais. Dentre as matérias instrumentais, destaca-se a Tectônica da Arquitetura, que subsidia o conhecimento de soluções construtivas e espaciais associadas à morfo-tipologia do patrimônio edificado. No campo integrativo, além de Projeto 7 se inclui o Planejamento Urbano e Regional, delimitando diretrizes urbanísticas para a Conservação. A apresentação explora aprendizados desenvolvidos em Projeto 7: escolha das áreas de intervenção; escalas de análise; referências teórico-metodológicas; momentos de discussão integrada dos projetos; produtos obtidos... Priorizando questões morfológicas, apresenta-se o processo projetual conforme o qual se desenvolvem propostas de intervenção arquitetônica/urbanística/paisagística fundadas na “modelagem” espacial de recortes representativos do espaço patrimonial construído, pondo em relação as antigas e as novas edificações, com apoio de maquetes físicas. Palavras-chave Morfologia urbana; conservação; projeto de arquitetura, urbanismo e paisagismo; projeto integrado; práticas e experiências didáticas. PNUM 2016 507

Introdução Em 2010, após mais de cinquenta anos de existência e de experiências de reformulação anteriores, o Curso de Arquitetura e Urbanismo-CAU da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE elaborou um novo Projeto Pedagógico (PPC-2010). Essa revisão se voltava a uma formação acadêmica que aportasse aos graduandos a capacidade de abordar o exercício projetual de maneira integrada, abrangendo os elementos da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo, compreendendo as relações entre cidade e sociedade a partir do enfrentamento de problemas reais. Assim, a estruturação do curso passa a adotar como eixo direcionador a distribuição do conteúdo pedagógico conforme temas orientadores anuais, exigindo enfoques projetuais distintos visando à requalificação, renovação, expansão e conservação urbanas, respectivamente.

Os fundamentos para o tratamento desses temas em cada ano letivo, razão do conteúdo pedagógico em questão, organizam-se por grupos de matérias que apoiam o amadurecimento do ato projetual, sejam eles de natureza conceitual (conceitos e princípios), instrumental (técnicas e instrumentos práticos) ou integrativa (aplicação das matérias teóricas e práticas em planos e projetos integrados). Os anos letivos se organizam em três blocos de formação, conforme os níveis de aquisição de conhecimento e habilidades a serem alcançados, desde o contato e a apreensão dos conceitos e métodos de referência, sua aplicação prática em exercícios projetuais (e de planificação, sobre situações reais), até a consolidação dos conhecimentos, na forma de propostas de intervenção que permitem conferir a aquisição das habilidades profissionais. Inspirado nos movimentos musicais operísticos, o CAU-UFPE denomina esses três blocos Capo (abertura), Segnos (dois, com o desenvolvimento dos vários segmentos, articulados entre si) e Coda (fechamento).

O quarto ano letivo enfoca a intervenção sobre sítios históricos numa abordagem de Conservação. A matéria instrumental de Projeto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico 7 (sétimo período) se dedica à intervenção no antigo (o patrimônio construído) segundo ações de conservação arquitetônicas e paisagísticas, visando ao “controle da mudança das estruturas ambientais urbanas” (Zancheti, Lapa, 2012). Segundo o PPC-2010, a formação segue três pressupostos: a interdisciplinaridade, integrando os projetos arquitetônico, urbanístico e paisagístico em uma única disciplina; a indissociabilidade dos problemas espaciais da cidade/paisagem/edifício; a aprendizagem baseada em problema, com compreensão crítica para resolução de problemas concretos.

A análise e a modelagem da forma urbana são elementos estruturantes da abordagem de Conservação de sítios históricos. Compreender o espaço urbano do sítio onde se intervém, sua articulação e relações com o espaço da cidade e da região onde se inscreve, suas origens e características (arquitetônicas,

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urbanísticas, paisagísticas), sua relevância e a necessidade de sua preservação são fundamentos orientadores do projeto integrado. A forma como esses princípios são aplicados em Projeto 7, o emprego da análise morfológica e dos exercícios de modelagem espacial (com apoio de maquetes físicas) na intervenção para a Conservação, além dos aprendizados acumulados, são referências para se discutir os caminhos do ensino da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo. O estudo do caso do Centro Histórico da cidade de Olinda, patrimônio da humanidade, ilustra os rumos da consolidação do projeto pedagógico em questão.

Projeto arquitetônico, urbanístico e paisagístico: enfoque integrado para a Conservação Urbana A abordagem integradora do PPC-2010 responde a uma razão evidente, pouco respaldada pela prática projetual. A cidade, como espaço construído, ganha concretude no correlacionamento entre espaços livres e ocupados, entre espaços públicos e privados, entre os condicionantes do sítio natural e a capacidade de artífice do homem, entre os edifícios e as ruas e praças; ela ganha vida e se ativa (ou não) pelo contato e experimentação desses espaços pelos citadinos, que deles se apropriam, fazem uso, desenvolvem representações, buscam a convivência com os outros, ou simplesmente os desprezam e deles se afastam… Abarcar essas características na projetação da cidade obriga lançar mão de múltiplos saberes e formas de intervenção abrangentes.

Debater a natureza arquitetônica do espaço urbano e os condicionantes que o contexto urbano impõe à definição das arquiteturas na cidade obriga pressupor que um espaço urbano de qualidade não se constrói sem a participação de uma boa arquitetura na sua produção. Do mesmo modo, não se produz arquitetura de qualidade sem que esta considere o contexto no qual se insere, as relações guardadas com o espaço construído onde está implantada. Facilitar a leitura desses espaços pelo citadino é elemento-chave nessa construção arquitetônica-urbanística: estimular o contato com os diversos espaços favorece a legibilidade e a imagem urbana.

Diante das transformações por que passam as cidades em nível global, com impactos de ordem econômica, tecnológica e social que alteram a forma de construí-las e seu papel na rede mundial de cidades, é imprescindível que o processo de concepção projetual integre as perspectivas arquitetônica, urbanística e paisagística. Partindo dessa premissa, o PPC-2010 traçou o objetivo de garantir a formação de quadro profissional generalista, competente para compreender e responder às necessidades e demandas (...) no que se refere à concepção, organização e construção do espaço interior e exterior, abrangendo o urbanismo, a edificação e o

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paisagismo, (...) a conservação e a valorização do patrimônio construído. (CAU-UFPE, 2012)

O PPC-2010 ressalta a necessidade de inovar métodos e procedimentos, respondendo às demandas da sociedade pelo trato da problemática urbana desde a compreensão da relação entre espaços privados (as edificações) e espaços públicos (a cidade). Propõe-se a formação de um "novo profissional arquiteto e urbanista" (CAU-UFPE, op. cit.) com conhecimento mais aprofundado acerca das problemáticas da cidade e da edificação, compreendendo a integração desta última com a cidade e sua paisagem.

No sétimo período do curso, que adota como tema a Conservação Urbana, essa integração é profícua ao esclarecer o que é (e o porque) conservar. Barrios (1986), apresenta a cidade como espaço socialmente construído, um "conjunto de elementos materiais transformados pelas práticas econômicas, apropriados pelas práticas políticas e constituídos em significações pelas práticas culturais e ideológicas”. Como alerta Chueca (2011), a organização do espaço urbano não é uniforme nem universal, mas "condicionada por contextos socioeconômicos e políticos, por fatores ambientais e culturais próprios do processo de produção e apropriação das cidades em momentos e lugares distintos".

É essencial salvaguardar patrimônios edificados relevantes, plenos de significados e representativos de momentos distintos da história das sociedades humanas. O controle das mudanças do ambiente urbanos, das suas estruturas (físicas e funcionais) é a ação que possibilita que a cidade se expresse como Calvino (1990) sintetizou, contendo seu passado "como as linhas de uma mão.” Tais conceitos orientam o exercício de Conservação Urbana, cuja abordagem compreende a forma urbana como uma realidade para a qual contribuiu um conjunto de fatores socioeconômicos, políticos e culturais [que não tem] apenas a ver com concepções estéticas, ideológicas, culturais ou arquitetônicas, [mas também com] comportamentos, a apropriação e utilização do espaço, e a vida comunitária dos cidadãos (Lamas, 1992).

O exercício segue a lógica de que “conhecer a forma das cidades, reconstituir sua história, trata-se também de orientar uma maneira de projetar” (Panerai, 2008). Esse conhecimento se orienta por conhecimentos e habilidades aportadas pelas matérias conceituais, instrumentais e integrativas. Conceitualmente, aborda-se a Teoria da Conservação Integrada e os aspectos-chaves a ação de Conservação: autenticidade, integridade e significância; valores e atributos dos bens patrimoniais. Instrumentalmente, a Tectônica da Arquitetura e as Técnicas Retrospectivas oferecem conhecimentos sobre soluções construtivas e espaciais associadas à morfotipologia do patrimônio edificado. No campo integrativo, Projeto 7 agrega os exercícios arquitetônicos, urbanísticos e paisagístico, e Planejamento Urbano e Regional delimita diretrizes para a Conservação.

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As disciplinas integrativas empregam criticamente os aspectos conceituais e instrumentais, absorvendo as contribuições destes últimos na construção de um conceito-guia para projeto, síntese das leituras dos alunos sobre a realidade alvo de intervenção. O resumo das ementas das principais matérias esclarece o conteúdo abordado no exercício de Conservação Urbana. A Figura 1 ilustra o encadeamento das matérias e sua contribuição para o enfoque do tema do período, nos três blocos de formação. ▪ Matérias conceituais: -

Estudos Socioeconômicos e Ambientais IV: Produção, uso e apropriação do espaço urbano. Observação, pesquisa e coleta de informações. Interpretação de fenômenos socioespaciais.

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Teoria da Arquitetura Urbanismo e Paisagismo VII: Patrimônio histórico, preservação e conservação. Sítios históricos. Monumentos. Entornos. Conservação.

▪ Matérias instrumentais: -

Técnicas Retrospectivas: Restauro, conservação e intervenção no objeto arquitetônico, urbanístico e paisagístico.

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Tectônica VII: Recuperação de edificações e estruturas históricas.

-

Métodos e Técnicas de Pesquisa em Arquitetura Urbanismo e Paisagismo IV: Sistema de relações arquitetura-cidade. Análises morfológicas. Sintaxe espacial. Modelagem de dados. Construção de cenários.

▪ Matérias integrativas: -

Projeto de Arquitetura Urbanismo e Paisagismo VII: Conservação de objetos arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos.

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Planejamento Urbano e Regional IV: Configuração urbana. Diretrizes urbanísticas para Conservação.

Figura 1. Articulação de matérias para Conservação, no Capo Fonte: CAU-UFPE, 2010.

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Integração com docentes de matérias conceituais e instrumentais. Avaliação e orientação conjunta dos trabalhos. Avaliação do curso pelos discentes.

O elemento central das análises e propostas é a compreensão das estruturas urbanas do sítio estudado, com aportes dos elementos da teoria da Conservação. O estudo morfológico proposto vai além dos elementos clássicos (tipos de construções, usos significativos, espaços livres, vistas destacadas etc.). A disciplina se vale também das propostas metodológicas de Pereira (1996) para a reabilitação de áreas urbanas, abordando elementos de suas estruturas física (morfotipológica) e ativa. A abordagem de reabilitação parte do estudo da constituição do espaço urbano, numa perspectiva ao mesmo tempo histórica e material (física) adequada à filosofia de Projeto 7. A leitura da área de intervenção se inicia com uma visão ampliada, abrangendo a análise da morfologia da paisagem urbana e a compreensão de essa área faz parte de um contexto urbano historicamente construído. A estrutura física se analisa a partir das bases de formação do tecido urbano, de seu uso-ocupação, aprofundando-se em aspectos relativos à malha urbana, ao espaço urbano e ao espaços construído (edifícios, tipologias, patrimônio histórico). A análise da estrutura ativa abrange não apenas os usos e atividades urbanas (habitação, comércio, serviços, lazer), mas aquelas que apoiam a sua realização (infraestruturas, serviços urbanos).

A compreensão dos aspectos morfológicos, a partir da análise das células básicas da forma urbana (quadras, lotes, edifícios, vias, espaços livres) e dos elementos de referência para a Conservação Urbana (autenticidade, integridade e significância; valores e atributos patrimoniais), é apoiada por elementos de leitura da paisagem urbana (Cullen, 2006) e da imagem da cidade (Lynch, 1990). A Figura 3 ilustra o percurso projetual seguido na disciplina, sintetizando para apresentação na Coda tanto o conteúdo das etapas anteriores (de leitura da realidade, de construção do conceito, de modelagem da intervenção), quanto o Plano de Massa proposto, resultado da integração dos projetos arquitetônico, urbanístico e paisagístico. A maquete final do período (Figura 4) traz o detalhamento do Plano de Massa, concretizando a proposta projetual em um modelo físico tridimensional.

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Figura 3. Proposta de intervenção segundo o conceito “Ver(a)cidade”.

Figura 4. Maquete da proposta de intervenção segundo o conceito “Ver(a)cidade”.

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A utilização da maquete como um instrumento de estudo da forma urbana O uso de maquetes físicas tem se demonstrado uma ferramenta útil para o desenvolvimento de projetos de Conservação. A arquitetura é uma experiência física e visual do espaço, por isso, o uso dessas maquetes é a melhor maneira de explorar essa experiência sensorial. Após a visita campo realizada com os alunos é confeccionada uma maquete urbanística de toda a área de estudo, ampliando a compreensão do sítio. A maquete urbanística de estudo reúne diversas informações (atributos) sobre o lugar, através de uma representação tridimensional simplificada de elementos como relevo, vegetação, espaços públicos e padrão de ocupação, possibilitando uma percepção mais abrangente da conjuntura urbana e das relações espaciais. Dentre os elementos que caracterizam o sítio histórico de Olinda, conferindo-lhe identidade, a maquete deu ênfase à vegetação dos quintais e aos telhados das casas e igrejas. Esta decisão levou em consideração a identificação e valoração dos atributos realizados nas disciplinas integrativas, bem como o que foi observado por Michel Parent, consultor da UNESCO, quando afirmou que "Olinda não é uma cidade, é um jardim pontilhado de obras de arte”.

Figura 5. Maquete urbanística geral para estudo do sítio histórico de Olinda.

Neste momento inicial, a escala da maquete e das análises é 1:500. O sítio é compreendido como um “todo” constituído de “partes” que se articulam de maneira sistêmica. A partir daí, são elaboradas diretrizes de intervenção para cada recorte, considerando os problemas e potencialidades identificados, além dos princípios da Conservação Urbana. A partir da segunda metade da disciplina de Projeto 7, a escala de trabalho é ampliada para a escala da quadra (1:250). Nesse momento, são desenvolvidos estudos para um Plano de Massa urbanístico e paisagístico. O objetivo é elaborar uma proposta de intervenção que se integre ao contexto histórico edificado, com um uso apropriado, em concordância com a legislação urbanística, mas sem abdicar de sua condição contemporânea. Finalmente, a apresentação e discussão das propostas finais PNUM 2016 516

de intervenção se baseiam em maquetes físicas, enriquecendo o processo, que pode inclusive se valer do deslocamento e/ou eliminação de volumes construídos para ilustração dos comentários.

Conclusão A experiência de ensino de projeto envolvendo de modo integrado exercícios nos campos da arquitetura, urbanismo e paisagismo tem-se demonstrado bastante rica. Além do diálogo permanente entre os docentes de diversas especialidades – os autores do trabalho atuam nos campos do Desenho Urbano, Arquitetura, Planejamento Urbano e Regional e Paisagismo –, que dá suporte à abordagem integrada dos alunos, o encadeamento modular dos passos metodológicos estimula a construção continuada dos projetos, apoiada pelo aporte intercalado de conteúdos conceituais e instrumentais.

A abordagem pedagógica se presta particularmente bem ao tema da Conservação Urbana. Resta ajustar alguns referenciais conceituais e instrumentais, mas a avaliação do exercício projetual integrado tem sido positiva por parte dos discentes. A expressão dos alunos acerca dos conhecimentos e habilidades adquiridos é ilustrativa dos avanços obtidos com a introdução do PPC-2010. Evidencia-se a compreensão da articulação entre saberes conceituais, instrumentais e projetuais. A modularidade do curso favorece o desenvolvimento articulado e sequencial das propostas. Ainda que a rejeitem de início, a confecção das maquetes físicas é avaliada positivamente, facilitando a compreensão espacial da realidade estudada e dos reflexos da modelagem volumétrica das intervenções sobre o patrimônio. Finalmente, adotando-se como meio à Conservação os estudos de natureza morfológica, tornam-se palpáveis os meios projetuais a aplicar.

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As formas da cidade compacta: Investigação arquitetônica sobre quarteirão existente Maria L. A. Sanvitto Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Iguaçu, 206 apto 702, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil Telefone/fax: 55 51 33385003 – 55 51 99863015 [email protected]

Claudia P. C. Cabral Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Bagé, 36 apto 402, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil Telefone/fax: 55 513 35333799 – 55 51 93562610 [email protected]

Resumo A disciplina Projeto III, ministrada no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – FA/UFRGS, localizada na cidade de Porto Alegre, Brasil, tem desenvolvido exercícios de projeto que priorizam o tema da habitação urbana, em área tradicionalmente miltifuncional daquela cidade. O bairro de Porto Alegre, Cidade Baixa, escolhido para o desenvolvimento da investigação se caracteriza por quarteirões parcelados em lotes pequenos e profundos, com ocupação entre as divisas laterais e alinhamento junto ao passeio. Trata-se de lotes densamente ocupados, na sua maioria com edificações em dois ou três pavimentos. O conjunto resulta em área densamente ocupada, onde cada um dos lotes preserva uma menor área aberta, gerando pequenos vazios desencontrados e disseminados pelos quarteirões. A permisão de remembramento dos lotes pelas normativas urbanas, aliada a determinações do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre, que tem por base uma versão simplificadora da ideologia da cidade moderna de edifícios isolados, tem gerado uma forte transformação tipo-morfológica da área. Sendo assim, ao lado de lotes densamente ocupados, com pequenas áreas abertas distribuídas irregularmente na massa construída, surgem edifícios isolados que rompem a morfologia urbana consolidada. O Projeto III da FA/UFRGS tem procurado investigar uma alternativa à tendência atual, com a preservação do parcelamento e altura das edificações similares às existentes. Propomos a manutenção da multifuncionalidade, como forma de estimular a dinâmica do bairro, e ao mesmo tempo demonstrar a possibilidade de contemplar o potencial construtivo da área em estudo. O trabalho a seguir pretende descrever e argumentar os princípios que norteiam o exercício desenvolvido na disciplina, assim como apresentar alguns resultados obtidos.

Palavras-chave Morfologia urbana; habitação; quarteirão urbano; sustentabilidade

Introdução Perspectivas contemporâneas reivindicam a cidade compacta e multifuncional como estratégia sustentável, na medida em que esse modelo rentabilizaria o uso do solo e da infraestrutura, com menores PNUM 2016 519

distâncias a serem percorridas, despendendo menos energia para manter sua estrutura e organização. A reflexão sobre a cidade compacta e sua dimensão urbana conduz às relações entre arquitetura e cidade, com especial interesse na forma urbana, nas relações entre a morfologia urbana preexistente e a nova proposta arquitetônica a ser inserida. Não se trata, no entanto, de um determinismo contextualista, mas de uma investigação que envolve a reflexão sobre as propostas de cidade tradicional e moderna, no que diz respeito a estrutura física e funcional. Embora a investigação desenvolvida no exercício projetual do Projeto III tenha como foco a composição volumétrica e resolução arquitetônica de edificações passíveis de serem construídas, o trabalho implica uma intervenção arquitetônica na escala do quarteirão. Leva-se em consideração o duplo problema das relações compositivas entre distintas formas arquitetônicas, resultantes da diversidade programática, e a inserção deste conjunto num entorno configurado. O trabalho de “reconhecimento” do quarteirão tradicional requer examinar os vínculos entre as formas do parcelamento e a vitalidade do espaço público, mas, igualmente, oportuniza a sua atualização, através da proposição de estruturas arquitetônicas capazes de corresponder a requisitos contemporâneos de desenho. Objetivo da investigação A disciplina de Projeto Arquitetônico III tem por objetivo o desenvolvimento de anteprojeto arquitetônico de programa multifuncional, caracterizado como conjunto de unidades de trabalho e moradia em sequência de lotes de pequena dimensão, incluindo equipamentos complementares de comércio e/ou serviços voltados à escala do bairro, e espaços abertos adjacentes, que se integram ao estudo projetual. A cidade A cidade de Porto Alegre é a capital do estado mais meridional do Brasil, o Rio Grande do Sul, cujo limite a sudoeste se estende até o Uruguai, fazendo divisa a noroeste com a Argentina. Sua geografia é diversificada, com elevações e baixadas, onde principal espigão adentra o lago Guaíba no sentido leste/oeste formando uma península. A ocupação desta península deu origem a cidade que, a partir da metade do século XIX, se expandiu ao longo de seus eixos de acesso. No fim do mesmo século, Porto Alegre apresentava desenvolvimento urbano em alguns núcleos esparsos como na península, onde se encontrava o Centro da cidade, e na sua periferia como os bairros Bom Fim e Cidade Baixa. O bairro A Cidade Baixa é um bairro tradicional de Porto Alegre, próximo ao Parque Farroupilha, uma das áreas mais arborizadas da cidade, em condições ambientais nitidamente urbanas embora relativamente degradada, porém comercialmente ativa. É caracterizado pela diversidade de funções como habitação, comércio e serviços, assim como pela heterogeneidade de usuários que ocupam as ruas de maneiras variadas e em períodos diversificados. A proximidade ao campus central da Universidade Federal do Rio PNUM 2016 520

Grande do Sul favorece a concentração de estudantes, intelectuais e artistas. A presença de um grande número de bares garante o prolongamento da dinâmica do bairro no período noturno. Moradores locais desfrutam da proximidade de comércio e lazer, da mesma forma que estas atividades são um polo de atração tanto diurno como noturno para residentes de outras áreas da cidade. A diversidade dos moradores e frequentadores da Cidade Baixa atinge ainda diferentes idades, desde jovens estudantes com alguma rotatividade, até moradores mais idosos que permanecem no bairro ao longo de anos. O quarteirão Considerando a pertinência de um exercício no bairro Cidade Baixa pela sua diversidade e dinâmica, foi selecionada uma parte de um quarteirão, formado pelas ruas Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Lopo Gonçalves e Lima e Silva. Trata-se de um quarteirão em forma de retângulo bastante alongado, onde nos lados menores a soma das testadas dos lotes chega a uma dimensão em torno de 60 metros. Estas faces estão voltadas para as ruas José do Patrocínio e Lima e Silva, de maior movimento de pedestres e de veículos, com característica de ligações interbairros. Os outros dois lados do quarteirão são mais extensos, com aproximadamente 250 metros de testada para as ruas Joaquim Nabuco e Lopo Gonçalves, que são vias de fluxo menos intenso restrito ao bairro. A área delimitada A disciplina define como área específica de intervenção duas sequências de lotes de quatro metros de testada, em lados opostos do quarteirão, fazendo a ligação entre as ruas Joaquim Nabuco e Lopo Gonçalves, no ponto médio da maior dimensão da quadra. São vinte lotes com frente para a rua Joaquim Nabuco, somando 80 metros, e oito lotes voltados para a rua Lopo Gonçalves chegando a 32 metros. Na maior dimensão os lotes têm 25 metros de profundidade enquanto que os demais são mais longos com 35 metros de profundidade. O encontro destas duas sequências de lotes determina um alinhamento excêntrico, configurando uma forma aproximada em “T”, de diferentes dimensões em relação ao seu eixo longitudinal. O exercício Para efeito do exercício de projeto a ser realizado, a disciplina propõe a resolução arquitetônica de conjunto de espaços edificáveis de moradia, trabalho, comércio ou prestação de serviços. Com a intenção de agregar certa complexidade ao exercício, buscando permeabilidade urbana dificultada pela extensão do quarteirão, sugeriu-se a criação de uma passagem de pedestres entre as ruas Joaquim Nabuco e Lopo Gonçalves, compondo a área específica de intervenção e gerando parcela de uso público a ser proposta como área aberta. Trata-se, portanto, de promover — através da realização de projeto específico — a revitalização e transformação do sistema de lugares, caminhos e eventos que define a base programática de utilização e formalização da arquitetura da cidade.

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Embora o projeto enfoque composição e resolução arquitetônica de edificações concebidas como necessariamente construíveis, o trabalho implica uma intervenção arquitetônica na escala do quarteirão, não se limitando à edificação isolada. Leva-se em consideração o duplo problema da inserção das edificações no bairro e na integração compositiva das partes que correspondem a uma heterogeneidade programática, bem como a integração das distintas escalas envolvidas, que deve dar lugar a uma configuração unitária. O programa arquitetônico foi subdividido em três partes. A primeira delas com unidades de moradia em que, além das áreas que atendam o uso habitacional, seja previsto espaço apto a receber atividade de trabalho, sem obrigatoriedade de compartimentação entre os diferentes usos. Em segundo lugar, a proposição de um programa especial, envolvendo uso comercial, cultural ou de serviços, localizado em situação previamente definida, reconhecendo sua condição particular com relação ao contexto de intervenção. E por último, o sistema de movimentos interno ao quarteirão e sua respectiva inter-relação com as unidades e com o projeto do espaço aberto e da passagem de pedestres. Salientou-se junto aos alunos a obrigatoriedade de manter referência em relação às testadas dos terrenos, com quatro metros de largura. Afirmou-se a necessidade de investigar soluções arquitetônicas a partir do reconhecimento do todo, visando à relação compositiva entre elementos com variedade dimensional, assim como reconhecer sua potencialidade na configuração dos espaços abertos. Outro problema a ser enfrentado no projeto foi a busca de iluminação natural para edificações em lotes estreitos e profundos, pressupondo espaços abertos intermediários. Como forma de atender uma demanda real, considerou-se ainda a previsão de estacionamento de veículos no interior da área delimitada. Esta previsão, no entanto, não teria a necessidade de atender todas as unidades habitacionais ou demais usos previstos como comércio ou prestação de serviços. Tal condição permitiria o estabelecimento de uma solução paralela à que vem se concretizando atualmente, com remembramento de lotes e construção de habitação coletiva em altura, resultado de normativas urbanas de recuos laterais, de frente e fundo dos lotes que descaracterizam a morfologia urbana existente no bairro. Considerando ainda as características morfológicas existentes, a disciplina estimulou altura construída de até quatro pavimentos, bem como o uso da cobertura. A sobreposição de unidades habitacionais poderia ser considerada, desde que mantido o acesso independente a cada uma delas. Para o desenvolvimento do projeto exigiu-se maior definição das unidades habitacionais, com liberdade no tratamento dos espaços internos no que diz respeito à compartimentação e área das casas. Recomendou-se a busca de continuidade espacial como forma de qualificar os interiores, buscando compensar as limitações dimensionais do lote. Para as áreas de comércio ou prestação de serviços, genericamente chamadas de equipamento, não houve definição de programa específico, ficando a definição de uso a critério dos alunos. Salientou-se, no entanto, a obrigatoriedade de solução PNUM 2016 522

arquitetônica destes espaços tais como: acessos, percursos e espacialidade interna, atendimento aos requisitos de iluminação e ventilação, relações interior/exterior. As propostas arquitetônicas A investigação de soluções arquitetônicas perante o problema colocado levou os alunos, num primeiro momento, ao enfrentamento de uma série de questões. Como organizar o conjunto de unidades habitacionais, mantendo a referência aos 4 metros de largura dos lotes, sendo que a outra dimensão, a profundidade, estaria a critério da solução arquitetônica? Dada a dimensão de 4 metros entre medianeiras, como atender aos requisitos de iluminação e ventilação das unidades habitacionais? Como configurar os espaços externos? Qual o melhor sistema de circulação? Como tratar as medianeiras da área considerada? Como definir os acessos? Como estabelecer relações compositivas entre elementos com diversidade dimensional?

Figura 1. Alargamento do passeio. Fonte: Projeto desenvolvido pelas alunas Emanoela Gehlen Bregolin e Raquel Moraes Faria (2014)

A consideração às premissas acima descritas e a investigação de soluções possíveis teve como resultado uma diversidade de partidos arquitetônicos. A análise deste material produzido pelos alunos demonstrou diferentes alternativas de projeto, como forma de organizar diferentes requisitos dimensionais e funcionais. Para a verificação da variedade de partidos, assim como para melhor compreender as características de cada um deles, procurou-se identificar soluções análogas através de tipologias formais. Uma delas está ligada a criação de espaço aberto junto ao alinhamento, gerando uma solução que pode ser percebida como alargamento do passeio (Figura 1). A forma de gerar atratividade para este vazio urbano foi relacioná-lo ao espaço construído adjacente, onde havia a previsão de uso coletivo como PNUM 2016 523

comércio, atividades culturais ou prestação de serviço. No caso exemplificado acima, assim como em outras alternativas de projetos, este uso coletivo serviu como atividade motivadora ao longo da passagem de pedestre que cruza a área de estudo.

Figura 2. Distribuição de espaços abertos Fonte: Projeto desenvolvido pelas alunas Juliana Moroishi e Raquel Monteggia (2014)

Outro conjunto de soluções arquitetônicas similares seguiu o princípio da distribuição de espaços abertos (Figura 2) em vários pátios menores. Como recurso de ordenamento, estes projetos fizeram uso de uma malha palnimétrica reguladora que, a partir da largura dos lotes de 4 metros, adotou a mesma dimensão no sentido transversal daqueles. Resultou numa tipologia formal caracterizada pela predominância de uma massa construída uniforme com alguns vazios, ambos regulados pelo princípio dimensional de quatro por quatro metros. No projeto acima reproduzido, a existência de uma subtração volumétrica maior no centro da composição arquitetônica não descaracteriza a regularidade dimensional do todo, na medida em que este tema foi retomado no tratamento de piso deste espaço aberto. Ainda neste exemplo, os pequenos pátios trazem uma certa dinâmica ao todo na medida em que, tratando-se de uma proposta em três pavimentos, sua altura varia entre um, dois ou três pavimentos. Neste princípio compositivo, caracterizado pela expressão de uma regularidade dimensional, as áreas contruídas formam um conjunto que dissimula a percepção da diversidade funcional entre habitação e equipamento. Da mesma forma, a identificação da passagem de pedestres não é de imediato apreendida, uma vez que ocorre alternadamente entre trechos cobertos e descobertos.

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Figura 3. Passagem linear Fonte: Projeto desenvolvido pelas alunas Barbara Milani e Luciana Baroni (2014)

A presença de uma passagem linear (Figura 3), espacialmente definida pela massa construída, foi um princípio compositivo presente em algumas alternativas de projeto propostas. A ausência de cobertura ao longo desta passagem foi certamente um pré-requisito para que este vazio linear fosse claramente percebido. No exemplo acima, a passagem de pedestre que cruza o quarteirão é configurada de um dos lados pelas empenas laterais das três fileiras de casas, enquanto que do outro a presença da fachada da área destinada ao uso coletivo, comercial, cultural ou de serviço, ao longo de todo percurso, pode trazer animação pelos acessos ou continuidade virtual como envidraçamento. Por último, vale apontar o pátio quadrangular, como uma solução corrente entre as alternativas de partido arquitetônico desenvolvidas no Projeto III. Entende-se aqui o pátio como espaço livre, descoberto, conformado por edificações ou elementos construtivos ao seu entorno. Presente na arquitetura moderna como a casa-pátio, a exemplo do projeto de Mies van der Rohe de 1931, este princípio compositivo tem origem ibérica, onde a densa ocupação do solo era compensada por pátios internos para onde se voltavam as residências. Trata-se de tipologia que se afasta do modelo suburbano de casas isoladas e mais adequada ao meio urbano. O exemplos abaixo são propostas que valorizam o espaço aberto de diferentes maneiras. No primeiro deles (Figura 4), houve a estratégia de tratar a área do terreno de maior testada, voltada para a Rua Joaquim Nabuco, como uma faixa construída e um volume menor como uma espécie de apêndice, enquanto que a área voltada para a Rua Lopo Gonçalves, aproximadamente quadrangular com 32 metros de largura por 35 metros de profundidade, deu lugar a ocupação periférica definindo um pátio central. No segundo exemplo (Figura 5), a estratégia de ocupação foi pensada a partir PNUM 2016 525

de três setores: um trecho central de 32 metros de largura, que cruza o quarteirão, construído em seus quatro lados e ocupando toda a largura junto a rua Lopo Gonçalves; enquanto que nos outros dois setores, no alinhamento da rua Joaquim Nabuco e chegando até as medianeiras, a lateral de maior dimensão foi destinada a uma sequência de casas geminadas de maior profundidade e o lado oposto, de menor extensão, foi ocupado pelo equipamento coletivo. Em ambos os casos, a passagem de pedestres entre as ruas opostas foi considerada, embora não esteja configurada volumetricamente com trechos cobertos e outros descobertos.

Figura 4. Pátio quadrangular Fonte: Projeto desenvolvido pelas alunas Ana Rita Branco e Gabriela Bertoli (2014)

Figura 5. Pátio quadrangular Fonte: Projeto desenvolvido pelo aluno Bernardo Luiggi Baldissera (2014)

Considerações finais A partir do exposto pode-se considerar que, estabelecida a premissa de 4 metros de largura no sentido longitudinal, mantendo livre a dimensão ortogonal, com a previsão de programa habitacional de acesso individualizado, complementado por equipamento de comércio, serviço e/ou lazer e passagem de pedestre, obteve-se distintas soluções caracterizadas principalmente pela configuração dos espaços abertos. Sendo assim, a tentativa de identificação das alternativas de projeto partiu da configuração dos espaços abertos e não da morfologia construída que, de certo modo, é similar nas diferentes soluções consideradas as variações arquitetônicas. Trata-se, portanto, da identificação das figuras criadas pela delimitação do espaço aberto a partir da massa edificada e não da situação oposta, onde as edificações PNUM 2016 526

são as figuras sobre um vazio amorfo. Isto posto, pode-se dizer que a questão de investigação do atelier de Projeto III da Faculdade de Arquitetura da UFRGS está ligada ao estudo das “formas do vazio”, mediante a relação entre espaços abertos e massas construídas. Estas constatações evidenciam a complexidade do estudo sobre o vazio, lugar a princípio inexistente se não configurado volumetricamente, que na arquitetura e na cidade moderna foi o nada sobre o qual se instalavam as figuras, ou seja, as edificações. Princípio que, de forma reducionista, foi incorporado como uma visão de cidade ideal, por este pressuposto inexistente, aplicada à cidade real com regulamentação fundiária em lotes segregados. Este é o caso de Porto Alegre, onde a ideia do edifício como figura sobre fundo neutro e disforme sofreu reducionismo quando aplicado aos lotes existentes, gerando obrigatoriedade de recuos nas quatro faces da edificação. Trata-se de questão central nas investigações promovidas pelo Projeto III, usando o caso do Bairro Cidade Baixa, com transformações contrárias à sua vocação natural de trocas interior e exterior que potencializam animação pelo contato entre o passeio e as edificações no alinhamento, que edifícios em altura e recuados das calçadas não estimulam. Referências bibliográficas Álvarez-Sala E et al. Viviendas unifamiliares adosadas, Editorial Munilla-Lería, Madrid. Cambi E, Di Sivo M, Steiner G Viviendas en bloques alineados, Ediciones Gustavo Gili, México. French H (2009) Vivienda colectiva paradigmática del siglo XX, Editorial Gustavo Gili, Barcelona. Müller D, Ferraz C (1997) Porto Alegre e sua evolução urbana, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Pfeifer G, Brauneck P (2009) Casas en hilera, Editorial Gustavo Gili, Barcelona. Sherwood R (1983) Vivienda: Prototipos del Movimiento Moderno, Editorial Gustavo Gili, Barcelona.

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6. Métodos e técnicas

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Técnicas Morfológicas do Projeto Urbano Paolo Marcolin LIA, ESAP | Lab2PT, UMinho, [email protected], Tel. 934 626 486

 Resumo Desde os anos sessenta, no contexto europeu a utilização do projeto urbano como prática e instrumento privilegiado de intervenção na cidade tem vindo progressivamente a crescer, abrangendo seja as partes com um elevado nível de serviço e estruturação, referentes a realidades existentes carentes de operações de requalificação urbana, seja as porções territoriais vocacionadas ou para a transformação da cidade tradicional ou para a reestruturação de aglomerações emergentes, prevendo-se a realização de tecidos e ambientes urbanos dotados de novas complexidades formais e funcionais. De entre os fatores que devem assegurar o êxito do projeto urbano destacam-se as técnicas morfológicas: princípios e regras de desenho urbano que, juntamente com as diretrizes funcionais e de procedimento, definem o quadro geral da intervenção preconizada no projeto. Para além de condicionar a abordagem e o projeto urbano enquanto processo, estas técnicas revelam-se determinantes na concretização do resultado formal da imagem urbana idealizada na visão dos diferentes atores, nomeadamente a do(s) autor(es) do projeto, das instâncias que gerem a sua implementação e que decidem sobre o desenvolvimento da cidade, desempenhando um papel fundamental na definição da estrutura e da organização geral da intervenção, das relações com a envolvente, das situações de continuidade ou de contraponto com as estruturas urbanas preexistentes, tendo o espaço público como principal elemento estruturador. A identificação tipificada destas técnicas em experiências representativas reafirma a importância do desenho urbano, nas suas diversas formas de atuação, para a (re)definição e a (re)construção da identidade física da cidade e da complexidade do espaço urbano.

Palavras-chave: projeto urbano, forma urbana, espaço público.

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1. Pressupostos conceptuais1 Desde o seu aparecimento, que remonta ao início dos anos 60, o projeto urbano surge como uma resposta para a construção da cidade do futuro. Na primeira e segunda geração desta resposta, as intervenções procuravam impor-se como exemplos emblemáticos limitados (Portas, 1998), fragmentos exemplares de um sistema totalmente reconstituído (Gregotti, 1993), ou ainda como tentativa de redefinir o tecido urbano potenciando a sua capacidade de interação com a envolvente. A terceira geração, para além de contar com novos tipos de programas, mais complexos e ligados a oportunidades associadas à natureza da intervenção (Portas, 1998), explorava o conceito de mixité, que mais tarde acabará por ser reconhecido como um dos princípios reguladores da qualidade do desenho urbano e pressuposto fundamental para o êxito global do projeto urbano. Este princípio não será entendido apenas como um sistema de mistura de funções, mas também e sobretudo como uma técnica que visa articular situações morfológicas e sociais, a utilizar com o objetivo de responder às exigências da complexidade da sociedade e da cidade contemporâneas. Juntamente com o fator tempo, que representa uma das principais invariantes axiológicas do projeto urbano, a mixité torna-se um aspeto fundamental de projeto já no debate dos anos 902, chegando a ser considerado um elemento complementar aos que definem a estrutura física da cidade: traçado, hierarquias monumentais, subdivisões e regras de organização espacial (Huet, 1984). É ainda nesta altura que há uma nova tomada de consciência sobre a natureza do projeto urbano: um projeto contínuo não finito, capaz de produzir continuidades internas e de promover a relação entre espaço público e espaço privado (Huet, 1993). Apesar das divergências, o projeto urbano será assumido como prática que articula diferentes escalas e temporalidades, processo contínuo e complexo que pode contribuir para entender a cidade como resultado de uma obra coletiva e contínua. Tendo sido contudo objeto de várias interpretações, acabará por se tornar uma expressão polissémica (Cecchini, 2004) e inevitavelmente ambígua (Ferretti, 2012), estudada e revista por vários autores – mais recentemente por Tsiomis e Ziegler (2007) e em abordagens anteriores por Gasparrini (1999) e Solá Morales (1989) – sobretudo nas questões que se prendem com a sua natureza e modalidades de atuação – programa, abrangência, escalas, temporalidade, visão política, cultura projetual, etc. Apesar de não haver uma definição capaz de traduzir de forma



 Parte dos conteúdos deste ponto baseia-me no trabalho de investigação desenvolvido por Marcolin, Flores e Cortesão (2015).  É neste período que Tsiomis (1993) analisa e enquadra a mixité na categoria dos instrumentos conceptuais de base do projeto urbano

 

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inequívoca e definitiva o significado desta expressão, há aspetos que têm vindo a defini-la como procedimento cujas complexidade e flexibilidade variam em função do contexto em que desenvolve. Um destes aspetos refere-se ao projeto urbano como grandeza variável (Ferretti, 2012) e com elevada capacidade de adaptação. Várias experiências destas últimas décadas – veja-se por exemplo em (Nigrelli, 1999), (Gasparrini, 1999), (Indovina, 2004), (Russo, 2011), (Ferretti, 2012), (Schenk, 2013) – têm revelado que esta grandeza não tem sido utilizada só e exclusivamente para a transformação urbana, mas também para outros tipos de situações e complexidades (dimensão da intervenção; diversidade e complexidade programática, funcional e formal; multiplicidade de atores, temporalidade incerta e variável, etc.). Acresce que terá sido ainda esta mesma capacidade de adaptação que permitiu associar a emergência do projeto urbano a respostas em contextos de incerteza e à maior flexibilidade e adaptabilidade à mudança no funcionamento do sistema de planeamento (Portas, Cabral, 2011, 262). Outros aspetos associados à complexidade do projeto urbano prendem-se com a sua capacidade de contribuir para dinamizar e estruturar a cidade: i) gerando ou induzindo efeitos de escala local e territorial, decisivos para o desenvolvimento socioeconómico; ii) promovendo e articulando atividades, serviços, espaços e infraestruturas do coletivo que são indispensáveis para uma estrutura urbana qualificada e para a qualidade de vida da população citadina. Além de ser um procedimento que se desenvolve de forma complexa – temporalidade prolongada, instabilidade, mudança do programa funcional, das arquiteturas e da estrutura da propriedade (Ferretti, 2012, 23-24), o projeto urbano pode assim produzir complexidades que têm efeitos multiescalares. Como já observado por alguns autores, o projeto urbano contemporâneo surge como instrumento de mobilização política e financeira (Portas, Cabral, 2011, 259), o que lhe permite despoletar efeitos catalíticos ou multiplicadores que ultrapassam a área de intervenção, potenciando ou promovendo determinados setores ou economias locais. No entanto, e antes de tudo, este instrumento deve saber construir cidade ordinária, entendida como tecido, articulação e complexidade da oferta de espaço público e funções (Ferretti, 2012, 120), sendo esta uma das condições essenciais para a qualidade urbana das cidades. Em relação à capacidade de proporcionar materialidades e funcionalidades que são essenciais para a cidade desenvolver de forma estruturada e sustentável, esta deve-se ao facto de o projeto urbano ter como componente de base o espaço público na sua acepção mais abrangente. Ou seja, como dimensão que estrutura o tecido da cidade, que acolhe e articula funcionalidades e elementos de vária natureza e de uso coletivo. A importância e a capacidade agregadora destes elementos assegura a existência de uma complexidade indutiva, necessária para obter espaços dotados de qualidades imateriais

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dinamizadoras e polarizadoras da intervenção: vitalidade, acessibilidade, multifuncionalidade, diversificação e atratividade como caraterística que sintetiza a presença ativa destas qualidades. A atratividade resulta, de facto, de um conjunto de aspetos que tornam o meio urbano desejável, gerando ressonâncias positivas, capazes de chamar e manter recursos e talentos que, por sua vez, acabam por alimentar ou funcionar como ulteriores meios de atracão que a própria cidade consegue desenvolver (Landry, 2006). Os efeitos deste poder de atracão dependem de elementos tangíveis e intangíveis (Landry, 2006), o que significa que, salvo em situações particularmente excepcionais, em que, tanto uns como os outros, podem ter uma influencia maior e mais determinante na atratividade e competitividade da cidade, eles são complementares. Pode-se assim dizer que não será apenas a presença de eventos importantes, de funções específicas ou de uma economia forte que poderá, por si só, construir ou incrementar o poder e a desejabilidade de uma cidade. Será também a presença de materialidades, infraestruturas, arquiteturas e espaços concebidos de acordo com princípios adequados às exigências que se impõem no processo de modernização da sociedade (Ascher, 2001).

2.

Técnicas morfológicas: elementos fundamentais para a qualidade do espaço

urbano Para além dos aspetos que vão (re)definindo a natureza e o papel do projeto urbano no quadro processual e metodológico, há técnicas da dimensão morfológica que são determinantes na construção da imagem e estrutura urbana da cidade. Estas técnicas desenvolveram-se e aperfeiçoaram-se no tempo precisamente graças a uma abordagem escalar ampla e abrangente que esta prática tem vindo a proporcionar na concepção e representação das condições formais. A concepção e representação destas condições dependem não só da maneira de conceptualizar e perspetivar a cidade, mas também da flexibilidade atribuída ao projeto, a qual é definida em função do desenho, do seu grau de detalhe e do seu valor prescritivo e vinculativo. Em todo o caso, as técnicas utilizadas para definir a estrutura morfológica urbana de base do projeto urbano não deixarão de ser orientadas e condicionadas pelos elementos de fundação do projeto, designadamente: a natureza geográfica do solo, a subdivisão histórica do terreno e do traçado (Gregotti, 1993). Na generalidade dos casos, estas técnicas assentam em princípios de desenho urbano utilizados desde os tempos mais remotos para conferir à cidade uma identidade física própria, expressa em forma de estrutura urbana construída (Schenk, 2013). Certos princípios continuam a ser reutilizados para encontrar um desenho capaz de acompanhar o processo de desenvolvimento urbano ao longo

 

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do tempo, assegurando a integração de funções, objetos e espaços nos diferentes momentos de consolidação e de evolução da cidade. Não é assim de estranhar que muitas das experiências do desenho urbano deste período tenham vindo a reutilizar princípios de organização espacial independentemente do modelo, da época e das tendências. A grelha ortogonal ou as configurações orgânicas oriundas dos assentamentos do século XIX, são princípios que foram reutilizados com frequência, e que acabaram por adquirir um caráter definitivamente intemporal. Esta ideia de intemporalidade foi recentemente reavaliada por Schenk. Tendo por objectivo demonstrar a influência do desenho urbano das cidades antigas em projetos urbanos contemporâneos, este autor identifica e sistematiza um conjunto de princípios organizadores recorrendo a exemplos históricos paradigmáticos e de projetos selecionados em diversas competições internacionais que decorreram na Alemanha na década passada. A abordagem deste trabalho evidencia que, para além de existir uma clara influência das experiências do passado naquelas da contemporaneidade, a reutilização destes princípios e das técnicas morfológicas que definem o modelo, o caráter e a identidade da estrutura urbana de um determinado projeto urbano, é essencial não só para a construção da imagem global da cidade, mas também para proporcionar o bem-estar aos seus habitantes. Schenk parte do pressuposto de que o desenho urbano é baseado em dois grandes princípios organizadores: geométrico e não geométrico. O segundo, redescoberto no período pós-moderno na sequência da crítica à visão urbanística do modernismo, é entendido como algo que está na base de estruturas orgânicas ou biomórficas, ainda que propositadamente planeadas para esse fim e não resultantes por isso da ação natural da paisagem. No âmbito deste princípio estão ainda associadas soluções que surgem com base em abordagens que privilegiam composições livres ou artísticas e colagens narrativas, em contraposição àquelas que assentam em princípios expressamente racionais de matriz euclidiana. No caso do princípio geométrico, o principal elemento definidor da estrutura urbana é a grelha ortogonal, que é descrita como o princípio organizador mais comum do desenho urbano, enquanto utilizado por diferentes culturas ao longo da história da construção da cidade. Com base neste raciocínio, Schenk identifica diversos padrões, regras ou técnicas morfológicas (i.e. variações formais da grelha – deformação, repetição e irregularidade associadas a configurações morfológicas de diferente natureza; variações morfo-tipológicas do quarteirão, por blocos ou lineares, etc.) que resultam precisamente da reinterpretação e combinação daqueles princípios com novos elementos arquetípicos, restituindo assim um conjunto de sugestões exemplares para a construção da complexidade urbana contemporânea. 



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 Figura 1. Kartal Masterplan, Istanbul. Zaha Hadid. Princípio organizador não geométrico | Orgânico – Biomórfico (Schenk, 2013). Fonte: http://www.zaha-hadid.com/masterplans/kartal-pendik-masterplan/   

 Figura 2. Desenvolvimento de Masdar, Abu Dhabi. Fost.r + Partners Princípio organizador geométrico | Sobreposição: combinação de vários tipos de ordens para criar ambiguidade e enriquecer a configuração espacial (Schenk, 2013). Fonte: http://www.zaha-hadid.com/masterplans/kartal-pendik-masterplan/ 

Da leitura destas sugestões é mais uma vez possível verificar que os princípios de base que orientaram a forma e o desenvolvimento da cidade desde as suas origens continuam a ser úteis e, por vezes, imprescindíveis para obter espaços bem organizados e coerentes, sobretudo nos casos



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relativos a operações de grande dimensão, em que o projeto urbano assume um papel de particular relevância. Por outro lado, verificou-se ainda que a associação destes princípios a técnicas morfológicas específicas e mais sofisticadas permite desenvolver soluções cada vez mais especializadas, que poderão responder a desafios e necessidades de ambientes urbanos cada vez mais dinâmicos, versáteis, marcados pela diferenciação e multifuncionalidade dos seus espaços. Outra abordagem, diferente da anterior, mas igualmente interessada em aspetos do foro morfológico, foi elaborada por Ferretti (2012) com o objetivo de reavaliar o papel do projeto urbano enquanto processo, e não como um tipo específico de projeto ou como instrumento definido nas suas partes. Neste caso, onde são confrontados e analisados procedimentos e modalidades de atuação de projetos urbanos europeus da contemporaneidade, identificam-se os elementos que definem o projeto urbano como processo, com vista a acrescentar novas referências de orientação para melhorar a sua performance, e reafirmar assim e também os seu principais objetivos de construtor da cidade ordinária, e da cidade ordenada como relação raciocinada entre cheio e vazio, como hierarquia de espaços e de funções, e como clareza das acessibilidades e facilidade das deslocações (Ferretti, 2012, 120). De entre estas referências, as que se prendem com a forma urbana preconizam, por um lado, o equilíbrio entre elementos estáveis e de flexibilidade, sendo esta uma condição fundamental para assegurar a concretização do projeto, por outro, a morfologia urbana como componente capaz de gerar e suportar a urbanity ou efeito cidade anteriormente referido. Na parte em que se analisam as técnicas morfológicas, os projetos são tipificados em três categorias distintas, sendo a primeira e a terceira as que reúnem os casos mais interessantes do ponto de vista das técnica aplicadas e dos resultados obtidos. Na primeira categoria estão incluídos os projetos que trabalham sobre um traçado regulador que define um tecido urbano compacto, e que utilizam as funções públicas como elementos urbanos de referência e de destaque. Ainda que de forma distinta, e consoante o tipo de contexto urbano, este projetos procuram reaproveitar o modelo da grelha e do quarteirão produzindo variações diferenciadas. Nesta categoria estão incluídos os projetos urbanos de Barcelona que preveem os espaços públicos como sistema e elementos de dinamização da retícula planeada por Cerdá (Diagonal, Vila Olimpica e 22@), momentos de contraponto e de diversificação do espaço definido pela malha regular que ordena o tecido urbano. Outros projetos desta categoria são os de Amsterdão, Paris e Roma. O primeiro, conhecido como Borneo Sporemburg, serve-se das funções públicas para enaltecer o tecido habitacional, posicionando assim três grandes blocos escultóricos numa vasta extensão de



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habitações. No segundo, situado na Rive Gauche, recupera-se a ideia do quarteirão parisiense do século XIX, tornando a sua configuração mais aberta sem contudo comprometer a unidade da intervenção e a sua continuidade com a cidade envolvente. Esta ideia é no entanto revista na segunda fase do projeto, onde o quarteirão é aberto, de modo a soltar os edifícios e a conferir-lhe uma forte autonomia, mas os espaços no seu interior são vedados, o que não permitiu nem desenvolver uma solução assente numa linguagem comum, e dotada de referências marcantes, nem obter uma certa continuidade espacial entre quarteirões.



 Figura 3. Anagnina Romanina. Planta Geral. Atelier Risco em colaboração com Nuno Portas. Fonte: http://www.laboratorioroma.it/progetti/Centralità/Anagnina%20Romanina/scheda_anagninaromanina.htm  O terceiro projeto desta categoria, relativo à criação de uma nova centralidade na Romanina, não

chegou a ser realizado, mas foi incluído por apresentar uma solução que reutiliza princípios e dimensões do quarteirão oitocentista (Marcolin, Flores e Cortesão 2015), restituindo uma concepção



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morfológica e espacial renovada. Nesta proposta os quarteirões são abertos por forma a estabelecer uma relação de grande permeabilidade e continuidade com o espaço público, admitindo variações morfológicas que possibilitam diversidade espacial e uma certa flexibilidade programática, formal e funcional, sem contudo comprometer a unidade e a coerência assegurada pelo sistema dos espaços públicos. Os projetos da segunda categoria são soluções que adotam uma lógica que é radicalmente oposta àquela dos exemplos anteriores. Todas as arquiteturas são concebidas como elementos de exceção, independentemente do tipo de função que lhe é atribuída. A ideia de valorizar ou construir um tecido urbano relativamente homogéneo onde se destacam algumas referências urbanas é substituída por uma outra que produz novas espacialidades, e promove a arquitetura de autor para potenciar a qualidade e o êxito económico da operação. Neste caso vale a pena mencionar a caraterização feita aos projetos urbanos holandeses de Almere, Kop van Zuid e Zuidas. Os dois primeiros são identificados como autênticos casos de sucesso, altamente qualificados, mas limitadores nos aspetos da multifuncionalidade e da diversidade social. Trata-se de facto de projetos que preconizam arquiteturas com valores muitos elevados, e que preveem margens de flexibilidade programática e funcional muitíssimo reduzidas. No caso de Almere estamos em presença de uma centralidade que integra funções polarizadoras de vária natureza, todas elas concentradas numa mesma área para gerar atração e contrariar a condição suburbana preexistente. Em Almere o desenho irregular do traçado impõe-se como um contraponto morfológico à estrutura urbana ortogonal da envolvente, que rompe definitivamente com a lógica de hierarquias predefinidas devolvendo um ambiente compacto e espacialmente mais dinâmico. Em Kop van Zuid os pressupostos programáticos e funcionais não são totalmente idênticos aos de Almere. As arquiteturas são de autor, no entanto, a mistura funcional encontra-se mais bem conseguida e articulada a um traçado ordenador regular, produzindo uma imagem de cidade consolidada e estruturada. O mesmo não acontece em Zuidas, centro dedicado ao comércio internacional e ao desenvolvimento do conhecimento, onde a utilização de modelos antitéticos e falta de uma coordenação mais atenta no desenho e na assemblagem dos diferentes elementos deu origem a um espaço urbano menos coeso e inteligível, ainda que os principais componentes do espaço público tenhas ajudado a estabelecer uma estrutura urbana ordenada.   

 

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 Figura 4. Almere Masterplan. Planta das funções. Rem Koolhaas, Floris Alkemande Fonte: http://oma.eu/projects/almere-masterplan

 Conclusões Sendo um processo para a construção de ambientes urbanos complexos, o projeto urbano desenvolve-se de acordo com horizontes temporais de longo prazo. Visões, modalidades e tempos de implementação deste processo variam, contudo, em função do contexto político, socioeconómico e cultural, e o seu êxito, claramente ligado a fatores de vária natureza, depende em especial modo da qualidade dos espaços urbanos que o próprio projeto define e, em última análise, da capacidade destes espaços atrair e fixar atividades e pessoas. O que significa que o projeto urbano deve saber definir uma resposta morfológica que materializa e expressa aspirações da cultura urbana local que o promove, sem contudo abdicar da sua autonomia nas opções morfológicas fundamentais que se prendem sobretudo com a dimensão do desenho urbano. Esta capacidade de atrair e fixar está por isso fortemente dependente da utilização inteligente e acertada das técnicas morfológicas que determinam o desenho geral da intervenção, do respetivo modelo de ocupação (usos, funções, tipologias, infraestruturas, etc.), e da forma como as diferentes

 

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funções, arquiteturas e infraestruturas são organizadas e relacionadas entre si e com o espaço público. Nesta resposta morfológica, quanto maior for o grau de definição do desenho, principalmente o das arquiteturas, tanto menor será o grau de flexibilidade do projeto. O êxito neste caso dependerá não só da qualidade dos seus elementos (espaços, arquiteturas, materiais, etc.), e da maneira como resultarão organizados, individualmente e em conjunto. Dependerá sobretudo do cumprimento do horizonte temporal perspetivado e do desenho do projeto tal como predefinido desde o princípio. Nos casos em que o desenho torna o projeto menos flexível e não predisposto para alterações de caráter substancial, as técnicas morfológicas tendem a privilegiarem princípios não geométricos. Nestas situações o desenho da estrutura urbana e dos respetivos componentes dificilmente poderia ser alterado sem haver perda de unidade e continuidade ao nível da imagem e funcionamento da própria intervenção. Nos projetos urbanos em que o desenho tem menor definição, ainda que esta última seja mais elevada no projeto dos espaços públicos e acompanhada de regras morfológicas muito claras e bem definidas, os princípios geométricos adaptam-se melhor, permitindo que a intervenção seja mais aberta a eventuais modificações. Nestes casos, a escolha das técnicas morfológicas e a forma como estas são utilizadas proporciona tempos de realização de longa duração, indo assim mais ao encontro a uma maneira de entender a cidade como resultado de uma sedimentação lenta e geradora de complexidades possivelmente mais estáveis.

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Oficinas de morfologia urbana em cidades brasileiras Silvio Macedo e Francine Sakata Projeto Quapá-SEL, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo Rua do Lago, 876, Telefone: 00 55 11 3091-4687 [email protected]; [email protected]

Resumo Desde 2012, o projeto temático de pesquisa “Os sistemas de espaços livres na constituição da forma urbana no Brasil: produção e apropriação” (QUAPÁ-SEL II) investiga relações entre a forma urbana brasileira na atualidade e os sistemas de espaços livres. O estudo considera a produção da forma urbana a partir dos processos socioeconômicos e ambientais e destaca os aspectos comuns às cidades brasileiras e as especificidades locais. A investigação tem sido feita por uma rede de pesquisadores de universidades de diferentes pontos do país que se reúnem em oficinas de trabalho e em um colóquio anual. Antes da realização de uma oficina, são levantados dados demográficos e elaborados mapas que buscam um entendimento da estruturação morfológica das cidades em estudo. Durante a oficina, os participantes se dividem em 4 grupos: (1) Sistemas de Espaços Livres, (2) Padrões morfológicos, (3) Agentes produtores da forma urbana e (4) Formas propostas pela legislação. Obtém-se assim, em tempo reduzido, um retrato bastante amplo da cidade em questão. Entre as conclusões, atesta-se que, apesar de parecerem extremamente verticalizadas, as cidades brasileiras são predominantemente horizontais. E registram-se significativas transformações nas duas últimas décadas, entre elas a desconcentração das atividades centrais e industriais, o espraiamento urbano e funcional, o surgimento de bairros horizontais e verticalizados, as conturbações, a expansão da malha viária, o aumento do número de parques e áreas preservadas e recorrentes desequilíbrios na distribuição de equipamentos públicos. Palavras-chave morfologia urbana, sistemas de espaços livres, cidades brasileiras. Sobre a pesquisa e as atividades desenvolvidas As oficinas de morfologia urbana em diferentes cidades brasileiras têm possibilitado aos pesquisadores do projeto temático “Os sistemas de espaços livres na constituição da forma urbana no Brasil: produção e apropriação” (QUAPÁ-SEL II), coordenado pelo Laboratório LAB-QUAPÁ da FAUUSP, conhecer com propriedade a forma urbana brasileira. O desenvolvimento do processo de pesquisa tem permitido um conhecimento amplo de seus processos de formação, transformação e estruturação morfológica, dentro da realidade contemporânea nacional (em especial, das duas primeiras décadas do século XXI). PNUM 2016 543

Ampliamos o conhecimento dos agentes que constroem e direcionam a constituição da forma urbana. Já é possível apontar com bastante certeza o papel do Estado nas suas diversas instâncias assim como da iniciativa privada por seus diversos agentes – das grandes corporações aos pequenos proprietários. O núcleo de pesquisadores sediados em São Paulo continua com o papel de aglutinar as discussões, promovendo eventos que reúnem os parceiros da rede. São realizadas reuniões semanais, textos, mapas, levantamentos de campo, oficinas, palestras e um colóquio anual. Entre as atividades mais importantes estão as oficinas, que permitem o conhecimento abrangente das cidades em estudo.

Objetivos das oficinas de morfologia urbana As oficinas têm como finalidade o conhecimento local, da dimensão e da distribuição real dos espaços livres, a compatibilização do entendimento dos pareceres dos estudiosos locais com o entendimento preliminar do grupo de pesquisa e o embate entre visões e análises mais localizadas e, portanto, parciais. Isto tudo possibilita uma síntese que permite o entendimento da complexidade urbana e da estrutura morfológica da cidade.

Os objetivos das oficinas QUAPÁ-SEL II foram listados da seguinte forma: •caracterizar o sistema de espaços livres na forma urbana do município; •compreender o papel dos espaços livres na constituição da produção da forma urbana contemporânea; • compreender o papel da legislação ambiental e urbanística na produção dos espaços livres e forma urbana; •compreender o papel concreto dos agentes responsáveis pela produção contemporânea dos espaços livres e edificados no município; •discutir procedimentos de leitura e análise crítica referentes à temática da pesquisa; •discutir critérios que possam subsidiar políticas públicas referentes à produção e apropriação de espaços livres e forma urbana.

Pressupostos Os pesquisadores partem da premissa que: 1. A equipe de São Paulo, proponente da oficina, sabe pouco da cidade em análise e os participantes de cada cidade – técnicos de prefeitura, pesquisadores, professores e alunos de arquitetura ou de áreas afins – têm um conhecimento acumulado do local bastante aprofundado. Por outro lado, este conhecimento é parcial e até fetichizado (sempre existindo exceções). Os “estrangeiros”, de São Paulo, tem, a princípio uma visão geral da cidade, livre de preconceitos.

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2. Os palestrantes convidados, que abrem cada oficina, trazem pesquisas de ponta feitas sobre sua cidade e insumos das políticas e dos novos investimentos em andamento, feitos tanto pelo Poder Público como pela iniciativa privada. 3. O sistema de espaços livres e a forma urbana dificilmente são pauta de discussão nas cidades, apesar de serem fundamentais como infraestrutura urbana. 4. Ao final, como sempre acontece nas 21 oficinas já realizadas, consegue-se avançar coletivamente em relação ao conhecimento da cidade e de seus espaços livres, associando-se estes à morfologia e aos agentes produtores/ gestores.

Oficinas recentes De 2013 a maio de 2016, foram realizadas 21 oficinas nas principais cidades do país. Em 2015, foram realizadas oficinas em Campos de Goytacazes, Palmas, Belém do Pará, Recife, Curitiba, Goiânia, Brasília, Campinas, Santa Maria, Macapá e Manaus. No primeiro semestre de 2016, foram a vez de São Paulo, São José dos Campos e Anápolis.

Organização prévia e mapas temáticos A confirmação das oficinas depende de acertos com parceiros locais, universidade e/ou Poder Público, que recebem e sediam a oficina. O método de trabalho hoje é diferente das primeiras oficinas, em função da revisão dos procedimentos metodológicos. Foram mantidos o período de duração, a divisão em grupos de trabalho e a sequencia inicial de palestras.

Antes das oficinas, são levantados dados demográficos e elaborados mapas em ArcGIS a partir das imagens do Google Earth e Google Street View para o entendimento da estruturação morfológica das cidades em estudo. Os mapas trazem as temáticas: mancha urbana, espaços livres intraquadra e tipos de volumes construídos (em conformidade ou não com a legislação), áreas não parceladas ou em processo de consolidação, vegetação arbórea intraquadra e estruturas naturais significativas como matas e cursos d´água, e principais espaços livres públicos de recreação e conservação e tipos de recuos existentes quadra a quadra. (Figura 1)

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Figura 1. Mapa temático da Volumetria Construída em Goiânia.

Os trabalhos durante as oficinas No primeiro dia é feito o reconhecimento do espaço urbano pelo grupo de São Paulo e pelo grupo local através de visita a campo e sobrevôo (em avião de asa alta ou helicóptero, pelos coordenadores da oficina e por aquele que foi responsável pelos mapas temáticos). Em geral se cria um acervo de 2000 a 3000 fotos cujas cópias são disponibilizadas para todos os participantes da atividade. (Figura 2)

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Figura 2. Imagens de sobrevôo em São José dos Campos. Fotos: F. Sakata.

Na manhã do segundo dia, são realizadas a apresentação oficial do projeto Quapá-Sel (Figura 3) e palestras com gestores públicos, privados e acadêmicos sobre a configuração urbana e as transformações recentes ou em curso. Durante o período da tarde, os participantes (professores, servidores públicos, alunos de graduação e pós-graduação) se dividem em 4 grupos e iniciam os trabalhos. Na tarde do terceiro dia, cada equipe monta uma síntese em um mapa e uma apresentação em power point. A exposição dos resultados é seguida de debate e da síntese final pelo coordenador da pesquisa (Figura 4).

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Figura 3. Apresentação do Projeto Quapá-SEL por Silvio Macedo.

Figura 4. Cenas dos grupos de trabalho e apresentação final na oficina de São Paulo. PNUM 2016 548

Os grupos de trabalho são:

• Grupo 1 – Sistema de Espaços Livres (SEL) Este grupo deve (1) caracterizar o sistema de espaços livres (públicos e privados) do município; (2) compreender as principais relações (existentes e potenciais) entre seus subsistemas e conjuntos (sistema viário, sistema de espaços livres voltados ao convívio e lazer, sistema de unidades de conservação ambiental, sistema hidrográfico, conjunto de espaços livres ligados a redes infraestruturais, conjunto de espaços livres privados, etc) e (3) discriminar os principais tipos de espaços livres, sua distribuição, características de produção, gestão e apropriação.

Produtos a serem apresentados: - mapa com indicação dos principais elementos do SEL, estrutura hidrográfica e viária metropolitana (Figura 5); - croquis e/ou fotos ilustrando os principais elementos do sistema; - tabela com os principais tipos de espaços livres, características físico-formais e ambientais, características de produção e gestão, apropriação dos espaços livres para o cotidiano e para a esfera pública, conflitos de uso e sócio-ambientais, potencialidades para a qualificação.

• Grupo 2 – Padrões morfológicos Deve identificar e analisar os padrões morfológicos na escala dos fragmentos do tecido urbano desde a escala da quadra urbana. Objetiva-se reconhecer e analisar criticamente categorias de padrões morfológicos com ênfase nos espaços livres, tendo como base os mapas temáticos produzidos no Lab QUAPÁ e o conhecimento do grupo sobre os padrões existentes. Consideram-se as variáveis: suporte biofísico (aspectos geomorfológicos, relevo, hidrografia e cobertura vegetal), malha viária, estrutura fundiária (loteamentos abertos ou fechados, dimensões dos lotes, condomínios horizontais e verticais, arruamentos e parcelamentos informais), características formais dos espaços livres intraquadra e intralote e da volumetria construída.

Como os grupos de espaços livres nas oficinas tendem a concentrar seus esforços na compreensão dos espaços públicos de recreação e conservação, dificilmente se focando nos espaços privados, esta tarefa acaba sendo assumida pelo grupo de morfologia urbana, que desenvolve o trabalhos de um modo eficaz a partir do confronto do sistema de espaços livres com a tabela de tipos de espaços livres desenvolvida no Lab Quapá. A partir daí efetuam-se estudos de localização e distribuição dos tipos existentes, sendo apontadas as situações próprias daquele local.

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Figura 5. Mapas feitos à mão, produzidos respectivamente pelo Grupo Sistemas de Espaços Livres e pelo Grupo Morfologia durante a oficina de São José dos Campos. PNUM 2016 550

Produtos: - mapa com indicação da ocorrência predominante dos principais padrões morfológicos, rede de parques, estrutura hidrográfica e viária metropolitana (Figura 5); - croquis e/ou fotos ilustrando os principais padrões morfológicos; - tabela com cada padrão morfológico, características morfométricas dos espaços livres e edificados, características ambientais, dinâmica de produção atual, relação com os espaços livres para o cotidiano e para a esfera pública, qualidades estéticas/ espaciais. • Grupo 3 – As formas propostas pela legislação O grupo deve simular os espaços livres e volumetrias edificadas segundo os parâmetros da legislação ambiental, de parcelamento do solo e de uso e ocupação do solo. Objetiva-se analisar criticamente as formas de parcelamento, os espaços livres e os volumes edificados propostos pela legislação. As simulações buscam as situações extremas de adensamento construído e as possibilidades de distribuição de espaços livres públicos em áreas em loteamento. Os resultados são sempre surpreendentes para a plateia, ainda que o grupo invariavelmente esbarre na dificuldade genérica dos participantes de leitura e simulação da legislação e na falta de domínio de técnicas de simulação básica em 3D. Nas cidades de Brasília e São José dos Campos houve a oportunidade de confrontar a legislação existente e a futura, pois em ambas contou-se com pessoal do corpo técnico das administrações locais, que dominavam tanto a lei, o que é comum, quanto as suas técnicas de simulação, o que é raro. Produtos: - mapa com síntese das leis de zoneamento, com as áreas de controle ambiental e com a estrutura hidrográfica e viária metropolitana; - perspectivas axonométricas de quadras simulando os principais padrões morfológicos (espaços livres e volumetrias edificadas) resultantes dos índices urbanísticos e demais parâmetros legais; - simulações de parcelamentos do solo (loteamentos, condomínios e etc) - tabela com cada padrão morfológico desenhado, características morfométricas dos espaços livres e espaços edificados, características ambientais potenciais (contribuições e impactos), relação potencial com os espaços livres para o cotidiano e para a esfera pública; qualidades estéticas/ espaciais; potencialidades de transformação diante da morfologia existente. • Grupo 4 – O papel dos agentes produtores da forma urbana Objetiva-se discutir criticamente o papel concreto dos agentes de produção dos espaços livres e edificados, os impactos de suas ações na produção da forma urbana, na dinâmica ambiental e ecológica e na (des)qualificação da vida pública (cotidiana e política). Necessário identificar os agentes sociais concretos do Estado, do capital e dos grupos sociais, suas principais ações diretas na produção e gestão dos espaços livres (inclusive os destinados às redes de infraestruturas urbanas) e edificados, as relações entre os atores, os interesses comuns e conflitantes entre eles. PNUM 2016 551

Produtos: - mapa identificando as principais áreas de atuação do mercado imobiliário formal e informal, vetores de expansão, seus principais produtos, as principais ações diretas dos agentes públicos na produção espacial (obras de infraestrutura, PMCMV, etc.), as áreas de conservação ambiental e a estrutura hidrográfica e viária metropolitana; - tabela com cada agente social analisado, principais produtos realizados, em implantação ou em fase de diretriz ou projeto, características ambientais de sua produção espacial (contribuições e impactos), dinâmica de produção atual (fraca, moderada ou forte) e relação potencial com os espaços livres para o cotidiano e para a esfera pública; potencialidades. Em 2015 houve um aperfeiçoamento do método de trabalho das oficinas, com um avanço significativo nos procedimentos dos grupos de agentes e morfologia e com a manutenção e consolidação do método do grupo de legislação. As atividades do grupo de espaços livres já bastante consolidada têm variado o seu perfil de cidade para cidade, apesar de seguir uma linha estrutural básica, que se inicia com o reconhecimento do que existe e sua distribuição. Resultados Entre as conclusões, destacamos que: • A forma urbana influencia a constituição da estrutura urbana e, de fato, representa as atividades e ocotidiano material da cidade. Ela também influencia os sistemas de espaços livres. Diferentes tipos,quantidade, distribuição e qualificação influem em diversas escalas do cotidiano urbano, na drenagem, naconservação de dinâmicas ecológicas, na circulação e no lazer. Este entendimento possibilita a identificação de conflitos e oportunidades de melhoria da qualidade urbana. • O escopo real do estudo da forma urbana extrapola em muito o mero entendimento do seu valor estético ou figurativo, permitindo a leitura da transformação da cidade, que se dá de um modo contínuo, ora de um modo mais intenso, ora mais discreto. Os processos de transformação mais evidentes são aqueles que se dão pela expansão da mancha urbana, tanto por loteamentos fechados e condomínios para as classes de alta, média e baixa renda, inclusive os empreendimentos vinculados ao programa federal MCMV – Minha Casa Minha Vida, por loteamentos destinados à logística e industrias, portos secos, terminais petrolíferos e químicos. • O processo de verticalização é muito intenso e constante nas cidades brasileiras contemporâneas, transformação por substituição ou ainda formando novos bairros. É um dos mais importantes elementos da transformação da paisagem urbana.

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• A cidade brasileira é basicamente horizontal. A esta horizontalidade está associado um alto índice de ocupação do solo, com as construções cobrindo porcentagens expressivas do lote urbano. O espaço destinado a jardins, pátios e quintais é frequentemente ocupado por acréscimos nas construções. Como resultado, tem-se a alta impermeabilização da quadra urbana. A arborização, quando existe, é pouca e dispersa. Grandes concentrações arbóreas são somente encontradas em parques, praças, terrenos a espera de ocupação e áreas de conservação e proteção ambiental, se existirem. • O adensamento construtivo é constante em todas as cidades. O adensamento (construtivo e populacional) nem sempre é acompanhado pela necessária ampliação do sistema de espaços livres públicos, em especial das áreas de recreação e das calçadas. Mesmo o leito carroçável é adequadamente dimensionado. • Existe uma quase total falta de desenho urbano, à exceção de poucas cidades e áreas planejadas, como Palmas ou a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Esta ausência leva a uma configuração urbana baseada na lógica do imponderável. Ela somente pode ser explicada segundo critérios do mercado imobiliário, que pode atuar de um modo intenso em certos setores da cidade e em outros momentos se espraiar pelos mais diversos pontos do tecido urbano. A verticalização tem se apresentado por todos os pontos das cidades de médio e grande porte, apesar de ainda se concentrar em áreas tradicionais de atuação das empresas de capital imobiliário. • Faltam projetos de sistema de espaços livres no geral, especificamente espaços destinados à recreação e conservação. Somente o sistema viário costuma ter um projeto em longo prazo. Pode-se afirmar que ampliação do sistema dos espaços de recreação se dá por políticas e projetos baseados em oportunidades e não em um plano estrutural, com uma visão preventiva e de longo prazo, que norteasse a ação pública através das décadas. Esta forma de criação baseada em oportunidades pode ser observada no cotidiano das cidades brasileiras, como é o caso de São Paulo ou Florianópolis. Poucos são os casos como de Campo Grande e Rio Branco, em que planos urbanos foram seguidos por gestões sucessivas. De modo geral o que se tem são especificações de recuos, taxas e índices de permeabilidade, instrumentos de controle da produção das edificações e loteamentos, que vão surgindo lote a lote, quadra a quadra e loteamento a loteamento, sem que estejam de fato ligados a uma ideia de cidade, de paisagem urbana. • Poucos são os programas de renovação urbana em áreas populares. As remoções tem significado a construção de moradias em áreas distantes. Mesmo um caso de sucesso, como o projeto Prosamin de Manaus, no qual foi criado um sistema de parques associado aos conjuntos habitacionais, implicou na remoção de parte significativa da população local. • As transformações mais significativas dentro da estrutura do sistema de espaços livres da maioria das cidades brasileiras de porte são de fato aquelas advindas de transformações viárias. Manaus, Macapá, PNUM 2016 553

Serra, Rio de Janeiro, Curitiba são exemplos. Modais alternativos para o transporte, caso das ciclovias, ciclofaixas, pistas de VLT e BRT, estão sendo introduzidos mas, muitas vezes, não onde são necessários mas ao sabor de oportunidades, em locais de alta visibilidade. • Se observa um processo de dispersão funcional, por todas as principais cidades, com a saída total ou parcial de atividades comerciais, de serviços e administrativas das áreas centrais. Poucas são as áreas centrais que ainda mantém sua estrutura de 30 anos atrás, com a criação de novos polos de atividades em centros como Vitória, Salvador, São Paulo, Manaus, Belém do Pará ou ainda com o deslocamento parcial para áreas vizinhas ou longínquas dos velhos centros. Mesmo em cidades de médio porte como Anápolis, Uberaba, São José dos Campos ou Sorocaba este fato acontece ao longo de avenidas e rodovias, que possuem áreas de fácil acesso e permitem a instalação de torres corporativas, centros de negócios e grandes áreas comerciais. • Existe um processo constante de abertura de novos parques, reconhecidos como elementos urbanos importantes, especialmente em bairros novos e nas periferias urbanas tanto em áreas de habitação popular como de classe média. São Paulo, Goiânia, Sorocaba, São José dos Campos, Anápolis, Brasília (Distrito Federal) e Sorocaba tem também um aumento significativo em seu número de parques nos últimos quinze anos. Alguns centros como Santos, Salvador, Maceió, Campina Grande e Recife não tiveram nenhum tipo de investimento em tal tipo de equipamento e o Rio de Janeiro teve apenas um parque aberto recentemente, o parque Madureira na zona norte da cidade. Nas cidades costeiras os investimentos públicos tendem a se focar na melhoria e no aumento das áreas de calçadão de praia. • Dentro dos loteamentos fechados e em especial nos espaços livres que circundam as torres e conjuntos de apartamentos, desde os anos 1980, é comum a existência de quadras, piscinas e playgrounds entremeados por jardins ou em meio a pátios de estacionamento, que de algum modo complementam a carência de espaços públicos destinados a tais atividades. • A poluição das águas como um fato na cidade brasileira devido à crônica falta de tratamento de esgotos, sendo comum a localização de áreas de lazer junto a áreas poluídas. Um caso raro de cidade que possui uma rede de esgotos que atende toda a mancha urbana é Sorocaba, no interior paulista, cujos corpos d’água estão praticamente limpos. A regra é a tolerância da sociedade com as águas contaminadas e os dos dois principais rios de São Paulo, o Tiete e Pinheiros, ao longo do qual se situam importantes instalações comerciais, corporativas e residenciais da elite paulistana, são testemunhos disto. Créditos PROJETO TEMÁTICO QUAPÁ SEL II – Os sistemas de espaços livres e a constituição da forma urbana brasileira - processo Fapesp número 2011/52.260-7 Coordenador: Dr. Silvio Soares Macedo Vice PNUM 2016 554

Coordenador: Dr. Eugenio Fernandes Queiroga. Equipe São Paulo: Dra. Vanderli Custódio (IEB/USP), Dr. Fábio Mariz Gonçalves (FAUUSP), Arqta. Fany Galender (LAB-QUAPÁ), Dr. Jonathas M. P. Silva (PUCCampinas), Dra. Ana Cecília de Arruda Campos (LAB-QUAPÁ), Dra. Helena Napoleon Degreas (FIAM FAAM), Ms. Francine Sakata, Dr. Leonardo Loyolla Coelho, Dr. João Meyer, Ms. Maymi Hyrie (doutoranda do INPE), Dra. Karina Leitão (FAUUSP), Ms. Veronica Donoso, arquiteta Isabel Soleras (FMU). Bolsistas e estagiários Laboratório Quapá: Giovanni Vésper de Moura, Patrícia Aguchiku, Heloisa Ikeda, Bruno Boriolla, Cristiane Aires Celeste, Isabella Basso, Mauricio Shimao, Mateus Oliveira, Tiago Regueira, Luciana Evans, Raquel Serapi, Nathalia Soares, Rafael Pecoraro. Equipe Campinas: Dr. Jonathas M. P. Silva, Dr. Wilson Ribeiro dos Santos Jr, Dr. Denio M. Benfatti, Dr. José R. Merlin. Equipe São Carlos: Dra. Luciana Schenk. Referências bibliográficas Macedo et alii (2016) Os sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea, Edusp (no prelo), São Paulo. Macedo S S (2013) Paisagismo Brasileiro na Virada do Século – 1990/2010, Edusp, São Paulo. Queiroga E, Benfatti D (2007) Sistemas de espaços livres urbanos: construindo um referencial teórico. Paisagem e Ambiente: ensaios, n. 24, São Paulo, 81-87. Queiroga E (2012) Dimensões públicas do espaço contemporâneo: resistências e transformações de territórios, paisagens e lugares urbanos brasileiros, 284 p. Tese (Livre-docência em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo. Reis Filho N G, Tanaka M S B (2007) Estudos sobre dispersão urbana, FAUUSP, São Paulo. Sakata F G (2011) Paisagismo urbano: requalificação e criação de imagens, Edusp, São Paulo. Schlee M B, Nunes M J, Rego A Q, Rheingntz, Paulo, Dias M Â, Tângari V R (2009) Sistema de Espaços Livres nas Cidades Brasileiras – Um Debate conceitual, in Paisagem e Ambiente – Ensaios, n. 25. FAUUSP, São Paulo. Vasconcelos P d (2013) A utilização dos agentes sociais nos estudos de geografia urbana: avanço ou recuo? in A F Carlos, M L Souza & M E Sposito, A produção do espaço urbano – agentes e processos, escalas e desafios (1º ed. ed., p. 75 a 96). São Paulo, Contexto.

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Análise da Lacunaridade Urbana em Cidades Brasileiras de Médio Porte João Silva Júnior, Mauro Barros Filho, Jade Brito Centro de Tecnologia e Recursos Naturais, Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Campina Grande Rua Aprígio Veloso 882, Bairro Universitário, Campina Grande/PB, Telefone/fax: 55 83 2101 1264 [email protected], [email protected], [email protected]

Resumo Os espaços livres das cidades desempenham um papel fundamental na garantia da sua sustentabilidade ambiental e na reestruturação do seu território urbano. A avaliação da distribuição desses espaços nas cidades é um requisito necessário na definição de diretrizes para Planos Diretores Municipais. Dentro desse contexto, o presente trabalho propõe-se a avaliar a distribuição dos espaços livres em 10 cidades brasileiras de porte semelhante, cujas morfologias são resultantes de diferentes processos de ocupação e de crescimento urbanos. Para isso, faz-se uso da lacunaridade, medida multiescalar, complementar à dimensão fractal, que permite distinguir diferentes padrões espaciais de densidade, empacotamento, dispersão e permeabilidade. Os valores de lacunaridade foram obtidos de imagens binárias georreferenciadas das áreas urbanas principais de cada cidade. Os resultados demonstram que quase a totalidade das cidades apresenta curvas de lacunaridade com concavidade para baixo, associadas à presença de espaços livres bem dispersos em suas áreas urbanas.

Palavras –chave Lacunaridade, Espaços Livres, Cidades de Médio Porte, Processamento Digital de Imagem.

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1.

Introdução

O conceito de lacunaridade foi inicialmente introduzido por Mandelbrot (1982) para descrever e quantificar os desvios de objetos fractais1 de sua invariância translacional2. Este termo provém do latim “lacuna”, que significa “vazio” ou “buraco”, e está relacionado com a distribuição de espaços vazios em um padrão espacial. Habitualmente associado ao estudo de fractais, especificamente ao se analisar a preservação da autossimilaridade3 da forma de um objeto quando sujeito à translação (rotação e deslocamento) em escalas variadas, esse conceito estendeu-se para a análise de elementos multifractais e outros objetos que não são fractais (Plotnick et al, 1996).

A lacunaridade foi inicialmente aplicada às ciências exatas, como a Matemática e a Física, mas também passou a ser difundida por outras ciências, como a Ecologia, a Biologia e a Medicina (Smith; Lange, 1998). Há pouco tempo, as aplicações dos conceitos de lacunaridade têm se expandido a análises urbanas na distinção de padrões espaciais, em diversas escalas, desde aquelas mais focalizadas em processos sociais, como na segregação socioeconômica e racial (Wu; Sui, 2002) e favelização (Barros Filho, 2006), até processos mais físicos, como o monitoramento e a análise do crescimento de cidades (Sui; Zeng, 2000). Sob essa perspectiva, permite analisar densidade, empacotamento, dispersão e permeabilidade de estruturas geométricas em distintas escalas.

Dentro desse contexto, a lacunaridade urbana pode ser entendida como uma análise que permite compreender a distribuição dos espaços livres na cidade, conduzindo também a leituras críticas sobre a morfologia intraurbana, a segregação espacial e o acesso aos espaços livres, assim como induzindo a análises mais amplas acerca dos limites e vetores de crescimento das cidades. Conforme afirma Tardin (2008), os espaços livres representam o componente mais flexível (funcional ou espacialmente) da estrutura do território, com grandes probabilidades de transformação no processo de construção da paisagem, tornando-se, ao mesmo tempo, lugar mais frágil à ocupação e dos mais promissores devido à possibilidade de reestruturação do território. Neste sentido, a distribuição dos espaços livres das cidades está associada aos interesses dos agentes produtores/modificadores do espaço, dentre os quais se destacam: o Estado, os proprietários fundiários, os proprietários dos meios de produção, os promotores imobiliários e os grupos sociais excluídos (Corrêa, 1995), cujas ações/decisões refletem uma ocupação mais dispersa ou concentrada, planejada ou espontânea, dentre tantas formas complexas de apropriação e uso do solo urbano. Cidades com ocupação urbana mais dispersa apresentam uma territorialidade que beneficia a expansão da mancha urbana e envolvem amplos investimentos em infraestrutura que resultam em um maior consumo de energia, ampliando tempo e custos de deslocamento espaciais. Cidades com ocupação urbana

Segundo Mandelbrot (1982, apud Barros Filho, 2006) fractais são objetos ou padrões espaciais com formas geométricas irregulares, que se repetem em uma grande variedade de escalas. 2 Medida relativa à homogeneidade do objeto fractal, sendo ela inversamente proporcional aos valores de lacunaridade. 3 Propriedade característica dos fractais, dizendo respeito a um objeto ou forma que é igual ou semelhante a partes do mesmo mas que apresenta as mesmas propriedades em escalas diferentes. 1

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mais concentrada produzem um intenso adensamento construtivo, favorecendo à acessibilidade e à mobilidade urbanas, mas gerando problemas de conforto ambiental (térmico e acústico), de privacidade e de sobrecarga da infraestrutura urbana.

Diante do exposto, este trabalho busca analisar a lacunaridade urbana de 10 cidades brasileiras de médio porte para caracterizar os padrões de distribuição de seus espaços livres urbanos, visando contribuir para auxiliar no entendimento da forma urbana dessas áreas analisadas. A pesquisa insere-se na linha de pesquisa “Estudos Interdisciplinares sobre a Produção da Cidade”, que vem sendo desenvolvida pelo “Grupo de Pesquisa sobre a Produção da Habitação e da Cidade (GPHEC) na Unidade Acadêmica de Engenharia Civil (UAEC) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Além do supracitado, o trabalho também está integrado à rede Quadro de Paisagismo no Brasil – Sistemas de Espaços Livres (QUAPÁ – SEL).

2.

Materiais e Métodos

A metodologia proposta foi composta das seguintes etapas básicas: (i) seleção das cidades; (ii) coleta de dados espaciais; (iii) preparação da base de dados georreferenciada; e (iv) cálculo de lacunaridade das imagens binárias 2.1.

Seleção das cidades

A definição das cidades-objeto para o estudo comparativo de lacunaridade fundamentou-se nos contingentes populacionais observados pelo Censo Demográfico de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em que, centrando-se na cidade de Campina Grande, sítio principal de pesquisa e cidade componente do grupo de cidades médias brasileiras, foram definidos os 10 municípios brasileiros com população mais próxima à da mesma (Figura 1). Paralelamente ao aspecto populacional, foram acrescidos critérios relativos à exclusão de cidades conurbadas ou em processo de conurbação, por entender-se que a configuração desses agrupamentos é, de certa forma, influenciada pelas cidades circunvizinhas e onde seus espaços livres, eixo central da pesquisa, poderiam ser compartilhados ou conjuntamente utilizados, a partir das informações da “Relação de Áreas Conurbadas no Brasil”, elaborada pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Igualmente, foram suprimidas as cidades cuja área urbana principal não se encontra circundada por zona rural em sua totalidade.

PNUM 2016 559

Cidade – Estado

População (Em número de habitantes)

Caxias do Sul – RS

435 564

Porto Velho - RO

428 527

São José do Rio Preto - SP

408 258

Macapá - AP

398 204

Campina Grande - PB

385 213

Piracicaba - SP

364 571

Montes Claros - MG

361 915

Bauru - SP 343 937 336 038 Rio Branco - AC Anápolis - GO

334 613

Figura 1. Municípios analisados e suas correspondentes populações. Fonte: Quantitativos fornecidos pelo IBGE referentes ao Censo Demográfico 2010.

2.2.

Coleta de dados espaciais

Com base na definição da amostragem das áreas que seriam analisadas, buscou-se encontrar fontes primárias e secundárias de informações gráficas que pudessem servir de base para a posterior etapa de cálculo e processamento vetorial e matricial. Para isto, foram levantados dados vetoriais em formato shapefile4 disponibilizados online pelo IBGE, formulados com base no Censo Demográfico de 2010, que exibem as delimitações das cidades brasileiras associados aos atributos que classificam os setores censitários em urbanos, bem como os dados matriciais obtidos através do Global Human Settlement Layer (GHSL), para a representação das configurações dos espaços construídos.

4

Formato de arquivos que contém dados geoespaciais em forma de vetores utilizados pelos Sistemas de Informações

Geográficas. PNUM 2016 560

A base de dados GHSL é desenvolvida e mantida pelo Joint Research Centre, associado à Comissão Europeia de Serviços Científicos, e compreende um extenso estudo acerca dos assentamentos urbanos do Planeta através de imagens de satélite de alta e muito alta resoluções, que apresenta informações dos espaços construídos até o ano de 1975, e nos anos de 1990, 2000 e 2014 (Pesaresi et al, 2013). 2.3. Preparação da base de dados georreferenciada A etapa seguinte consistiu na formulação e organização das imagens para o posterior processamento digital, que partiu da inserção dos arquivos shapefile disponibilizados online pelo IBGE (Censo Demográfico de 2010), no software ArcGIS versão 10.1, onde foram isoladas as 10 cidades selecionadas, bem como os seus dados de setores censitários urbanos. Inicialmente as áreas urbanas principais de cada cidade selecionada foram definidas a partir do agrupamento dos setores censitários do tipo urbano. O método apropriou-se das definições já indicadas pelo IBGE (2010), sendo apenas os setores urbanos definidos como áreas de interesse, excluindo-se aí os distritos, povoados e demais agrupamentos secundários e realizando correções na base do IBGE quando haviam setores censitários do tipo rural circundados pela área urbana principal, compreendidos como incoerências e erros da base de dados.

Em seguida, um quadrilátero foi circunscrito a cada área urbana principal formada pelo agrupamento de setores censitários urbanos, cujas dimensões foram definidas pelas coordenadas extremas dessa área, gerando 10 imagens binárias, preto e branco, nas quais a área urbana principal é representada pela cor branca e a zona rural circundante pela cor preta. Posteriormente, as informações referentes às áreas construídas presentes no Global Human Settlement Layer (GHSL) de todos os anos associados (até 1975, 1990, 2000 e 2014) foram sobrepostas a imagem anterior (Figura 2).

PNUM 2016 561

MAT RIZES

Campina Grande sem o GHSL (a)

Campina Grande com o GHSL (b)

Figura 2. Exemplo do procedimento realizado na cidade de Campina Grande para geração da imagem da sua área urbana principal, a partir dos setores censitários urbanos do IBGE (a) e posterior acréscimo das suas áreas construídas do GHSL (b). Fonte: Elaboradas pelos autores a partir de bases fornecidas pelo IBGE (2010) e GHSL (2014).

Finalmente, após a edição e o recorte das imagens no software Image J5, obteve-se as imagens binárias das 10 cidades selecionadas (Figura 3).

5

Software de domínio público utilizado para processamento de imagens multidimensionais. PNUM 2016 562

Figura 3. Matrizes finais. Fonte: Elaboradas pelos autores a partir de bases fornecidas pelo IBGE (2010) e GHSL (2014).

2.4. Cálculo de Lacunaridade das imagens binárias O cálculo de lacunaridade das imagens binárias das 10 cidades selecionadas foi baseado no método das caixas deslizantes proposto por Allain e Cloitre (1991). De acordo com os parâmetros estabelecidos por esse método, utilizou-se caixas, que são porções selecionadas para processamento, móveis e de dimensões variáveis para obtenção da média de valores de lacunaridade. Essas áreas estabelecidas variaram entre 1 x 1 pixel, definida como o menor tamanho, e 45% da dimensão linear da imagem, sendo esta a maior dimensão de caixa. Considerou-se 10 tamanhos diferentes de caixas contidos nesse intervalo, PNUM 2016 563

e com movimentação a cada 1 pixel. O cálculo foi feito no FracLac 6, um plugin do software ImageJ que analisa padrões em imagens digitais.

Segundo Barros Filho (2006), o índice de lacunaridade L de um caixa com tamanho r pode ser obtido a partir da seguinte fórmula:

L(r) = 1 + (Var(S)/E2(S)) Onde: L: lacunaridade r: tamanho da caixa Var(S): variância da massa das caixas E2(S): média das massas das caixas

Os valores de Lacunaridade variam entre 1 e infinito. O valor 1 indica ausência de vazios no padrão espacial ou a completa uniformidade na distribuição desses espaços, e valores diferentes de 1 indicam a nãouniformidade dos padrões, podendo os mesmos variar em função (i) da distribuição geométrica dos vazios no padrão espacial, (ii) da escala ou tamanho r da caixa considerada e (iii) da densidade p de píxeis de interesse que ocupam em uma imagem (Barros Filho, 2006).

A partir dos valores de lacunaridade obtidos em cada uma das 10 caixas de cada imagem binária das cidades selecionadas foi elaborado um gráfico logarítmico, cruzando informações de lacunaridade e tamanho das caixas, cujas curvas geradas revelam diferentes padrões espaciais de distribuição dos seus espaços livres urbanos. Confirmou-se também que os índices de lacunaridade tendem a decair à medida que as caixas aumentam de tamanho, induzindo a concavidade das curvas em virtude de a distribuição das lacunas ser mais homogênea em maiores escalas de análise. 5.

Resultados e Discussão

A Figura 4 descreve características gerais de cada cidade analisada: (i) sua população, de acordo com o Censo do IBGE de 2010; (ii) sua área urbana principal, resultante do agrupamento de setores censitários urbanos e obtida com a multiplicação da área de cada pixel branco (38 m x 38 m) pela sua quantidade em cada imagem binária sem o GHSL; (iii) área total de espaços livres existentes na sua área urbana principal, obtido com a multiplicação da área de cada pixel branco pela sua quantidade em cada imagem binária com o GHSL (Figura 3); (iv) o percentual de espaços livres em cada área urbana, obtido com a relação entre

Software desenvolvido pela Charles Sturt University – Austrália, utilizado em associação ao Image J e que possibilita um conjunto de análises fractais e morfológicas.

6

PNUM 2016 564

área total de espaços livres e sua área urbana principal; e (v) sua lacunaridade média, resultante da média dos valores de lacunaridade obtidos nos 10 tamanhos de caixas. Lacunaridade

Cidade – Estado População

Média

(Em hab.)

Área Urbana

Espaços

Espaços

Livres

Livres

(km2)

(%)

(km2)

Caxias do Sul – RS

435 564

1,24445

3627,11

2515,1

69,34

Porto Velho - RO

428 527

1,11785

2658,34

1329,27

50,00

408 258

1,04874

3650,69

1188,58

São José do Rio Preto - SP

32,56 398 204

1,50686

2878,41

2489,14

Macapá - AP Campina Grande - PB

86,47 385 213

1,32207

2928,52

1991,1 67,98

Piracicaba - SP

364 571

1,39143

4836,32

3553,95 73,48

Montes Claros - MG

361 915

1,36217

3428,16

2515,91 73,38

Bauru - SP

343 937

1,07377

955,82

599,62 62,73

Rio Branco - AC

336 038

1,22539

1931,9

1357,72 70,27

Anápolis - GO

334 613

1,18324

1774,31

993,8300 56,01

Figura 4. Tabela de População, área urbana, espaços livres e lacunaridade média das 10 cidades analisadas. Fonte: Elaboradas pelos autores a partir de bases fornecidas pelo IBGE (2010) e GHSL (2014).

De acordo com os valores acima descritos, verifica-se que a variação máxima de habitantes entre as cidades é de aproximadamente 100 mil habitantes, enquanto que a variação do percentual de espaços livres em suas áreas urbanas chega até 54%. Poder-se-ia imaginar que cidades mais populosas são mais ocupadas e apresentam menor percentual de espaços livres urbanos. São José do Rio Preto, terceira cidade mais populosa, apresenta mais baixo percentual de espaços livres urbanos (32%). Isto, entretanto, é mais uma PNUM 2016 565

exceção do que uma regra. Macapá, quarta cidade mais populosa, é a que apresenta maior percentual de espaços livres (86%). Caxias do Sul, apesar de ser a mais populosa, apresenta 69% de espaços livres, enquanto que Anápolis, a menos populosa, dispõe apenas de 56% desses espaços. Há uma forte correlação entre os percentuais de espaços livres e a lacunaridade média nas cidades analisadas. Em geral, quanto mais espaços livres essas cidades dispõem, maior sua lacunaridade média. Macapá é a cidade com maior lacunaridade média e mais espaços livres, enquanto que São José do Rio Preto tem menos espaços livres e menor lacunaridade média. Quanto à lacunaridade média, as cidades analisadas podem ser classificadas em quatro grupos de valores. Tais grupos descrevem diferentes padrões de adensamento e expansão urbanos. No entanto, as diferenças entre esses padrões ficam mais evidentes e comparáveis através da análise do gráfico logarítmico com as curvas de lacunaridade das 10 cidades analisadas (Figura 5).

ln tamanho das caixas (r)

Figura 5. Curvas de lacunaridade das 10 cidades analisadas. Fonte: Elaboradas pelos autores.

Em síntese, quase todas as cidades analisadas apresentam curvas de lacunaridade com concavidade para baixo, o que indica padrões espaciais cujos vazios estão randomicamente distribuídos (Barros Filho, 2006) e onde valores relativamente altos de lacunaridade representam áreas urbanas com poucos, mas grandes espaços livres (Plotnick; Gardner; O’neill, 1993; Plotnick et al, 1996; Dale, 2000).

PNUM 2016 566

Macapá destaca-se das demais cidades pelo mais alto valor de lacunaridade média (1,51), maior percentual de espaços livres e por apresentar uma curva com concavidade para cima que caracteriza uma concentração de espaços livres na sua área urbana. Este padrão está fortemente determinado pela situação geográfica da cidade, ao localizar-se nas margens do Rio Amazonas, o qual resulta na presença de um grande espaço livre dentro da sua área urbana.

As cidades de Piracicaba, Montes Claros e Campina Grande apresentam valores altos de lacunaridade média, entre 1,29 e 1,32. Piracicaba evidencia uma ocupação mais dispersa, confirmada também pelo seu alto percentual de áreas livres (73,48%), desenhada pelos seus corpos d’água que configuram agrupamentos densos, porém descontínuos e segregados por grandes vazios, de maneira que todos os agrupamentos apresentam subáreas vazias e por tal, dentre os maiores valores de lacunaridade analisados. Montes Claros e Campina Grande, apesar de também apresentarem altos percentuais de espaços livres (73% e 67%, respectivamente), evidenciam uma forma de ocupação mais compacta, cujos atrativos se voltam para os seus próprios centros, sem grande interferência de restrições naturais como o relevo e a vegetação. Para essas cidades, os espaços vazios configuram-se, geralmente, como espaços residuais ou como grandes espaços livres qualificados que dificilmente atendem à toda a cidade, tornandose elementos componentes da dinâmica imobiliária em seus referidos territórios e causando segregações sociais e espaciais, mas analisados como importantes nós da morfologia desses centros urbanos.

As cidades de Caixas do Sul, Rio Branco, Anápolis e Porto Velho caracterizam-se por valores baixos de lacunaridade média, entre 1,11 e 1,24. Essas cidades apresentam uma ocupação mais compacta, porém com uma franja de transição rural-urbana em processo de ocupação e adensamento mais evidente. Seus espaços livres apresentam-se em maior número, menores dimensões e melhor distribuídos ao longo do seu território do que as cidades anteriores.

Finalmente, as cidades de Bauru e São José do Rio Preto, com os valores muito baixos de lacunaridade média (1,07 e 1,04, respectivamente), apresentam intenso espraiamento de suas áreas construídas, espaços livres distribuídos ainda mais regularmente, áreas de transição rural-urbana já bem ocupadas. Largos rios e rodovias que segmentam sua mancha urbana corroboram para a configuração de um padrão mais disperso da sua mancha urbana.

6.

Considerações Finais

A análise da distribuição dos espaços livres nas cidades permite construir uma reflexão crítica sobre os limites e as possibilidades de adensamento e crescimento urbanos, ocupando um lugar cada vez mais central no debate sobre desenvolvimento sustentável. Tais espaços são variáveis tanto em tamanhos como PNUM 2016 567

em formas, usos e localizações, podendo ser desde pequenos jardins residenciais até enormes áreas verdes consideradas como pulmões da cidade (Welch, 1991 apud Carneiro, 2010), adquirindo grande importância na reestruturação e configuração das cidades. A expansão urbana induz, cada vez mais, as gestões públicas a priorizar os espaços livres referentes à rede viária das cidades brasileiras, espaços que são exclusivos para a circulação de veículos, e que precisam ser constantemente alargados e estendidos para suprir a crescente demanda de automóveis particulares, enquanto os poucos espaços livres públicos de permanência existentes - como recantos, praças, parques e jardins públicos – tornam-se cada vez mais desprezados e abandonados. As inferências do presente artigo evidenciam que a maioria das cidades analisadas têm seus espaços livres mal distribuídos, o que dificulta sua acessibilidade para a maioria dos seus habitantes, tornando-se, por vezes, atrativos e, outras vezes, retrativos ao adensamento e à expansão urbana, mas sempre vulneráveis aos agentes que atuam na sua constante construção e reconstrução.

A abordagem da lacunaridade urbana estabelece um método científico de descrição dos espaços livres das cidades, considerando seus padrões, seus agrupamentos e suas quantificações, embasada em uma análise multiescalar de padrões de texturas em imagens binárias, distinguindo sua morfologia e auxiliando em inúmeros estudos e leituras do espaço. Compreender essas lacunas é subsídio para planejadores, gestores e os citadinos em geral na definição de inciativas que possam melhorar ou requalificar esses ambientes urbanos, e, embora considerando-se aqui a análise da lacunaridade entre cidades como foco do trabalho, o método configura-se como meio para uma grande diversidade de aplicações, desde estudos sobre segregação social, até estudos intraurbanos e leitura de padrões dentro de um mesmo território em diferentes escalas, contribuindo para uma compreensão cada vez mais abrangente da complexidade do espaço urbano.

7.

Referências Bibliográficas

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Espaço e vida urbana no Distrito Federal Ana Paula Barros, Juliana Alvim Professora dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil do UniCEUB (Centro Universitário de Brasília). Telefone: 00 55 61 83016116 [email protected] Estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo do UniCEUB Telefone: 00 55 61 81357203 [email protected]

Resumo A transformação nos espaços urbanos ao longo do tempo, inclusive para expressar um progressivo foco no veículo particular pode ser investigada, de acordo com Medeiros (2013), quanto às diferentes geometrias e topologias urbanas – relações e hierarquias. O que significa explorar a perspectiva do estudo da forma para a compreensão de como as transformações na cidade, inclusive entre as escalas humana e motorizada, afetam/podem afetar o ato de caminhar. Medeiros (2013), analisando o tema por meio da Sintaxe Espacial, demonstra como as cidades no país se caracterizam por malhas viárias compostas por uma espécie de colcha de retalhos, o que significa um conjunto de partes com uma geometria clara, mas fragilmente articuladas. Com base no trabalho de Barros (2014), na qual a inquietação principal da pesquisa, baseada em uma perspectiva sistêmica é: em que medida a forma da cidade afeta o ato de caminhar, compreendido segundo o processo de deslocamento dos pedestres? Eis que a presente pesquisa pretende verificar se os resultados alcançados para espaços urbanos europeus (mais precisamente em Portugal – Lisboa) se confirmarão em espaços situados no contexto da América Latina, mais especificamente no Distrito Federal (Brasil). Portanto, o presente trabalho visa apresentar os resultados (preliminares) da aplicação da metodologia qualitativa utilizada por Barros (2014) em três áreas urbanas do Distrito Federal com distintas características morfológicas – Varjão (malha tendente à irregularidade), Taguatinga (malha tendente à regularidade) e 308 sul do Plano Piloto de Brasília (malha modernista). Para tanto, utilizou-se o mapa axial e contagem de pedestres em pontos estratégicos destas áreas, nos quais mostram que malhas que apresentam uma hierarquia bem mais definida (como as tendentes à irregularidade/orgânicas) apresentam mais vida urbana e malhas com hierarquia pouco definida (como as malhas modernistas/contemporâneas) caracterizam-se por haver um menor número de pessoas nos espaços. Portanto, os achados da presente pesquisa demonstram haver similaridades com os resultados apresentados por Barros (2014), principalmente no que tange a vida nos espaços (por meio das contagens), o que mostra, em certa medida, que os deslocamentos a pé independem de onde se esteja, pois o fator forma urbana interfere, sobremaneira, a vida dos espaços.

Palavras-chave Forma Urbana, Caminhabilidade, Vida Urbana, Sintaxe Espacial, Contagem.

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1 Introdução A transformação nos espaços urbanos ao longo do tempo, inclusive para expressar um progressivo foco no veículo particular pode ser investigada, de acordo com Medeiros (2013), quanto às diferentes geometrias e topologias urbanas – relações e hierarquias. O que significa explorar a perspectiva do estudo da forma para a compreensão de como as transformações na cidade, inclusive entre as escalas humana e motorizada, afetam/podem afetar o ato de caminhar. Cabe ressaltar, que o fato da maioria dos planejadores urbanos, arquitetos, urbanistas etc não observarem a forte influência exercida pela forma urbana nos deslocamentos, como atesta Barros (2014), faz com que os espaços sejam pensados, muitas vezes, de forma inadequada para as pessoas, tornando as cidades voltadas aos carros e não às pessoas (Gehl, 2010). É sob este prisma que este trabalho visa apresentar os resultados preliminares de um estudo realizado em três cidades do Distrito Federal – Varjão, Taguatinga e Plano Piloto (Asa Sul) – com base na metodologia qualitativa utilizada por Barros (2014), de modo a verificar como ocorre o desempenho destas três áreas, com distintas características morfológicas, no que tange a vida nos espaços. 2 Pressupostos Teóricos 2.1. Vida Urbana: Jacobs e Gehl Jacobs Jacobs (2001), ainda no início da década de 60, decidiu publicar o registro de suas sensações acerca das cidades dos EUA. O incômodo que sentia baseava-se na necessidade de arquitetos, urbanista e planejadores urbanos terem mais ciência a respeito de que componentes tornavam uma cidade mais viva, o que requeria a compreensão das articulações inerentes ao espaço urbano. Jacobs (2001) formulou quatro condições que acreditava serem essenciais para que houvesse diversidade ‘exuberante’ nas ruas em espaços públicos urbanos, o que favorecia seu uso, portanto gerando fluxos e segurança. (a) Necessidade de usos principais combinados – diversidade de usos (b) Necessidade de quadras curtas – maior conectividade entre os espaços (c) Necessidade de prédios antigos – idades variadas dos prédios (d) Necessidade de concentração – densidade urbana significativa Na perspectiva de Jacobs (2001), o que parece crucial para uma melhor dinâmica e vida urbana é o fator “diversidade”. Destacou como critérios prioritários: diversidade de usos e tipos edilícios (em oposição à padronização), presença de quadras curtas (o que significa uma relação mais alimentada de vias articulando as quadras), existência de edifícios de variadas idades, densidade construída e populacional PNUM 2016 572

(os pólos máximo e mínimo são prejudiciais). A mistura de pessoas, usos e edifícios (dada a interdependência entre estas três instâncias), asseguraria um espaço mais rico, alimentado e, portanto seguro. Seriam áreas mais convidativas aos deslocamentos, especialmente para aqueles realizados a pé, no âmbito da caminhabilidade, em que a interação indivíduo/meio é mais franca, pois não há o invólucro do carro a criar uma separação. Gehl Gehl (2010) caminha na mesma direção de Jacobs, mas acrescenta ainda a precaução que deve existir com o tratamento do térreo dos edifícios (rés-do-chão) – chamados de espaços de transição, por estabelecer a ligação entre o privado com o público – para a promoção de uma cidade ao nível dos olhos, o que favoreceria simultaneamente a interação e a segurança. Portanto, ao se estudarem espaços para pedestres, nos quais os olhos são o sentido mais utilizado na percepção do espaço (além dos pés, é claro), o nível da rua deve merecer especial atenção. Neste caso, atenção deve existe com a alimentação da rua, o que se vincula à redução do caráter “cego” de alguns trechos de via, em que praticamente inexistem portas ou janelas. Gehl (2010), com base nisso, adotou classificação de 5 níveis no que se refere à percepção do trecho da rua: (a) Ativo – 15 a 20 portas a cada 100m (b) Convidativo – 10 a 14 portas a cada 100m (c) Misto – 6 a 9 portas a cada 100m (d) Monótono – 2 a 5 portas a cada 100m (e) Inativo – 0 a 1 portas a cada 100m As características destes níveis estão diretamente relacionados com a morfologia dos espaços, portanto, um bom indicador de vivacidade dos espaços públicos urbanos, a incluir aquelas que acolhem os deslocamentos. 2.2 Forma Urbana Para Kostof (1992, 2001), há principalmente dois tipos de forma urbana: a irregular/orgânica e a regular/grelha/ortogonal/tabuleiro de xadrez. No entanto, para o autor, as cidades não são compostas de maneira rígida por tais tipos de malha, mas sim pela mistura existente entre os extremos de regularidade e de irregularidade. Dificilmente se conseguiria ter hoje um desenho homogêneo que se distribua por toda a cidade. Alexander (2006), ao investigar a temática, assume uma diferenciação em formas: (a) naturais – para aquelas malhas cujo surgimento se dá de maneira “natural”, “orgânica” (as ditas orgânicas/irregulares) – e PNUM 2016 573

(b) artificiais – para as que nascem do papel, por meio dos desenhos de projetistas/planejadores urbanos (usualmente reguladas, sejam em maior ou menor grau – variando do tabuleiro de xadrez perfeito ao traço modernista ou contemporâneo). A considerar as informações prévias, para pesquisa e tendo em conta os estudos de caso, assumem-se três tipos de malhas: (a) orgânica/irregular, (b) ortogonal/regular/tabuleiro de xadrez, e (c) pósmoderna/contemporânea. As categorias são as mais recorrentes e paradigmáticas na literatura consultada, além de serem compatíveis com os bairros que servirão de estudo de caso. 2.3 Sintaxe Espacial No que diz respeito ao estudo do espaço construído, alinhando-se portanto às estratégias da leitura da forma urbana, a Teoria da Lógica Social do Espaço ou Sintaxe do Espaço – SE (Hillier e Hanson, 1984; Hillier, 1996; Holanda, 2002; Medeiros, 2013) contribui substancialmente para o debate, o que justifica sua utilização nesta tese. De forma a elucidar a teoria, podemos analisá-la em três instâncias: aspectos teóricos, metodológicos e técnicos. É importante esclarecer que na pesquisa “sintaxe” diz respeito ao âmbito relacional nos estudos de forma urbana, enquanto “Sintaxe do Espaço – SE” contempla a abordagem recém-citada. O objetivo principal da Teoria da Lógica Social do Espaço é investigar o relacionamento entre o espaço construído – o edifício ou a cidade, grosso modo referido como arquitetura – e a sociedade – vista como um sistema de possibilidades de encontros (Holanda, 2002). A SE, por meio de um método e de técnicas, estabelece relações entre categorias em dois âmbitos: (1) a função do espaço, produto das relações intrínsecas – âmbito sintático; e (2) o significado do espaço – âmbito semântico – como ocorre a relação entre grupos e indivíduos, clivagens sociais, hierarquias de poder. Segundo Hillier (2001), ao se colocar um objeto aqui ou ali dentro de um sistema espacial, então certas consequências previsíveis afetarão a configuração espacial do ambiente. Estes efeitos são bastante independentes dos desejos ou da intenção humana, mas podem ser utilizados pelos seres humanos para alcançarem efeitos espaciais e mesmo sociais. 3 Metodologia 3.1. Caracterização das áreas de estudo 3ara esta pesquisa foram levantadas três áreas de estudo no DF com tecidos urbanos diferentesHQWUHVL Dessa forma, será possível perceber as disparidades de fluxos existentes em cada uma destas UHJL}HV

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3.1.1 Varjão (malha tendente a irregularidade) Varjão ()LJXUD), caracterizado por apresentar uma malha tendente a irregularidade, cujos eixos viários mesclam características regulares com irregulares. Há a presença de quarteirões com desenhos e tamanhos ora semelhantes, ora distintos, o que mescla vias retas e curvas, mas apresentando, na maioria das vezes, edificações geminadas. 3.1.2 Taguatinga (malha ortogonal) Taguatinga (Figura 2), caracteriza-se pela forte regularidade de sua morfologia. Em outras palavras, há a presença de quarteirões bastante regulares, no geral com formas retangulares, o que gera vias retas, e apresentando, em sua maioria, edificações geminadas.

Figura 1. Varjão – malha tendente a irregularidade. Fonte: Google (2016).

Figura 2. Taguatinga – malha ortogonal. Fonte: Google (2016).

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3.1.3 Plano Piloto (malha modernista) O Plano Piloto de Brasília (Figura 3), criado pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa e inaugurado em 1960, sob os preceitos do movimento moderno. Assim sendo, sua malha apresenta características muito fortes do modernismo, ou seja, rígida setorização, vias longas e retas e amplos espaços abertos em que, normalmente os caminhos de pedestres não coincidem com os de veículos.

Figura 3. Asa Sul – malha modernista. Fonte: Google (2016).

3.2 Levantamento de dados 3.2.1 Número de portas Para a contabilização do número de portas (a cada 100m – segundo Gehl, 2010), procedeu-se na divisão de parte da rua em 400 m (dividido em 4 partes, de modo a se alcançar os 100 metros sugeridos por Gehl) para as cidades tradicionais – Varjão e Taguatinga –, e para a Asa Sul, devido sua malha estar atrelada ao modernismo, e, portanto, não apresentar possibilidades de ampliação, fez-se a contagem de 200m na área comercial e na totalidade da área residencial. 3.2.2 Uso do solo O mapeamento de uso do solo consistiu em levantar os dados de tipologia de atividades – categorizadas em: residencial, institucional, comercial, de serviços e mista (residência/comércio) – das áreas de estudo, a partir da área delimitada no levantamento do número de portas. O intuito deste levantamento é verificar em que medida os três espaços estudados apresentam vida ou não, segundo Jacobs (2001). 3.2.3 Contagem de pedestres e veículos Tal contagem foi realizada tendo por base a metodologia de Barros (2014), que adaptou a contagem de Grajewski and Vaughan (2001). Tomou-se uma linha imaginária como sendo o ponto médio a cada 100m, ou seja, aos 50m, sendo considerado o ponto de contagem, onde se realizou a contagem de pedestres e veículos que passavam por tal linha durante 2’30” (dois minutos e meio), num tempo total que não poderia ultrapassar a duas horas.

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3.2.4 Mapas Axiais Com base no mapa axial da RIDE (DIMPU, 2006), procedeu-se a preparação dos mapas axiais das três áreas de estudo no software Depthmap®. 4 Resultados De acordo com o levantamento de usos realizado, verificou-se que no Varjão e em Taguatinga há uma quantidade e diversidade de uso bastante rica, o que não acontece na Asa Sul, uma vez que nesta a setorização é bastante rígida, ou seja, as residências situam-se com certa distância dos comércios/serviços. Tal separação provoca maiores deslocamentos entre os setores e, normalmente, realizados com carros, fomentando a ausência de vida nos espaços, ou seja, menor número de pessoas nos espaços. No que tange o número de portas, observou-se o mesmo padrão, no Varjão e em Taguatinga este número é bem superior que na Asa Sul. Isto está diretamente relacionado com a diversidade de usos (Jacobs, 2001), pois Gehl (2010) acredita que quanto maior o número de empreendimentos – pequenos empreendimentos – maior o número de portas, maior o detalhamento das fachadas e, portanto, mais atrativo para as pessoas. Conforme apresentado na Figura 4, no tocante aos mapas axiais, observa-se o fato das duas primeiras cidades – Varjão e Taguatinga – caracterizarem-se como morfologias “tradicionais”, suas vias concentram a maior diversidade, número de portas e de pessoas, o que apresenta maior integração (em vermelho). Na Asa Sul, por outro lado, o fato de haver uma rígida separação de usos – uso residencial estar separado do comercial – faz com que haja menor número de portas, principalmente, na área residencial, bem como, um menor número de pessoas (Jacobs, 2001), e, portanto, vias com menor integração.

Figura 4. Mapas axiais – Varjão (à esquerda), Taguatinga (centro) e Asa Sul (à direita).

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5 Conclusão Conforme o exposto acima, aliado ao estudo realizado por Barros (2014), pode-se constatar que independente de que continente se esteja, a morfologia dos espaços interfere de forma bastante semelhante os deslocamentos das pessoas. Em outras palavras, espaços mais tradicionais estimulam o caminhar a 5 km/h (Gehl, 2010), possibilitando haver maior convívio entre as pessoas e, portanto, mais vida nos espaços. Diferentemente, do que ocorre em espaços modernistas, em que o estímulo é dado aos deslocamentos motorizados, uma vez que as atividades estão distantes, o que fomenta espaços mortes, com poucas ou nenhuma vida urbana. Com base nisto, cabe a seguinte reflexão: que tipo de cidade está sendo construída, principalmente, na América Latina? Referências bibliográficas Alexander C(2006) A cidade não é uma árvore, Disponível em: < http://pt.scribd.com/doc/48296984/UMA-CIDADENAO-E-UMA-ARVORE >, Acesso em: dezembro de 2012. Barros A P (2014) Diz-me como andas que te direi onde estás: inserção do aspecto relacional na análise da mobilidade urbana para o pedestre, Tese de doutorado sob regime de Co-tutela entre a Universidade de Brasília e a Universidade de Lisboa, 408pp. Gehl J (2010) Cidades para pessoas, Perspectiva, São Paulo. Grajewski ,Vaughan L(2001) Space Syntax Observation Manual, University College London, London. Hillier B (1996) Space is the machine, Cambridge University Press, London. Hillier B (2001) A theory of the city as object, or how the spatial laws mediate the social construction of urban space In: 3rd International Space Syntax Symposium, Atlanta - EUA. Proceedings… A. Alfred Taubman College of Architecture and Urban Planning, University of Michigan, 02.1-02.28. Hillier % HansonJ (1984) The Social Logic of Space, Cambridge University Press, London. Holanda F (2002) O espaço de exceção, EdUnB, Brasília. Jacobs J (2001) Morte e vida de grandes cidades, Martins Fontes, São Paulo. Kostof S (1992) The city assembled: the elements of urban form through history, Thames and Hudson, London. Kostof S(2001) The city shaped: urban patterns and meanings throught history, Thames and Hudson, London. MedeirosV A S (2013) Urbis Brasiliae: o labirinto das cidades brasileiras, EdUnB, Brasília.

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AS RELAÇÕES DETERMINANTES ENTRE URBANIDADE E FORMA URBANA Curso de Doutoramento em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa Lisboa-Portugal, Telefone: 00 351 910608490, 00 351 966552967, 00 351 919422761 Samira Elias Silva (1) José Nuno Beirão(2) - Carlos Dias Coelho(3) [email protected] (1), [email protected] (2), [email protected] (3)

Resumo O objetivo deste artigo consiste em evidenciar as relações determinantes entre forma urbana e urbanidade e verificar a condição da urbanidade associada a um conjunto específico de atributos urbanos. Este objetivo visa uma melhor compreensão de como construímos e formalizamos o espaço urbano e como pode ser determinante na formação de urbanidade fornecendo dados mais concretos sobre essa relação a todos os que decidem sobre a forma das cidades. Para tal, neste artigo apresenta-se a parte inicial do trabalho na qual se identificam quais os atributos definidores nessa relação e quais os indicadores de urbanidade quanti-qualitativos que serão usados para avaliar a urbanidade. Esta análise preconiza a hipótese de que a condição da urbanidade está associada de maneira determinante à forma urbana, estruturando o método da pesquisa, que se propõe: (1) constituir uma definição abrangente mas não necessariamente holística do conceito de urbanidade que possa servir como base de suporte ao estudo a desenvolver; (2) identificar os atributos da forma e indicadores urbanísticos que possam contribuir para a formação da condição de urbanidade; (3) estabelecer um método de identificação objetiva de padrões de relação quanti-qualitativos determinantes da condição de urbanidade que permitam definir com objetividade os universos de variação formal da urbanidade no contexto da América Latina. Neste artigo abordam-se os dois primeiros momentos. Para tal coligiram-se as teorias mais importantes sobre o tema identificando atributos e indicadores verificando-se a necessidade de combinar vários atributos da forma urbana, tais como o desenho da malha urbana, a densidade de rede, conectividade e acessibilidade dos espaços públicos, bem como a densidade. O método apresentado propõe um conjunto de critérios para combinar estes atributos e promover uma avaliação objetiva da Urbanidade de um lugar urbano.

Palavras-chave: Urbanidade, Forma Urbana, Morfologia Urbana, Condição da Urbanidade, Espaço Público. Introdução Este trabalho consiste em verificar se a condição de Urbanidade está associada a um conjunto específico de atributos e fatores relacionados à Forma Urbana. Neste sentido, é necessária a conceitualização dos termos para depois definir a interação entre os conceitos de Urbanidade e de Forma Urbana. As evidências físicas da forma urbana são facilmente quantificáveis, propriedades mensuráveis como por exemplo, comprimento, largura, altura, superfície, volume e outras decorrentes diretamente da geometria dos objetos de estudo. Menos evidentes são as que resultam do estudo das relações mas que podem ser captadas pelo uso de modelos topológicos. O conceito de Urbanidade no entanto, apresenta-se como um conceito carregado de ambiguidades e carga social pelo que necessita de uma definição que pelo menos consiga enquadrar uma linha metodológica objetiva. Entre as múltiplas definições e terminologias que existem entre as teorias que abordam o tema da urbanidade temos aspectos comportamentais, interação entre espaços públicos e privados, diversidade de uso, contato visual, entre outros que caracterizam traços do cotidiano urbano, ou mesmo valores simbólicos, pelo que temos de nos focalizar em temas já estudados por vários autores e onde a relação entre forma urbana e urbanidade já de algum modo se encontra apontada. Temos assim a necessidade de iniciar o trabalho através de uma revisão PNUM 2016 579

da literatura onde se identifiquem todos os atributos e indicadores da forma urbana que de algum modo já tenham sido apontados como contribuindo para a definição da condição de urbanidade. Assim, este artigo, começa por explorar dentro da literatura no campo do Urbanismo, quais os trabalhos científicos já elaborados que dão pistas quanto ao potencial e a influência que a forma urbana exerce nas respectivas formas de ocupação do lugar e mais detalhadamente quanto à sua influência na definição de uma condição de urbanidade. Propõe, ainda como metodologia, conjugar ferramentas analíticas espaciais associadas às teorias identificadas na literatura, e a partir da medição quantitativa e qualitativa com base em amostras urbanas tiradas de cidades latino-americanas, visando a produção de resultados mais conclusivos que permitam identificar quais os critérios indicadores de Urbanidade para o caso das cidades latino-americanas.. Urbanidade: o enlace entre o conceito e os atributos da condição geradora A condição de urbanidade relaciona-se na sua origem com o termo civilidade, pois, o termo urbanidade, até início do século XX, teve seu uso tradicionalmente referido, à expressão de cortesia, civilidade e respeito ao convívio coletivo. A partir da segunda metade do século XX e, recentemente, de maneira mais ampla, arquitetos e pesquisadores do urbanismo se apropriaram do termo e passaram a utilizá-lo na qualificação de edifícios, bairros e cidades no sentido de se referirem à qualidade do que é urbano ou próprio da cidade. Trata-se de um conceito que assume – no entendimento de alguns autores, como Bill Hillier e Frederico de Holanda - o papel de síntese da relação entre atributos Arquitetônicos e Urbanísticos que em conjunto viriam a contribuir para uma noção colectiva de Urbanidade e relaciona-la com a noção de copresença em um lugar. Após esta introdução genérica vamos admitir para começo a seguinte definição de urbanidade que adiante suportaremos nos exemplos citados da literatura: • A urbanidade é o caracter do que é urbano e portanto, se opõe a rústico (ou rural), ou seja, o oposto de rusticidade ou ruralidade. • Assumimos ainda que o termo urbanidade é mais: é também a expressão de coordialidade que o espaço construído urbano tem para com os seus utilizadores (ou cidadãos). Essa coordialidade ou urbanidade expressa-se sob a forma de qualidade de vida (em todas as suas dimensões). Esta definição, se a aceitarmos como princípio, ajudar-nos-á a procurar os indicadores que queremos. Citam-se os estudos de Jacobs (1961), Lynch (1960), Alexander (1965 e 2013), Panerai (1977) com base na fundamentação quanti-qualitativa e com enfoque em fatores formais. E também, os estudos Hillier e Hanson (1984), nos quais apresentam metodologias consolidadas sobre o tema do comportamento do espaço público em função da sua configuração e posição relativa na rede. Todos estes autores relacionam o conceito da urbanidade com fatores formais, estabelecendo relações entre propriedades mensuráveis da forma e configuração urbana com aspectos que isoladamente argumentam contribuírem para a formação de urbanidade como um todo, nomeadamente pessoas utilizando o espaço público, porosidade das fachadas, a diversidade de uso, bem como o contato visual, a densidade, compacidade, acessibilidade, entre outros. PNUM 2016 580

Jacobs (1961) relaciona suas críticas sobre a perda da diversidade urbana com as novas urbanizações produzidas em grande escala e defende a presença de pessoas nas ruas utilizando o espaço urbano, e estabelece algumas diretrizes conceituais sobre qual a condição (ou condições) do espaço urbano para que o mesmo seja utilizado. Considerando esses preceitos, a pesquisa se ancora no fato de que alguns critérios possam indicar e mensurar essa condição, como identificar esses atributos potencializadores da condição da urbanidade e ajudar na elucidação do conceito quando correlacionado aos fatores formais. Ao apresentar os modos descritivos que são pertinentes na concepção dessa condição que proporciona a urbanidade, insere-se os estudos de Lynch, no qual correlaciona o ponto de ligação e decisão para a pessoa em movimento, onde as vias podem ser imaginadas como uma rede que explique a existência de um traçado com consistência de interrelação tipológica ou de espaçamento. Essa compreensão é coincidente, e antecipa em duas décadas, o método descritivo e qualitativo proposto por Hillier et al (1983) e que veio a se tornar conhecido como sintaxe espacial, e incita a premissa de que quanto mais interligada e mais compacta for a rede urbana, menores serão os percursos pedonais, e melhores serão os arranjos espaciais. Num pensamento aproximado, Holanda (2003) refere o conceito de urbanidade como uma condição geradora pois sugere maior eficiência na minimização de espaços abertos em prol de ocupados, ou seja, na densidade de edificações, e compacidade da malha urbana, do maior número de portas abertas, da minimização de espaços segregados e na integração espacial, malha viária conectada, entre outros. Assim, a urbanidade não seria por si só um sinônimo de vitalidade ou de copresença, embora a inclua, mas sim da condição potencializadora de um espaço acolhedor. Neste contexto, Berghauser-Pont e Haupt (2010) apresenta unidades espaciais rigorosas sobre as quais é possível se construir índices de densidade a partir de critérios multiescalares, aplicados às comparações entre lugares diferentes, permitindo estudos comparativos quanti-qualitativos às distintas formas, ocupação e desenho de cidade. Essa metodologia apresentada por Berghauser-Pont e Haupt (2010) atribui resultados conclusivos que resultam em variáveis qualitativas associadas a forma urbana. Outra contribuição importante na compreensão do conceito constituinte da condição de urbanidade foi dada por Panerai em “Formes Urbaines, de l'îlot à la barre” (1977). Os autores analisaram as transformações formais de grandes cidades entre os séculos XIX e XX, considerando as transformações ocorridas na estrutura dos blocos urbanos - “da ilha” (o bloco urbano tradicional) à barra (o bloco tipicamente modernista). Panerai et al (1977) afirmam que o urbanismo moderno subverteu o sentido formal das cidades tradicionais, suprimindo suas ruas e isolando seus edifícios, retirando da rua, portanto, a função de principal agente estruturador do espaço urbano. Nesta vertente, Dias Coelho (2014) defende o adensamento estratégico da cidade aliado às baixas alturas, à proximidade e a diversidade de atividades urbanas. Defende a formação de condições favoráveis ao estreitamento entre a vida doméstica e a vida urbana no espaço público. “Há, assim, que aprofundar proximidade, densidade e diversidade na arquitectura urbana pormenorizada quando se pretende um espaço residencial e citadino convival, um objectivo fundamental numa qualquer solução de habitar, mas vital quando as relações de sociabilidade e vitalidade nas vizinhanças próximas são dos principais meios que os habitantes

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dispõem para prosseguirem uma vida diária mais estimulante (...)”. O autor, acredita no equilíbrio da articulação entre a área edificada, áreas abertas e espaços públicos como um sentido “agradabilidade residencial”. Incluem-se ainda, os relevantes estudos de Gehl (2014) que correlacionados às contribuições de Bertaud (2001), embora possuam teor especulativo distintos, trazem as mesmas afirmações quanto à forma urbana. Os autores correlacionam formas arquitetônicas mais contínuas no quarteirão, compostas por fachadas mais porosas/permeáveis, menos monótonas e mais próximas da rua, que incentivam a vitalidade microeconômica local e a apropriação dos espaços públicos proporcionam maior contato e proximidade com o espaço público, com menores distâncias a serem percorridas, maior densidade de atrativos e presença de atividades, maximização da superfície de contato da edificação com a rua, entre outros. Rogers (2005), relaciona as enormes vias e estruturas de concreto para atender às necessidades de mobilidade em bairros de baixa densidade, com zonas específicas quanto às funções urbanas, que distantes entre si criam elementos profundamente formais e mono-funcionais opressivos na escala humana. Defende a cidade compacta, policêntrica, com atividades mistas e concentradas, e com oportunidades sociais. Descreve o padrão policêntrico, a cidade complexa, com rede integrada, e diversificada com soluções sociais imediatas, baseadas na cultura local urbana, como a cidade ideal. Alexander (1965), crítico do modelo da cidade dispersa e monofuncional, defende em seu artigo A City is not a Tree a presença do planejamento que visa o uso misto, a ocupação densa e a continuidade do espaço urbano. O autor argumenta que essa é uma característica inerente às cidades não planejadas e ausentes nas cidades que foram objeto de um planejamento rigoroso, quase sempre marcadas pelo zoneamento das funções urbanas, separação e hierarquia espacial, em função da utilização aumentada de veículo – estratégias que, segundo o autor, contribuem para a fragmentação da vida e para a decomposição da sociedade. Assim, ancorada na teoria citada, pretende-se identificar nos atributos urbanos, os indicadores da urbanidade para demonstrar a operacionalidade da mensuração da urbanidade por meio de ferramentas analíticas aplicadas nas amostras selecionadas. Os Atributos Indicadores da Condição de Urbanidade Inicia-se pelos preceitos qualitativos da Morfologia Urbana, cujo pressuposto básico é que a “cidade pode ser lida e analisada pela sua forma física ordinária” (Moudon, 1997). Partindo desse princípio e de bases teóricas consolidadas, são estabelecidos os qualificadores morfológicos, a partir características mensuráveis da forma urbana, nomeados aqui de atributos urbanos. Alinhando os estudos de Dias Coelho (2014a) sobre os elementos urbanos (tecido, a rua, o quarteirão, o traçado e a malha) faz-se relevante uma breve conceitualização sobre o tecido urbano para entender a relação de segmentação do tecido homogêneo, no qual possibilita a análise de um conjunto de variáveis formais a uma forma comum, nomeadamente “tecido homogéneo”. Esta abordagem possibilita a escolha de amostras urbanas homogêneas para a análise do objeto de estudo, no qual traz distintas formas urbanas, provenientes da evolução histórica e influências coloniais das cidades analisadas. Nestes termos, o objeto de estudo se delimita pelo critério temporal considerando três principais períodos do urbanismo: colonial, modernista, contemporâneo.

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A pesquisa avança a partir da hipótese que existe uma relação determinante entre a forma urbana e a urbanidade, e que a urbanidade existente nos diferentes lugares da cidade, pode ser medida por distintas ferramentas analíticas adequadas à mensuração de cada indicador proposto. Assim, pretende-se medir as qualidades dos lugares, e por outro lado, se a forma determina a condição para a presença natural de pessoas no espaço urbano. Num primeiro momento, indicam-se três exemplos retirados das amostras urbanas que serão aplicados os indicadores da urbanidade ilustrados na Figura 1.

Figura 1. Indicação das amostras urbanas da cidade de João Pessoa - Brasil: (a) malha tradicional – centro histórico; (b) malha moderna – bairro Varjão; (c) malha contemporânea – bairro Altiplano. Fonte: autores, 2016.

Com as relações conceituais estabelecidas entre a forma urbana e a urbanidade, apresentam-se os atributos elencados na teoria de cada autor, na qual passam a integrar uma metodologia investigativa. Os atributos urbanos são quantitativos, assim sendo possível estabelecer indicadores para a mensuração dessa condição. $ )LJXUDsintetiza a relação entre a teoria conceitual, os atributos que descrevem o espaço urbano e os indicadores de urbanidade estabelecidos, fundamentando o desenho teórico-metodológico quanti-qualitativo. 

Rede

TIPOS DE INDICADORES URBANOS

TEORIAS

ATRIBUTOS URBANOS

INDICADORES Parâmetros de medição

Berghauser-Pont e Haupt (2010)

Proximidade, dispersão da malha viária Dimensão da malha

Densidade de rede (N) Tara (T) Largura e Profundidade da malha (w, b)

Hillier (1983) Cavić e Beirão(2014)

Escolha de deslocamento

Acessibilidade

Determinação do movimento

Integração

Possibilidades de fluxos

Conectividade

Intensidade das possibilidades de fluxos Mono/Policentrismo

Profundidade

Marshall (2005)

Bertaud (2004) Rogers (2005) Gehl (2014)

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Núcleos Centrais

Alexander (2013) Lynch (1960)

Nós de atividades Terminais Intermodais Marcos Arquitetônicos|Urbanos Praças Ruas Internas Rua de Comércio para pedestres

Pontos Nodais

Berghauser-Pont e Haupt (2010)

Densidade Construída

Índice de aproveitamento (FSI) Taxa de ocupação (GSI) Altura dos edifícios (L) Espaços Abertos(OSR)

Accioly e Davidson, 2011

Densidade Populacional Concentração e dispersão de pessoas

Alexander (2013)

Público/Privado Rua de Comércio para pedestres

Densidade Populacional Bruta) hab/a Densidade Populacional Líquida hab/área passível de ocupação Usos Mistos (quantificação)

Plinths/Qualidade de Emabasamento do Piso Térreo

Uso e Ocupação do Soloi

Densidade

Gehl (2014) Lynch (1960)

Gehl (2014) Bertaud (2001) Beirão e Koltsova (2015)

Lynch (1960) Gehl (2014) Alexander (2013) Cavic  ́ e Beirão (2014)

Lotes e construções em desuso/A Estimulação visual Abertura das fachadas Transparência das fachadas Continuidade/Descontinuidade Recuos/Afastamento número de entradas, profundidade média, posição da rua na rede Gabarito das Fachadas Pátio Estimualção Visual Orientação Vertical das Fachadas Limite de 4 pavimentos

Limitadores Físicos

Vazios Urbanos (quantificação) Porosidade das Fachadas (quantificação) Permeabilidade (STR) (Medida de integração - Densidade de entradas (E) e Profundidade Média (STL). VIsibilidade das Fachadas (quantificação)

)LJXUD . Síntese preliminar dos indicadores de mensuração da urbanidade a partir de atributos formais urbanos. Fonte: autores, 2016.

Com base no diagrama, relacionam-se os aspectos físicos e morfológicos qualitativos. Assim, compreende-se que um conjunto de atributos são importantes qualificadores de espaços atraentes e intensamente utilizados. Além disso, pretende-se quantificar os atributos urbanos identificar o grau de urbanidade presente na determinada amostra. Num primeiro momento, predomina o sistema viário e sua relevância representada pelo tipo de Indicador de Rede Urbana, para mensurar a Integração, a acessibilidade, a conectividade e a profundidade da malha viária. Hillier et al (1993) afirma que os usos urbanos estão relacionados à estrutura configuracional. Baseado em The Social Logic of Space de Hillier e Hanson (1984), Holanda estabeleceu dois paradigmas socioespaciais opostos presentes na estrutura das cidades – a urbanidade e a formalidade – e criou a medida de urbanidade (URB), que calcula o grau de urbanidade ou de formalidade dos espaços. Em síntese, o conceito leva em consideração a distância topológica e não a distância métrica e relaciona a conectividade, geradora de índices quantitativos que podem resultar em valores mensuráveis. Os sistemas urbanos com alta conectividade promovem maior acessibilidade no sistema viário urbano, proporcionando maior ou menor facilidade para a circulação e deslocamento de pessoas e o desempenho das suas atividades, distintas possiblidades de fluxos e de mobilidade, contribuindo para padrões de movimento e para a qualidade de vida urbana.

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Marshall (2005) que pesquisa as relações do sistema viário correlaciona as propriedades da conectividade e da complexidade da rede urbana, e constitui padrões “bons” ou “maus” nos 60 exemplos de rede analisados por ele. Os elementos estruturais elencados por ele, incluem as rotas e cruzamentos e seus relacionamentos com o entorno e segundo o autor é capaz de gerar padrões desejados no desenho urbano ao considerar que a “análise de conectividade” na qual inclui a conectividade, a continuidade e a profundidade como geradoras de uma condição que determina fluxos e movimentos em distintos graus. A Densidade pretende demonstrar como é possível estabelecer valores variáveis a partir da da densidade populacional, habitacional, de uso e ao cruzar com a metodologia de análise proposta por Berghauser-Pont e Haupt (2010) como a densidade construtiva, pode revelar aspectos distintos, coerentes e, ou, até questionáveis, a partir da quantificação do coeficiente de aproveitamento, taxa de ocupação, altura dos edifícios, índice de espaços abertos, etc. Os cálculos, as variações de densidade em diferentes escalas são consideradas pelo uso do conceito de Espaço Tara – a diferença entre duas áreas-base destinadas ao cálculo da densidade em duas escalas distintas. Além das variáveis tradicionais, como o Coeficiente de Aproveitamento (FSI), chamado aqui de Intensidade de Uso do Solo, Taxa de ocupação ou Cobertura de Solo (GSI) e altura média do edificado (L), a metodologia ainda utilizada como indicadores de densidade, a densidade de rede (N), a espacialidade (OSR), largura média das ruas e das quadras. A interpretação e resultado deverá ser criterioso para as especificidades de cada caso. Ainda, numa escala aproximada do edifício e da rua sobre o objetivo que norteia esta pesquisa, salienta-se parâmetros da dinâmica de uso combinadas aos Qualificadores de Emabasamento do Piso Térreo que propiciem acessos diretos, afastamentos coerentes, continuidade das edificações, limite de gabarito das fachadas, uso misto, entre outros atributos, que permitam fachadas ativas, com trânsito de pedestres e maior diversidade de uso, entre outros aspectos importantes, podem ser caracterizados em impactos positivos nas possibilidades oferecidas pela forma urbana. Jane Jacobs e Lynch, já na década de 1960, mostrava argumentos consistentes sobre a interação social em espaços públicos a partir de arranjos espaciais organizados, mais adensados, e contínuos, além de outros aspectos que determinam o maior uso dos espaços públicos pelas pessoas. Os estudos mais recentes de Bertaud (2001), Alexander (2013) e Gehl (2014) indicam as possibilidades de se mensurar esses atributos pelas medidas da Porosidade e Visibilidade das Fachadas; e Beirão & Koltsova (2015), que possibilita a quantificação da Permeabilidade pelo cálculo do número de entradas, profundidade média, posição da rua na rede. Estes, entre outros, que influenciam de maneira determinante o potencial da vida da rua.

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FigXUD Diagrama Conceitual C it l de d Indicadores I di d da d urbanidade. b id d Fonte: autores, 2016.

Considerações Finais A urbanidade constitui um conceito complexo e muitas vezes até subjetivo, face as suas multideterminações e abrangências terminológicas, situado entre as capacidades espaciais urbanas e o comportamento do indivíduo que utiliza o espaço urbano. Todavia, este artigo busca apresentar atributos formais representativos fazendo uso dos métodos consolidados na teoria específica com possíveis ferramentas de análise. O estudo, ainda em desenvolvimento indica que os tipos urbanos compactos e contínuos estão mais associados à urbanidade do que tipos isolados e dispersos por meio da teoria apresentada. Esse argumento, apesar de não ser novo, passa a ser mais conclusivo se analisado e demonstrado de forma quantitativa contribuindo efetivamente para o estado da arte. Supõe-se que as interações entre a urbanidade e a forma urbana podem gerar novos caminhos e perspectivas para se (re)pensar conceitos, valores e parâmetros de qualidade urbana e da urbanidade, de maneira abrangente e adaptável a contextos específicos. Por meio de procedimentos metodológicos, tais como SIG, Spacematrix, Space Sintax, Parametrização e cálculos diversos sobre o espaço construído é possível qualificar o grau de urbanidade de parcelas urbanas distintas. No contexto de uma investigação na qual combina diferentes tipos de indicadores de urbanidade e associados fatores da forma urbana, existe um esforço específico em trabalhar na perspectiva de que a cidade, e sua forma,

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bem como o planejamento dos elementos urbanos que a compõe podem estimular a qualidade de vida de seus habitantes. REFERÊNCIAS Alexander C (1965) A city is not a tree Architectural Forum, v. 122, n.1, April. Alexander HWDO (1977/2013) Uma Linguagem de Padrões: a pattern language tradução: Alexandre Salvaterra,%RRNPDQ  3RUWR$OHJUH(data da trad.). Beirão J N Koltsova A (2015) The Effects of Territorial Depth on the Liveliness of Streets Nexus Netw Journal v 1773– 102, ISSN 1590-5896. Bertaud A (2004) The Spatial Organization of cities. DisponiYHOHP http://alain- bertaud.com/images/AB_The_spatial_organization_of_cities_Version_3.pdf. Berghauser PonW M Haupt P (2009) Space, density and urban form. [S.l.]: [s.n.]. Castelo L (2007) A Percepção de Lugar Editora Propar UFRGS3RUWR$OHJUH Cavi L Beirão J (2014) Open public space attributes and categories – complexity and measurability Arhitektura Raziskave, v 2, ISSN 1581-6974. Dias Coelho C/org (2014a) Os Elementos Urbanos Argumentum/LVERD. Dias Coelho C /org (2014b). O Tempo e a Forma Argumentum/LVERD Gehl J (2014) Ciudades para la gente Traducido por Juan Décima Pessoas.- 1ªed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Infinito, 2014. GehlJ (1971) Life between buildings: using public space. Washington DC, Island Press, 2011; HOLANDA, Frederico de. O espaço de exceção Editora UNB,%UDVtOLD 2002. Gehl Jan (1996) Public Spaces Public Life Paperback. Gehl Jan (2011) Life Beteween Buildings: using public space/Jan Gehl traduzido por Jo Koch 1936Island Press. GilJBeirãoJHWDO (2012) On the discovery of urban typologies: data mining the many dimensions of urban form/ Urban Morphology International Seminar on Urban Form, 2 ISSN 1027-4278. Holanda Fet al (2003) Arquitetura e Urbanidade Pro Editores6mR3DXOR Holanda F (1999) Sintaxe de uma casa-átrio moderna Document based on the paper presented in Seminário DOCOMOMO Brasil, São Paulo, 8-11. Holanda S (1956) Rai]HVGR%UDVLODHG5LRGH-DQHLURSSH FLWDGRHP Azevedo Vilas e cidades do Brasil colonial ))/&+8636mR3DXOR. Hillier B et al (1983) Space Syntax: A different urban perspectiveLn: Architecture Journal 4 London. Hillier BHanson J (1984) The Social Logic of Space Cambridge UniversityPress&DPEULGJH. Hillier B (2007) Space is the machine UCL Press Electronic edition. Jacobs - (1961/2000) Morte e vida de grandes cidades, Martins Fontes6mR3DXOR.

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Como o espaço pode influenciar a rápida decisão sobre os percursos a tomar: o caso do Estádio Universitário de Lisboa Tomás Amaral2, Joana Sequeira2, Renata Sousa2, Sara Eloy1,2 1ISTAR-IUL, 2ISCTE-IUL

Av. Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Telefone/fax: +351 217903000 - +351 217964710 [email protected], [email protected], [email protected], [email protected]

Resumo Este estudo consiste na análise da influência que o espaço exerce na tomada de decisões quando o subconsciente do ser humano está no estado mais “ausente” do corpo, como por exemplo, ao fazer jogging. A investigação realizada teve como caso de estudo o Estádio Universitário de Lisboa (EUL). Este espaço conta com um número de praticantes de jogging cada vez maior e os seus percursos, que foram essencialmente criados pela sua utilização ao longo do tempo, surgem de forma orgânica contornando os obstáculos naturais (árvores, pedras, etc), parecendo ser resultado de acções instintivas. Tendo isto em consideração, procurou-se perceber, através de metodologias de análise da Sintaxe Espacial, se os percursos realizados no EUL surgem influenciados pelo espaço construído e/ou natural, ou se são o resultado de uma ação influenciada por outros factores. De acordo com Hillier & Hanson (1984) o espaço molda o comportamento humano e deste modo é possível analisar e antecipar uma correlação entre o espaço construído e os seus efeitos sociais. A Sintaxes Espacial tem sido utilizada para estuar essencialmente ocupações urbanas e raramente é utilizada na análise de espaço vazios como os parques urbanos. Para o estudo proposto utilizou-se uma metodologia de análise baseada em dois processos de recolha de informação. Por um lado realizou-se uma análise sintática, efetuada através do software DepthmapX. Por outro lado realizou-se uma observação direta no local onde se verificaram e registaram os percursos que as pessoas realizavam. Ambos os processos de análise apresentaram resultados com uma correlação positiva. A análise VGA foi realizada apenas com a indicação dos obstáculos (árvores) e sem a representação vetorial dos caminhos, o que permitiu especular sobre o uso do espaço no início do EUL, em 1956, onde não existia nada além da vegetação e edifícios. A observação local permitiu constatar que é na zona central dos canteiros ajardinados que, atualmente passam os principais percursos e, próximo aos pontos de maior importância na VGA, foram colocados os equipamentos públicos de desporto. Os resultados finais indicam que o espaço de corrida no EUL foi desenhado ao longo do tempo pelas decisões instintivas dos praticantes de jogging sendo estes influenciados maioritariamente pela massa arbórea envolvente. Neste caso a massa arbórea funciona no EUL como o edificado numa cidade com a vantagem de uma abordagem bottom-up do espaço de circulação ter sido possível pelo modo de desenho flexível do espaço de desporto exterior do EUL. Palavras-chave Space Syntax, Estádio Universitário de Lisboa, Percursos, Choice, Parque Urbano.

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Enquadramento

O Estádio Universitário de Lisboa nasce da necessidade de haver um equipamento desportivo destinado a todos os estudantes universitários de Lisboa. Mas a história do Estádio não se pode contar sem referir alguns marcos importantes da história da Cidade Universitária da mesma cidade.

De acordo com informação do próprio Estádio Universitário (Estádio Universitário de Lisboa, s.d.) foi em 1930 que pela primeira vez se começou a pensar num espaço que juntasse as várias faculdades de Lisboa. Nesse sentido foi escolhida a zona da Palma de Cima e arredores, entre a Praça de Espanha e o Campo Grande, para a planearem. Mas foi só cinco anos depois que foi encomendado um “Anteprojecto da Cidade Universitária de Lisboa” ao arquiteto Porfírio Pardal Monteiro e só nos anos ’50 é que de facto arrancaria definitivamente a construção da nova cidade dos estudantes, a partir de uma combinação do projeto de Pardal Monteiro com o ante-plano de urbanização da Cidade Universitária, da autoria dos arquitetos João Simões e Norberto Correia.

A área que é hoje o Estádio Universitário surge de uma transferência de posse de terrenos para o Estado, de cerca de 40Ha. Estes terrenos encontravam-se na área limite do que tinha sido considerado zona de proteção do Hospital de Santa Maria, edifícios e outras instalações integradas na Cidade Universitária. Estes 40Ha são hoje limitados por quatro importantes vias: Avenida Professor Egas Moniz; Azinhaga das Galhardas; Avenida General Norton de Matos (2ª circular) e Avenida Professor Gama Pinto. O nosso estudo focou-se numa área mais reduzida (Figura 1), dedicada especialmente à atividade de corrida.

O arquiteto paisagista António Viana Barreto foi o responsável pelo projeto de arborização do EUL desenhando-o de modo integrado no plano geral da Cidade Universitária. Procurava principalmente manter uma unidade de conjunto das espécies a plantar e não previa um desenho geométrico do espaço, mas sim deixá-lo aparentemente não planeado.

O Estádio previa alguma monumentalidade, com o desenho de uma entrada a que chamavam Praça da Maratona, mas que nunca saiu do papel. Apesar disso, o espaço tem oito estátuas alusivas à temática desportiva, distribuídas em redor do campo principal, e que lhe conferem essa monumentalidade.

Este campo foi entendido como um pequeno estádio olímpico, destinado a um público reduzido, possibilitando a prática de várias modalidades, tendo já sido palco de vários eventos à escala mundial. (Estádio Universitário de Lisboa, s.d.).

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Figura 1. Limite da área de estudo, evidenciada a mais claro, relativamente à área total do Estádio Universitário de Lisboa. Foto do painel existente no Estádio Universitário de Lisboa.

O Estádio Universitário, que começou por ser uma oferta do Estado Novo aos estudantes universitários da cidade, tornou-se, hoje em dia, numa das maiores atrações para a prática de desporto em Lisboa. Além das várias modalidades desportivas disponíveis, este espaço oferece qualidades únicas para a prática de desporto na capital do país. O público do EUL é composto não só por estudantes, como por qualquer pessoa interessada em realizar algum tipo de atividade física, seja em pavilhões ou em espaço aberto. Objetivo da análise Este trabalho parte do pressuposto que quando corremos para fazer desporto, devido a alterações físicas como um maior consumo de oxigénio (Cappellini, et al, 2006) ou à concentração na atividade em si, as nossas reações são diferentes daquelas que temos quando andamos. A nossa tese é que nestes casos procuramos espaços mais amplos e, mais conhecidos, em detrimento de outros mais estreitos ou de visibilidade reduzida. Com cada vez mais praticantes de jogging e caminhadas no Estádio Universitário de Lisboa, alguns percursos foram delineados ao longo do tempo nos seus canteiros ajardinados. Contornando vários tipos

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de obstáculos, foram surgindo organicamente em todo o estádio. Estes parecem ser fruto de algo instintivo resultante dos percursos calcados pelos utilizadores ao longo de décadas. Tendo isto em consideração pretende-se perceber, através de metodologias de análise da Sintaxe Espacial, se os percursos surgiram influenciados pelo espaço natural ou construído e no efeito que este tem na tomada de decisões do ser humano. Metodologia Para a obtenção de respostas ao objectivo que nos propomos cumprir optou-se pela seguinte metodologia: 1) levantamento topográfico de todas as árvores da área do estádio e desenho das mesmas em DWG, 2) realização de uma análise baseada em diversas variáveis da sintaxe espacial, realizada no programa Depthmap: VGA, mapas axiais, isovist path, 3) realização de uma análise de agentes. Importa referir que para este levantamento dividimos as árvores em três categorias, consoante o seu diâmetro, de 10, 30 e 60cm. Esta divisão influencia a área de visibilidade em cada ponto do espaço. Zhai & Baran (2013) confirmam a dificuldade em realizar estudos desta natureza em parques urbanos apontando para isso algumas razões que os diferenciam das áreas construídas: dificuldade de definição de barreiras, dificuldades em estabelecer relações configuracionais; demasiadamente vastas conexões visuais; incongruência entre a visibilidade ao olho e a acessibilidade física. Numa primeira fase deste estudo utilizou-se apenas a localização das árvores, sem a demarcação dos caminhos, e realizaram-se análises Visibility Graph Analysis (VGA) para perceber os pontos com melhor relação visual entre si. “Visibility graphs analyses the extent to which any point in a spatial network is visible from any other. Where points are not directly visible, graph measures of a matrix of points can be calculated to test how many intervening points are needed for one point to see others.” (Sayed e Turner, 2010)

Na segunda fase realizaram-se as análises de mapas axiais dos percursos do EUL traçados a partir da observação no local nos sítios por onde detetámos passar maior número de pessoas. “O mapa axial de uma malha urbana consiste na menor quantidade das maiores linhas retas (correspondentes às linhas ideais de visada e movimento) que pode ser desenhada através dos espaços da malha a fim de que a mesma esteja «coberta», isto é que todos os anéis de circulação estejam completos e que todos os elementos convexos atravessados.” (Ferreira, 2015)

Pretendeu-se relacionar ambas as análises, com e sem os caminhos, e perceber se os percursos podem ter surgido em função da qualidade visual obtida por entre a massa arbórea do Estádio Universitário.

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Posteriormente fez-se uma Isovist Path, a passar pelo percurso de maior relevância dado pelas anteriores análises, para perceber se o seu alcance visual é realmente significativo.

“A Isovista de um espaço é a representação de tudo o que pode ser visto directamente dele – imaginamo-nos como um raio de luz que se vai espalhando e iluminando todo o espaço que alcança e que projecta uma sombra, sempre que objectos se interponham ao seu percurso.” (Ferreira, 2015)

Por fim, foi feita uma análise de agentes, para simular a utilização do espaço público do EUL, também com e sem árvores.

“The Agent model is instrumental to acquire a better understanding of the cognitive basis of natural movement and probably explain navigation and wayfinding The Agent analysis tools in the 2D view window (Map window) are used to generate aggregate models of agents’ movement in space. These aggregate models are governed by global parameters as well as parameters defining the behaviour of individual agents. The global parameters determine the duration of analysis, when, where and how many agents are released into the system.” (Sayed & Turner, 2012)

Análise do Caso de Estudo

Vga, Análise Axial e Isovistas

Foram realizadas análises relativas à conectividade do sistema com base em VGA e mapa axial com o objetivo final de comparar ambas as análises (Figura 2.1)). Com o resultado da VGA sobre o mapa da conectividade obtido pelo Depthmap, é de notar principalmente as zonas que se encontram em tons de amarelo a vermelhos. Estas zonas são potenciais pontos de atracção de fluxos e movimentos, por existirem aí mais conexões do que nas restantes. É interessante se compararmos com os caminhos que já existem neste local e na zona a vermelho, que se trata do campo de futebol de terra (Figura 2.3)).

A nossa interpretação é que este resultado deriva da inexistência de árvores neste local e também, se compararmos com o real, é o local de encontro de todos os caminhos de terra, daí existir um nível de conexões aparentemente mais elevado. Em tons de amarelo, os resultados mostram-se muito interessantes, pois nestas zonas encontram-se todos os caminhos de terra. Isto mostra, então, que as conexões entre uns e outros é alta. Ao invés desta interpretação, constatámos que existe um caminho que se encontrava demarcado no Estádio Universitário e que hoje em dia já não existe como caminho de passagem e que no mapa mostra um grande nível de conectividade.

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Na análise axial, o mapa da conectividade relativo aos caminhos actuais, sugere menor conectividade nos percursos de terra comparativamente ao que se viu na VGA, excepto no início do percurso de corrida principal, aquele que distribui para todos os outros menores. Demonstra-se assim ser este um bom ponto de partida, com o maior número de conexões e eventuais possibilidades de escolha.

Continuámos a comparação entre os dois tipos de análise e em relação à integração (Figura 2.2)), o resultado obtido foi: em relação à Visual Integration HH, note-se que o mapa é quase totalmente preenchido por cores quentes o que significa que é um espaço fortemente integrado entre si, e que com poucas mudanças de direção conseguimos aceder facilmente aos espaços o que favorece a acessibilidade local. No mapa axial da integração, a rua que mostra ser mais integrada é a rua de alcatrão, aquela que é, também, a menos utilizada a nível de corrida.

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Figura 2. 1) VGA e Mapa Axial da Connectividade, 2) VGA e Mapa Axial da Integração, 3) Campo de Futebol.

Nos mapas obtidos, do controlo visual (Figura 3.1)), mais uma vez, as zonas quentes, representam as áreas em que se encontram vários caminhos já traçados, como o exemplo do caminho que passa junto ao edifício da cantina (Figura 3.3)), neste caso mostra que os utilizadores deste local conseguem ter controlo sobre a disposição espacial do restante espaço e com a área vizinha imediatamente adjacente. No mapa axial do controlo visual (Figura 3.1)) pode-se perceber a importância do percurso referido anteriormente. Este é, além do percurso com maior conectividade, aquele que tem mais controlo visual sobre os restantes e, assim, supõe-se que seja o mais atractivo para quem tem como único objetivo correr. Ao traçar um Isovist Path com um angulo de 170º por este caminho (Figura 3.2)), apenas com a camada das árvores ligada, para ter a noção do efeito que os obstáculos visuais têm na nossa percepção do espaço, percebemos o porquê da sua importância. É o percurso com os raios de isovista maiores, ou seja, aquele com maior extensão visual sobre o envolvente e, consequentemente, sobre os restantes percursos.

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Figura 3. 1) VGA e Mapa Axial do Controlo Visual, 2) Mapa Axial do Controlo Visual e Isovist Path, 3) Caminho junto à cantina.

Análise de Agentes

No caso desta análise procedemos a dois tipos de estudo, um em que os agentes são largados em qualquer ponto do estádio, e outro em que os agentes são largados nas entradas deste. Estes agentes têm um ângulo de visão de 170º e têm de tomar uma nova decisão de direcção a cada três passos (Figura 4.1) e 2)).

Novamente fizemos o cálculo para as duas situações, sem caminhos (Figura 4.1)) e com caminhos (Figura 4.2)). Embora a primeira nos dê um resultado interessante, acentuando o eixo de passagem que as anteriores análises mostravam e reforçando as conclusões a que chegámos, a segunda não pode ser considerada válida uma vez que, ao acionar a layer dos caminhos, o programa considera estes limites como paredes e os agentes não estão, de facto, a tomar decisões consoante as árvores que vêem, uma vez que “não as vêem”.

Por fim, ao comparar a análise automática de agentes com o controlo visual da VGA, deparamo-nos com outra situação bastante interessante pois a mancha mais intensa da análise de agentes segue os contornos da mancha mais intensa do controlo visual da VGA (Figura 4.3)).

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Figura 4. Análise manual e automática de Agentes sem árvores, Análise manual e automática de Agentes com árvores, Análise de automática de Agentes com árvores e controlo visual da VGA.

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Conclusão

Este estudo foi interessante de realizar pois, com base num software de análise de Sintaxe Espacial (Depthmap) e curtos períodos de observação local, foi possível ter uma maior perceção sobre o comportamento do ser humano durante o ato de correr ou caminhar num espaço muito amplo e praticamente livre de barreiras. Ainda que o resultado final das análises não tenha sido totalmente conclusivo, foi promissor no sentido de dar pistas de trabalho a quem analisa ou projeta novos espaços com o objetivo de avaliar o impacto social das suas intervenções.

Verificou-se também, que tanto na análise efectuada no programa (Mapas Axiais, Isovistas e VGAs) como na observação local, a maioria dos testes são possíveis de relacionar e tirar conclusões sobre a dúvida inicial do problema, “Como o espaço pode influenciar na tomada de decisões?” Usar a análise VGA só com árvores permitiu especular sobre um possível passado, onde não havia nada além da vegetação e perceber se, apenas com árvores, se destacava alguma zona atrativa visualmente no recinto do EUL. De facto essa zona existe e é constante em várias análises. Nesta zona passam atualmente os principais percursos de corrida e, próximo aos pontos de maior intensidade na VGA, foram colocados os equipamentos públicos de desporto. Assim, sem certezas mas com alguma possibilidade, pode-se pensar que o espaço público de corrida no Estádio Universitário de Lisboa foi desenhado pelo tempo e pelo instinto das pessoas, sendo este influenciado maioritariamente pela massa arbórea envolvente. Por fim, especulando a partir da análise efetuada, deduziu-se que ao adicionar dois novos percursos (Figura 5.1)) e remover um tronco que caiu (Figura 5.2)), ficando a interromper um dos caminhos, poder-se-ia alterar, em muito, a funcionalidade dos caminhos de corrida e a forma como o instinto faz o ser humano percorrer aquele espaço.

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2 Figura 5. 1) Alterações propostas, 2) Tronco que caiu.

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Referências bibliográficas Cappellini G, Ivanenko Y, Poppele R, Lacquaniti F (2006) Motor Patterns in Human Walking and Running, in Journal of Neurophysiology, Published 1 June 2006, Vol. 95, no. 6, 3426-3437. DOI: 10.1152/jn.00081.2006 Desyllas J, Duxbury E (2001) Axial Maps and Visibility Graph Analysis: A comparison of their methodology and use in models of urban pedestrian movement, Intelligent Space, UK. Estádio Universitário de Lisboa (s.d.) História do EUL. Disponível em: http://www.estadio.ulisboa.pt/gca/?id=116, visitado a 26/11/15 Ferreira V (2015) Mapas Axiais, Espaços Convexos e Isovistas: A Teoria da Sintaxe Espacial e o Uso de Aplicações Informáticas, Faculdade de Arquitectura da UTL, Lisboa. Hillier B & Hanson J (1984) The Social Logic of Space, Cambridge University Press, Cambridge. Mahmoud A, Omar R (2014) Planting design for urban parks: Space Syntax as a landscape design assessment tool, Faculty of Engineering, Cairo University, Egypt. Sayed K, Turner A (2012) AGENT ANALYSIS IN DEPTHMAP10.14: Manual, University College London, London. Zhai Y, Baran P (2013) Application of Space Syntax Theory in the study of urban parks and walking, in the Proceedings of the Ninth International Space Syntax Symposium Edited by Y O Kim, H T Park and K W Seo, Sejong University, Seoul.

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Morfologia e Urbanidade em Margens de Corpos d’Água Urbanos Michelle Benedet, Carlos Faggin Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Universidade de São Paulo (USP) Tubarão/SC/Brasil, Fone: 55 48 96163106 [email protected], [email protected]

 Resumo A ordenação e tratamento dos espaços de margens de corpos d’água urbanos pode propiciar a transformação destas áreas pela absorção de conceitos de urbanidade e pelo estabelecimento de interfaces com suas bases naturais. A tentativa de estabelecer um instrumento de avaliação da urbanidade é um desafio, em consequência das desigualdades entre estudos de abordagem morfológica e pela escassez de sistemáticas pesquisas sobre o objeto de estudo pretendido. A construção de uma sistemática de avaliação, utilizando requisitos técnicos e de percepção, para a verificação do desempenho de urbanidade, pode constituir-se em um instrumento para a elaboração de projetos urbanos que agreguem qualidade e valor às margens de corpos d'água, possibilitando maior apropriação da comunidade e o incremento de sua qualidade de vida beneficiando a permanência no espaço urbano qualificado. Para contribuir na elucidação da temática que norteia esta pesquisa, apresenta-se uma análise de conceitos e caminhos de pesquisas de diferentes pesquisadores da urbanidade. Para melhor compreensão os autores são organizados em 3 (três) grupos: 1) pesquisadores que entendem a urbanidade com uma qualidade do espaço urbano e como uma crítica principalmente ao urbanismo moderno; 2) pesquisadores que conceituam a urbanidade como algo relacionado à configuração espacial e utilizam como método a Sintaxe Espacial; 3) pesquisadores que entendem a urbanidade mais como algo relacionado às pessoas e o modo como apropriam os espaços urbanos, utilizam diversos métodos, especialmente relacionados à percepção dos usuários. A pesquisa faz parte da tese que está sendo desenvolvida no programa de doutorado do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e tem como objetivo encontrar o equilíbrio e os elementos formais que busquem uma interação harmônica entre as pessoas e o corpo d’água. Palavras-chave Morfologia, Urbanidade, Margens de corpos d’água.

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Introdução

A urbanidade é algo tão complexo de se entender, mas ao mesmo tempo instigante que nos leva a alguns questionamentos: é uma qualidade dos espaços urbanos, das pessoas, ou da relação entre eles? Qual o papel da morfologia urbana para geração da urbanidade? Há condições espaciais que geram uma urbanidade ou uma desurbanidade? É possível avaliar a urbanidade? Qual o melhor instrumento de avaliação?

Esta pesquisa surge do interesse pelo desempenho da urbanidade em margens de corpos d'água urbanos. Busca-se compreender a relação estabelecida entre a configuração espacial e a proteção ambiental através PNUM 2016 599

da análise das formas de uso e ocupação destes espaços, conferindo se existem atributos que qualificam a vida urbana, no sentido da interação entre as pessoas e os corpos d’água, no sentido da urbanidade.

A urbanidade é entendida como aquilo que qualifica a vida urbana, no sentido da interação entre os cidadãos no espaço coletivo da promoção do encontro e do convívio social (HRODQGD, 2002). Com relação às margens de corpos d'água, Mello (2008) afirma que atributos de urbanidade podem promover a valorização destes espaços pelas pessoas, uma condição essencial para sua proteção. A construção de uma sistemática de avaliação utilizando requisitos técnicos e de percepção, para a verificação do desempenho de urbanidade, pode constituir-se em um instrumento de tradução para os projetos urbanos de elementos que agreguem qualidade e valor às margens de corpos d'água, possibilitando maior apropriação da comunidade e o incremento de sua qualidade de vida beneficiando a permanência no espaço urbano qualificado.

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A construção de um instrumento de avaliação da urbanidade

Esta seção faz um levantamento de autores que estudam a urbanidade e os métodos e técnicas para sua verificação e levantamento. Eles serão aqui apresentados primeiramente por ordem cronológica da publicação de suas pesquisas mais significativas e, posteriormente, será apresentada uma síntese dessas teorias organizadas pelos distintos caminhos metodológicos adotados.

2.1 Jane Jacobs (1961)

Jacobs não conceitua exatamente a urbanidade, mas aborda em seu livro Morte e Vida das Grandes Cidades elementos que são fundamentais para garantir a vitalidade urbana, a diversidade:

D  Mescla de usos e usuários – as diferentes funções devem “garantir a presença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes e estejam nos lugares por motivos diferentes, mas sejam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura” (JDFREV, 2000167); E  Necessidade de quadras curtas – as quadras curtas garantem uma escolha ampla de percursos e trajetos se cruzando e se entrelaçando em vez de serem isolados; F  Combinação de edifícios com idades e estados de conservação variados – a combinação de edifícios novos e antigos garante uma variedade de tipos de negócios com maior e menor poder de investimento;

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G  Necessidade de concentração – a concentração de pessoas é um dos critérios principais para indicar que um lugar possui urbanidade. Com a teoria de Jacobs fica bastante claro que o grau de urbanidade de uma cidade, de uma metrópole ou de um bairro depende do grau de vitalidade urbana ali presente. Com relação ao método de pesquisa, Jacobs se utilizou das observações das pessoas e fatos que aconteceram em diversos bairros nos Estados Unidos.

2.2 A humanização do espaço urbano de Jan Gehl (1971, 2001, 2006, 2010, 2013)

Gehl destaca em suas pesquisas que a qualidade urbana de uma cidade é medida pela quantidade e qualidade do espaço público para pedestres. Seus estudos apontam para uma otimização dos atrativos públicos e as atitudes para acolher uma vida social rica e segura que depende de três fatores: vida social, espaço público e edifícios – nesta ordem sequencial.

Como condições para planejamento das cidades, destaca a necessidade de conhecimento do ser humano, suas características, raio de alcance dos seus sentidos e velocidade de deslocamento e a adoção de estratégias de contato. Na sua publicação New City Life (2006), Gehl, Gemzoe et al apresentam 12 critérios de qualidade para o espaço público divididos em 3 categorias: proteção; conforto e; prazer.

Nas suas pesquisas utiliza técnicas de observação para levantamento de fluxo e atividades das pessoas identificando o tráfego de pedestres e as atividades estacionárias que ocorrem no seu entorno.

2.3 Bill Hillier e a Sintaxe Espacial (1983, 1984, 1994, 1996)

Hillier defende que a urbanidade está relacionada com a vitalidade dos espaços, entendida como a presença de maior ou menor número de pessoas em um espaço público. Os espaços sintaticamente mais integrados são mais carregados de urbanidade na escala global – tendem a ser aqueles com mais vitalidade.

Hillier et al (1983) descreve os elementos da urbanidade, presente em três condições:

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D  A organização global do espaço atuando como um meio através do qual cidade e áreas urbanas podem tornar-se potentes mecanismos capazes de gerar, sustentar e controlar os padrões de movimento de pessoas; E  A escala ou arranjo global do espaço é determinante no modo como o espaço é apropriado pelas pessoas, garantindo ou não a vitalidade dos espaços públicos; F  A arquitetura, a escala local e o modo como o espaço público é constituído é o terceiro elemento que garante a urbanidade de uma área. Hillier utiliza nas suas pesquisas para determinar a urbanidade de um local a Teoria da Sintaxe Espacial que busca descrever as configurações dos traçados e as relações entre espaços públicos e privados, através de medidas quantitativas.

2.4 A Urbanidade e a Formalidade de Frederico de Holanda (1997, 2002, 2003, 2010, 2011, 2012)

O conceito de urbanidade, estabelecido por Holanda, pode ser utilizado de forma útil para a compreensão das possíveis implicações que tenham, face a face, a configuração dos lugares e do convívio das pessoas nele, implicando na sua configuração. Para o autor, a urbanidade pode ser estar relacionada aos elementosmeio da arquitetura – os cheios e os volumes – ou aos elementos-fim – os espaços e os vazios. Destaca a variável formalidade versus urbanidade de atributos sociais e atributos arquitetônicos.

A urbanidade deve passar por três níveis de análise: padrões espaciais, vida espacial e vida social. Os aspectos analisados são de ordem visual; obstáculos que se impõem ao movimento das pessoas e; clima local. Utiliza como método de pesquisa a Teoria da Sintaxe Espacial focada nos seus aspectos de copresença, na maneira como as pessoas se movem, param e encontram outras pessoas.

2.5 Rubén Pesci e a Cidade da Urbanidade (1999)

Para Pesci (1999), a urbanidade se trata da arte de saber viver a cidade. Para ele são necessários 5 (cinco) componentes para atingir um grau de qualidade nas cidades que são expostos a seguir:

D  Uma cidade multifocal que trate da importância da descentralização e de que como numerosos centros ou focos de provável interação social podem recuperar a escala humana nas relações sociais; E  Uma cidade de interfaces considerando a ecologia e o ponto de contato (ou interação) entre dois ou mais ecossistemas;

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F  Uma cidade com espaços abertos prevendo uma estrutura configuracional urbana e sua qualidade espacial; G  Uma cidade com participação popular destacando a importância de se conhecer a urbanidade que cada um necessita em cada cidade; H  Uma cidade dos fluxos e da sustentabilidade prevendo uma urbanidade multisetorial, integral, holística e renovável, adotando os princípios anteriormente citados.

Pesci utiliza métodos e técnicas provenientes das pesquisas de Edward Hall sobre antropologia do espaço e Roger Baker como ferramenta de comportamento, além de técnicas de participação popular e da sua própria experiência prática. 2.6 Lineu Castello e a Percepção do Lugar (2004, 2005, 2007)

Castello (2007) cita que podemos projetar um lugar da urbanidade que se abram à percepção humana e sejam carregados de urbanidade. Para Castello, a urbanidade é uma qualidade típica e única do ambiente construído, vinculada às experiências conferidas às pessoas pelo uso que fazem do ambiente. A urbanidade passa pela sensação de pluralidade.

Os estímulos projetados buscam reforçar a imagem da urbanidade que um lugar deve conter e poder transmitir às pessoas, seja de forma visual, sensorial ou informacional. Afirma que a urbanidade é o potencial que o espaço tem para trocas sociais, com oportunidades que oferece para experiências, pluriculturais, intercâmbio da informação, interações sociais. Lugares de memória, lugares da aura e lugares da pluralidade são as palavras-chave para se atingir a urbanidade de Lineu Castello.

Como metodologia adota os métodos e técnicas da percepção ambiental (relações pessoa-ambiente) e da fenomenologia (exploração e descrição de fenômenos – coisas ou experiências).

2.7 Paulo Rheingantz (2010, 2011, 2012)

Para Rheingantz, o sentido de urbanidade contém (mas não se limita) à materialidade do ambiente urbano e não deve ser entendido como uma moldagem concebida exclusivamente pelas pessoas. O reconhecimento dos opostos Urbanidade-Desurbanidade coexiste, reúne e cultiva diversas narrativas menores “tecidas por um fio múltiplo mas comum” (2012).

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De acordo com suas considerações devemos considerar a possibilidade da urbanidade ser entendida como uma experiência que não tem sua origem nas pessoas nem no ambiente construído, mas que se produz na relação entre ambos, nas relações e interações entre humanos e objetos/espaço físico.

Suas pesquisas se baseiam na Teoria Ator-Rede (ANT) ou Sociologia da Tradução (Latour, Callon, Law) onde pretende demonstrar que o sentido da urbanidade é o resultado do fluxo contínuo de relações que ocorrem em um coletivo configurado por um conjunto de atuantes humanos e não humanos.

2.8 Romulo Krafta (2010, 2012)

Krafta (2012) inclui o ambiente urbano como parte integrante e influente nas relações entre pessoas, como expressão autônoma de urbanidade e apresenta algumas considerações que consideramos relevantes para o entendimento deste fenômeno: D  A urbanidade é uma qualidade de interação entre pessoas no ambiente urbano e pode incluir a cidade como parte relevante dessa interação; E  Para considerar a cidade como parte integrante da urbanidade deve-se pensar como resultante de uma interação entre indivíduos através do tempo; F  Há várias possíveis formas de aferir urbanidade: através dos graus de intensidade, graus de pertencimento e padrão dominante; G  Existem três situações na relação dos espaços urbanos e urbanidade: influência da forma na interação entre indivíduos; a interação entre indivíduos isolados e os lugares e; a forma urbana tomada como manifestação de um comportamento social, petrificado; H  Diferentes tipos de urbanidade podem ser observados quando novo objeto se insere segundo as mesmas regras obedecidas pelos outros, pré-existentes, do seu contexto; I  A urbanidade da forma não tem nada a ver com agradabilidade ou animação dos lugares e sim com capacidade de mudança.

Para verificar a urbanidade, Krafta considera que deve haver algum tipo de monitoramento e registro de interações podendo ser identificada apenas pela presença de pessoas ou das condições dos lugares.

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2.9 Douglas Aguiar (2010, 2011, 2012)

Para Aguiar, o conceito de urbanidade se refere ao modo como espaços da cidade acolhem as pessoas estabelecendo um parâmetro maior e abrangente na avaliação da qualidade dos lugares. Espaços com urbanidade são espaços hospitaleiros (2012).

Para o autor, a urbanidade é composta por algo que vem da cidade, da rua, do edifício e que é apropriado, em maior ou menor grau, pelo corpo, individual e coletivo. Contradizendo outros pesquisadores, Aguiar afirma que “a urbanidade, essa condição, essa característica é própria da cidade, da forma e não das pessoas” (201276). A condição de urbanidade estará no modo como a cidade acolhe as pessoas, recebe as pessoas, o corpo. Assim como Hillier e Holanda, utiliza a Teoria da Sintaxe Espacial para a aferição da urbanidade determinando o arranjo espacial e o modo como os espaços da cidade se estruturam, se articulam, constituindo a forma espacial urbana, a qual abriga aquilo que conhecemos como espaço público.

2.10

Classificando os pesquisadores da Urbanidade

Para contribuir na elucidação da temática, apresentamos, na figura 1, uma síntese dos conceitos e caminhos de pesquisas dos pesquisadores da urbanidade apresentados anteriormente. Os autores foram classificados em 3 (três) grupos: 1) pesquisadores que entendem a urbanidade com uma qualidade do espaço urbano; 2) pesquisadores que conceituam a urbanidade como algo relacionado à configuração espacial e utilizam como método a Sintaxe Espacial; 3) pesquisadores que entendem a urbanidade mais como algo relacionado às pessoas e o modo como apropriam os espaços urbanos, utilizam diversos métodos, especialmente relacionados à percepção dos usuários.



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GRUPO 1 Jane Jacobs

Jan Gehl

Rubens Pesci

Conceito: caracteriza alguns elementos necessários para a diversidade das cidades: a vitalidade, a vida nas ruas, as pessoas e suas relações com a arquitetura interagindo no espaço público. Mesmo não conceituando urbanidade, Jacobs identifica o que seriam os componentes necessários para que ela exista.

Conceito: defende o quanto cuidar das pessoas na cidade é fator essencial para obtenção de “cidades mais vivas, mais seguras, sustentáveis e saudáveis” (2013). Gehl considera nas suas teorias elementos essenciais para a urbanidade: a dimensão humana; os sentidos e a escala; a cidade viva, segura e saudável, ao nível dos olhos e; a ordem vida-espaços-edifícios.

Conceito: Para Pesci, a cidade da urbanidade deve apresentar alguns princípios: a) multifocalidade; b) sistema de interfaces que estabeleça equilíbrio entre dois ou mais ecossistemas; c) espaços abertos em contraposição aos espaços fechados; d) participação social e; e) fluxos e a sustentabilidade.

Caminhos de pesquisa: observações Caminhos de pesquisa: observações e Caminhos de pesquisa: das cidades. análise da apropriação dos espaços observações e análise da apropriação urbanos. dos espaços urbanos. GRUPO 2

Bill Hillier

Frederico Holanda

Douglas Aguiar

Conceito: pontua que a condição da urbanidade está presente na organização do espaço que atua como um meio através do qual cidades podem tornar-se potentes mecanismos capazes de gerar, sustentar e controlar os padrões de movimentos das pessoas.

Conceito: considera urbanidade como condição “simultânea ao espaço físico e a comportamentos humanos" (2012) e esse conceito terá que ser utilizado de forma útil para a compreensão das possíveis implicações que tenha relação com a configuração dos lugares e do convívio das pessoas nele.

Conceito: trabalha com o conceito de urbanidade como caráter do urbano, caracterizando espaços hospitaleiros como sendo o “conjunto de qualidades, boas ou más, que constituem as cidades" (2012).

Caminhos de pesquisa: Sintaxe Espacial.

Caminhos de pesquisa: Sintaxe Espacial e Caminhos de pesquisa: Sintaxe Dimensões Morfológicas do Espaço Urbano. Espacial

GRUPO 3

Lineu Castelo

Romulo Krafta

Paulo Afonso Rheingantz

Conceito: conceitua urbanidade como uma “qualidade típica e única do ambiente construído (...), uma qualificação vinculada à dinâmica das experiências existenciais”. Considera urbanidade como algo da forma urbana sem desconsiderar as pessoas.

Conceito: para o autor urbanidade: “significa qualidades relacionadas à cortesia, ao afável e à negociação continuada entre os interesses: basicamente relativo um modo de vida urbano, a um comportamento social na cidade”.

Conceito: afirma que o sentido da urbanidade contém (mas não se limita) à materialidade do ambiente urbano e não deve ser entendido como uma moldagem concebida exclusivamente pelos humanos.

Caminhos de pesquisa: técnicas de Caminhos de pesquisa: Teoria percepção do ambiente urbano. Morfogênese de Conzen Interrepresentation Networks (IRN) de Haken e Portugali.

da Caminhos de pesquisa: Teoria Atore Rede (ANT) de Bruno Latour.

Figura 1. Síntese dos principais conceitos e caminhos de pesquisas da urbanidade

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3

Conclusões para a construção do instrumento de avaliação da urbanidade

Conforme visto, podemos abordar a urbanidade através de diferentes perspectivas, cada uma das teorias tem uma visão muito particular da urbanidade, entretanto percebe-se uma inconsistência, especialmente metodológica, para estudo da urbanidade que incorpore um maior número de variáveis determinando um modelo que melhor defina essa complexidade da urbanidade e as maneiras de como atingi-la.

Entendemos que urbanidade deve ser uma espécie de qualidade superior do urbano reunindo as suas melhores qualidades sendo indissociável da apropriação das pessoas. E essa urbanidade só pode ser atingida quando está associada às emoções humanas, por esta razão a construção do instrumento de avaliação do grau de urbanidade das margens de corpos d’água deve abranger diferentes caminhos de pesquisa.

O instrumento irá facilitar uma sistemática possível de análise dos espaços em margens de corpos d’água de forma a verificar a existência e o grau de contemplação dos atributos de urbanidade devendo adotar diferentes caminhos de pesquisa envolvendo os 3 (três) grupos apresentados. Referências bibliográficas AJXLDU D (2012) Urbanidade e a qualidade da cidade, in D Aguiar, V M Netto (org.) Urbanidades, Folio Digital: Letra e Imagem, Rio de Janeiro, 61-79. CDVWHOR L (2007) A Percepção de Lugar, Editora Propar, Porto Alegre. GHKO J (2006) La humanizacion del espacio urbano: la vida social entre los edifícios, Editorial Reverte, Barcelona. *HKO J (2013) Cidades para pessoas, Perspectiva, São Paulo. HLOOLHU B HWDO (1983) Space Syntax: a different urban perspective, Architecture Jornal, London. HRODQGD F (2002) O espaço de exceção, Editora Universidade de Brasília, Brasília. +RODQGD F (2007) A praga do infinito e a ressurreição do lugar, in C R DXDUWH HWDO. O lugar do projeto no ensino e na pesquisa em arquitetura e urbanismo, Contra Capa, Rio de Janeiro. +RODQGD F (2012) Urbanidade: arquitetônica e social, in D Aguiar, V M Netto (org.) Urbanidades, Folio Digital: Letra e Imagem, Rio de Janeiro, 163-187. JDFREV J (2000) Morte e vida das grandes cidades, Martins Fontes, São Paulo. KUDIWD R (2012) Impressões digitais da urbanidade, in D Aguiar, V M Netto (org.) Urbanidades, Folio Digital: Letra e Imagem, Rio de Janeiro, 115-133. MHOOR S S (2008) Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água (Tese de Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília. PHVFL R (1999) La ciudad de la urbanidad, Fundacion CEPA, Buenos Aires. RKHLQJDQW] P (2012) Narrativas ou traduções da urbanidade, in D Aguiar, V M Netto (org.) Urbanidades, Folio Digital: Letra e Imagem, Rio de Janeiro, 135-161.

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A configuração das bordas metropolitanas da cidade de Curitiba/Brasil 1 Luciana Capistrano, Letícia Pacheco, Priscila Dill, Jussara Silva Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Positivo R. Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300 - Campo Comprido, Curitiba - PR, Telefone: +55 (41) 3317-3000 [email protected]; [email protected]; [email protected]; [email protected]

Resumo Curitiba é a capital do estado do Paraná, Brasil, e também cidade-polo da Região Metropolitana, que, em 2010, contava com um total de 2.768.394 habitantes. É uma cidade com forte presença dos movimentos de expansão populacional. Depois de um fluxo migratório de europeus no final do século XIX e início do século XX, a cidade vem recebendo, desde a década de 1950, um grande número de migrantes vindos do interior do estado do Paraná e de outras regiões do Brasil, resultado da industrialização urbana e da modernização agrícola. Uma das formas de entender as transformações urbanas desta metrópole (Curitiba) é olhar as condições-limite do território metropolitano fragmentado, suas bordas. Este artigo busca compreender as características configuracionais das bordas metropolitanas da cidade de Curitiba, resultantes de um processo socioeconômico, com base nas medidas sintáticas e imagens aéreas. Deste estudo, resultaram mapas de interface da configuração urbana das bordas metropolitanas da cidade de Curitiba com os municípios limítrofes, quer no que diz respeito à relação da macroestrutura urbana, quer a relação destas bordas com a sua área imediata, resultando deste modo duas análises em escalas diferentes. Estas análises permitiram identificar: (I) em que situação de integração global se enquadra cada um dos trechos do perímetro estudado; (II) qual é o tipo de estrutura urbana que cada trecho estudado apresenta; e (III) o tipo de relação entre Curitiba e os municípios limítrofes.

Palavras-chave Bordas metropolitanas, configuração urbana, cidade de Curitiba, região metropolitana de Curitiba.

Introdução Curitiba tem o seu crescimento direcionado segundo diretrizes urbanísticas estabelecidas a partir do Plano Diretor de 1966, que efetivou a mudança da conformação radial (Plano de 1943) de crescimento da cidade para um modelo linear de expansão urbana, consolidado no Plano Diretor de 2004. Até 1900, a ocupação do solo em Curitiba estava localizada na área central, com alguns assentamentos espalhados nos arredores do município, conformando um pequeno adensamento ao longo das vias de ligação entre estes assentamentos e a área central. A análise do processo de evolução da ocupação do solo na cidade de Curitiba permite identificar particularidades para cada década, abaixo registrada: Década de 50: a malha de Curitiba apresentava um desenvolvimento linear na direção nordestesudoeste. A BR116 constituía uma barreira para ocupação a leste, embora houvesse alguns assentamentos que a ultrapassavam. Os demais núcleos urbanos da região apresentavam-se bastante distanciados do tecido urbano do polo metropolitano – Curitiba;



Pesquisa de Iniciação científica no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Positivo, alunas Luciana Capistrano, Letícia Pacheco, Priscila Dill sobre orientação de Jussara Maria Silva.

1



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 Década 1960: a direção predominante de ocupação permanecia nordeste-sudeste. Entretanto, a BR116 foi ultrapassada, havendo um vetor de expansão em direção à região leste, especialmente na ligação com o município de São José dos Pinhais. Os demais centros urbanos dos municípios metropolitanos continuavam sem grande expressão. Década de 70: a ocupação ficou mais compacta, com predominância no vetor norte-sul. A BR116 ficou totalmente inserida na malha urbana, sendo que a barreira para expansão passou a ser a estrada de ferro junto à várzea do Rio Iguaçu. Os municípios de São José dos Pinhais e o Distrito de Pinhais-Piraquara apresentavam faixas urbanizadas ligadas ao quadro urbano de Curitiba. A criação das áreas industriais em Curitiba e Araucária (município a sudoeste), bem como a instalação da indústria cerâmica em Campo Largo (município a oeste), propiciou nova ocupação também a oeste. Década 1980: ocorreu forte crescimento de alguns municípios da Região Metropolitana, conformando núcleos urbanos espalhados, correspondentes aos centros dos municípios da região. Consolidou-se a direção leste como principal vetor de expansão da ocupação, principalmente São José dos Pinhais e Piraquara. Década de 1990: caracterizou-se pela consolidação dos municípios limítrofes a Curitiba, formando uma grande mancha urbana contínua, especialmente a norte e leste. 2000 em diante: formação de uma mancha de ocupação contínua, com expansão predominante na direção nordeste-sudoeste, fortalecendo a conurbação/periferização de Curitiba e municípios localizados ao norte e leste. A Região metropolitana de Curitiba para efeito de planejamento foi dividida em três compartimentos: Núcleo Urbano Central (NUC), Primeiro Anel e Segundo Anel. O NUC é formado por quatorze municípios, com 94,24% da população total metropolitana e 97,73% da população urbana metropolitana, configura uma grande e única cidade metropolitana, representada por um conjunto de municípios e não mais exclusivamente pela cidade de Curitiba. Com dinâmica urbana, social e econômica própria e com conflitos e potencialidades em comum. O entendimento da cidade a partir do seu crescimento auxilia na obtenção de uma imagem de conjunto, pois, conforme Panerai (2006) esta análise quando vinculada à mapas e pesquisa de campo acaba relacionando as linhas de força do território geográfico com os grandes traçados que organizam a aglomeração. Entender o processo de crescimento urbano é importante porque nos oferece uma apreensão global da aglomeração numa perspectiva dinâmica. A períodos de estabilidade, quando se firma a coesão interna de uma cidade, sucedem-se momentos de ruptura marcados por ampliações importantes, por avanços bruscos sobre o território. Em tal perspectiva, o estado atual de uma cidade é apenas um



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 instante precário e transitório em sua evolução. [...]. Ao revelar os pontos fixos de transformações anteriores, o estudo do crescimento permite determinar aquelas lógicas inscritas profundamente no território que esclarecem as razões de ser do assentamento atual. Começar a análise de uma cidade pelo estudo de seu crescimento é um dos meios de apreendê-la em sua globalidade, a fim de determinar o sentido a dar a estudos ulteriores mais detalhados. (PDQHUDL, 2006, 55).

Uma das formas de entender estas transformações urbanas é olhar as condições-limite do território metropolitano fragmentado, suas bordas. Para a análise acerca do processo de transformação territorial da cidade de Curitiba, numa primeira leitura, foram utilizados os conceitos da sintaxe espacial, para uma visão geral das franjas urbanas sob mutação. O método de análise está fundamentado em uma teoria descritiva do espaço — a sintaxe espacial (HLOOLHU e HDQVRQ, 1984; +LOOLHU, 1996). Nessa teoria, a construção sintática se refere à localização de determinada unidade (rua, praça) ou a um conjunto de unidades em relação à estrutura da cidade. Segundo Holanda (2002), a sintaxe espacial estuda a articulação dos elementos tanto global – articulação dos elementos entre si e o papel que cada um representa no sistema– quanto localmente –, características dos elementos em si mesmo. Na análise sintática, a organização é capturada por meio de entidades descritivas que possibilitam a identificação de uma configuração espacial, mediante a qual é possível avaliar as relações existentes entre as unidades espaciais. Essas unidades espaciais estão contidas nos espaços públicos da cidade e a análise da configuração da malha destes espaços públicos (ruas e praças) pode indicar a existência de condições tanto para a integração como para a segregação socioespacial. A leitura das características topológicas de integração global foi elaborada a partir do mapa axial (SLOYD, 2008). Posteriormente, foram elaboradas análises de ocupação e conexão destas bordas, utilizando imagens aéreas de diversas fontes. A leitura dessa correlação de imagens aéreas com mapas, além de possibilitar uma visão geral, apresenta as especificidades da borda e de suas imediações (1.000 metros). Entre essas peculiaridades, encontra-se a classificação das bordas como elementos naturais ou antrópicos, assim como a das imediações como áreas urbanizadas e não urbanizadas. As bordas metropolitanas e a medida sintática de integração global. A partir da leitura sintática, e com o objetivo de revelar atributos do sistema urbano de Curitiba e municípios limítrofes, este sistema foi avaliado quanto à sua estrutura hierarquizada, isto é, os graus de acessibilidade topológica global tendo como base a variável sintática de integração. Um mapa de integração global permite analisar a potencialidade da acessibilidade topológica de todo o sistema viário, considerando propriedades globais Rn, onde R corresponde ao raio, ou seja, quantos eixos são necessários para alcançar qualquer parte do sistema e “n” o número ilimitado de possíveis conexões (Hillier, 1984). A medida de integração, a principal da teoria da SE, indica o menor ou o maior



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 nível de integração entre as várias partes de um sistema em estudo. Assim, uma via de maior valor de integração é aquela, em termos de hierarquia, potencialmente mais acessível ou permeável. Significa ser mais fácil alcançá-la ou chegar até ela a partir de qualquer outro ponto da cidade. Para uma menos integrada, inverte-se a afirmação. Para a leitura sintática utiliza-se o software Depthmap (© UCL, 2010), que apresenta os resultados de forma gráfica e numérica. Na saída gráfica, cores indicam a integração dos eixos: mais quentes (tendentes ao vermelho) indicam eixos mais integrados; cores mais frias (tendentes ao azul) indicam eixos mais segregados. Quando olhamos a integração global (Figura 1) do sistema Curitiba e municípios limítrofes, verificamos que os valores de integração global apresentam grande variação de cores, na qual a paleta cromática inicia no vermelho – representando a alta integração – passando pelo amarelo – média integração – e finalizando no azul - baixa integração. A partir do mapa axial de integração global (n), percebe-se que a região central de Curitiba assim como sua porção Sudeste (conectando-se a São José dos Pinhais) são as mais integradas, apesar de existirem apenas quatro caminhos de conexão no sistema com São José dos Pinhais. Neste modelo, percebe-se que o sistema viário de Curitiba foi conduzido a um crescimento nessa direção, o que fortalece essa integração. A parte leste e nordeste quando analisadas no mapa axial apresentam-se como a segunda região mais integrada, porém apresentam conexões viárias fragmentadas. Ao analisar a região noroeste, oeste e sul, nota-se uma grande fragilidade nas conexões. Predominam nessas regiões, poucas conexões, sendo estas de média ou baixa integração global.



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Figura 1. Mapa axial de integração global (n) de Curitiba e suas bordas.

As bordas metropolitanas e os elementos físicos territoriais. Visando compreender estes elementos físicos territoriais que compõem as bordas metropolitanas, foi analisada a divisa de Curitiba com cada município e também as regiões próximas a estas divisas. Para isso, foi estabelecida uma área de análise, contando 1000 metros a partir da divisa (1000 metros analisados dentro do município de Curitiba e 1000 metros analisados dentro do município limítrofe). Com isso, resultou-se um mapa que apresenta tanto os elementos físicos existentes nas bordas metropolitanas, quanto uma classificação dos graus de urbanização dessas regiões próximas (Figura 2).



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Figura 2. Mapa de análise das bordas de Curitiba e municípios limítrofes.



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 Elementos naturais são constantes nas bordas de Curitiba com seus municípios limítrofes. Exceto nos municípios de Almirante Tamandaré e Araucária, o rio é o elemento que demarca as divisas (Figura 3), junto com uma vasta porção de vegetação (áreas de proteção). Assim, vê-se que há o predomínio do elemento natural em relação ao elemento físico nessas divisas, o que acarreta dificuldade na transposição.

Figura 3. Tabela de análise percentual da divisa metropolitana.

Quanto às informações observadas nas regiões próximas a essas bordas, considerando os 1000 metros para cada lado da borda (Figura 4), destacam-se as seguintes particularidades: (I) no território de Curitiba, a presença de parques em todo o perímetro; (II) a falta de continuidade desses parques nos municípios limítrofes, exceto em Colombo e São José dos Pinhais; (III) a grande quantidade de vias entre as divisas com os municípios de Colombo (norte) e Pinhais (leste); (IV) a macrourbanização consolidada com os municípios de Colombo e Pinhais; (V) a urbanização esparsa com os municípios de Fazenda Rio Grande e Campo Magro.

Figura 4. Tabela de análise das bordas metropolitanas e de Curitiba.



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 Considerações finais Após a concretização do Plano Diretor de 2004, Curitiba passou por um processo de expansão urbana seguindo um modelo linear, gerando assim uma relação de conurbação/periferização com seus municípios limítrofes. Este estudo pretendeu fazer uma discussão sobre o processo de estruturação da cidade polo metropolitana, utilizando-se, para tanto, da Sintaxe Espacial. A partir do reconhecimento das bordas metropolitanas da cidade de Curitiba, busca-se avaliar o papel desempenhado pelos elementos que compõem estas bordas na estruturação da cidade. O processo histórico de conurbação/periferização revela o grau de integração dos diferentes municípios no NUC – RMC. A análise sintática permite inferir que o vetor de expansão da ocupação da cidade de Curitiba, predominantemente, ocorre na direção sudeste. É nesta direção que se verifica a expansão da cor vermelha (linha axial), indicando uma maior integração entre sistema viário e funções. Neste quadrante, o município de São José dos Pinhais é o mais integrado, mesmo havendo apenas quatro vias de conexão entre o município com Curitiba, em razão de dois elementos naturais: (I) os rios Iguaçu e Iraí - que estão presentes ao longo de toda divisa do município; (II) a grande densidade de áreas verdes, fato que segrega o município de forma excepcional quando se comparado aos demais, pois nenhum outro apresenta tantas áreas verdes nas bordas. A parte leste e nordeste são as segundas regiões mais integradas, porém, apresentam maior grau de urbanização em relação aos demais municípios. Em contraponto, a análise sintática demonstrou que a noroeste, oeste e sul se encontram as piores situações, pois os municípios ainda estão pouco integrados à malha viária metropolitana, com baixo grau de urbanização. Essa segregação acarreta prejuízos em relação aos deslocamentos e interação social. O nosso método de confronto entre os dados qualitativos (leitura das imagens aéreas) e quantitativos (sintaxe espacial) e os resultados sugerem controlar a influência da acessibilidade para os padrões desejáveis de intensidade de uso e ocupação do solo. Uma relação direta entre as medidas de acessibilidade topológica (baixa, média e alta) e os padrões das bordas metropolitanas foi interpretada. E a partir do resultado destas combinações foram alertadas questões referentes à acessibilidade que refletem diretamente no desempenho do sistema viário metropolitano urbano. A conclusão desta pesquisa contribuiu para o entendimento real da situação entre o polo Curitiba e seus municípios limítrofes, assim como a estrutura urbana que cada trecho apresenta.



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 Apesar das limitações e algumas inconsistências esperadas neste tipo de abordagem, a metodologia utilizada mostrou-se adequada para uma primeira verificação e qualificação da situação geral das bordas metropolitanas de Curitiba, para subsídios de planejamento urbano, neste caso, para os nove municípios. Referências bibliográficas

Hillier B Hanson J(1984)The Social Logic of Space &DPEULGJH8QLYHUVLW\3UHVVLondon. Hillier B (1996)Space is the machine &DPEULGJH8QLYHUVLW\3UHVVLondon. Holanda F de (2002) O espaço de exceção(G8Q%Brasília. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2014) “Censo 2010”, acesso em www.ibge.gov.br/ em 11/03/2016. Kohlsdorf M (1996) A Apreensão da Forma da Cidade EdUnB%UDVtOLD. Medeiros V (2006)Urbis Brasiliae: o labirinto das cidades brasileirasEdUnB%UDVtOLD. Panerai P(2006) Análise Urbana Editora Universidade de Brasília%UDVtOLD. SLOYD J 2008  Por uma cidade amigável: configuração urbana, andabilidade e atropelamentos em Curitiba 7HVH  (Doutorado em Engenharia Civil), UFSC, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil – PPGEC, Florianópolis.



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Análise configuracional da cidade de Sines͒ Contribuições para a sustentabilidade do planeamento urbano e território Bárbara Lopes, Rosália Guerreiro CRIA - ISCTE IUL Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa [email protected] , [email protected]

Resumo A cidade de Sines, apesar do seu caracter histórico, caracteriza-se pelo seu crescimento fragmentado, caótico e disperso característico das cidades portuárias recentes. Neste paper procuramos dar conta dessas formas de crescimento diverso, por um lado, bem como encontrar as bases sólidas para a sustentabilidade do seu planeamento urbano e territorial futuro. Segundo Bill Hillier, as cidades tendem a crescer com um padrão específico: “Estrutura da roda deformada (deformed wheel)”. As cidades que seguem este padrão explicitamente, apresentam segundo o autor, um melhor desempenho social, económico e ambiental. No caso de Sines, embora essa estrutura esteja implícita, ela apresenta-se muito fragmentada. A reconstrução desse padrão espacial global requer várias intervenções locais, que por sua vez, terão reflexos a nível global. A identificação desse padrão espacial que tem reflexos a nível da sociedade é feita através da teoria da sintaxe espacial ou lógica social do espaço, criada por Bill Hillier e Julienne Hanson partir dos anos 70 na UCL. Com base na estrutura espacial da cidade enquanto sistema, a presente investigação procura assim compreender as tendências do crescimento urbano, através de análises quantitativas e descritivas que nos permitem ter uma leitura simples e direta do funcionamento do sistema espacial duma forma diacrónica e sincrónica. O método explora as diferentes técnicas que a sintaxe espacial nos oferece: Eixos axiais, espaços convexos e isovistas, que são as entidades espaciais definidas pela teoria. Trata-se de elaborar um conjunto de análises configuracionais, representadas por um conjunto de mapas e gráficos, com representação própria, baseadas na matemática dos grafos. O método permite encontrar diferentes valores sociais do espaço em função da sua posição e relação com o resto do sistema. Nestas análises são obtidas diversas medidas sintáticas que, por sua vez, representam certos padrões espaciais. Os resultados obtidos permitiram fazer uma proposta simples de alteração da estrutura global da cidade a partir de intervenções locais ao nível dos espaços públicos com vista ao melhoramento do ambiente urbano da cidade de Sines. As simulações de cenários futuros a partir dessas intervenções locais devolvem-nos claramente a imagem do padrão geral de crescimento de cidades sustentáveis segundo a estrutura da roda deformada. Palavras-Chave Sintaxe espacial, análise configuracional, planeamento urbano, sustentabilidade, padrões de uso PNUM 2016 619

1. Introdução A cidade de Sines, apesar do seu caracter histórico, caracteriza-se pelo seu crescimento fragmentado, caótico e disperso característico das cidades portuárias recentes. Neste paper procuramos dar conta dessas formas de crescimento diverso, por um lado, bem como encontrar as bases sólidas para a sustentabilidade do seu planeamento urbano e territorial futuro. Segundo Bill Hillier, as cidades tendem a crescer com um padrão específico: “Estrutura da roda deformada (deformed wheel)”. As cidades que seguem este padrão explicitamente, apresentam segundo o autor, um melhor desempenho social, económico e ambiental. No caso de Sines, embora essa estrutura esteja implícita, ela apresenta-se muito fragmentada. A reconstrução desse padrão espacial global requer várias intervenções locais, que por sua vez, terão reflexos a nível global. A identificação desse padrão espacial que tem reflexos a nível da sociedade é feito através da teoria da sintaxe espacial ou lógica social do espaço, criada por Bill Hillier e Julienne Hanson partir dos anos 70 na UCL. Com base na estrutura espacial da cidade enquanto sistema, a presente investigação procura assim compreender as tendências do crescimento urbano, através de análises quantitativas e descritivas que nos permitem ter uma leitura simples e direta do funcionamento do sistema espacial duma forma diacrónica e sincrónica. O objetivo deste trabalho de investigação é, através das diferentes análises que a sintaxe espacial nos oferece, investigar e compreender o seu significado e utilidade de modo a poder aplica-las em projeto urbano de forma a ser mais uma ferramenta que os arquitetos e urbanistas possam utilizar durante o processo de projeto. Com isto, pretende-se facilitar a compreensão e utilização deste método analítico e mostrar como o mesmo pode ser uma ferramenta útil de trabalho que nos permite mais facilmente compreender a cidade e como as pessoas que lá vivem a habitam. Tendo a cidade de Sines como caso de estudo, a investigação chega a uma simples proposta de alteração para comprovar a utilidade da sintaxe espacial na compreensão do comportamento da cidade e como pode ser uma grande influência no momento de tomar decisões que influenciam o espaço público.

2. Método No método é descrita a cidade de Sines, caso de estudo também para Projeto Final de Arquitectura, sendo a cidade a base de todas as análises realizadas e teorias estudadas dentro da metodologia da sintaxe espacial.

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2.1 Definição do caso de estudo Toda a história sobre a cidade de Sines gira em torno do mar. A atividade piscatória foi desde sempre a razão pela qual as pessoas começaram a habitar a zona bem como o facto de ser um dos pontos mais abrigados em toda a costa alentejana (CMS). São estes alguns dos aspetos que se começam a fazer notar ao longo do tempo e que fazem Sines crescer exponencialmente ao longo dos anos. Como aldeia piscatória desde sempre, Sines sempre teve uma forte ligação comercial com o interior alentejano por esta ser a zona que vendia o peixe para as terras mais afastadas do mar. Estes percursos dos meios de transporte tornaram-se importantes na crescente economia da cidade e acabam por ter influência na definição das vias principais da cidade. Atualmente, Sines é um dos maiores portos de águas profundas da Europa o que implica uma grande movimentação de transportes junto da cidade que influencia imenso o habitar da mesma. Apesar de tudo, Sines continua intocável no topo da falésia e as pessoas continuam a habitar o seu espaço público e praias.

2.2 A sintaxe espacial: Entidades e medidas espaciais A sintaxe espacial surge nos anos setenta numa série de artigos escritos por Bill Hillier que, em 1984, juntamente com Julienne Hanson e colegas, é compilada no primeiro livro sobre a teoria: The Social Logic of Space, desenvolvido na Universidade de Londres na Bartlett School of Graduate Studies. A sintaxe espacial é um método que descreve e analisa as relações entre espaços urbanos e edifícios (Klarqvist, 1993). Permite a representação, descrição, quantificação e interpretação da configuração espacial de agregados urbanos e edifícios (Campos, 2000) e permite-nos relacionar a forma espacial com certos comportamentos sociais. Num agregado urbano, os espaços entre edifícios são considerados vazios que têm “arquitectura” própria (Al_Sayed, 2014) e que se relacionam entre si unindo-se num espaço contínuo – ruas, praças, etc. – que é lido como um todo.

2.2.1. Entidades espaciais A sintaxe espacial tem diversas entidades espaciais que são escolhidas consoante o caso de estudo. Neste trabalho foram escolhidas três medidas consideradas pertinentes: Linhas axiais: a linha mais longa possível num espaço que seja possível seguir a pé (Klarqvist, 1993).

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2.2.2. Técnicas de análise Aplicando cada entidade espacial a um edifício ou agregado urbano, estas vão-se multiplicar e juntas formam diferentes mapas de análises sintáticas: Mapa axial: conjunto da menor quantidade das linhas axiais mais longas num sistema. Atravessam o maior número de espaços convexos possíveis. Mapa de Segmentos: são mapas construídos através de mapas axiais. As linhas axiais são “quebradas” em segmentos que são definidos entre dois pontos de interseção (Al_Sayed, 2014). Este tipo de mapa permite ter, além de medidas topológicas, medidas métricas e angulares.

2.2.3. Medidas sintáticas Para cada mapa referido anteriormente, é possível calcular um conjunto de medidas sintáticas que resultam de fórmulas matemáticas criadas por Hillier na sintaxe espacial que nos permitem ter uma leitura mais rápida e directa do espaço. Conectividade: mede o número de linhas (axiais) ou espaços ligados directamente uns aos outros. Integração: calcula a distância a que um espaço se encontra de todos os outros (Hillier, 1984). Pode ser calculada a nível global e local, sendo que o último é mais aplicado em estudos urbanos. A integração local varia conforme o tipo de mapa em que é calculada, no caso dos mapas axiais é calculada em passos de distância (R2, R3 e R5) e nos mapas de segmentos é calculada em metros (R200, R400, R800). Inteligibilidade: é a correlação entre a conectividade e integração. Um sistema inteligível é facilmente perceptível de todas as suas partes (Arruda, 2000). Um valor de correlação superior a 0.5 significa que se tem um espaço altamente inteligível. Núcleo Integrador: é a redução dos mapas de análise aos 10%, 25% ou 50% espaços ou linhas mais integradas. Choice: é geralmente aplicada nos mapas de segmentos. Define a rede viária estruturante de uma cidade, realçando os principais acessos à mesma.

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Metric Mean Depth: aplicada também em mapas de segmentos, esta medida permite identificar malhas homogéneas existentes no interior das cidades identificando assim possíveis bairros desenvolvidos. Estas medidas são apresentadas em gradações de cor onde o vermelho são os valores mais elevados e o azul os mais reduzidos.

3. Análise Configuracional

Para uma análise completa e coerente da cidade de Sines foram desenhados os mapas axiais de toda a cartografia histórica cedida pela Camâra Municipal de Sines, tendo por base o mapa axial actual, de forma a também ajudar a combater diversos problemas de distorção que estas cartas antigas naturalmente apresentam. Com base nestes mapas axiais e com a utilização do softaware de análise Depthmap, foram criados mapas de segmentos para que as mesmas medidas sintáticas possam ser comparadas entre as diferentes análises gráficas. Por fim, é feito um estudo aproximado do centro histórico. Por a sintaxe espacial ser um método que pode prever o comportamento humano baseando-se nas formas espaciais e porque o centro histórico tem uma escala humana confortável e é o agregado urbano mais antigo da cidade, foi considerado pertinente analisar mais aproximadamente o funcionamento social destes espaços. São primeiramente apresentados os mapas axiais resultantes da cartografia disponível, ainda sem medidas sintáticas calculadas. A elaboração destes foi feita tendo sempre como base no mapa axial actual, o qual foi o primeiro a ser desenhado, para poder corrigir ao máximo problemas de distorção das cartas antigas bem como ter uma base coerente em todos visto o primeiro agregado urbano junto ao Castelo ter permanecido sempre igual.

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1621

1781

1953

1971

2016 Figura 1. Levantamento da cartografia histórica de Sines até à actualidade. Representação de linhas axiais sobre os mapas apresentados, resultante em mapas axiais, ainda sem análises calculadas. PNUM 2016 624

3.1. Análise Axial Utilizando os mapas axiais desenhados manualmente, foram calculadas as análises que resultaram nos mapas apresentados na tabela seguinte que variando conforme três medidas sintáticas distintas.

Conectividade

Integração R3

Núcleo Integrador 10%

1621

1781

1953

1971

2016

Figura 2. Com a utilização do software Depthmap 10, foram calculadas diversas medidas sintáticas, das quais foram retiradas três consideradas de maior importância tendo em conta o caso de estudo: conectividade, integração local R3 e o núcleo integrador com uma redução para os 10% de curvas mais integradas em todo o sistema. PNUM 2016 625

4. Análise de Segmentos Utilizando os mapas axiais apresentados anteriormente, foram criados mapas de segmentos onde foi tida em conta uma redução de linhas a 25%.

4.1. Análise Foreground

000m

000m

T024 Choice R200

1000m

T024 Choice R1000

T024 Choice R600

T024 Choice

Figura 3. Análises da estrutura foreground de Sines que evidenciam a vermelho a rede viária de maior importância no sistema. Esta análise é resultante da medida sintática T1024 Choice, que faz uma análise métrica ao sistema, sendo por isso calculada em distâncias com intervalos em metros, variando conforme a dimensão do caso em estudo.

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Discussão de resultados e conclusões Os mapas axiais mostram uma variação lógica na medida da integração global por a mesma se deslocar para norte consoante o crescimento da cidade. A localização das que se podem considerar as principais ruas da cidade encontra-se sempre no seu centro geométrico. O cálculo do núcleo integrador destes mapas salienta essa localização e a força dessas mesmas linhas. A integração local R3 – a três passos de distância – começa a mostrar resultados quando o crescimento da cidade é significativo e salientam-se a vermelho os centros dos bairros criados. Apesar do grande crescimento, o centro histórico mantém-se com as duas principais ruas bastante integradas. A inteligibilidade é uma medida que vai naturalmente diminuindo o seu valor conforme o aumento do tamanho do sistema. Os mapas de segmentos que são criados a partir dos mapas axiais e os resultados das diferentes medidas sintáticas são equivalentes quando comparados com os dos mapas axiais. A utilização de segmentos na análise dá-nos uma nova medida sintática, choice. Relacionando os resultados da choice com a integração é interessante notar que as ruas mais integradas do sistema são também as ruas com a maior probabilidade de as pessoas passarem. No cruzamento da integração entre mapas axiais e de segmentos com a medida da integração não existem diferenças significativas de resultados. Em relação à integração local, que foi calculada a 400 metros de distância, existe uma grande discrepância nos resultados de um mapa para o outro. Enquanto que no mapa axial são dadas as linhas mais integradas de cada bairro, no mapa de segmentos é possível observar onde se encontra o atual centro de Sines – que acaba por se manter junto ao castelo, na zona mais antiga da cidade. A perceção da diferença entre estes resultados é importante aquando a escolha da técnica de análise a ser utilizada, que deve ser feita consoante a informação que se quer retirar para o projeto a realizar. Neste caso, caso o objetivo fosse perceber onde se situam os principais bairros, seria utilizado o mapa axial mas se fosse um estudo sobre a evolução da centralidade de Sines, a melhor técnica seria o mapa de segmentos. A sintaxe espacial tem a capacidade de prever o comportamento humano baseando-se na forma do espaço e, a medida da integração poderá indicar os sítios onde mais as pessoas se poderão dirigir. A ideia de como a integração se distribui por um sistema quando o alteramos pode influenciar fortemente as decisões de projeto. Os resultados permitem comprovar a importância da utilização da sintaxe espacial em projetos de arquitetos e urbanistas pois ajuda a dar a perceção de como irá ser utilizado o espaço pelas pessoas ao qual este está direcionado.

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Bibliografia Al_Sayed K, Turner A, Hilllier B, Ilda S, Penn A (2014) Space syntax methodology, Bartlett School of Architecture, Universidade de Londres, Londres. Benedikt M (s.d.) To take hold of space: Isovists amd Isovists Fields. Environment and Planning B Camâra Municipal de Sines (s.d.) Visitar: Sines e Porto Covo, Câmara Municipal de Sines, Sines. Campos, M B (2000) Urban public spaces: A study of the relation between spatial configuracion and use patterns, Universidade de Londres, Londres. Carmona M, Tiesdell S, Heath T (2003) Public places, Urban spaces: The dimensions of urban design, Architectural Press, Oxford. Hillier B (1999) Centrality as a process: accounting for attraction inequalities in deformed grids, Bartlett School of Architecture, Universidade de Londres, Londres. Hillier B (2007) Space is the machine,Cambridge University Press, Cambridge. Hillier B, Hanson J (1993) The social logic of space, Cambridge University Press, Cambridge. Hillier B, Hanson J, Peponis J (1987) Syntatic analysis of settlements, Bartlett School of Architecture, Universidade de Londres, Londres. Karimi K (2012) A configurational approach to analytical urban design: ‘Space syntax’ methodology, Bartlett School of Architecture, Universidade de Londres, Londres. Klarqvist B (1993) A space syntax glossary, Nordisk Arkitekturforskning. Medeiros V (2006) Urbis Brasiliae ou sobre cidades do Brasil, Universidade de Brasília, Brasil. Ozgece N, Edgu E (2013) Syntactic comparison of Cyprus port cities: Famagusta and Limassol, Cyprus International University, Cyprus. Turner A (2004) DepthMap4: A Researcher’s Handbook, UCL UCL,

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Syntax

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Space

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Consultado

em

28/Dezembro/2015.

Website:



Contributo da sintaxe espacial para uma metodologia de reconstrução virtual do património arquitetónico O sítio da Esperança como caso de estudo Ana Gil, Ana Tomé CERIS, DECivil, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa Avenida Rovisco Pais, 1, 1049-001 Lisboa, Telefone: 00 351 218418345 [email protected], [email protected]

Resumo O património gera valores com os quais uma comunidade se identifica e a sua memória tem um papel fundamental para a preservação e salvaguarda do património, através da educação, investigação, ciência e turismo. O desenvolvimento das ferramentas digitais ocorrido nos últimos anos veio permitir a implementação de técnicas de levantamento aperfeiçoadas e de novas formas de documentação, gestão, manutenção e divulgação do património cultural, e em particular do património arquitetónico (Brusaporci, 2015). Tal facto possibilitou uma maior comunicação entre pares e em especial uma maior divulgação, interativa e dinâmica, de conteúdos patrimoniais ao público em geral. Paralelamente a troca de informação entre especialistas de diferentes áreas foi facilitada pelos progressos no âmbito das novas tecnologias dos Sistemas de Informação Geográfica (SIG). A qualidade e disponibilidade crescentes de dados georreferenciados potenciaram estudos da morfologia urbana (Oliveira et al. 2015, 98) e partilha de conhecimentos. As novas ferramentas digitais vieram permitir estudos integrados da escala do edifício à escala da cidade, num trabalho pluridisciplinar só possível pela interoperabilidade tanto de especialistas como de softwares. No seguimento destes desenvolvimentos, a presente comunicação pretende apresentar a inclusão de um método quantitativo de análise da forma urbana – Sintaxe Espacial (Hillier e Hanson, 1984) – numa metodologia científica de reconstrução virtual de património arquitetónico, a qual tem por base a Carta de Londres e os Princípios de Sevilha. A metodologia cíclica desenvolvida permite elaborar modelos digitais com geometria associativa e paramétrica – modelos BIM (Building Information Modelling). Estes modelos evoluem conjuntamente com as fases de investigação e com o próprio ciclo de vida dos objetos representados, possibilitando o seu estudo, conservação e divulgação. Por outro lado, o modelo sintático permite compreender as relações de centralidade do sistema urbano e o modo como estas se estruturam e evoluem com a transformação da forma da cidade. Deste modo, tendo por base a nova ferramenta Space Syntax Toolkit – plug-in para QGIS (Gil et al. 2015) – pretende-se analisar as valências de um estudo integrado à escala da cidade e a interoperabilidade com a metodologia científica enunciada. Como caso de estudo, seleccionou-se o sítio da Esperança (antigo convento de Nossa Senhora da Piedade da Esperança de Lisboa e sua cerca), local representativo das alterações sofridas pelas casas religiosas de Lisboa após extinção em 1834, vasto património que marcou e ainda marca a imagem da cidade. A análise configuracional revelou como a absorção da cerca conventual pela cidade incrementou a centralidade do sistema urbano.

Palavras-chave Património digital, reconstrução virtual, BIM, SIG, sintaxe espacial. PNUM 2016 629





Introdução Any project involving the use of new technologies, linked to computer-based visualization in the field of archaeological heritage, whether for research, documentation, conservation or dissemination, must be supported by a team of professionals from different branches of knowledge. (SEAV, 2012)

O propósito do presente trabalho é expor a interdisciplinaridade existente na reconstrução virtual de património arquitetónico e a evidente relevância da interoperabilidade em todo o processo. Para a elaboração de reconstruções virtuais de património, é indispensável executar um estudo da macroescala à microescala, não só pela análise em si do elemento construído e da sua propriedade, como de toda a área de envolvente próxima e respetivas dinâmicas urbanas associadas. O trabalho à escala da cidade é cada vez mais pluridisciplinar e o número de especialistas aumenta significativamente quando se pretende chegar à escala do edifício. Devido aos avanço tecnológico, dos últimos trinta anos, foi possível suprir as dificuldades de comunicação entre especialistas, onde a interdisciplinaridade deu lugar à interoperabilidade, tendo as relações entre técnicos ficado facilitadas pelas relações entre softwares. Neste sentido, com a reconstrução virtual do sítio da Esperança, tendo como princípio a integração de análise espacial na metodologia cíclica desenvolvida1 (Figura 1), por via do plug-in Space Syntax Toolkit para QGIS, pretende-se:

- Demostrar que o processo de reconstrução virtual de património é um trabalho pluridisciplinar; - Evidenciar o papel da interoperabilidade em todo o processo, nomeadamente a troca de dados entre diferentes especialidades; - Evidenciar a importância da utilização de processo BIM em reconstruções virtuais de património arquitetónico; - Validar a integração da análise de sintaxe espacial na metodologia de trabalho utilizada; - Identificar a mais-valia da utilização da análise espacial em trabalhos de reconstrução e património arquitectónico. Para atingir os referidos objetivos, utiliza-se como caso de estudo o sítio da Esperança2, convento e cerca do antigo convento de Nossa Senhora da Piedade da Esperança de Lisboa, que sofreu grandes alterações após a extinção das ordens religiosas em 1834. Com esta base desenvolveu-se um estudo



A metodologia apresentada é um desenvolvimento da metodologia elaborada em tese de mestrado Modelos Digitais – Geometria Associativa: Particularidade da musealização de monumentos em extensão. O Aqueduto das Águas Livres como caso de Estudo. E posteriormente corrigida no âmbito do estágio profissional para a Ordem dos Arquitetos e do projecto de investigação LxConventos: da Cidade Sacra à Cidade Laica. A extinção das ordens religiosas e as dinâmicas de transformação urbana na Lisboa do século XIX (PTDC/CPC-HAT/4703/2012). 2 O presente caso de estudo faz parte de um estudo mais alargado que teve como princípio o projeto LxConventos e continuado em tese de doutoramento “BIM e o Património Arquitetónico. Um reencontro com os Conventos de Lisboa através de realidade aumentada móvel”. 1



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exploratório, local e global, sobre o impacto da extinção deste convento na malha urbana da cidade de Lisboa.



Figura 1. Metodologia desenvolvida para a elaboração de reconstruções virtuais de património arquitetónico e respectiva incorporação da sintaxe espacial por via do plug-in Space Syntax Toolkit para QGIS.

O artigo está organizado em quatro partes. Na primeira é feita uma contextualização do trabalho em termos das tendências internacionais, na segunda é apresentada a metodologia de trabalho utilizada e o modo de inclusão da sintaxe espacial. Na terceira é apresentado o caso de estudo bem como a análise sintaxe espacial efectuada para complementar a análise da evolução urbana. Por fim, são expostas as conclusões e os desenvolvimentos futuros. Contexto “A 3D model is a form of visualization. Across all branches of knowledge today, scientists have found that next to logical and quantitative analysis, visualization is a powerful tool for understanding and discovery.” (Frischer, 2008, 3) A evolução tecnológica dos últimos 30 anos, nomeadamente das TIC (Tecnologias da informação e comunicação) aliadas ao novo meio de comunicação por excelência, a World Wide Web, levou ao reconhecimento dos modelos tridimensionais como forma de documentação científica do património material. Tal facto é evidenciado pela primeira carta dedicada a um novo tipo de património, o património



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digital, com a UNESCO em 2003 – Carta para a preservação do património digital. À qual se seguem a Carta de Londres (carta para a visualização computorizada do Património Cultural) em 2009, e os Princípios de Sevilha (princípios internacionais para a Arqueologia Virtual) em 2012. Estas cartas vêm definir os princípios fundamentais para a representação digital de património de modo científico, no que respeita a documentação, estudo, divulgação e conservação deste. Paralelamente associadas a esta definição de novos conceitos e de novas preocupações patrimoniais, as ferramentas de visualização computacional evoluíram onde os iniciais softwares de representação, conhecidos por CAD (Computer-Aided Design), deram lugar a ferramentas BIM (Eastman et al. 2011), passando os modelos produzidos de simples nurbs a modelos tridimensionais paramétricos com bases de dados associadas através de um trabalho pluridisciplinar, interoperável e colaborativo. Deste modo, as Humanidades (História, Arqueologia e Arquitetura) tiveram a possibilidade de ampliar o estudo e divulgação do património, através da introdução de modelos tridimensionais digitais como principal forma de visualização. Por sua vez, esta apropriação de ferramentas da indústria AEC (Arquitetura, Engenharia e Construção) deu origem ao HBIM (historical building information modelling), como uma particularidade do BIM associada aos edifícios históricos, na tentativa de automatizar a reprodução de canons arquitectónicos (Murphy et al. 2011). De modo geral, o BIM veio oferecer novas formas de gestão do conhecimento relativo ao património arquitetónico no que respeita à sua documentação, conservação, manutenção (Fai et al. 2013) e divulgação, potenciadas pela criação de bibliotecas de elementos arquitetónicos históricos e pela facilidade de integrar métodos de levantamento por fotogrametria e laser scanning (Santagati et al. 2005) (Garagnani et al. 2013). Paralelamente, este novo método de trabalho veio potencializar a interoperabilidade e o trabalho colaborativo, permitindo integrar diferentes análises e estudos e facilmente alternar da microescala para a macroescala numa relação direta com ferramentas SIG. Estas, caracterizadas pelas suas bases de dados georreferenciadas, desempenham um papel fundamental ao nível dos estudos urbanos, os quais foram potenciados pela inclusão em ambiente SIG de uma ferramenta, recentemente desenvolvida, vocacionada para a análise da forma urbana – Space Sintaxe Toolkit para QGIS. Assim, esta simples incorporação permitiu, por um lado, potencializar as técnicas correntes de análise espacial que utilizam o Depthmap como ferramenta base, pela possibilidade de utilizar dados SIG nos seus cálculos e, por outro lado, aumentar o leque de estudo dos utilizadores SIG, pelo manuseamento direto desta nova ferramenta. Estende-se, assim, as análises espaciais a novos usuários, de forma fácil, intuitiva e sem necessidade de conversões de ficheiros (Gil et al. 2015).



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Uma metodologia cíclica de reconstrução digital de património arquitetónico A metodologia A presente metodologia destina-se à reconstrução digital de património arquitetónico, podendo ser aplicada ao estudo, divulgação ou conservação deste. Nesse sentido rege-se pela Carta de Londres e, de formas adaptada ao património arquitetónico, pelos Princípios de Sevilha. Através dos modelos elaborados gerados pela presente metodologia, pretende-se: - Permitir que sejam efetuadas correções a estes sem terem de ser refeitos parcialmente ou totalmente, podendo estes evoluir com a investigação sobre o edifício em questão, independentemente do seu estado de conservação; - Obter resultados científicos, isto é, rigorosos e bem documentados, tendo por base fontes fidedignas; - Permitir que exista informação técnica e referências históricas associadas a estes; - Potenciar a relação direta entre os técnicos que entram no processo e a interoperabilidade entre os seus softwares; - Divulgar os elementos arquitetónicos de forma clara e acessível, ao público em geral; Para tal, a metodologia tem carácter cíclico e destaca-se por ser interoperável, interdisciplinar e colaborativa, gerando modelos digitais com geometria associativa e paramétrica, modelos BIM, através de um processo com três etapas principais: obtenção de dados, tratamento de dados e comunicação de dados. A obtenção dos dados corresponde a fase inicial onde se tenta reunir o máximo de informação possível sobre o elemento arquitetónico a representar. Esta é composta pela investigação em si e pelo levantamento. A investigação consiste, junto de arquivos digitais e bibliotecas, na pesquisa e recolha de documentos escritos, fotografias antigas, iconografia, cartografia e plantas. O levantamento consiste num um trabalho de campo relativo à verificação do atual estado de conservação do edifício. Na presença de estruturas conventuais visíveis é efetuado o respetivo levantamento arquitetónico e fotográfico. Este pode ser por métodos diretos, medição manual (com auxílio de fita métrica e distanciómetro), e/ou indiretos, com recursos a laser scanner e fotogrametria. A interpretação e tratamento de dados correspondem a uma fase intermédia que permite elaborar trabalhos relevantes para a compreensão final do conjunto arquitetónico, tanto à macroescala como à microescala, e sua consequente reconstrução virtual. À macroescala temos uma análise à escala da cidade com georreferenciação, e com evolução cartográfica, que nos permite obter a correta localização do elemento arquitetónico e envolvente próxima e sua evolução ao longo do tempo. Por sua vez, à microescala temos uma análise à escala do edifício com a sistematização de regras arquitetónicas e com a evolução arquitetónica.



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Por fim, a fase de comunicação dos dados é composta pela modelação e pela visualização. A modelação tem por base ferramentas BIM, para corresponder aos objectivos enunciados, como anteriormente referido. A visualização, por sua vez, consiste na utilização dos modelos de forma a se adaptarem às exigências de determinados resultados finais pretendidos, tanto para técnicos como para o público em geral. Como formas de visualização para técnicos disponibilizam-se directamente os resultados do software de modelação ou plataformas/aplicações para tal efeito e para o público em geral, técnico ou não técnico, serão mais acessíveis vídeos, imagens, PDF 3D e formas de realidade aumentada. A inclusão da sintaxe espacial Como referido, pretende-se que a respetiva metodologia seja interoperável, entre softwares, ao ponto de permitir a interdisciplinaridade existente entre os diferentes técnicos. Deste modo a utilização da ferramenta Space Sintaxe Toolkit para QGIS, vem permitir a incorporação da análise configuracional do espaço urbano na fase de interpretação e tratamento de dados complementando a análise usualmente realizada à macroescala. Neste sentido, em ambiente GIS, no QGIS, tendo por base a informação existente nesta etapa do trabalho (cartografia antiga georreferenciada e a planimetria da cidade, com respetivo edificado vias e eixos de via) é possível sobrepor a layer correspondente às análises da estrutura axial do espaço (recorrendo a mapas axiais e mapas de segmentos), para melhor compreender as alterações urbanas ocorridas na zona em estudo para o limite temporal selecionado respeitantes aos grandes eixos de acessibilidade física e visual reguladores do sistema espacial urbano. Como um dos objetivos principais da inclusão destas análises na presente metodologia é validá-la através da sua aplicação a um caso de estudo, optou-se por utilizar o mapa que mais se adequada à representação do espaço urbano e às medidas mais comummente aplicadas na análise de configurações urbanas (Heitor e Pinelo, 2015, 160). Nesse sentido, optou-se por fazer um mapa de segmentos tendo como medidas de análise: a integração com raio=N, para uma análise à escala global; e a escolha com raio=400m (correspondente 5 minutos a pé), para uma análise à escala local. Para a elaboração do mapa de segmentos utilizaram-se os eixos de via existentes como substitutos dos segmentos, dada a sua similaridade (Heitor e Pinelo, 2015, 156), permitindo acelerar o processo de representação da zona em estudo. Contudo note-se que é sempre possível desenhar as linhas diretamente em ambiente QGIS através da criação de uma nova layer de linhas (Gil et al. 2015). Na utilização dos eixos de via apenas se deve atender à obrigatoriedade de não recorrer a polilinhas para descrever os eixos, uma vez que o DepthmapX não reconhece esses elementos. Deste modo, é necessário converter as polilinhas existentes em linhas individuais, verificar a existência de erros e seguidamente proceder à análise de segmentos desejada: integração e escolha.



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O Sitio da Esperança como caso de estudo O sítio da Esperança O convento da Esperança e sua cerca, designados por Sítio da Esperança, são representativos do que se sucedeu na imagem da cidade de Lisboa após a extinção das ordens religiosas por decreto de 30 de Maio de 1834. O convento situava-se em zona urbana da cidade, rodeado por outros conventos. A poente tinha o convento das Inglesinhas e a norte o das Francesinhas e o de São Bento, a nascente definia um dos principais eixos de entrada na cidade para norte, e a sul possuía a entrada principal e o adro da igreja onde no largo exterior, Largo da Esperança, existia o chafariz da Esperança que abastecia toda aquela zona (Gama 2015) (Figura 2).

Figura 2. Parte da cerca e entrada da Igreja do convento da Esperança. No Largo da Esperança, em frente ao chafariz, barracas de venda, ovarinas conversando e aguadeiros no seu ritual do século XIX (esq). Cerca do convento da Esperança, Convento das Francesinhas à esquerda e zona de S. Bento à direita (dir) (fonte: Lisboa Velha de Roque Gameiro e aguarela atribuída a Lewiki)

Atualmente o local em estudo corresponde ao Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa e aos quarteirões que se encontram a norte e a este deste, tendo a sua cerca sido dividida em três, pela abertura da Avenida d Carlos I e da Rua dos Industriais (Figura 3). Para estudar o impacto da extinção deste convento, em particular, e da consequente urbanização da sua cerca, temporalmente, foram escolhidas duas datas para comprar, 1834 (data da extinção) e 2015 (data do projeto de investigação). Espacialmente, foi delimitada uma área que teve em conta os principais limites da zona em 1834,com base na planta de Filipe Folque de 1856, e correspondente área em 2015, com base nos atuais eixos de via da cartografia da cidade de Lisboa (Figura 4).



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Figura 3. Cerca do convento da Esperança à data da extinção (esq) e respetiva marcação sobre cartografia atual (dir).



Figura 4. Delimitação da área em análise juntamente com a marcação do Sitio da Esperança, sobre planimetria atual da cidade de Lisboa.



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Para uma descrição sintática do sítio da Esperança A aplicação modelo sintático à escala da cidade pretende contribuir para um melhor entendimento da evolução urbana da área em estudo e dos impactos da extinção das ordens religiosas na imagem da cidade de Lisboa (Figura 5).

1834

2015

Figura 5. Mapa de segmentos da zona em estudo: integração com raio N (cima) e escolha com raio 400m (baixo). Localização da antiga cerca assinalada pelo círculo negro.

No que respeita a escala global é possível comparar os dois mapas, 1834 e 2015, e depreender que a apropriação da cerca da Esperança pela cidade permitiu o aumento da integração de toda esta zona, destacando-se dois centros: o Largo do Rato e a Praça da Estrela. Foi reforçada a relação da frente ribeirinha com este novo eixo norte-sul de entrada na cidade, Avenida D. Carlos I com a parte Norte da Rua de São Bento e surgiu um novo eixo para noroeste através da Avenida D. Carlos I com a Calçada da Estrela. Por sua vez, o estudo da variável escolha, para além de expor as vias mais utilizadas a nível global, já referidas, assinala também as mais utilizadas a nível local. Permite reconhecer que as alterações



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provocadas na área de estudo originaram a perda do original eixo norte-sul, Rua de São Bento na sua totalidade juntamente com o eixo Rua da Esperança e Rua Poço dos Negros, e reforçaram a utilização de eixos paralelos à zona ribeirinha tanto a norte (Calçada da Estrela com a Calçada do Combro) como a sul da antiga cerca (Rua das Janelas Verdes com Rua de Santos-o-Velho, Calçada Marques de Abrantes, Rua da Boa Vista e Rua de São Paulo). Conclusões e desenvolvimentos futuros “(…) those who analyse urban function cannot conceptualize design, while those who can conceptualize design guess about function.” (Hillier, 1996, 245) Com base no presente trabalho, foi possível constatar que o processo de reconstrução virtual de património é um trabalho pluridisciplinar, onde a interoperabilidade desempenha um papel fundamental para a troca de dados entre todos os técnicos envolvidos. Assim, a utilização de ferramentas BIM, com a possibilidade de incorporar dados desde a escala da cidade até à escala do edifico, numa relação directa com ferramentas SIG, é imprescindível para a obtenção dos resultados finais pretendidos – as reconstruções virtuais de património arquitetónico. Neste sentido, a possibilidade de efetuar análises em qualquer uma das fases da metodologia e, em especial de análises configuracionais através desta nova ferramenta (Space Syntax Toolkit – plug-in para QGIS), é de total pertinência pois torna-se um ótimo auxílio no estudo da evolução urbana na fase de interpretação e tratamento de dados, através de um processo totalmente interoperável com resultados locais e globais marcadamente visuais. Como desenvolvimentos futuros, pretende-se alargar o estudo do impacto da extinção das ordens religiosas a toda a cidade de Lisboa, tendo o sítio da Esperança servido como caso piloto. Paralelamente, à escala do edifício, um futuro desenvolvimento de plug-in DepthmapX para ferramentas BIM viria potencializar o estudo tipológicos dos conventos pertencentes a cada ordem religiosa, de forma integrada e interoperável na metodologia apresentada. Para concluir, é possível destacar o papel da Carta de Londres em todo este processo, assim como a necessidade de se desenvolverem princípios semelhantes aos Princípios de Sevilha, para orientar todas estas necessidades e preocupações específicas dos vários técnicos no que respeita à digitalização de património arquitetónico.



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Instrumentos cartográficos no acompanhamento das modificações do uso do solo e no controle dos impactos ambientais: influências no planejamento territorial do Distrito Federal – DF - Brasil.1 Marly Santos da Silva͒ Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPG-FAU; Universidade de Brasília – UnB; ICC Norte - Gleba A, Campus Universitário Darcy Ribeiro - Asa Norte - Caixa Postal 04431 Brasília – DF; (+55) 61- 9961-0847;͒[email protected]

Resumo O Distrito Federal - DF tem um histórico de análises espaciais voltadas a subsidiar o planejamento territorial. Por um bom tempo, utilizou-se de cartas e plantas cartográficas analógicas e, a partir da década de 1990, foram inseridas tecnologias e métodos digitais favorecendo as análises espaciais a partir do uso de processamento de dados e o acompanhamento das mudanças de modo mais rápido e preciso. O Sistemas de Informação Geográfica – SIG, tornouse ferramenta didática em pesquisas acadêmicas, bem como instrumento fundamental de empresas e órgãos do governo do DF nas áreas de estudos topográficos, sócioespaciais e ambientais. O uso do SIG favorece as análises espaciais por permitirem maior precisão do plano real, agilidade e facilidade na atualização e correção das informações espacializadas cartograficamente. O presente artigo traz uma reflexão acerca das formas de análise espacial cartográfica a partir dos relatórios e planos de ordenamento territorial elaborados no DF, tendo como pontos de observação o tratamento dado ao uso e ocupação do solo e a questão ambiental. A pergunta de partida foi se a análise espacial utilizada contribuiu, de fato, para o planejamento e ordenamento do território dessa Capital. Para tanto foi estabelecida uma demarcação cronológica da espacialização das informações com o uso de representações cartográficas analógicas e da cartografia digital, a partir de uma retrospectiva histórica. Realizou-se, ainda, análise das formas de participação dos atores diretamente envolvidos nessas espacializações: a Universidade de Brasília, as empresas consultoras e o Governo do Distrito Federal, sendo estes ligados, direta ou indiretamente, ao processo de planejamento. Dentre as constatações verificadas observou-se que as análises espaciais realizadas no DF, seja pela cartografia analógica seja pela cartografia digital, são fundamentais para o planejamento e a gestão desse território. Entretanto, isto não foi o suficiente para evitar repetições de situações recorrentes na história do país: urbanização fora do planejamento proposto, danos ambientais, irregularidades fundiárias e suas consequências tanto para o meio físico quanto para a sociedade.

Palavras chaves: Análise espacial, Planejamento Territorial, Sistemas de Informação Geográfica - SIG.

A apresentação desse artigo no PNUM 2016 - Conferência da Rede Lusófona de Morfologia Urbana, contou com o apoio financeiro da Fundação de Apoio a Pesquisa do Distrito Federal – FAP-DF, para a qual fica o agradecimento.

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1. INTRODUÇÃO

No Brasil, a partir da década de 1990, a difusão dos sistemas de processamento de dados cartográficos, conhecido como Sistema de Informação Geográfica - SIG, deu inicio a um novo período para as análises e avaliações espaciais. Na área do planejamento urbano regional e territorial, a entrada de novas tecnologias favoreceu ao acompanhamento aprimorado dos usos e ocupação do solo, bem como do controle dos impactos ambientais. Frente a afirmativa, considerando o Distrito Federal do Brasil, questiona-se: as análises espaciais com uso de instrumentos cartográficos permitiram o controle do uso e ocupação do solo e contribuíram com a proteção de áreas ambientais presentes em todo o seu território?

O questionamento vem do interesse em refletir sobre os processos de análise espacial gerados na Capital Federal ao longo de vários estudos e planos de ordenamento do território com vistas, principalmente, a preservar mananciais e a direcionar as melhores formas de uso e ocupação do solo, regulando o controle do uso da terra. Por outro lado, as ações de gestão muitas vezes incorrem em distorções na aplicação do planejamento e isto pode ser constatado nas cidades e pelo que nela foi estudado. Com o advento das análises cartográficas processadas em computadores essas distorções ficaram mais rápidas de serem evidenciadas. Isto contribuiu com o planejamento e a gestão do DF?

Frente ao exposto, o artigo objetiva refletir acerca das formas de análises cartográficas utilizadas nos relatórios e planos de ordenamento do território do DF, tendo como pontos de observação o tratamento dado ao uso e ocupação do solo e a questão ambiental; com isto buscou-se perceber se as orientações dos planos foram “obedecidas” no exercício da gestão.

Para construção textual foram utilizados levantamentos bibliográficos e pesquisas em sítios eletrônicos para coleta de informações em empresas especializadas em estudos ambientais e do Governo do Distrito Federal – GDF, e imagens que permitiram ilustrar o conteúdo exposto.

O artigo tem cinco partes, sendo a primeira esta introdução. A segunda apresenta esclarecimentos conceituais sobre o processamento de dados cartográficos. A terceira traz a abordagem de alguns relatórios prévios e planos de ordenamento territorial depois de inaugurada a Capital Federal expondo, na medida do possível, exemplos dos materiais produzido nas análises. A quarta parte aponta alguns atores diretamente ligados à análise do espaço do DF (Governo do Distrito Federal, empresas de consultorias e Universidades) e como têm utilizado o processamento de dados cartográficos. A quinta e última parte são as considerações finais que responde à pergunta de inquietação colocada nesta introdução.

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2. CARTOGRAFIA ANALÓGICA, CARTOGRAFIA DIGITAL E O USO NO PLANEJAMENTO

A cartografia2 é um conhecimento antiguíssimo voltado ao conhecimento do espaço e agregou poder e dominação aos seus possuidores. Dos primórdios até a Revolução Industrial, ajustou-se a conhecimentos técnico-científicos fundamentais na produção de cartas e instrumentos para precisão daquilo que seria representado. Trabalhou-se em medição das longitudes, nos sistemas de projeção, em expedições geodésicas.

Por longo tempo, o processamento das informações cartográficas eram analógicas e exigiam longos períodos de buscas por informações em campo, com profissionais especializados (geógrafos, astrônomos e cartógrafos). Com os aviões foi inserida a aerofotogrametria, método que levou a obtenção de dados topográficos a partir de fotografias aéreas, facilitando o mapeamento de dadas áreas.

Na contemporaneidade, a junção entre ciência cartográfica e a ciência da informação gráfica e computadorizada inseriu recursos técnico/metodológicos: imagens orbitais, sistemas de posicionamento por satélites, modelos matemáticos para armazenamento de dados e o desenvolvimento de softwares para uso em computadores de grande porte e pessoais. Tais mudanças democratizaram a cartografia.

No Brasil o investimento adequado em tecnologias de ponta na cartografia foi tardio - a partir do final da Segunda Guerra Mundial. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (criado na década de 1940) e as Forças Armadas detiveram essa responsabilidade, cada um em suas escalas. De acordo com Mello (1995), embora o país demandasse uma política cartográfica associada a um planeamento territorial, regional e local com bases cartográficas, até 1990 eram desfasados, comprometendo ações diversas.

Foi o Sistema de Informações Geográficas (SIG) que permitiu, além de complexas análises, a criação de bancos de dados georreferenciados, dando automação a produção de documentos cartográficos3. Estas

O vocábulo Cartografia, foi criado no século XVII (1839), pelo historiador Visconde de Santarém, em carta dirigida ao historiador brasileiro Adolfo de Varnhagen. Antes disso, chamavam-na de cosmografia. Um conceito considerado completo foi dado no XX Congresso Internacional de Geografia (década de 1960), organizado pela Associação de Cartografia Internacional e utilizado pelo IBGE, sendo este: “um conjunto de estudos e operações científicas, artísticas e técnicas, baseado nos resultados de observações diretas ou de análise de documentação, com vistas à elaboração e preparação de cartas, projetos e outras formas de expressão, assim como a sua utilização” (BRASIL, 2012). 3 A evolução dos SIG ocorreu em três fases. A primeira pela manipulação e visualização de banco de dados (década de 1950) e o objetivo era armazenar, organizar, processar e visualizar dados. A segunda fase é de operação analítica de dados não gráficos e estruturas organizacionais, dado ao aumento da capacidade de processamento e memória dos computadores conduzindo a novos tipos de SIG. A terceira fase é a da análise espacial (década de 1980) com o uso comercial do SIG, realizando a combinação de atributos não geográficos voltados a análise espacial sobre dados georreferenciados (Cruz & Campos, 2005). 2

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mudanças envolveram, entre outros aspectos, a análise espacial de recursos naturais, transportes, comunicações, energia e do planejamento urbano e regional no país.

De acordo com Druck et all (2004) a análise espacial é composta por um conjunto de procedimentos encadeados, voltados à escolha de um modelo inferencial que tenha relacionamento espacial presente no fenômeno. Exige detalhado diagnóstico das áreas de interesse, envolvendo estudos de caracterização fisiográfica, biológica e humana do local ou região e ainda a inter-relação entre fatores. Tudo isto ganhou novos aportes a partir do SIG4, dada a capacidade de armazenamento e associação de informações ao espaço geográficos, favorecendo aos planejadores e tomadores de decisão, inclusive por permitir melhor compreensão dos problemas, apontando medidas mitigadoras e soluções mais rápidas, considerando vários fenômenos e explicando o resultado no espaço geográfico.

Diante do exposto, entende-se que o SIG aplicado à análise espacial é fundamental ao planejamento territorial, regional e urbano5, não sendo este um fim em si mesmo, mas em tudo o que pode favorecer a percepção e o melhor uso das potencialidades do meio, bem como a preservação e recuperação ambiental e o controle do uso do solo, entre outros pontos. A questão é que o planejamento, em seus diferentes âmbitos, não envolve apenas o conhecimento racional/metodológico, mas também o componente gestão, cuja visão político/ideológica, não raro, podem ser tendenciosos.

A gestão, a princípio, deveria colocar em prática o que foi diagnosticado, prognosticado e proposto nos planos, considerando a sociedade e suas necessidades, porém não é o que será visto no item seguinte que trata dos planos de ordenamentos realizados na Capital Federal do Brasil, valendo-se do uso da cartografia analógica e digital.

O SIG pode ser utilizado na análise espacial de pelo menos cinco formas principais: 1) Ocupação humana em diversos fins, a exemplo do cadastramento territorial urbano; mapeamento eleitoral, rede hospitalar, planejamento urbano etc.; 2) Uso da Terra: novamente planejamento urbano, mas também agropecuário, classificação de solos, mapeamento do uso da terra etc.; 3) Uso de Recursos Naturais com vistas ao controle do extrativismo vegetal e mineral, classificação de poços petrolíferos, distribuição de energia etc.; 4) Meio Ambiente, nos estudos de modificações climáticas, controle de queimadas, gerenciamento de florestas a partir do desmatamento e reflorestamento, controle de emissão e ação de poluentes etc.; e ainda 5) nas Atividades Econômicas: pesquisas socioeconômicas, planejamento de marketing, etc. (Oliveira (1997) apud Cruz & Campos, 2005). 5 Adota-se neste artigo um conceito de planejamento abrangente, qual seja: “um processo ou programa de ações, que tem por finalidade intervir numa situação, modificando-a, a fim de resolver um problema. A determinação da situação aspirada implica um ato valorativo, de fixação de metas (sociais) a alcançar. Esta resolução de problemas deveria ser alcançada racional ou metodicamente, através de uma cadeia de processos de busca e decisões. O resultado é um programa de ações considerando por nós como solução dos problemas (G. Kohlsdorf, apud Maria Elaine Kohl, 1976, revisado em 2002). Esta definição apresentada o planejamento como um processo ou programa de ações voltados à modificação ou resolução de problemas, aplicados ao espaço territorial e tudo o que nele está contido. Exige procedimentos para conhecimento aprofundado e instrumentos que permitam especializar este conhecimento do território antes da tomada de decisão propriamente dita e é quando entram análises espaciais. 4

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3. AS ANÁLISES ESPACIAIS E OS PLANOS DE ORDENAMENTO TERRITORIAL NO DISTRITO FEDERAL

As primeiras incursões por terras da futura capital do país se deu em duas ocasiões: 1892 e 1894. O Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil é o documento oficial dessas expedições, cujo objetivo era analisar e descrever a paisagem, indicando os quadriláteros possíveis para ocupação ou construção de sítios humanos possíveis, com plena satisfação em termos de recursos. Descreveram comparativamente os ecossistemas brasileiros, mas a preocupação ambiental tinha um sentido bastante antropocêntrico. A cartografia esteve presente nas cartas que trouxeram a comissão à região e permitiu novos apontamentos e registros cartográficos como o mapa que delimitou a futura Capital.

O segundo relatório foi o “Relatório Técnico sobre a Nova Capital da República”, conhecido como Relatório Belcher 6 . Durante o ano de 1953, essa expedição estudou detalhadamente os solos próprios para engenharia; a propensão ao surgimento de erosões e outros estudos de ordem geológica, hidrológica, agrícola e indicações de como deveria ser a pavimentação do aeroporto. Nestes estudos a preocupação com a preservação ambiental era intrínseca à necessidade de encontrar um terreno com condições adequadas para a construção da cidade, atentando para o abastecimento hídrico, principalmente. Essas análises foram subsidiadas e desenvolvidas em mapas (Figura 1).

Figura 1. Quadrilátero Cruls com Retângulo Belcher delimitando o sítio de construção da Nova Capital Federal; Fonte: Fischer, Trevisan, 2010.

Após os citados Relatórios, já inaugurada a Capital, na década de 1970, iniciou a elaboração de planos de ordenamento do território e para subsidiar as análises o Decreto nº 4.088 de 1977 estabeleceu uma base cartográfica georreferenciada denominada de Sistema de informações Cartográficas – SICAD. Uma base única de referência obrigatória para cartografia, topografia, demarcação, obras de engenharia, controle do O Relatório Belcher foi um estudo encomendado pelo então presidente da República Juscelino Kubitschek e realizado pela empresa norte-americana Donald J. Belcher Associates. 6

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uso do solo, entre outros. Foram realizados diversos levantamentos para formação do SICAD de 1958 a 2004. Os mapas de 1:10.000 foram disponibilizados digitalizados em 1991 e o de 1:200 em 1997.

O plano pioneiro foi o Plano Estrutural de Ordenamento Territorial do Distrito Federal (PEOT) de 1977, cujo objetivo do PEOT era encontrar diretrizes para nortear o crescimento do DF e orientar a sua ocupação humana, racionalizando o uso da solo, fortalecendo a estrutura interna da Capital, além de preservar Brasília como sede do poder administrativo do país. Propôs o crescimento e a conurbação de cidades para o lado da periferia sul do território da capital, favorecendo a inversão da polaridade centro/periferia, evitando a formação de invasões no centro da cidade ou no seu entorno. As principais ressalvas quanto a questão ambiental era sobre as áreas de mananciais, áreas de relevante valor paisagístico, proteção de matas ciliares e áreas de parques com valor científico.

Oito anos depois, em 1985, divulgou-se um rezoneamento para o DF proposto com base nas premissas apontadas pelo PEOT. O plano que trazia essa diretriz era o Plano de Ocupação Territorial (POT), criado como instrumento normativo de uso e ocupação do solo. Alguns problemas particulares na organização do território estavam acontecendo e precisavam ser reparados com urgência sob pena de se avolumarem ao longo dos anos e dizem respeito a ocupações de urbanas em áreas rurais, preservação ecológica, ameaça a deterioração de mananciais7.

Grande parte dos mapas presentes no POT8 são de estudos específicos, relativos a uso e ocupação do solo das cidades existentes naquele momento (Ceilândia, Taguatinga, Brazlândia etc.) e indicavam um bom conhecimento de campo para perceber e apontar todos os problemas enumerados.

A Figura 2 mostra o perímetro proposto para a projeção de Águas Claras, com áreas para parcelamento urbano e rural e a integração de ambos, tornando-a contígua a área urbana de Taguatinga com a área

Problemas levantados pelo POT foram, entre outros: a) a transformação indiscriminada e sem controle de terras rurais em urbanas, principalmente as não desapropriadas; b) a preservação e ampliação de algumas áreas de importância ecológica ambiental, como o Parque Nacional Águas Emendadas, Jardim Botânico, ameaçados por processos de invasões ou perda de áreas dada a inexistência de definição dos usos e do papel que devem cumprir; c) a ameaça de deterioração de mananciais disponíveis em especial as situadas nas bacias dos Rios São Bartolomeu e Descoberto, voltados ao abastecimento de água, também ameaçados pela densificação de atividades diversas; d) consolidar as propostas do PEOT e e) racionalizar e melhor articular as ações dos diversos agentes e instituições públicas que atuam no processo de organização do espaço do DF. 8 Depois do POT, surgiu o Plano de Ocupação e Uso do Solo (POUSO) de 1987 com a incumbência de rever o zoneamento idealizado no POT para proteção exclusiva de Brasília. Este plano não chegou a ser implantado, mas foi aproveitado no desenvolvido de uma revisão realizada por Lúcio Costa na mesma época, resultando em um estudo denominado de “Brasília Revisitada”. O “Brasília Revisitada” tratou entre outros assuntos, de abrir possibilidades à revisão do sistema viário e à ocupação de novas áreas com residências dentro do Plano Piloto e suas proximidades. Estes dois Planos estiveram vinculados a uma intenção maior: a indicação de Brasília com o planejamento urbano modernista de Lucio Costa para Patrimônio Histórico da Humanidade. Hoje este título dado pela UNESCO vem sendo ameaçado por mudanças que deturpam o seu projeto original. 7

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urbana de Brasília. 9 Porém, devido a trechos entre a Estrada Parque Contorno Taguatinga - EPCT, Estrutural, EPTG e Córrego Riacho Fundo não estarem desapropriados, decidiu-se excluir do limite definido pelo projeto a faixa rural não desapropriada. A exclusão dessa faixa continha colônias agrícolas que vieram a ser parceladas e “condominializadas”, certamente fruto do descaso do poder público frente as análises realizadas ou simplesmente a falta de tomada de decisão mais contundentes.

Figura 2. Mapa com proposta para o projeto Águas Claras retirando a faixa rural não desapropriada. Fonte: Plano Estrutural de Organização Territorial do DF - PEOT (1977).

Até esse momento, apesar do uso de uma cartografia analógica, as análises territoriais realizadas no DF, em três décadas, foram satisfatórias na detecção dos problemas espaciais existentes, e nos encaminhamentos, embora, as providências para frear as mudanças indesejadas: conflitos de interesses entre os agentes da produção espacial envolvidos, principalmente Estado, sociedade e agentes imobiliários, não foram satisfatórias.

No final dos anos de 1980 e início de 1990, novas formas de condução política foram estabelecidas no Distrito Federal e no Brasil: instaurou-se a democracia. Tal fato influenciou no processo de ocupação espacial da Capital. Utilizou-se às propostas apontadas nas análises espaciais dos planos de ordenamento citados, mas apenas naquilo que foi conveniente. Houve clara “flexibilização” na regulação do uso e ocupação do solo, ignorando muitos dos problemas apontados pelas analises apresentadas no POT.

Além do SICAD, a princípio com tratamentos sobretudo analógicos, em novembro de 1992, pela lei nº 353 e a lei nº 803 em abril de 2009 para a funcionar o Sistema de Informações Territoriais e Urbanas – SITURB,

Taguatinga foi uma das primeiras cidades criadas para abrigar trabalhadores antes da inauguração da Capital Federal, no final da década de 1950; fica cerca de 20/25km do Plano Piloto de Lúcio Costa. Aguas Claras tornou-se uma das cidades de Brasília. Situa-se em área pensada para ser a descentralização do Centro Administrativo localizado no Plano Piloto, algo que não se efetivou. Fica em área contígua a Taguatinga.

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com as informações relativas ao planejamento territorial e urbano do Distrito Federal, responsável pelo tratamento das análises espaciais do Plano Diretor de Ordenamento Territorial de 1992 em diante.

Os temas abordados com o uso desse sistema envolveram dados físicos/ambientais, circulação e transporte, equipamentos urbanos, uso do solo e hidrografia. Em tese, o SITURB é utilizado e alimentado por fontes de dados dos mais diferentes órgãos, e na medida do tempo foi consolidando o uso dos SIG no planejamento urbano e gestão no território da Capital Federal, indicando um novo momento da análise cartográfica na elaboração de planos e outros estudos, utilizando softwares.

Todavia, a versão preliminar do Plano Diretor de Ordenamento Territorial - PDOT de 1992 (o primeiro de um governo democrático) apresentou um diagnóstico com analise espacial e apresentação cartografia muito fracos. Praticamente desconsiderou-se a grave questão da ação de grileiros e a especulação imobiliária de áreas públicas e rurais no Distrito Federal, bem como o direto comprometimento de áreas ambientais. Não houve detalhamento dos problemas; não explorou o parcelamento de áreas rurais convertidas em áreas urbanas, clandestinamente ou ilegalmente.

O diagnóstico do PDOT, na versão consolidada, é de 1996 e virou a Lei Complementar 017 de 1997. O território do DF foi dividido em zonas urbanas, rurais e de conservação. Multiplicou-se as Unidades de Conservação, áreas de uso misto, controlado e restritivos, contudo, a obediência a estas delimitações e a fiscalização não existiram uniformemente. Grande parte das chamadas zonas rurais de dinamização e as de uso controlado foram tomadas por grileiros que parcelaram glebas convertendo-as em lotes urbanos, muitas delas cercadas e denominadas de condomínios. A gestão e a sociedade do DF entraram os anos de 1990 vendo, convivendo e aceitando pacificamente a formação da “cidade informal” (as áreas ditas clandestinas ou irregulares) ao lado da “cidade legal” com processo de degradação ambiental instalado.

O Plano Diretor de 1997 foi revisado em 2007 e uma versão saiu em 2009 e outra final em 201210. O território do DF mudou muito e o uso de SIG nos órgãos públicos do GDF difundiu-se. Inclusive, toda consultoria contratada para os estudos de uso do solo, estudo de tráfego, ambiental etc., tinha obrigatoriedade de uso de material cartográfico, incluindo SIG. Assim, o possiblidade de cruzamento de informações, permitindo a construção de mapas temáticos com uso de fotografias aéreas, de imagens de satélites e o tratamento dessas por meio digital revelava conflitos, facilitando a prognósticos, proposta de cenários (Figuras 3 e 4).

PDOT revisado em 2007 teve uma Lei Complementar nº 803 de 25 de abril de 2009 e depois a Lei Complementar nº 804 de 15 de outubro de 2012.

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Figura 3. Tratamento de imagem que mostra o uso do solo e da vegetação do Distrito Federal em 2001. Fonte: PDOT 2009

Figura 4. Mapa que mostra conflitos no uso e ocupação do solo sobrepostos no Macrozoneamento do PDOT 2009. Fonte: Relatório Técnico do PDOT 2009.

4. USO DE SIG EM ESTUDOS ACADÊMICOS, NAS EMPRESAS CONSULTORAS E PELO GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL – O QUE MUDOU?

A partir da década de 1990, os recursos cartográficos digitais avançaram consideravelmente. Novos satélites passaram a fornecer imagens com mais precisão, como o SPOT - Francês, em detrimento do americano Landsat. Novos softwares aplicados também surgiam como o IDRISE, um dos primeiros. O ArqInfo, Arq-View, que deram espaço ao Arq-GIS, além de softwares livres e imagens de satélite que se pode obter gratuitamente.

A despeito da capacidade técnica disponível para realização das análises espaciais no Distrito Federal, esta se multiplicou a partir da década de 1990 para cá. No ensino surgiram cursos de pós-graduação, PNUM 2016 649

passou a constar em currículos acadêmicos; bem como houve contratação de profissionais especializados nos órgãos de planejamento e gestão territorial do GDF e ainda empresas especializadas em estudos de planejamento urbano e ambiental.

A Universidade de Brasília foi pioneira no ensino e pesquisas com o uso de SIG a partir da implantação de um curso de pós-graduação em processamento de dados cartográficos, ministrado no Instituto de Ciências Geológicas11. Este curso foi fundamental para a formação de inúmeros técnicos e pesquisadores que vieram a atuar dentro e fora da Universidade. Pouco tempo depois, o Departamento de Geografia passou a utilizar softwares para o tratamento de imagens e atualmente tem dois laboratórios voltados a temática: o Laboratório de Sistemas de Informações Espaciais LSIE e o Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica - CIGA12.

Além das áreas citadas, outras faculdades e departamentos na UnB adotaram as ferramentas cartográficas digitais em suas pesquisas, reconhecendo a importância dos SIG nas análises espaciais. Dentre estas estão a arquitetura, a antropologia, a história, a biologia, as engenharias etc. Uma propulsão de pesquisas científicas, artigos, monografias, dissertações e teses são produzidos usando tais análises.

No campo das empresas, um exemplo pioneiro a atuar dentro e fora do DF é a Topocart, criada 1991. Originariamente a especialidade era a topografia e a cartografia, mas depois passou a executar estudos nas áreas de projetos de infraestrutura, meio ambiente e urbanismo, com diversos realizados para o governo do Distrito Federal. Outro exemplo é a empresa Geológica, implantada em 2001 a partir do programa Incubadoras de Empresas da Universidade de Brasília. Todos os fundadores tiveram aprendizado em SIG dentro da faculdade de Geologia da UnB. Voltou-se a estudos ligados ao planejamento territorial, estudos ambientais, projetos urbanísticos e infraestrutura e frequentemente realizam estudos para o GDF, sempre especializando as informações como é o caso da Figura 5 que mostra um Mapa Ambiental elaborado para o Relatório de Impacto Ambiental Complementar - RIAC do Polo Atacadista do DF. Utilizaram a base cartográfica SICAD 1:10.000, com localização no SITURB/DF, sendo a elaboração temática feita com ArcGis 9.0 e ArcView 3.2.

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Destaca-se o nome do Professor Doutor Roberto Menezes, mentor do curso. Criado e conduzido pelo Professor Doutor Rafael Sanzio dos Anjos. PNUM 2016 650

Figura 5. Mapa Ambiental constante no RIAC do Polo Atacadista do DF, elaborado pela GeoLógica para a TERRACAP (s/d). Fonte: GeoLógica, 2006.

O GDF, em específico, por meio de seus diferentes órgãos, há quase duas década abre licitações para realização de estudos na área ambiental a fim de viabilizar empreendimentos, elaborar planos, regularização do solo, entre outros. Nos diferentes editais passou a ser pré-requisito o uso de dados digitais organizados em SIG, com as tabelas de dados associadas aos arquivos de informações espaciais, de modo a se ter informações disponíveis sobre as feições temáticas.

Um termo de referência disponibilizado pela Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal - TERRACAP, por exemplo, pede que os dados geográficos sejam apresentados em formato shapefile (vetores), geotiff (imagens de satélite) ou grid (superfícies de dados) e organizados em arquivo de apresentação com extensão MXD do programa ArcMap na versão 9.0 ou superior. Exige, portanto, domínio e instrumental para elaboração dos estudos.

A questão maior é o uso real dos materiais produzidos. Há muito conhecimento acerca do território do Distrito Federal e praticamente todos esses subsidiam o ordenamento e planejamento da Capital Federal há muito temp mas, na prática, as ações visando resultados sócioespaciais e ambientais não são tão efetivos e rápidos quanto ao conhecimento gerado.

5. CONSIDERACÕES FINAIS

Dentro do objetivo proposto neste artigo, entende-se que a análise espacial realizada no DF, utilizando instrumentos cartográficos, foram e são fundamentais para o planejamento e a gestão desse território. Porém, ao buscar responder à pergunta colocada na introdução: o uso do processamento de dados

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cartográficos favoreceram ao controle do uso e ocupação do solo, bem como contribuiram com a proteção de áreas ambientais presentes em todo o território do DF? A resposta é: não como precisaria.

O conhecimento produzido acerca de um território, ao ser colocado nas mãos dos tomadores de decisão, não garantem tratamento adequado ao espaço e seus interessados coletivamente. As propostas apontadas nos planos podem perfeitamente ser subutilizadas ou simplesmente ignoradas. No caso do DF, as análises espaciais geradas não evitaram a repetição de situações recorrentes no país: crescimento urbano sem planejamento, danos ambientais, irregularidades fundiárias, tendo como uma das diversas consequências negativas o comprometimento do meio natural e a própria sociedade. Isto significa que no momento das tomadas de decisões, o conhecimento não é o suficiente para frear os processos instalados.

No DF o planejamento se apresenta “torto” desde o início. A justificativa para as distâncias entre as cidades sempre foi à necessidade da preservação dos mananciais de abastecimento, em especial a bacia do Paranoá. Entretanto, o formato ocupacional resultou em problemas de segregação socioespacial e em custos de diferentes ordens, dentre eles o de transporte. Tal fato também está relacionado a setorização de políticas públicas que, via de regra, privilegiam demandas pontuais, como a criação de novas cidades, camufladas sob uma política de habitação que privilegiou apenas uma camada de renda, assim como foi conivente, mesmo sabendo, da instalação de inúmeros parcelamentos informais com impactos diretos sob os recursos hídricos.

Há ainda, um uso setorizado das informações. Apesar de existiram 31 Regiões Administrativas estas são meramente representativas e resolvendo, quando muito, questões pontuais. Enquanto deveriam participar ativamente dos processos de mudança que acontecem em suas localidades, inclusive alimentando banco de dados cartográficos, o que facilitaria a tomada de decisões e as fiscalizações. Contudo, preferem-se manter planejamento e gestão verticalizados.

Outro ponto importante é que a cartografia digital não é barata, apesar da sua disseminação. As empresas contratadas, via de regra, possuem materiais atualizados e muitos deles comprados com os recursos pagos pelo poder público no caso da Capital Federal. Entretanto, esse material não é devolvido ao contratante ao final, apenas o produto trabalhado.

Por fim, as informações daí produzidas devem ser disponibilizadas à sociedade, bem como devem ser utilizadas para aumentar o conhecimento e o comprometimento do cidadão com o seu espaço. Sabe-se que planejamento documental e meramente tecnicista, dominado por interesses políticos, não atendem as

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necessidades da sociedade e não favorecem a qualidade do ambiente, tão pouco oferece transparência, mesmo utilizando instrumentos caros e fundamentais como os SIG.

6. BIBLIOGRAFIA Brasil, Quadrilátero Cruls. Brasil.gov.br. Em http://www.brasil.gov.br/imagens/brasilia-50-anos/quadrilaterocruls/view, acessado em 22/07/2013. Brasília, Diário oficial do Distrito Federal – DO/DF. Brasília Revisitada (1985/1987) Complementação, preservação, adensamento e expansão urbana. Cruls L (1995) Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central, 6º Ed., CODEPLAN, Brasília. Cruz I, Campos V (2005) Sistemas de Informações Geográficas aplicados a análise espacial em transportes, meio ambiente e ocupação do solo,Rio de Transportes III, Rio de Janeiro. Druck S, Carvalho M, Câmara G, Monteiro A (eds) (2004) Análise Espacial de Dados Geográficos, EMBRAPA, Brasília. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2012), Atlas Geográfico Escolar - História da Cartografia. http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/atlasescolar/apresentacoes/historia.swf. Acessado em 23/07/2013. IBGE, Revista Brasileira de Geografia, vol. 57, n. 4 (out/dez 1995). Kohlsdorf M (1976) Planejamento Urbano no Brasil: um esboço histórico – do Estado Novo ao estado de exceção, UnB/FAU-PPG, Brasília. Revisado em marco de 2002 por Nara Kohlsdorf. Medeiros J, Câmara G (2003) Geoprocessamento para Projetos Ambientais, in: Introdução ao Geoprocessamento. Livro on-line. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, cap. 10, São José dos Campos. Disponível em http://www.dpi.inpe.br/ livros.html Acessado em 20 de julho de 2013. Ficher S, Trevisan R (2010) Brasília Cidade Nova, Arquitextos, Vitruvios, 119.04, ano 10, abr 2010. Em http://agitprop.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.119/3384, acessado em 22/07/2013. GDF/SEDHAB. PDOT (2011) Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal, Documento Técnico – Governo do Distrito Federal. GDF/PDOT (1996) Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal. Documento de referência, Perfil do Distrito Federal, Estudos Setoriais, Proposta do PDOT, Instituto de Planejamento territorial e Urbano do Distrito Federal, Brasília. GDF/POT (1995) Plano de Ocupação Territorial do DF, Governo do Distrito Federal, SVO/DAU – TERRACAP, Convênio UnB/IAU, Fev. (Volumes I e II). GDF/PDOT (1992) Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF, Governo do Distrito Federal (Versão preliminar do relatório técnico). GDF/PEOT (1977) Plano Estrutural de Organização Territorial do DF, Convênio SEPLAN/GDF,Agosto (Relatório técnico – Volumes I e II). PEREIRA, Gilberto Corso (1999) Geoprocessamento e Urbanismo em Salvador: Uma Contribuição Cartográfica, Tese de Doutorado em Geografia/UNESP, Rio Claro, 194. Disponível em https://desenvrepositorio.ufba.br/ri/handle/123456789/1265, acessado em 25/07/2013.

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A Reinterpretação do Movimento Moderno em Lúcio Costa e a sua Influência na Renovação Arquitetônica Lusitana na Primeira Metade do Séc. XX Edgard Oliveira, Larissa Bertu, Stael Pereira Costa, Maria Netto Laboratório da Paisagem - Escola de Arquitetura Universidade Federal de Minas Gerais Rua Paraíba 697, sala 404C, bairro Funcionários, CEP: 30130-140 - Belo Horizonte, MG [email protected], [email protected], [email protected], [email protected]

Resumo O objeto desta apresentação é a vida e a obra do arquiteto e urbanista Lúcio Costa, sobretudo no período que compreende a primeira metade do século XX. Devido às relações históricas entre Brasil e Portugal e as constantes pesquisas acerca da tradição do estudo da Morfologia Urbana no país ibérico, a hipótese de uma possível troca de experiências e uma provável influência portuguesa na prática em Morfologia Urbana no Brasil foi levada em consideração. Sendo assim, uma linha do tempo da arquitetura e do urbanismo foi desenvolvida, na qual se destacam os nomes de referência nos dois países. Para a comprovação da hipótese, a linha do tempo foi fragmentada em três seguimentos distintos. O primeiro foi integralmente dedicado ao Lúcio Costa, pela importância do seu nome no cenário nacional e internacional; no segundo, buscou-se identificar os autores portugueses mais proeminentes da época; o terceiro foi dedicado aos acontecimentos mundiais de caráter político, arquitetônico e urbanístico que repercutiram nos dois países. Como nenhuma ação está desvinculada de seu tempo e/ou isolada do contexto global da sociedade humana, as linhas não foram criadas para serem três datações distintas, mas para sofrerem uma análise em conjunto, se interceptarem em diversos pontos e, finalmente, serem transformadas numa rede de autores luso-brasileiros para ser transferida e interpretada em trabalhos como esse. O método aplicado para designar e explorar a teia construída é a denominada pela Matemática como "Teoria dos Grafos", pela qual é possível distinguir as relações entre objetos distintos num determinado conjunto e estabelecer a força de suas conexões, bem como o valor simbólico de um elemento sobre o outro dentro do conjunto total ou universo. Nesse estudo, há revelações contrárias às estabelecidas na hipótese, porque se detectou um sentido inverso no fluxo habitual de influências da ex-metrópole para a ex-colônia. Foi demonstrado, graficamente, a importância da reinterpretação do Movimento Moderno, realizada no Brasil por Lúcio Costa, para a renovação arquitetônica lusitana, através do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal. Palavras-chave MODERNISMO; LÚCIO COSTA; ARQUITETURA VERNACULAR; INQUÉRITO À ARQUITECTURA POPULAR EM PORTUGAL

Introdução A primeira metade do século XX foi marcada por diversas transformações sociais. O homem moderno foi um produto das contradições do seu tempo. É possível delinear o auge e o declínio da sociedade moderna nesse contexto, suas constantes indagações, mutações e seu reordenamento ético e social no período pósguerra. No início do século, as crises urbanas, a propagação da miséria e diversas revoltas populares assolaram a Europa. O neocolonialismo não conseguia mais escoar a produção dos países industrializados. A eclosão da Primeira Guerra Mundial colocou fim a Belle Époque. A partir desse momento, uma série de acontecimentos colocou em evidência os antagonismos da sociedade. Nesse período, encontram-se as primeiras gerações de arquitetos modernistas. Sobre a influência do franco-suíço Le Corbusier (1887 - 1965), uma nova prática projetual em arquitetura, adaptada ao novo homem e aos seus anseios, foi propagada por todo o mundo. No Brasil, o principal expoente teórico dessa nova arquitetura foi Lúcio Costa (1902 - 1998). O Modernismo encontrou solo fértil nas terras tupiniquins. O país estava independente de Portugal há pouco tempo (1822) e a República ainda estava em formação PNUM 2016 655

(Proclamação da República: 1889). É precisamente na segunda metade do período que o estilo moderno ganha força, sendo adotado como medida desenvolvimentista da política do Estado Novo (1937 - 1945), sob a tutela de Getúlio Vargas. Lúcio Costa, formado no ecletismo da Escola de Belas Artes, viria a se converter ao modernismo, defendendo os dogmas corbusianos no artigo "Razões para a Nova Arquitetura", de 1930. Por semelhante modo, Portugal também atravessou nessa época anseios e soluções muito parecidas. Em terras lusitanas, a exemplo do Brasil, houve uma ditadura populista sob o comando de Oliveira Salazar (1937 - 1974), que, a propósito, também se denominava "Estado Novo" e buscava uma identidade nacional, sob o signo da arquitetura, que não fragmentasse o norte progressista e o sul conservador do país. Na busca das origens da tradição do estudo de morfologia urbana no Brasil, tendo como plano de fundo o cenário descrito, recorreu-se ao estudo de interpretação da Teoria dos Grafos e sua aplicação metodológica para o entendimento das relações sociais entre os arquitetos e urbanistas brasileiros e lusitanos do período. Partiu-se do pressuposto de uma possível troca de experiência entre os dois países e de uma provável influência portuguesa. Um grafo planar, modelo utilizado, possui uma representação gráfica na qual quaisquer duas arestas se interceptam, possivelmente, apenas em vértices e demonstram a relação causal entre dois pontos e a menor distância de dois signos separados no espaço.

Figura 1. a) Grafo simples; b) Grafo

Sendo assim, uma linha do tempo da arquitetura e do urbanismo foi desenvolvida, na qual se destacam os nomes de referência nos dois países. Para a comprovação da hipótese, a linha do tempo foi fragmentada em três seguimentos distintos. 1.

O primeiro foi integralmente dedicado ao Lúcio Costa, pela importância do seu nome no

cenário nacional e internacional; 2.

No segundo, buscou-se identificar os autores portugueses mais proeminentes da época;

3.

O terceiro foi dedicado aos acontecimentos mundiais de caráter político, arquitetônico e

urbanístico que repercutiram nos dois países.

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Uma visão panorâmica da plataforma e da construção das linhas do tempo é mostrada abaixo:

Figura 2. Visão panorâmica das linhas do tempo.

A rede de relações sociais que transpunham os limites de uma linha do tempo formaram as retas de união entre vértices no grafo, esses vértices foram constituídos pelos expoentes da arquitetura e do urbanismo no Brasil no período analisado. O Modernismo foi o principal ponto de convergência entre os vértices que se relacionavam com Portugal e aquelas que estavam em domínio brasileiro. Dessa forma, tornou-se objeto central das nossas pesquisas. A conversão ao Movimento pelos portugueses se deu, dentre outros fatores, pela influência da arquitetura brasileira, sobretudo pelos projetos de Oscar Niemeyer e principalmente pela produção teórica de Lúcio Costa, que chegaram ao país, num primeiro momento, através da revista "Brazil Builds". Nas palavras de Sérgio Fernandes: O Brazil Builds foi de fato uma publicação que fez grande sucesso em Portugal e, Portugal nessa altura estava muito limitado por causa do regime. (...) Mas Salazar fecha-se em relação à Europa, mas não pode fechar-se em relação ao Brasil, que é uma espécie de filho direto e que era uma espécie de joia da coroa, até porque Salazar realmente era uma criatura muito retrógrada e o Brasil era uma espécie de símbolo do que nós fomos capazes de construir, nós como se fossemos só nós, cá em Portugal.

Às vésperas do advento modernista que correu os dois países, as semelhanças entre Brasil e Portugal não se limitavam somente ao plano ideológico-político. O Brasil necessitava construir uma formação enquanto nação e Portugal, relativamente atrasado em relação aos seus vizinhos europeus, vivia um clima de PNUM 2016 657

nostalgia acerca de tempos de desbravamento de mares e terras inóspitas na África e no Novo Mundo. A arquitetura, enquanto símbolo da tradição de um povo, num determinado período de tempo, foi utilizada por ambos os países para a formação dessa identidade nacional. No Brasil, os intelectuais se debruçaram sobre a incógnita do conceito da arquitetura tradicional brasileira. Com esse ponto de partida, figuras como José Marianno Filho (1915 - 1998), exaltaram cidades históricas, empreenderam viagens e mitificaram a arquitetura do período colonial como símbolos da tradição e fonte de inspiração, e réplica, para a arquitetura praticada na época. Devemos destacar também, sob o olhar da nossa questão, o aparecimento do neocolonialismo na arquitetura. Em Portugal, Raul Lino é o arquiteto que propõe a concepção de uma "Casa Portuguesa", em seu manifesto de 1929.

Portugal e a Busca pela "Casa Portuguesa" Os principais nomes lusitanos relacionados ao revivalismo historicista foram, sem dúvida, o de Ricardo Severo e o de Raul Lino. Ricardo Severo foi um lisboeta nascido em 1869, mas que viveu no Porto, sendo formado pela Academia Politécnica do Porto como engenheiro civil, de obras públicas e de minas. Esteve muito relacionado com pesquisas etnográficas e era amigo de Martins Sarmento, notável etnógrafo português. Em terras lusitanas é reconhecido pela sua produção escrita sobre antropologia e arqueologia, e pela publicação da Portugália. No Brasil, principalmente pelo seu trabalho como engenheiro e como irradiador das ideias que fortaleceram um movimento de renascimento arquitetônico, que buscava empregar as raízes da arquitetura colonial e barroca, e que posteriormente denominado de "movimento neocolonial". Raul Lino nasceu em Lisboa, no ano de 1879. Concluiu os estudos secundários na Inglaterra e cursou a Escola de Artes Decorativas em Hanoover, Alemanha. Recebeu grande influência do movimento ArtandCrafts. Não há relatos de que Severo e Lino tenham mantido qualquer tipo de relação. De forma que, se houve influência mútua, esta deve ter-se dado à distância. O único registro em que possivelmente os dois se encontraram é encontrado no livro de Lino, "Auriverde Jornada", onde ele indica presença em São Paulo no ano de 1935 para uma série de palestras na Escola de Engenharia Mackenzie, no Instituto de Engenharia e no Instituto Histórico e Geográfico. Esse ciclo de debates foi organizado pelo presidente do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura, Prof. Morales de los Rios e por Ricardo Severo. Podemos destacar uma possível influência de Lino no retorno de Severo ao Porto. Como salienta Joana Silva:

[...] o retorno [de Severo] ao Porto coincidiu com o surgimento em Portugal de um movimento nacionalista de revivescência da casa portuguesa, capitaneada pelo arquiteto Raul Lino [...]: O movimento arquitetônico, que se opunha ao ecletismo ao PNUM 2016 658

propor a retomada de uma ‘arquitetura autóctone', pode ter de algum modo influenciado Severo, que anos depois encetaria uma campanha semelhante no Brasil.

Brasil: A Busca pela Arquitetura Tradicional O revivalismo historicista no Brasil possui um personagem central no período, José Mariano Filho. Mariano nasceu em 1881 em Pernambuco. Formou-se em Medicina, especializando-se em ginecologia, mas nunca exerceu a profissão. De uma família abastada, seu pai foi deputado do Império. Foi crítico de artes e arquitetura, fundou o Instituto Brasileiro de Arquitetos em 1921 e posteriormente, no mesmo ano, a Sociedade Central de Arquitetos, sendo presidente de ambas. Em 1924 contribuiu para a fusão dessas duas entidades no Instituto Central de Arquitetos. Também foi por muitos anos, presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes e diretor da Escola Nacional de Belas Artes. Produziu diversos artigos sobre a valorização da arquitetura inspirada nas edificações coloniais brasileiras. Para José Mariano, a arquitetura, mesmo que nova, deveria apontar para a recuperação com os elos do passado. A dimensão da arquitetura tradicional brasileira precisava ser resgatada ao seu grau de importância, extremamente reduzido pela formação erudita de caráter francês. Para ele, a importação e a proliferação de estilos provenientes de outros países subjugaram a expressão arquitetônica da "raça brasileira". Constitui-se de suma importância destacar as viagens às cidades históricas mineiras que José Mariano empreendeu enquanto professor da Escola Nacional de Belas Artes. A fim de propiciar o conhecimento direto da arquitetura tradicional das antigas cidades brasileiras, José Mariano, através da Sociedade Brasileira de Belas Artes, em 1924 patrocinou arquitetos e alunos para que realizassem inventários detalhados do acervo arquitetônico do passado, a fim de organizar álbuns para a divulgação da verdadeira arquitetura tradicional. Lúcio Costa é enviado para Diamantina. Lá chegando, caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação: casas, igrejas, pousada dos tropeiros, era tudo de pau a pique, ou seja, fortes arcabouços de madeira - esteios, baldrames, frechais - enquadrado paredes de trama barreada, a chamada taipa de mão, ou de sebe, ao contrário de São Paulo onde a taipa de pilão imperava.

Escreveu Lucio em Registro de uma vivência. A relação entre os autores é demonstrada na representação abaixo:

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Figura 3. Aparecimento de personagens tradicionalistas em Portugal e no Brasil. Esboço e grafo.

Lúcio Costa e a Efervescência Cultural Luso-brasileira dos Anos 40 Nesse contexto de atuação dos nossos três personagens, surgiram vários eventos que fomentaram a troca de influências entre o Brasil e Portugal. Entre os anos de 1948 e 1949, ocorreram duas mostras da arquitetura moderna brasileira no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. O evento é amplamente divulgado pela revista "Arquitectura", principal veículo de propagação do ideal moderno em Portugal. Em 1952, outra exibição é realizada em Lisboa, homenageando Lúcio Costa. A publicação desse evento sintetizava o pensamento moderno e fazia uma síntese histórica, chamando a atenção para as técnicas portuguesas comunicadas à colônia e reajustadas no contato com as sociedades autóctones. Ela ainda ressalta a importância de Lúcio Costa no arranque da nova arquitetura, a presença de Corbusier no Brasil, e a criatividade de Niemeyer. Sobre a tese dos modernistas brasileiros, difundida por Lúcio Costa, de que a arquitetura moderna PNUM 2016 660

brasileira estava ligada a uma tradição formal, Victor Palla, em 1949, iria demonstrar forte admiração na Revista Arquitectura, dizendo que "Nossos filhos brasileiros interpretaram melhor a voz desse passado." Após a mostra, diversos arquitetos portugueses, como Formosinho Sanchez, viajariam para o Brasil. É necessário destacar também que, um dos principais organizadores do III Congresso, de 1952, é Keil do Amaral, nome central no Inquérito a Arquitectura Popular em Portugal. Lúcio ganha proeminência com sua construção teórica, mas também através de obras que se imaterializam. A narrativa do arquiteto em "Muita construção, alguma arquitetura e um milagre" é reafirmada por Milheiros e outros autores no que concerne ao caráter mítico do edifício sede do Ministério da Saúde e Educação para influenciar a arquitetura mundial por intermédio de uma interpretação eminentemente brasileira do Movimento Moderno. A repercussão do edifício e seus congêneres do Brazil Builds tiveram uma boa recepção em Portugal. Além das influências no traço das representações gráficas, a arquitetura brasileira motivou grandes reformas que se seguiram dentro das faculdades de arquitetura no período, sobretudo no Porto, com Carlos Ramos, e que possibilitou o surgimento de grandes expoentes, frutos dessas reformulações no plano de ensino, notadamente Siza e Aalto. Ao relembrar da época, Siza é enfático na participação brasileira na formação crítica da arquitetura portuguesa. Eu lembro que aqui, foi o arquiteto Távora que trouxe e mostrou na faculdade esse livro (A Brazil Builds) que criou um grande entusiasmo. Mas já nas mesas dos estudantes havia a arquitetura brasileira publicada na L'architecture D'aujourd'hui. Inclusive com um grafismo, até mudou o grafismo que utilizavam os estudantes, porque muitos arquitetos brasileiros, entre eles o Niemeyer, os desenhos eram assim... os pilares não tinham espessura, era um grafismo muito elegante e tal e isso passou a ser usado pelos estudantes, esse grafismo. Depois a sensualidade das formas, bem o fascínio do Brasil, da paisagem brasileira, tudo isso se juntou e depois foi na seqüência de um período em que na escola, os modernos, os que lutavam com dificuldades e um pouco contra o que era a escola em si. (...) Quando aparece o Brasil Builds é como que uma síntese que praticava facilmente desse novo espírito. (PLQWR, 2007, 18).

Tradicionalmente, a arquitetura portuguesa sempre foi marcada por reinterpretações ou subversões de valores internacionais, adaptando-se ao ambiente cultural e técnico do país e, num momento em que há uma degradação dessa prática, principalmente com a arquitetura decorativista que era propagada em Lisboa, é a arquitetura brasileira que virá ao resgate. Dessa forma, a disciplina teórica de Lúcio Costa possibilita que a "Casa Portuguesa", assim como o Neocolonial, no Brasil, sejam abandonados em favor de uma arquitetura coerente com seu tempo e ao mesmo tempo, carregada de significado e identidade com os povos da terra. PNUM 2016 661

A relação de Lúcio Costa com historicistas e modernistas portugueses é representada abaixo:



Figura 4. Lúcio Costa e sua relação com tradicionalistas e modernistas portugueses. Destaque para Carlos Ramos, reformador do ensino do ensino de arquitetura na ESBAP e pai da chamada "Escola do Porto".

Entre 1930 e 1960, Lúcio Costa realiza inúmeras viagens ao território português. Em 1948, percorre cidades lusitanas para identificar as origens da arquitetura brasileira que, segundo ele, era mais, precisamente portuguesa do que, de fato, brasileira. Essa missão foi concluída numa segunda viagem, em 1952. O arquiteto viajou por Portugal de Norte a Sul, fazendo anotações e croquis tipo-morfológicos. As pesquisas, ainda na sua primeira viagem, culminaram no artigo "Documentação Necessária" de 1938, no qual Lúcio enfatiza a importância dessa busca de criação de um elo entre o moderno e o tradicional através da documentação do que já foi produzido pelo homem comum em Portugal, que na sua concepção possuía uma arquitetura sincera, pragmática, não vinculada a superficialidade e aos adornos. PNUM 2016 662

O brasileiro ainda proferiu palestra em 1961 na Escola do Porto, ocasião em que levou os alunos para uma viagem pelo interior do país. Consta que os alunos ficaram perplexos com o conhecimento de Costa sobre o território que, a maioria deles, ignorava. As diversas tipologias identificadas em 1952 levaram a conclusão de Keil do Amaral e Fernando Távora sobre a inexistência de uma "casa portuguesa", como Távora exemplificou no artigo "O Problema da Casa Portuguesa". Dessa forma, é possível indicar uma influência de Lúcio Costa no principal evento da arquitetura lusitana, o estudo da arquitetura rural popular promovido por Keil do Amaral. O próprio Keil escreve o artigo "Uma Iniciativa Necessária" em 1947, notadamente em resposta ao artigo de Lúcio de 1938 e um chamado aos portugueses para o Inquérito à Arquitectura Popular. Conclusão Todo o processo descrito e a rede de troca de experiências entre Brasil e Portugal influenciaram o que viria a se consolidar como a chamada "Escola do Porto", que consagraria nomes como o de Álvaro Siza e Eduardo Souto. Essa escola iria aliar o compromisso com a natureza, a ação do tempo histórico e a fidelidade ao Movimento Moderno. Desta forma torna-se possível apontar a influência brasileira nos rumos da arquitetura portuguesa. Esse estudo, portanto, aponta revelações contrárias às estabelecidas na hipótese, porque se detectou um sentido inverso no fluxo habitual de influências da ex-metrópole para a ex-colônia.

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O inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa e a Antropologia: um caso de transversalidade metodológica. Teresa Marat-Mendes1, Maria Amélia Cabrita2 Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-IUL, DINÂMIA’CET-IUL, Av. das Forças Armadas 1649-026 Lisboa, Portugal, Telefone/fax: 00 217903000 (1) [email protected], (2) [email protected]

Resumo A presente comunicação expõe os resultados de uma investigação em curso conduzida pelas autoras desta comunicação, cujas primeiras abordagens permitiram identificar no Inquérito da Arquitectura Regional Portuguesa uma importante fonte de informação para o aprofundamento do estudo da morfologia urbana em Portugal (MaratMendes e Cabrita, 2015). Assim, partindo dos primeiros resultados dessa investigação, que permitiram identificar a realização de uma sistematização de carácter tipo-morfológico em Portugal, nos finais da primeira metade do século XX, conduzida por Arquitectos Portugueses que participaram na realização do Inquérito atrás referido, através de um confronto com as abordagens morfológicas em uso pelos geógrafos portugueses à época, e identificadas pelas autoras desta comunicação, torna-se agora oportuno aferir que metodologias foram utilizadas pelos Arquitectos, bem como quais as suas eventuais partilhas com métodos conduzidos por outras áreas disciplinares, nomeadamente a Antropologia. No sentido de responder ao objetivo atrás exposto, esta comunicação expõe os resultados de um estudo comparativo das abordagens metodológicas conduzidas por Arquitectos e Antropólogos nas suas análises a um território específico, cujo interesse partilharam durante um mesmo período temporal. O território em apreço refere-se à aldeia de Rio de Onor e aldeias circundantes, que se localiza no noroeste de Portugal. Especificamente, na região identificada como Zona 2 do Inquérito da Arquitectura Regional Portuguesa. O confronto da abordagem metodológica identificada para os Arquitectos e Antropólogos, contemporâneos à realização do Inquérito, leva-nos a concluir pela existência de uma partilha de metodologias que nos propomos aqui a identificar, e que incluem alguns denominadores comuns, nomeadamente a observação directa, a utilização de dados de outras disciplinas, a reflexão e sistematização e a incidência na obra colectiva. Julgamos igualmente importante reflectir sobre o facto de a abordagem metodológica atrás identificada, para os Arquitectos da Zona 2 do Inquérito ter sido central na preparação das soluções propositivas apresentadas por alguns desses arquitectos ao 10º Congresso dos CIAM, em 1956. Configura-se assim a existência de uma transversalidade metodológica, praticada pelos Arquitectos, comum às abordagens dos Antropólogos, contudo vocacionada para aspectos propositivos do projecto; procurando responder por um lado à contemporaneidade dos problemas colocados e com conhecimento das condições locais, nas vertentes do ambiente físico e humano, que também hoje constituem questões prementes na prática profissional de todos os agentes da intervenção na cidade e no território, nomeadamente os arquitectos. Palavras-chave Inquérito; Método; Análise; Arquitectura; Antropologia. PNUM 2016 667

1. Introdução O estudo dos assentamentos humanos (habitat humano) e a sua respectiva forma urbana constituem autênticos laboratórios de análise quer para o entendimento das razões que estiveram sua génese e sustentaram a sua evolução ao longo do tempo, mas também enquanto receptáculos de lições para opções futuras de intervenção no território. A morfologia urbana, enquanto ciência que estuda a forma física dos habitats humanos (Moudon, 1989), internacionalmente reconhecida desde a fundação do International Seminar on Urban Form (ISUF) em 1994, foi fundada por um grupo de estudiosos europeus de diversas origens geográficas (maioritariamente europeus – Italianos, franceses, alemães e ingleses) e disciplinares (maioritariamente geógrafos, arquitectos e historiadores), enquanto área de conhecimento que pretendia principalmente contribuir através de apoio metodológico para o estudo das formas urbanas, apoiando-se na construção de metodologias que permitissem essa mesma abordagem, conforme referido por Anne Vernez Moudon na sua entrevista guiada por Rosaneli et al. (2009). Passadas duas décadas desde a fundação do ISUF, a morfologia urbana continua a merecer reflexões, incluindo dos seus membros fundadores no que concerne ao próprio significado de morfologia urbana mas também acerca do valor substantivo do seu contributo enquanto área de saber (Conzen, 2013), ou até disciplinar conforme proposta por Kropf (2014), mas que apesar de tudo é sobejamente reconhecida como de valor interdisciplinar (Whitehand, 2012). A fundação da morfologia urbana é construída a partir dos contributos de distintas áreas disciplinares, e em particular através da arquitectura, da história e da geografia. A leitura de eventuais contributos metodológicos, transdisciplinares, para a Morfologia Urbana já nos foi indicada por Whitehand (2007), nomeadamente no que concerne às vantagens na aproximação entre a ‘Escola’ de Conzen e a ‘Escola’ de Muratori para o aprofundamento do estudo morfológico da região, através da importação do conceito de tecido por via da disciplina de arquitectura, para benefício da própria disciplina de geografia, conforme já identificado por Marat-Mendes e Cabrita (2015). Todavia, o facto de a morfologia urbana se fundar sobre distintas áreas disciplinares, também elas científicas, tem exigido por seu lado especialização de saber dentro de cada uma destas áreas, que por ser conduzido maioritariamente de forma isolada, confinada aos seus respectivos territórios disciplinares, tem contribuído em nosso entender para que efectivos exercícios transdisciplinares sejam difíceis de se concretizarem ou então são em menor número. Será portanto um desafio para a Morfologia Urbana amadurecer e levar mais longe a defesa de uma transdisciplinaridade efectiva, através da produção de sínteses de conhecimento entre áreas disciplinares distintas, incluindo não só a arquitectura, a geografia e a história, mas também todas aquelas que tenham como interesse comum o estudo dos habitats humanos. E nesse caso, longe de qualquer proposta de formulação disciplinar ou indicação de escolas de abordagem específica, que por vezes se revestem de discursos ideológicos conforme também testemunhado por Conzen (2013), entendemos ser importante que a Morfologia Urbana se mantenha como um campo de conhecimento de cariz interdisciplinar, aberto a todas as eventuais áreas

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disciplinares interessadas pelo entendimento dos habitas humanos e das suas formas urbanas ou formas construídas, capaz de gerar conhecimento metodológico construído sobretudo de forma transdisciplinar. É precisamente no âmbito da oportunidade transdisciplinar que a morfologia urbana oferece, que as autoras desta comunicação procuram identificar nos contributos metodológicos de arquitectos e antropólogos, as bases morfológicas que nos parecem ter sido de interesse comum e que contribuíram para o estudo dos habitat humanos analisados por estes mesmos intervenientes, procurando ao mesmo tempo identificar quais as linhas de interesse e metodológicas comuns às duas áreas disciplinares em questão, a Arquitectura e a Antropologia (Etnografia). Pedidos feitos no sentido de se promoverem estudos transdisciplinares tem sido solicitados por alguns dos fundadores do ISUF, nomeadamente por Jeremy Whitehand (2012). Também Anne Vernez Moudon, desde 1994, no seu exercício comparativo das diferentes Escolas de Morfologia Urbana reconhecidas pelo ISUF, testemunha o contributo da construção das abordagens metodológicas resultantes deste exercício transdisciplinar, enunciando por seu lado uma nova área de conhecimento dentro da própria morfologia urbana, nomeadamente a tipo-morfologia (Moudon, 1994). Mais recentemente, aplicações práticas de algumas das abordagens metodológicas mais largamente difundidas pelo ISUF (abordagem históricogeográfica de Conzen e a abordagem tipológica da escola Italiana), tem permitindo exercícios de análise de avaliação comparativa com abordagens metodológicas como as shape gramars, space syntax entre outras (Oliveira et al, 2015; Gil et al., 2012). As áreas disciplinares que utilizam estas análises comparativas e transdisciplinares continuam a ser a arquitectura e a geografia primordialmente, apoiadas em ferramentas informáticas como o Autocad, o Space Sintax, e o SIG-Sistemas de Informação Geográfica, que as novas tecnologias permitiram actualizar e a agilizar em uso. Apesar dos avanços destes contributos na formulação de novas abordagens metodológicas que enriquecem sem dúvida a morfologia urbana, conforme atrás testemunhados, julgamos que o enfoque destas análises, apoiadas pelas ferramentas analíticas que as apoiam, e o carácter fundamentalista que o conhecimento gerado por via da especialização exclusiva dentro de uma só área disciplinar, ou até isolamento de abordagens morfológicas por Escolas, tem inibido todavia que a morfologia urbana usufrua do contributo do exercício da transdisciplinar com áreas disciplinares distintas daquelas que estiveram na sua origem, oriundas das ciências sociais ou humanidades por exemplo. Após exercício semelhante que as autoras deste artigo conduziram já entre a arquitectura e a geografia (Marat-Mendes e Cabrita, 2015), ensaiamos nesta comunicação uma tentativa de cruzamento entre a Arquitectura e a Antropologia. Julgamos assim, poder contribuir para o enriquecimento transdisciplinar dentro da morfologia urbana, procurando responder de forma mais equilibrada com um maior número de áreas disciplinares que para ela concorrem, e potenciando por seu lado novas leituras e eventuais abordagens metodológicas apoiadas numa análise transdisciplinar comparativa, rigorosa e sistematizada, como aquela que aqui propomos, para que possa eventualmente transmitir de forma pragmática os seus contributos conforme aqueles potencializados pelas vantagens das novas ferramentas tecnológicas.

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A morfologia urbana, enquanto ciência que estuda o tecido físico construído, as pessoas e os processos que a moldam, conforme sistematizado por Moudon (Rosaneli et al, 2009) engloba em nosso entender três dimensões específicas a saber: (1) a física, aquela que reflecte a dimensão material e formal, espelho ultimo da construção física de todas as vontades; (2) a social, aquela que reflecte a dimensão humana que viabiliza a materialização da dimensão física da forma construída; e a (3) cultural, i é., aquela que congrega todo o complexo de conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade. É precisamente no interesse dedicado à terceira dimensão atrás identificada, a cultural, que identificamos nas áreas disciplinares das ciências humanas mas também ciências sociais, como a Antropologia e a Geografia por exemplo, uma área de interesse comum no que concerne ao estudo dos habitats humanos, apoiadas todavia pelas suas respectivas ferramentas e abordagens disciplinares. O mesmo identificamos para a Arquitectura, que no entanto sugere ser mais flexível devido ao interesse próprio de cada uma das áreas científicas que para ela concorrem, incluindo as tecnologias, as artes, as sociais, mas também as humanidades. A dimensão cultural que a Morfologia Urbana integra representa uma área de investigação presente nas escolas de Conzen e na Escola Italiana, conforme já testemunhado por Moudon (1994), mas que requer todavia maior desenvolvimento, uma vez que em nosso entender, não tem acompanhado em idêntico ritmo de desenvolvimento metodológico os avanços que se tem verificado no que concerne à dimensão física da Morfologia Urbana.

2. Condições gerais e metodologias de implementação do Inquérito A génese do Inquérito da Arquitectura Regional Portuguesa (Amaral 1999 [1947] e as peripécias da sua implementação, foram já bastante divulgadas. Para efeitos operacionais, e sob a liderança de Francisco Keil do Amaral (1910-1975), o país foi dividido em seis zonas, correspondendo, grosso modo, a divisões administrativas, mas procurando adaptações regionais. A distribuição foi feita por equipes de três arquitectos, sendo alguns tirocinantes. Os objectivos, a metodologia, incluindo a organização, os recursos a fornecer, a retribuição e os resultados pedidos, estão expressos, na generalidade, no Decreto nº 40 349 de 19 de Outubro de 1955; no documento ‘Planificação’, não publicado, elaborado no Sindicato dos Arquitectos Portugueses, e que contém as indicações que foram seguidas, com adaptações de circunstância, por cada equipe (Marat-Mendes e Cabrita, 2015, 82). Fotografias e desenhos, são os registos da observação directa, em visitas aos locais, com cujos resultados não se pretendia fazer inventário, nem seleccionar o pitoresco ou o monumental, mas sim estudar as raízes regionais que explicassem a diversidade das construções e dos aglomerados. Ficamos também a saber, pelo documento, a cartografia que foi fornecida então aos arquitectos para elaborar o Inquérito atrás referido.

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O enquadramento do Processo do Inquérito, nacional e internacional, bem como o respectivo impacto e consequências, têm sido objecto de abordagens de estudos que se centram, ou adoptam pontos de vista relacionados, nomeadamente, com o percurso da arquitectura moderna em Portugal (a visão, também generalista, historiográfica, da História da Arte e da Arquitectura), cruzada em alguns casos com a emergência de novas vias, fundadas na corrente de crítica ao Movimento Moderno (Montaner, 1997). De assinalar também os registos descritivos, que nos devolvem, em alguns casos, testemunhos coevos importantes ou dos próprios protagonistas do processo (Dias, 2013) e os estudos centrados em figuras relevantes da cultura arquitectónica nacional, como é o caso de Fernando Távora e da Escola do Porto, face ao seu envolvimento em todo o processo e respectiva continuidade, com as implicações, não só no próprio ensino da Arquitectura, mas também no percurso projectual, individual e colectivo. Os aspectos interdisciplinares do trabalho dos arquitectos do Inquérito, também têm sido abordados, e mesmo aprofundados, no que respeita, por exemplo, à Geografia e Morfologia urbana (Marat-Mendes e Cabrita, 2015), conforme referido. Relevam-se, no estudo em curso, os argumentos e reflexões que fazem do Inquérito um acontecimento fulcral na cultura e identidade portuguesas, através das disposições metodológicas e resultados do trabalho dos arquitectos, destacando justamente o contributo da metodologia transdisciplinar praticada no Inquérito. Em ‘A Escolha do Porto’ (Fernandes, 2010), o autor faz convergir na realização do Inquérito toda a trama de causas e efeitos que permitem a consolidação, não só da Escola do Porto, centrada na figura de Fernando Távora, como também de uma orientação projectual que vai dar origem, a partir da influência de obras iniciais de Távora, a uma corrente arquitectónica e cultural que culmina em percursos profissionais e de reconhecimento internacional, como é o caso de Siza Vieira. O período após a Segunda Grande Guerra vem trazer novas formas de pensar à arquitectura e urbanismo, a par com uma abordagem diferente para com o ambiente construído, num clima crescente de crítica ao Movimento Moderno, patente, nomeadamente na sequência dos CIAM que vai levar à ruptura final entre os membros daquela organização, em 1959 (Mumford, 2000). Embora seja significativa a participação de Portugal no CIAM X, em 1956, através do CIAM Porto, equipa liderada por Fernando Távora, Viana de Lima e Octávio Lixa Filgueiras (Lima et al, 1959), com um trabalho que aproveita a experiência da pesquisa em curso no Inquérito, divergiam substancialmente os pressupostos e objectivos do projecto apresentados pelos arquitectos portugueses e a orientação seguida pelo TEAM X: enquanto aqueles advogavam a conciliação entre o vernacular e o moderno, nos contributos essenciais de cada um, convergindo em soluções verdadeiramente “modernas”, os membros dissidentes dos CIAM procuravam novas soluções, virtualmente independentes, tanto do legado moderno como do vernacular (Filgueiras, 1959). Estabelecer uma Carta do Habitat era um objectivo que nunca chegou a concretizar-se pelos CIAM. Já no CIAM IX (Aixen-Provence, 1953), a proposta de Alison e Peter Smithson afirmava a sua divergência, mas ao mesmo tempo considerava que uma realidade social diferente da anterior pedia soluções novas, na busca de uma re-identificação, (Mumford, 2000, 234-235), eludindo qualquer ideia de continuidade, tanto social, como cultural ou material. PNUM 2016 671

3. Arquitectura e Antropologia No capítulo IX da sua obra, Montaner (2001, 127-138) vai incidir o seu estudo dos condicionalismos e evolução da arquitectura depois de 1945, sobre a influência de disciplinas como a Antropologia e a Etnologia no configurar de novas ideias e movimentos. Da análise apresentada pelo autor, mas também através de outras situações e reflexões, pode concluir-se que o olhar da Antropologia esteve presente na viragem que marca a História da Arquitectura no após Segunda Grande Guerra, tendo como pressuposto o questionamento do estilo internacional, a ameaça da massificação da tipologia habitacional, o apagamento progressivo dos vínculos simbólicos comunitários e dos seus suportes, por um lado; por outro, a busca de soluções informadas, em modo de recuperação, pelas identidades culturais, modos de vida e manifestações materiais e imateriais (construções, artefactos, morfologias dos aglomerados, costumes e culturas locais, regionais), mas consistentes com os valores da arquitectura moderna e os avanços tecnológicos, no sentido de melhorar a vida das populações, em qualquer parte do globo.

3.1.

Condicionantes e enfoque metodológico

Prosseguindo os objectivos do estudo em curso, o processo seguido é o da selecção bibliográfica, análise textual e gráfica e síntese comparativa, com utilização de matrizes simples que permitam o confronto e as conclusões finais. No que concerne ao confronto de metodologias utilizadas pelos autores em presença (Arquitectos e Antropólogos), algumas questões, teóricas e metodológicas se colocam. A primeira, tem a ver com a comum dificuldade em discernir o método seguido e a forma como os autores chegaram aos resultados apresentados (Fernandes, 2002, 24), uma vez que, normalmente, não os expõem. Como hipótese de partida, pretendia-se aferir da utilização comum de um tipo específico de observação, a participante. No entanto, dever-se-á entrar em linha de conta com as especificidades teóricas e empíricas daquele método (Beaud e Weber, 2007), na medida em que o próprio registo escrito, desenhado, etc., que constitui o ‘Diário de Campo’ (antecedido de notas de terreno), seja organizado como instrumento de trabalho operativo, num “triplo trabalho de percepção, memorização e anotação” (Beaud e Weber, 2007, 95). Ainda assim, apercebemo-nos das variantes e combinações que a metodologia geral da observação comporta para diferentes investigadores ou correntes. Assumimos, como princípios do método, ser este “um modo personalizado de trabalho empírico, chamando o investigador à participação e ao envolvimento, não [dispensando] o cultivo da imparcialidade nem a procura do rigor”. Na fixação progressiva de todos os aperfeiçoamentos no sentido de ser efectivamente científico e próprio da Etnografia (ideográfico), há um aspecto importante, que nasce daquele envolvimento, pois “exige o confronto e a transformação pessoais.[…] O etnógrafo não sairá, digamos, incólume da experiência que viveu” (Fernandes, 2002, 24). Nos casos em apreço, os condicionalismos da presente análise prendem-se com o facto de, em primeiro lugar, estes objectos de estudo constituírem, ao mesmo tempo fontes do mesmo estudo. Em segundo lugar, os autores apresentam sobretudo os resultados das pesquisas efetuadas, não se detendo a explicar os PNUM 2016 672

métodos utilizados, sendo mesmo difícil elencar os fundamentos teóricos de base ou até a bibliografia utilizada. Razão para o recurso a outras obras, de outros autores e a testemunhos, de entre os quais destacamos as referências feitas ao geógrafo Orlando Ribeiro nos prefácios e outros escritos (AAP, 1980). No caso da Arquitectura, tornou-se fundamental a publicação recente de um livro da autoria de um dos participantes no Inquérito, o qual permite, pela primeira vez, discernir com clareza os métodos utilizados, para além de fornecer mais motivos de reflexão (Dias, 2013).

3.2.

Rio de Onor, objecto de estudo da Antropologia

Rio de Onor é uma aldeia do Distrito e Concelho de Bragança, que integra o Parque Natural de Montesinho; situa-se na fronteira norte com Espanha, morfologicamente irmanada com Riohonor de Castilla (Província de Zamora, Municipalidade de Pedralba de La Praderia), podendo considerar-se como uma mesma povoação que se encontra apenas dividida pela linha fronteiriça dos dois países. Esta realidade, que hoje sobrevive na total permeabilidade social e de circulação (agora sem entraves legais) tomou, até há algumas décadas e com origens ancestrais, um carácter especial, chamando a atenção dos estudiosos. Desde logo o geógrafo alemão Hermmann Lautensach, em 1937, que diz ser um caso singular, pois a aldeia “está cortada ao meio pela fronteira política”, conforme referido por Jorge Dias (1984, 9). Objecto de estudo de Jorge Dias, desde o início da década de 1950, a aldeia de Rio de Onor já se encontra também referida por Leite de Vasconcellos (1980-1985). Veiga de Oliveira e outros colaboradores vão voltar mais tarde à aldeia e dar nota das transformações observadas (Oliveira, 1975); finalmente, Joaquim Pais de Brito escolheu-a como objecto das suas pesquisas (iniciadas em 1975), que vai utilizar na sua tese de doutoramento em 1989, publicando depois ‘Retrato de Aldeia com Espelho’, (Brito, 1996), registando, decididamente, os últimos vestígios e sobrevivências dos costumes, estruturas e sistemas comunitários da aldeia.

3.3.

Rio de Onor, objecto de estudo da Arquitectura

Para os arquitectos do Inquérito da Arquitectura Regional (AAP, 1980), Rio de Onor aparece como uma das muitas povoações do seu itinerário, feito a partir de 1955, sob a responsabilidade do respectivo Sindicato. No entanto, incluída na Zona 2, (grosso modo, Trás-os-Montes e Alto Douro), a aldeia é assinalada com elementos que remetem claramente para um conhecimento mais aprofundado das suas características sociais comunitárias, embora comuns a outras aldeias da mesma região, o que, desde logo, aponta para um conhecimento prévio de pesquisas alheias à arquitectura. Quando cotejamos os CODA (Concurso para Obtenção do Diploma de Arquitecto) posteriores a 1956, de alguns arquitectos, participantes ou não do Inquérito, verificamos que alguns, para além de o referirem, vão incidir os estudos sobre áreas e povoações rurais, nomeadamente Rio de Onor, como é o caso do CODA de Arnaldo Araújo (1957) e de Sérgio Fernandez (1964).

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É igualmente importante assinalar que foi o estudo mais aprofundado de Rio de Onor que serviu de base à importante participação dos arquitectos portugueses no CIAM X, realizado em Dubrovnik em 1956, com uma equipa de que faziam parte os responsáveis pela Zona 2. O CODA de Arnaldo Araújo, aqui em análise, vai justamente recuperar esse estudo. Os trabalhos da Zona 2 – Trás-os-Montes e Alto Douro - do Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa, integrou os arquitectos Octávio Lixa Filgueiras (19221996), que conduziu os trabalhos da equipa, e os tirocinantes, arquitectos recém formados, Carlos Carvalho Dias e Arnaldo Araújo (AAP, 1980). Os trabalhos da equipa Portuguesa que participou no CIAM X, que teve lugar em Dubrovnik, em 1956, e cujos painéis integram parte das análises a Rio de Onor foram posteriormente publicados na Revista Arquitectura em Portugal (Filgueiras, 1959; Lima, Távora e Filgueiras, 1959).

Figura 1. Alguns estudos publicados sobre Rio de Onor, por Arquitectos

4. Análise comparativa entre as abordagens dos Antropólogos e Arquitectos A Figura 2 permite-nos agora uma análise comparativa a alguns dos trabalhos realizados por Antropólogos e Arquitectos, com enfoque em Rio de Onor, permitindo aferir os seus interesses no que concerne aos estudos conduzidos por cada um dos intervenientes em questão, nomeadamente no que concerne aos seus próprios objectivos, objectos de estudo, interesses temáticos e utilidade prevista dos mesmos. Finalmente, a Figura 3, permite-nos aferir, com base na análise das obras identificadas na Figura 2, de quais as abordagens metodológicas utilizadas por Antropólogos e Arquitectos nas suas análises de Rio de Onor. Uma hierarquia de verificação para cada um dos parâmetros analisados foi também aqui registada. Nomeadamente, parâmetro inteiramente cumprido, parâmetro não cumprido, ou parâmetro sobre o qual podem incidir deduções quanto á respectiva inclusão nos estudos.

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Figura 2. Identificação e caracterização das obras em análise

Notas: (A) - Deslocação aos locais do objecto de estudo; Registos escritos; Registos gráficos; Fotografias (B)- Pressupõe permanência prolongada nos locais e integração na comunidade em análise Legenda: Parâmetro inteiramente cumprido; Parâmetro não cumprido; deduções quanto á respectiva inclusão nos estudos;

Parâmetro sobre o qual podem incidir

Figura 3. Análise comparativa de aferição de metodologias

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5. Conclusões No sentido de responder aos objectivos enunciados, este artigo após a sua introdução ao tema, onde foi colocada a problemática em apreço, nomeadamente a proposta de análise comparativa às abordagens metodológicas conduzidas por Arquitectos e Antropólogos a Rio de Onor, e a identificação da dimensão cultural como requisito comum nas obras de Arquitectura e Antropologia, no que à Morfologia Urbana diz respeito, procedeu a sua análise com a identificação dos objectos de estudo que estimularam a análise comparativa das abordagens metodológicas para a Arquitectura e a Antropologia que aqui nos propusemos realizar. A identificação e a sistematização das obras em análise sublinham não só o interesse que um determinado território teve tanto para Arquitectos e Antropólogos há aproximadamzente 60 anos atrás, mas também como os primeiros tinham conhecimento dos trabalhos dos segundos, e os estes últimos partilhavam o interesse pelo estudo do território em análise, incluindo as próprias casas, onde as populações em questão habitavam. Da análise das obras atrás referidas foi também possível realizar-se um exercício comparativo sobre as metodologias abordadas nos trabalhos conduzidos por Arquitectos e Antropólogos, identificando-se aqui também algumas sobreposições, realçando-se todavia, que na generalidade, embora incidindo sobre os mesmos objectos de estudo, antropólogos e arquitectos diferiram quanto aos objectivos das suas respectivas pesquisas, embora tivessem partilhado a observação directa, com produção de registos, fotografias e desenhos, por vezes idênticos, nas suas abordagens metodológicas. No que concerne ao espaço do habitar, a casa, tanto antropólogos como arquitectos fixaram-se nos mesmos aspectos e coincidiram nas tipologias a destacar. Finalmente, a organização comunitária foi objeto de estudo para os Antropólogos, que também destacaram os acontecimentos cíclicos, a organização familiar e outros aspetos que permitissem caraterizar a sociedade, enquanto que para os Arquitetos, estes aspetos só eram considerados se refletissem e explicassem, para as vertentes de ‘modos de vida’ e ‘conotações simbólicas’, as construções, a habitação e os equipamentos coletivos (e a própria paisagem humanizada), tomados assim como objetos da cultura material de uma comunidade, a preservar, eventualmente ou a ter em conta nas intervenções técnicas e de arquitetura. Confirma-se assim a exploração da dimensão cultural tanto por Antropólogos e Arquitectos, no que ao objectivo do estudo do habitat humano diz respeito, uma das dimensões em análise requeridas pela Morfologia Urbana, conforme sugerido pela presente investigação.

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CRESCIMENTO URBANO: Relações críticas entre sistemas de serviços urbanos, consumidores e seus reflexos no crescimento da cidade Decio Bevilacqua Arquiteto, Professor Associado I do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Santa Maria – RS, Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional – PROPUR, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Rua Sarmento Leite 320 5ºandar, Porto Alegre – RS. 90.050-170 Brasil. Tel. 55-51-3211.2792 e-mail: [email protected]

Romulo Krafta Arquiteto, Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional – PROPUR, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Rua Sarmento Leite 320 5ºandar, Porto Alegre – RS. 90.050-170 Brasil. Tel. 55-51-3308.3550 e-mail: [email protected]

Resumo A compreensão dos crescimentos urbanos sob o enfoque físico-econômico é o tema deste artigo. Parte-se da premissa de que a interação entre a localização de demanda e da oferta de serviços urbanos tem, como característica principal, a formação de duas forças antagônicas, centrípeta e centrífuga, geradoras de tensões no espaço urbano de forma que a localização dos serviços estaria constantemente se posicionando nas proximidades dos consumidores ou aproveitando-se de externalidades econômicas nas suas localizações. Para o entendimento dessa dinâmica, trata-se o espaço urbano como um sistema complexo, em que o conceito da “Criticalidade Autoorganizada”, desenvolvido por Bak et al. (1988, 1995), sugere, basicamente, que grandes sistemas dinâmicos evoluem de modo natural ou se autoorganizam em um estado altamente interativo, tendendo a um ponto crítico, no qual uma perturbação menor pode levar a eventos chamados de avalanches. Semelhantes forças são descritas no conceito do modelo centro periferia de Fujita et al. (2000), que considera, como fatores provocadores de concentração ou dispersão na localização espacial, as condições econômicas, a exemplo de retornos crescentes, da concorrência imperfeita e da densidade populacional com reflexos nos custos de transportes. Para Krafta (2011), esses fenômenos são caracterizados por provocarem uma dinâmica no sistema que evolui para um “ponto crítico”, sendo tal ponto um atrator, isto é, um estado mais provável da tendência do sistema e, uma vez atingido o estado crítico, o sistema tenderia a permanecer em suas proximidades até fato novo ocorrer, quando, então, o sistema passaria a outro estado. A aplicação de um modelo configuracional urbano de Distância Média Relativa, na cidade de Santa Maria – RS, possibilitou identificar os limiares das distâncias médias, caracterizando, desse modo, a criticalidade autoorganizada presente na evolução do sistema urbano. Palavras chave: morfologia urbana, limiares, criticalidade auto-organizada, estudos configuracionais urbanos.

1 Desenvolvimento teórico Na proposição teórica da Nova Geografia Econômica, Fujita (2000) relaciona os padrões configuracionais urbanos e as forças econômicas contidas no sistema. Refere-se à principal tradição da economia urbana, derivada de von Thunen, com os clássicos modelos de cidades monocêntricas. Entretanto, contrapondo com as modernas metrópoles, as quais, cada vez mais, parecem ter uma configuração policêntrica. Fujita e Ogawa (1982) assumem que essas economias são direcionadas por duas forças que se opõem no espaço urbano: uma centrípeta, que atrai negócios para o já concentrado centro principal, onde as empresas desejam compartilhar uma base de clientes ou outros serviços urbanos, e outra centrífuga, a qual os PNUM 2016 679

dispersa, já que as empresas competem por mão de obra, terras e também clientes. Esse tipo de modelo suporta estruturas urbanas policêntricas mais parecidas com as cidades atuais do que os modelos monocêntricos desenvolvidos anteriormente. Outra abordagem da Nova Geografia Econômica é o modelo “centro periferia” desenvolvido por Krugman (1994, 1996), Fujita, M, Thisse, J. F. (1996). Esses destacam, como fatores importantes na localização relativa de serviços e consumidores, a mobilidade dos trabalhadores, bem como o mercado imobiliário. Esse modelo, replicado na escala da cidade, possibilita as condições necessárias para o entendimento da formação das aglomerações de atividades econômicas no espaço urbano, explora a interação entre as economias de escala, os custos de transporte e o tamanho do mercado.

Considerando tais linhas teóricas e resgatando a tradição da análise locacional, a proposta desenvolvida neste trabalho é de que as interações entre a localização dos serviços urbanos e os possíveis consumidores, no espaço da cidade, determinam comportamento que mantém o sistema em equilíbrio instável, nas proximidades de um ponto crítico. Esses processos evolutivos do sistema são consistentes com conceitos da criticalidade auto-organizada, em que sistemas com padrões globais emergem da ação local, (Batty et al. 1999).

Autores como Allen (1997), Johnson (2003), Batty (2011), Portugali (2013) entre outros, discorrem que a cidade emerge das interações das atividades e deve ser analisada como um artefato coletivo de grande escala, o que conduz a noção de um sistema complexo. E, neste sentido, para sua compreensão, devem ser reconhecidas propriedades inerentes à complexidade, como a resiliência e a estabilidade. Teorias sobre sistemas complexos, no espaço urbano, são condizentes com a conceituação da criticalidade autoorganizada desenvolvida por Per Bak et al. (1988). Ainda, Bak e Paczuski (1995) sugerem basicamente que grandes sistemas dinâmicos evoluem de modo natural ou se auto-organizam, em um estado altamente interativo, crítico, em que uma perturbação menor pode levar a eventos, chamados de avalanches de todos os tamanhos.

Desse modo, a espacialização da cidade muda ao longo do tempo, criando um padrão de diversificação geográfica de desenvolvimento econômico por meio de processos de redistribuição de serviços urbanos. Segundo Batty et al. (1999), sempre que uma atividade muda sua localização, provoca uma reação em cadeia, em que outras atividades são motivadas a mover-se como agentes econômicos que compõem tais atividades, readaptando suas localizações para novas circunstâncias. Para Portugali (1999), a “interação de atividades” com seus agentes - consumidores e serviços urbanos - afeta o comportamento dos mesmos e faz a cidade emergir seguindo um processo de causalidade circular.

Fundamentado nesses conceitos, busca-se procedimentos que conduzam à determinação dos “limiares” de distância relativa na localização de distintas tipologias de serviços urbanos e consumidores e seus

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impactos no sistema urbano. Para a aferição desses “limiares”, foi proposta a construção de um modelo configuracional de distância relativa capaz de representar esse processo.

Na concepção de Krafta (2011), um indicador de limiar verificaria a capacidade de o sistema urbano absorver ou rearranjar-se diante de mudanças em um ou outro subsistema, ou flutuações nas interações com o ambiente, região ou macroeconomia. Estaria, assim, relacionado de forma a capturar explicitamente indícios de auto-organização e emergência de padrões urbanos diante dos limiares de criticalidade. Alguns aspectos específicos, identificados na morfologia urbana, como densificação, tensões estruturais, expansão dos serviços urbanos, distâncias relativas, polos e corredores seriam factíveis de indicar os diferentes limiares para cada tipo de serviço. 2 Metodologia Tratando-se de uma avaliação dinâmica do sistema urbano no tempo, as variáveis consideradas, para execução do modelo configuracional proposto, são formadas por uma base de dados da Prefeitura Municipal de Santa Maria e dados populacionais dos setores censitários urbanos da cidade para os anos de 1990, 2000 e 2010, IBGE (2012). Os dados sobre os serviços urbanos foram selecionados a partir do Cadastro de Alvarás de Localização de Atividades Urbanas fornecidos pela Secretaria de Município de Finanças da Prefeitura Municipal de Santa Maria (2012). Para a definição dos serviços urbanos, utilizouse a Classificação das Atividades Econômicas Urbanas contidas na Pesquisa Anual do Comércio - PAC IBGE (2009a) e Pesquisa Anual dos Serviços – PAS IBGE (2009b). Essas classificações são reconhecidas como o setor terciário que engloba as atividades de comércios e serviços urbanos no Brasil. No trabalho, são denominadas apenas por Serviços Urbanos e estão classificadas de acordo com a abrangência - local ou regional - frequência e opções de usos pelo consumidor, localização no espaço urbano, porte da atividade, serviços concorrenciais ou complementares e a interação espacial entre os consumidores. Assim, os serviços urbanos foram agrupados como Serviços Urbanos Locais, Excepcionais, Saúde, Tecnológicos e Automotivos.

Com a utilização de uma ferramenta de Geocodificação os serviços urbanos, descritos anteriormente, foram espacializados e georeferenciados sobre o mapa do sistema viário da cidade, conforme a figura 1.

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Figura 1. Espacialização dos pontos dos serviços urbanos locais nos anos de 1990, 2000 e 2010.

2.1

Mapeamento por Clusters

Os dados reais apresentam-se complexos e heterogêneos. Como propósito de simplificar o uso dessas variáveis, que representam os pontos de localização dos serviços urbanos, procedeu-se a uma análise de mapeamento por clusters, que proporciona um caminho seguro para tal escolha.

A figura 2 demonstra os procedimentos para a formação dos “Hubs” a partir dos dados. Essa formatação facilita a aplicação do algoritmo da medida configuracional da Distância Média Relativa.

Figura 2. Procedimentos para a formação dos Hubs a partir da base de dados.

O mapeamento por clusters é um processo de aglomeração por afinidades entre as variáveis, o qual facilita a identificação de pontos específicos dos serviços urbanos. De acordo com Hair et al. (2009), apud Figueiredo et al. (2014) a análise de cluster reúne pessoas e objetos em grupos, de tal forma que os objetos, no mesmo cluster, são mais parecidos entre si do que para outros clusters. O referido mapeamento permite analisar o comportamento do sistema como um todo, salientando os pequenos subsistemas que emergem no tempo e suas semelhanças ou diferenças nos padrões morfológicos para cada tipologia de serviço urbano. A formação de clusters de serviços urbanos, no espaço e no tempo, proporciona escolher os pontos representativos desses serviços no período de 1990 a 2010 e relacionar com os pontos de população. A figura 3 demonstra a formação dos clusters dos serviços locais, sendo possível visualizar sua formação, abrangência e as tendências de crescimentos no período analisado.

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Figura 3. Mapa com 15 clusters e suas poligonais gerados nos anos de 1990, 2000 e 2010 para os serviços locais.

3 Modelo de distância relativa O modelo proposto baseia-se na medida de distância relativa ponderada entre pontos de oferta de serviços e localizações residenciais. Isso envolve identificar e medir a distância entre cada localização residencial e o ponto mais próximo de oferta de serviço. A ponderação é feita pela quantidade de usuários do serviço verificada em cada localização residencial. O indicador de distância relativa é a média das distâncias de todas as localizações residenciais à localização do serviço urbano. Considerando que as cidades tendem a crescer através da expansão da área urbana, motivada tanto pela geração de novas áreas residenciais, quanto pela densificação populacional das áreas já existentes, dois pressupostos devem ocorrer nas avaliações. No caso do crescimento por meio da expansão de novas áreas, a expectativa é que essa distância aumente com o passar do tempo, até que atinja o ponto crítico. Por sua vez, no caso do crescimento pelo aumento da densificação, a expectativa é a diminuição das distâncias médias. A reação do sistema urbano à geração de novas áreas residências e à densificação deverá ser a extensão da rede de pontos de oferta de serviços na direção da expansão, restabelecendo uma distância média aquém do limiar. Esse processo seguiria com o sistema, posicionando-se sempre nas proximidades do ponto crítico.

A necessidade de verificação dessa medida exige um período temporal relativamente longo para uma observação dinâmica do processo. Como alternativa, usou-se três cortes para análise (1990, 2000, e 2010), abrangendo um período de 20 anos, verificado mediante dois procedimentos: a) mapeando a expansão das áreas residenciais e da rede de oferta de serviços urbanos e b) medindo para os três momentos, as distâncias relativas médias. A manutenção da distância média relativa, em torno de valores mais ou menos estáveis, demonstra a tese de que haveria efetivamente um limiar crítico, o qual, uma vez atingido, provocaria a reação do sistema, a extensão da rede de serviços e a recuperação dos limiares de distância anteriores.

3.1

Descrição do Modelo

Com a definição de clusters para cada tipologia de serviços urbanos, em cada ano é escolhido o centro do cluster como ponto do serviço. A seguir, são escolhidos os centroides de cada área censitária pertencente ao mesmo cluster, onde são adicionados os valores de população. Desta maneira, os centroides de cada cluster são considerados como os pontos com atributos de serviços (destino), e os centroides das áreas censitárias são os pontos representando a localização de consumidores e pertencentes ao mesmo cluster (origem).

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No passo seguinte, são gerados os “hubs” - concentradores - em que todos os pontos representando os centroides das áreas de população são conduzidos para o centro do cluster. Tais ligações representam a distância euclidiana entre os pontos de população (origem) e do serviço (destino) de uma maneira simplificada.

O valor de população de cada ponto p1, p2, p3.....pn, é multiplicado pela distância com o ponto de serviço S1 e ponderado pela população total do subsistema ao qual pertence o serviço S1 no tempo T1. O valor da medida resultante indicaria, assim, o comportamento de diferentes tipologias de serviços urbanos no tempo e na localização de população. O cálculo obedece à fórmula matemática abaixo:

Indice

pi di Pn

Onde: pi = população de uma determinada área censitária; di = distância do ponto de referência de população pi até o ponto de serviço Si; P = população total de todas as áreas pertencentes ao ponto de serviço considerado.

3.2

Resultados do Modelo

Da aplicação do Modelo, resultaram valores que configuraram quatro diferentes comportamentos. Aqueles cujas distâncias médias ponderadas apresentaram alternância de valores crescentes e decrescentes, e os que apresentaram valores sempre crescentes ou decrescentes durante o mesmo período analisado. Para todas as avaliações e para melhor interpretação desses comportamentos, anteriores a 1990 e posteriores a 2010, seria necessária uma janela temporal e espacial de simulações mais ampla.

A figura 4 expressa o comportamento das medidas da Distância Média Relativas no período “temporal e espacial” analisado. Os setores apontados, na legenda, como “só aproxima” sugerem que o resultado capturado pelo experimento foi um intervalo em que o ponto crítico não foi atingido, contudo que o processo estava em andamento, isto é, o aumento dos valores indicou que o atrator - ponto crítico - estava atuando no sistema.

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Figura 4. Setores com diferentes comportamentos nas distâncias médias ponderadas

Os setores apontados como “aproxima” indicam que o comportamento dos valores, no primeiro período, 1990 a 2000, foi de afastamento dos serviços locais, porém que, no período seguinte, 2000 a 2010, houve aproximação dessas áreas com os serviços locais. O período entre 1990 e 2000, passagem de uma condição de aproximação para afastamento, pode ser explicado pela própria dinâmica do sistema, em que outros setores absorveram as condições de oportunidades nas interações desses setores de demandas com os de oferta de serviços locais. Por outro lado, o comportamento de crescimento nos índices, no período entre 2000 a 2010, mostrou que o atrator – ponto crítico – estava atuando no sistema. Logo, os setores com essa tendência estariam na direção do limiar e poderiam alcançar o ponto crítico em algum momento.

Os setores denominados como “afasta”, são os que, no primeiro período analisado, estavam próximos dos serviços, contudo que, com os crescimentos e novas localizações de serviços locais, passaram a se afastar. São os setores em que os valores dos índices chegaram ao máximo na trajetória de aproximação e se alteraram para o afastamento, configurando a quebra brusca nos valores. Tal comportamento confirma a ocorrência do ponto crítico entre a distância da localização da oferta e da quantidade de demandantes dos serviços locais. A quebra súbita dos valores dos índices denotou que o ponto crítico foi atingido.

Já os setores descritos como “só afasta” são os que sempre estiveram afastados dos serviços locais. Esse comportamento explicita que o período “temporal e espacial” que o experimento captou foi um momento em que o ponto crítico não foi atingido. Nesse caso, o processo já não estava mais em curso, ou seja, a diminuição dos valores representa um distanciamento do limiar. Isso ocorreu de maneira semelhante aos outros comportamentos, em que não se pode determinar se o ponto crítico era decorrente do curto espaço de tempo avaliado.

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A figura 05 mostra um mapa coroplético da análise bivariada, em que duas variáveis tendem a estar em acordo ou em desacordo. São relacionados, assim, os setores com variações populacionais com maiores ganhos ou perdas e os setores (com intervalos nas alterações, para mais ou para menos, no número de pessoas) e o comportamento das medidas que resultaram nos índices de proximidade entre população e serviços urbanos.

Figura 5. Resultado da análise bivariada entre os índices de proximidade e crescimentos populacionais, para os serviços locais.

A análise bivariada confirma a existência de uma relação intensa entre os setores com maiores crescimentos populacionais e aqueles que demonstram maior proximidade com os serviços urbanos. Esse índice mostrou, do mesmo modo, que, em grande parte, essa correspondência ocorre nas áreas mais periféricas do sistema, revelando que a expansão da base de serviços acompanha o crescimento populacional.

4 Conclusões Os resultados das medidas das distâncias médias relativas e ponderadas por população, no tempo e no espaço, atingiram os objetivos propostos, bem como demonstraram acertada a hipótese estabelecida no trabalho. Os distintos comportamentos dos valores das distâncias médias demonstram, ainda, a dinâmica e a instabilidade a que os sistemas urbanos são submetidos na trajetória de sua evolução na escala intraurbana. São fases que, a cada expansão ou densificação da base residencial, localizada em setores periféricos ou mais próximos ao centro principal da cidade, o sistema de serviços se expande, criando novas configurações, como polos e corredores em diferentes setores dos espaços urbanos. Esse processo, o qual apresenta comportamentos distintos em cada tipologia de serviços, reforça a asserção de que cada um desses serviços desempenha uma interação própria com os consumidores e alcança um limiar específico para cada tipologia.

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Ao atingir o limiar - distância média máxima suportada - o subsistema reage, e novos serviços são localizados nas proximidades das residências, fazendo com que as distâncias médias retornem a patamares anteriores. Deste modo, o sistema se auto-organiza de modo a manter os serviços sempre o mais próximo dos residentes, o que é verificado no comportamento dos valores das distâncias médias ponderadas, que se alteram constantemente no tempo.

A hipótese de que a distribuição de serviços urbanos é norteada por duas forças opostas, uma centrípeta e outra centrífuga, também foi reconhecida diante das avaliações estabelecidas. Notou-se a tendência à concentração de alguns serviços, enquanto outros mantiveram uma propensão à dispersão e à aproximação com os consumidores. Isso está comprovado nas avaliações centro-periferia com as flutuações para mais ou para menos nos valores das Distâncias Médias Relativas.

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Tecido urbano do Distrito da Mooca. Um estudo de tipos. Adilson Macedo Universidade São Judas Tadeu, Curso de Arquitetura e Urbanismo Rua Taquari 546, 03166000 São Paulo, SP, Brasil. 55 11 981113797 [email protected]

Maria Isabel Imbronito Universidade São Judas Tadeu, Curso de Arquitetura e Urbanismo Rua Taquari 546, 03166000 São Paulo, SP, Brasil. 55 11 981113797 [email protected]

Resumo O Distrito da Mooca é uma área de origem industrial cujo tecido foi inicialmente caracterizado pela mescla de plantas industriais com ocupação residencial horizontal. A recente transformação do Distrito, com acentuado processo de verticalização nos lotes remanescentes das indústrias, determina uma morfologia urbana específica e representativa das transformações dos bairros industriais na cidade de São Paulo. O objetivo deste trabalho é identificar e descrever os fragmentos de tecidos existentes em uma porção determinada do Distrito mencionado: ocupação residencial com base no lote estreito, conjuntos modernos executados entre os anos de 1940 e 1970, e os “condomínios-clube” verticalizados do século XXI. Palavras-chave Transformações urbanas, morfologia urbana, bairros de origem industrial, processo de verticalização.

Introdução Neste artigo, apresenta-se o resultado de um estudo sobre tipos de tecido urbano presentes no Distrito da Mooca, considerado um exemplo das transformações que tem ocorrido em áreas de origem industrial na cidade de São Paulo. O Distrito da Mooca foi escolhido para estudo devido a sua história como área de passagem de pessoas e mercadorias para o porto de Santos, justificando a atração para as plantas industriais e moradia, determinando um tipo específico de tecido urbano caracterizado pela coexistência de indústrias junto a agrupamentos residenciais. A proximidade da Mooca com a área central da cidade, cuja distância é de 3,5Km, torna o bairro bem localizado, tendo em vista a expansão urbana que ocorreu nos anos de 1970 em direção à zona leste da cidade. A localização estratégica do distrito estimulou um rápido processo de transformação no século XXI, transformação esta que apresenta relação direta com o tipo de parcelamento e de uso do solo encontrado. A transferência das indústrias de grande porte para fora da cidade de São Paulo resultou na disponibilidade de terrenos de grandes dimensões, nos quais se PNUM 2016 689

identifica acentuado processo de verticalização em um período recente. Por outro lado, nota-se a permanência de porções preservadas de ocupação residencial e de serviços com base no lote estreito de pouca profundidade, característico da ocupação tradicional do bairro. Nestes fragmentos, antigas ou renovadas edificações de um ou dois pavimentos com uso predominantemente residencial são entremeadas por comércio nas esquinas ou no pavimento térreo das habitações. Os dois tipos de tecidos reconhecidos inicialmente no trecho em estudo, com características contrastantes (vertical e horizontal), determinam uma morfologia específica que pode ser encontrada em outros distritos da cidade, cujo processo de transformação se assemelha. Este contexto rico de significados relativos a evolução urbana da cidade motiva a pesquisa em andamento na Universidade São Judas Tadeu, sob a responsabilidade do Grupo de Pesquisa Arquitetura da Cidade, sobre as transformações do tecido urbano de bairros de origem industrial disseminados pela metrópole. Nesta fase, a pesquisa restringe-se à análise das características físicas de porções de tecido urbano selecionadas no Distrito da Mooca, através da abordagem de elementos que compõem o tecido: rua, quadra, lote e edifício (RQLE). Componentes do tecido urbano para análise Os componentes físicos do tecido urbano de interesse para esta pesquisa são: rua, quadra, lote e edifício. Os elementos RQLE são os elementos básicos para os procedimentos metodológicos dos estudos de Morfologia Urbana. Existem variadas definições destes elementos elaboradas por diferentes autores. Para este trabalho, adotamos os seguintes conceitos: Rua (R): constituída pelo espaço vazio público que separa as quadras e permite a passagem.de pessoas, veículos e infraestrutura. Quadra (Q): definida como uma área delimitada por vias públicas, que pode apresentar forma e dimensões variadas. Neste sentido, existe relação direta entre o traçado viário e o desenho das quadras. Lote (L): fração de terreno que resulta do parcelamento da quadra. No caso extremo, o lote poderá coincidir com toda a quadra. Edifício (E): construção que emerge no lote. Seu conjunto na quadra marca a volumetria e contribui para a caracterização do tecido urbano. Como explica Vitor Oliveira, “em cada cidade as ruas, quadras, lotes e edifícios são arranjados de uma maneira específica, originando diferentes tipos de tecidos” [Oliveira, 2016, 8]. Deste modo, cada cidade diferencia-se de outra por força da predominância de características peculiares do tecido, além da relação que estabelece com o sítio natural onde a cidade foi implantada. Estas condições fazem com que o tecido urbano dos fragmentos de uma mesma cidade também sejam diferentes entre si. Em nossa área de estudo, nota-se a proximidade de fragmentos de tecido de características contrastantes. PNUM 2016 690

Área selecionada para estudo O Distrito da Mooca tem área total de 770 ha, com população 75.724, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010. A área escolhida para estudo constitui apenas parte do distrito, e foi delimitada a partir de vias de tráfego que delimitam o recorte dado. Por critério empírico se consolidou o interesse para a pesquisa na porção de 72 ha compreendido entre as ruas Taquari (A), Siqueira Bueno (B), Fernando Falcão (C), Rua da Mooca (D), Itaqueri (E), Rua dos Trilhos (F) e Rua Catarina Braida (G) [Fig. 1]. Nota-se na parte superior da imagem, na direção leste-oeste, o corredor Alcântara Machado (Radial Leste) e o Metrô (transporte por trilhos). Uma grande área de uso institucional localiza-se entre o trecho em estudo, Rua Taquari (A) e a Radial Leste. Nota-se, à esquerda, uma ligação viária no sentido norte-sul, dada pelo corredor Bresser/Paes de Barros.

Figura 1. Foto aérea da área selecionada no Distrito da Mooca e identificação de diferentes tecidos. Fonte: Google Earth, figura tratada pelos autores, acesso em 04.05.2016.

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O setor selecionado é representativo da variedade de fragmentos de tecidos urbanos encontrados na Mooca. As vias que fazem o contorno do setor o atravessam ligando com as outras partes da cidade. Há vias no âmbito do setor que são as responsáveis pela distribuição dos fluxos para as vias locais. As vias que atravessam e as que distribuem estão realçadas sobre a foto aérea e nomeadas na figura 1. Foram determinados três tipos de tecido para estudo conforme os três recortes mostrados na Figura 1: ocupação em pequenos lotes; conjuntos modernos; condomínios-clube verticais.

Tecido tipo 1 - Parcelamento em lotes pequenos para uso residencial. Este recorte do tecido urbano (fig. 2) destaca-se pela predominância de lotes pequenos, cuja testada apresenta entre 3 e 10m, e com profundidade em torno de 25m. A profundidade destes lotes foi determinante para a conformação de quadras estreitas e subdivididas por passagens locais, de modo a permitir ao empreendedor da época em que foi feito o projeto do loteamento, melhor rendimento quanto ao número de lotes a serem obtidos. Deste modo se estabelece a relação indissociável entre traçado viário, quadra e lote, no momento de formação deste tecido. O traçado viário resultante de tal processo de urbanização não contemplou um plano geral, mas determinou uma profusão de ruas locais descontínuas para acesso aos lotes. Em muitos casos, nesses lotes foram construídas casas em fileiras por empreendedores privados, para atender à classe operária. Grande parte do trecho analisado é constituída por este tipo de tecido, cuja ocupação dá-se a partir de edifícios de aspectos formais e construtivos variados, mas que, em seu conjunto, apresenta um típico tecido horizontal e homogêneo. Uma característica a notar sobre o traçado e a conformação das quadras neste trecho é a existência de ruas perpendiculares à Rua Siqueira Bueno (B, Figura 1), dispostas de modo equidistante a cada 200m em direção à Avenida Cassandoca, via paralela à Rua S. Bueno, trecho entre a Rua Taquari (A) e Rua Fernando Falcão (C), configuração que determina um primeiro fracionamento do sítio. A partir desta disposição ordenada do viário, que contem vias mais largas e regulares, o que se verifica é uma subdivisão em quadras menores, que são configuradas pela proliferação de vias locais e passagens. O desenho das ruas locais busca a obtenção de maior quantidade de lotes com 25m de profundidade possíveis de serem vendidos, o que determinou quadras estreitas com desenhos variados. O traçado destas passagens e ruas locais não ficou submetido a uma visão unitária do conjunto do tecido e foi executado por partes, sob iniciativa do loteador e atendendo ao objetivo de propiciar acesso aos lotes, fato averiguado pelo não alinhamento ou continuidade destas ruas e pelas diferentes soluções encontradas para a conformação das quadras.

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Figura 2. Tecido tipo 1. De baixo para cima: diagramas de quadras, cheios e vazios, parcelamento. Fonte: desenho dos autores.

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Caracteriza esta ocupação: - vias locais estreitas e sem continuidade, com dimensão de passagem; - quadras estreitas, com largura média em torno de 50m; - variação da conformação e da direção predominante das quadras; - presença de ruas sem saída, com grupos de lotes conformando vilas; - intenso parcelamento das quadras, com lotes com frente estreita e dimensão variada; - renques de casas idênticas ou conjuntos composto por grupos de casas; - habitações compartilhando acessos (casas sobrepostas e casas no fundo do lote); - situações de conjuntos de casas com edifícios comerciais nas esquinas como parte do mesmo conjunto; - edifícios comerciais com habitação sobreposta. O intenso parcelamento vem acompanhado de alta taxa de ocupação do lote, o que resulta num tecido horizontal muito denso e intensamente construído. As poucas áreas livres remanescentes são, além das vias e calçadas públicas, os pequenos recuos laterais e, por vezes, recuos de frente ou de fundo, notando-se a existência de muitas construções executadas no alinhamento da calçada e a ocupação dos recuos remanescentes ao longo do tempo. Deste modo, apesar da aparência de um tecido de baixo impacto ambiental, por apresentar baixo gabarito, o que se verifica no diagrama de cheios e vazios é a alta taxa de ocupação do lote, que fica em torno de 0,72 (por amostragem, extraída das quadras centrais do trecho selecionado), acompanhada por alto índice de impermeabilização do solo e dificuldade em iluminar e ventilar ambientes no miolo do lote. O intenso parcelamento em lotes pequenos favoreceu a permanência deste tipo de tecido urbano em contraposição ao surgimento de edifícios verticalizados que tem ocupado os grandes lotes remanescentes das indústrias. Este processo determinou a morfologia e a paisagem urbana observada hoje: a convivência entre casas e torres residenciais. Tecido tipo 2 – Conjuntos residenciais modernos. No trecho selecionado do Distrito da Mooca, duas glebas foram urbanizadas para a construção de conjuntos de habitação coletiva durante os anos 1940 a 70: um conjunto feito em 1946 pelo Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI) e outro, de 1947, a cargo do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Empregados em Transportes e Cargas (IAPETC). Apesar de concebidos e executados no mesmo período, os conjuntos seguem modelos e orientações diversas. O conjunto do IAPETC (Núcleo Residencial da Mooca1) (Fig.3 A) é o trecho que apresenta traçado mais adequado à topografia, considerando a totalidade da área em estudo. Em contraste com as vias do entorno, o arruamento em semicírculo coincide com as curvas de nível do terreno original. A sequência de vias curvas, cada qual em uma cota diferente, determina edifícios implantados em platôs. As ruas são Projeto dos blocos: Escritório Técnico Ramos de Azevedo; projeto dos sobrados: Jayme C. Fonseca Rodrigues. Conforme Bonduky e Koury, 2014.

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articuladas por passagens transversais de pedestre vencendo os desníveis. A relação entre a declividade e o arruamento fica evidente no desnível entre os blocos implantados em quadras diferentes. Conforme Bonduki e Koury (2012, 272), o conjunto ocupou inicialmente apenas parte da gleba, deixando vazias algumas quadras nas quais foram implantados edifícios pelo BNH (Banco Nacional de Habitação) nos anos 1970. Nas implantações dos conjuntos misturaram-se modelos diferentes de ocupação, notados tanto através do diagrama de cheios e vazios como pelo mapeamento dos lotes. No plano inicial de 1947, as quadras das cotas mais altas foram ocupadas com uso de praça e igreja, seguida por quadras com edifícios de habitação com três pavimentos e quadras onde foram erguidas casas em renques. Em ambos os casos, o parcelamento determinou lotes separados por edifício. Nestes segmentos do anel, os edifícios que arrematam as quadras transversalmente foram projetados com comércios nos térreos, uma vez que ficam voltados para rua movimentada em uma das bordas do conjunto. Nas quadras mais baixas, onde foram executados os prédios de habitação pelo BNH, não houve parcelamento em lotes. Os edifícios com piloti (estacionamento no térreo) e três pavimentos compartilham a área verde por quadra. Fica evidente que este trecho do conjunto é o que apresenta menor taxa de ocupação (0,32), quando comparada com a taxa obtida nas quadras de residências unifamiliares (0,77) e nas quadras com blocos de três pavimentos de 1947 (0,53). A quadra mais baixa, na borda do conjunto, volta a apresentar uso institucional e abriga uma escola. O Conjunto Residencial da Mooca executado pelo IAPI2 (Fig.3 B), do mesmo modo que o Conjunto IAPETC, apresenta traçado característico e adaptado ao local. Devido ao tamanho da gleba, o arruamento, definido no momento do projeto do conjunto, possui uma rua curva que converge para uma praça no encontro entre a Rua dos Trilhos e a Rua Catarina Braida. A rua curva determina quadras irregulares que assimilam diferentes comprimentos de edifícios laminares de uma única tipologia. A gleba foi separada em quadras e lotes, sendo um lote para cada edifício. O modelo proposto é de edifícios verticais para habitação coletiva, de baixo gabarito servido por escadas, em meio ao verde. No diagrama de cheios e vazios foram descontadas as coberturas para automóveis hoje existentes e adaptadas nas áreas verdes correspondentes a cada bloco, de modo que o diagrama reproduzido na figura 4 corresponde à proposta original. O conjunto contaria com uma praça central que faz frente para as duas ruas que cortam o conjunto. A praça hoje constitui um lote em posse da União e os jardins dos edifícios ficam entre grades, o que compromete de certa forma a proposta original de habitar em meio ao verde. A questão do fechamento por grades aparece na maioria dos conjuntos e reflete a síndrome por segurança que é comum hoje em dia na cidade de São Paulo. Neste modelo, a taxa de ocupação do lote fica em 0,26.

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Projeto do arquiteto Paulo Antunes Ribeiro. Conforme Bonduky e Koury, 2014.

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Figura 3. Tecido tipo 2. De baixo para cima: diagramas de quadras, cheios e vazios, parcelamento. O IAPI ocupa as quadras indicadas por B e as quadras na mancha A correspondem ao IAPETC – e BNH. Fonte: desenho dos autores.

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Tecido tipo 3 - Condomínios-clube em grandes terrenos de origem industrial. No distrito da Mooca, no início do século XX, as superfícies planas abrigaram plantas industriais. Apesar de haver concentração das grandes quadras industriais na parte baixa do Distrito (na várzea do Rio Tamanduateí) e, portanto, fora da área de estudo, é possível notar por todo o Distrito a presença de quadras para uso industrial intercaladas com quadras de uso residencial. No processo de transformação recente do Distrito, a partir dos anos 2000, os lotes das antigas indústrias deram lugar a condomínios residenciais verticais. Na área em estudo, foram selecionados três fragmentos deste tipo. Com a saída das indústrias e o movimento provocado pela abertura de capital das empresas construtoras, os grandes lotes, algumas vezes coincidentes com a totalidade das quadras de grande porte, deram lugar a conjuntos de alto padrão, que vem sendo denominados “condomínios-clube”. Caracteriza um condomínio clube: - grandes lotes; - presença de várias torres por empreendimento; - acentuada verticalidade – edifícios com cerca de 30 pavimentos; - presença de diversos itens de lazer; - predomínio de acesso por automóvel com diversas vagas por unidade; - acesso único ao conjunto, controlando o acesso de pedestres e veículos - muros altos contornando a área. A legislação municipal em vigor nos anos 2000 reforçou este tipo de ocupação, determinando porcentagens de áreas não computáveis para efeito de área construída, para os usos comuns nos pavimentos térreos, determinando uma profusão de itens de lazer nos empreendimentos. Além disso, o controle de acessos e a segurança são itens buscados pelos moradores de tais conjuntos. Esta ocupação recente gerou uma transformação no tecido urbano do distrito (fig.4), que hoje é marcado pela convivência do modelo predominante do lote estreito e casa unifamiliar, onde os lotes maiores são ocupados com torres habitacionais presentes na paisagem do bairro. Conforme Iñaki Abalos “hoje, a ampla maioria dos arranha-céus está localizada nos trópicos (particularmente na Ásia), é residencial, com estrutura de concreto e naturalmente ventilada. Sem nenhuma aparência monumental os arranha-céus tornaram-se produtos de consumo” [Abalos, 2015,610].

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Figura 4. Tecido tipo 3. De baixo para cima: diagramas de quadras, cheios e vazios com preenchimento apenas dos edifícios verticalizados, parcelamento mostrando os lotes da quadra em que os conjuntos se inserem. Fonte: desenho dos autores.

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A existência destes condomínios tem transformado o padrão dos comércios e sua relação com a rua, tem impactado no fluxo de automóveis, etc. Ainda que mantidos os antigos comércios e serviços do bairro, em algumas bordas destes conjuntos foram implantados street-malls com vagas para estacionamento de automóveis em frente, para atender ao público de passagem e morador do bairro. A ocupação destes lotes é intensa, porém grande parte é de baixo gabarito, determinada por subsolos e espaços cobertos no térreo, com garagens ocupando quase a totalidade da área onde é situado o condomínio. Por outro lado, o grande contraste de gabarito entre os embasamentos e as torres passa a impressão de terrenos pouco ocupados. Assim, optou-se por desenhar o contorno dos embasamentos e dos edifícios baixos, e preencher apenas a projeção das torres habitacionais no diagrama de cheios e vazios. O cálculo da taxa de ocupação, considerando-se apenas a parte verticalizada, fica em torno de 0,17. Considerações finais O distrito da Mooca é um exemplo, do ponto de vista morfológico, dos bairros de origem industrial na cidade de São Paulo. O tecido original marcado pela coexistência de plantas industriais ocupando grandes lotes, e agrupamentos de casas unifamiliares com base em pequenos lotes, deu lugar a uma transformação recente, cujos fatores desencadeantes estão relacionados à evasão das indústrias, que disponibilizou grandes terrenos, e ao processo de verticalização impulsionado pela movimentação do mercado da construção. O parcelamento do solo, sendo mais difícil de ser modificado, é um fator determinante da localização dos recentes empreendimentos verticais, denominados “condomínios-clube”. Por outro lado, o intenso parcelamento das antigas áreas residenciais determinou bolsões preservados de uso residencial e de comércio, em uma ocupação predominantemente horizontal. Outro fator que contribuiu para a manutenção destas áreas horizontais é a presença de ruas locais estreitas, que apresentam restrições para a verticalização e mudança de uso na legislação municipal atual. Enquanto os condomínios verticais recentes não favorecem a desejável vida urbana, sendo caracterizados por extensos muros com controle e vigilância de acessos, o antigo uso residencial com base na casa individual contemplava, em sua origem, comércios nas esquinas e a relação direta da moradia com a calçada. A dificuldade dos incorporadores imobiliários para a reunião dos pequenos lotes em um lote passível de receber conjuntos verticais é uma realidade. Isto fez com que sobrassem no teecido urbano grandes áreas preservadas com este tipo de ocupação. Situação que sugere a ação de políticas urbanas de proteção a estas áreas, marcadamente contrastantes com relação aos recentes condomínios emparedados e testemunho de fases da evolução urbana da cidade.

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Outro tipo de tecido é encontrado em quadras ocupadas por conjuntos de habitação coletiva de médio gabarito (3 a 4 pavimentos), que foram executados entre os anos 1940-1970. Estes conjuntos, nos quais foram aplicadas as propostas modernas de moradia agrupada em meio às áreas livres, trazem a lembrança de um tipo de moradia para população operária, com características específicas de traçado, ocupação e relação de cheios e vazios, que hoje apresentam interesse para preservação. O distrito da Mooca tem o atrativo da existência de uma grande variedade de tecidos representativos do crescimento, dito desordenado da cidade de São Paulo (não pela falta de planos diretores!), mas que foi o possível segundo o contexto cultural-social-econômico onde isto acontece e agora possibilita se criar pontos interessantes de vivência na nova cidade globalizada.

Figura 5. Vistas dos tecidos tipo 1, 2 e 3. Fonte: fotos dos autores.

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Referências bibliográficas Abalos I (2015) Verticalismo, in Mostafavi, M e Doherty,G (Org.) Urbanismo Ecológico, Gustavo Gili, São Paulo. Barnett J, Beasley L (2015). Ecodesign for cities and suburbs, Island Press, Washington. Bonduki N, Koury A P (2014) Os pioneiros da habitação social. V2. Inventário da produção pública no Brasil entre 1930 e 1964. Editora Unesp/Edições SESC-SP, São Paulo. Busquets J (2014). Revisiting the urban grid: applied research. Harvard Design Magazine, Cambridge, MA, n.37. Coelho C D (2013) O tecido, leitura e interpretação. In Coelho, C. D. (org.) Caderno MUrb de Morfologia Urbana 1: Os elementos urbanos, Argumentum, Lisboa. Macedo A C, Khoury A P, Gonçalves P E B (2008) Transformações da forma urbana do distrito da Mooca. Integração, São Paulo, n.52. Oliveira V (2016) Urban morphology: an introduction to the study of the physical form of cities. Springer, Zurique.

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(Cidade) Real: Estudo do processo de formação do Bairro Alto das Mercês, São João del-Rei/MG Marcelo Silva (1); Adriana Nascimento (2) (1)

Depto. de Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas (DAUAP), Universidade Federal de S. João del-Rei (UFSJ).

Rua Imigrante Marcos Davim, 267, Colônia do Marçal – S. João del-Rei/MG, 3630-264, Brasil. Fone: +55 32 3371-1549. [email protected] (2) Depto. de Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas (DAUAP), Universidade Federal de S. João del-Rei (UFSJ). Rua João XXIII, 251 – Centro. Ritápolis /MG, 36335-000, Brasil. Fone: +55 31 99500.5244 [email protected]

Resumo Neste artigo trataremos da aplicação do estudo da forma urbana a partir da relação entre as políticas públicas de gestão urbana e a formação e consolidação do Bairro Alto das Mercês, na cidade de São João del-Rei/Minas Gerais (SJDR/MG). Ainda que tangencie o dito “centro histórico” da cidade, o Bairro é compreendido como território e região de transição periférica, devido a sua condição de segregação socioespacial, pela carência de dados e informações cadastrais, ausência de atuação política por parte do Estado, seja em infraestrutura urbana e/ou regulação, e ainda de equipamentos públicos. A abordagem metodológica adotada se referencia em estudos Conzenianos, estudos histórico-geográficos, envolvendo a pesquisa e a análise de documentos cartográficos, posteriormente vetorizados com softwares CAD, de imagens de satélite e em avaliação da topografia com auxílio de software de modelagem de informação. A principal dificuldade encontrada nesta etapa esteve relacionada à diversas lacunas, desde a ausência de informações sobre o parcelamento do solo, às bases cartográficas e à diversidade de escalas, variando entre 1:50.000 e 1:2.000. Outro fator a ser considerado é a diversidade de metodologias utilizadas na produção destes materiais, simultaneamente comprometendo e contribuindo com sua qualidade final. Complementarmente, analisamos iconografia de diferentes períodos: fontes bibliográficas sobre o desenvolvimento da cidade de São João del-Rei, dados do Censo Populacional de 2010, realizamos visitas de campo, onde verificamos as condições atuais do Bairro e coletamos relatos da população local. A partir destes estudos pudemos apreender melhor as diferentes dinâmicas e atores que estiveram envolvidos na formação da cidade e identificar os eixos estruturantes da malha urbana, bem como a constituição de regiões com características de centralidade e/ou de periferia numa relação pendular entre o Bairro e a cidade estudados. A caracterização destas últimas, por sua vez, foi definida com base em metodologia híbrida, que combina estudos da forma urbana e a análise socioeconômica.

Palavras-chave Análise urbana; formação urbana; São João Del-Rei; metodologia; transição. PNUM 2016 703

Introdução e revisão bibliográfica Neste artigo o entendimento da noção de cidade é retomado1 não como totalidade, mas através do parêntese que procura situar espacialmente aquilo que, para nós, revela parcialidade e não igualdade2. Assim, os estudos da forma urbana vêm sendo realizados como tentativas de se compreender o processo de formação e consolidação urbana, nesse caso, no recorte do Bairro Alto das Mercês, na cidade de São João del-Rei (SJDR). Deste modo, pudemos demonstrar a relação entre as políticas públicas de gestão urbana e sua condição de território e região de transição periférica (Rossi, 2001; Nascimento e Silva, 2013) apesar do Bairro estar situado tangencialmente ao dito “centro histórico” (Figura 01). Tal condição se evidencia pela segregação socioespacial (Castells, 2009; Maricato, 2003), pela carência de dados e informações cadastrais, ausência de atuação política por parte do Estado, seja em infraestrutura urbana e/ ou regulação, e ainda de equipamentos públicos. A ideia de segregação é reforçada se consideramos as questões relativas ao acesso à terra, à segurança jurídica da posse e sua constituição física, marcada pela autoconstrução 3. Nosso estudo se apoia, por um lado, no enunciado de Maricato (2003) segundo o qual para se resolver a cidade ilegal4 é necessário conhecê-la. Deve-se notar que a autora aborda nesta formulação as condições que levam à reprodução da cidade ilegal, tais como “a existência de um mercado imobiliário excludente e a ausência de políticas públicas abrangentes”, e ainda, a questão do reconhecimento desta parcela da cidade a partir do ponto de vista jurídico, campo em que houve um significativo avanço a partir da promulgação do Estatuto da Cidade no Brasil (Lei nº 10257/2001). Optamos pela aplicação desta metodologia de estudo pois acreditamos que para a superação da condição urbana atual (Gomes, 2006; Nascimento, 2009), marcada pela informalidade, esta passa pela compreensão do processo de formação do tecido urbano (Nascimento et al, 2016;) numa intrínseca relação com o tecido social (Ribeiro, 2012), assim como para um maior entendimento daquilo que corresponde à sua estruturação histórico-geográfica, conforme a leitura por regiões morfológicas (Nascimento et al, 2016) em relação à sua conformação tempo-espacial, tão importante quanto a abordagem jurídica da questão.

Recorte epistemológico apresentado na tese de doutorado da Adriana Nascimento, (arte) e (cidade): ação cultural e intervenção efêmera, em 2009. 2 Para Ana Clara Torres Ribeiro a igualdade pode ser considerada a tradição legada pela modernidade (Ribeiro, 2012). 3 A formação de territórios populares/periféricos em SJDR e questões relacionadas à justiça ambiental vêm sendo estudadas pelo Prof. Eder Carneiro que em artigo de 2007, afirma que um dos principais instrumentos de acesso à terra, ao lado dos loteamentos clandestinos, é o aforamento de terras públicas, instrumento jurídico que concede à pessoa o direito de uso da terra, mas não a posse. Constituindo “ mecanismos funcionais de produção e reprodução de desigualdades ambientais urbanas”. Recentemente, o aspecto de “segurança na posse” vem sendo trabalhado pela Profa. Márcia Saeko Hirata, do DAUAP. 4 Universo que compreende as favelas, os loteamentos ilegais e ainda a cidade construída à revelia da “legislação urbanística (...) e à legislação edilícia (...)” (Maricato, 2003, 80). 1

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Figura 1: Mapa de situação do Bairro. Org. Marcelo Silva, 2016.

Neste sentido a aplicação de métodos de análise da forma urbana, associados a outros métodos de pesquisa, nos garantiu um melhor entendimento da estrutura intra-urbana (Villaça, 2009) de SJDR além de ter permitido identificar os núcleos com diferentes níveis e dimensões (Lefebvre, 2008) de centralidade, de vetor de crescimento, e de periferia. Ainda nos permitiu reconhecer os diferentes atores e forças envolvidas no processo de formação da cidade. Considerando ainda, que segundo Lefebvre (2008, 65) a cidade apresenta uma dupla morfologia, a material (prático sensível) e a social, nossa abordagem metodológica procurou, portanto, trabalhar este cruzamento, perpassando tais relações como demonstraremos no tópico a seguir. Materiais e Métodos Uma vez que nossos estudos se referenciam na abordagem histórico-geográfica, parte dos trabalhos foram desenvolvidos observando-se a estruturação tripartite desta metodologia: a primeira envolveu a análise do plano a partir de bases cartográficas e da topografia, a segunda consistiu no desenho da silhueta das edificações a partir da base cartográfica, da ortofoto de 2005 e imagens de satélite disponíveis gratuitamente, e, por fim, a terceira etapa consistiu em visitas ao Bairro para estudo do tecido edificado e dos usos do solo. Durante a primeira e a segunda etapa foram utilizadas as seguintes bases:

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a) Mapa da Cidade de São João del-Rei, mapa topográfico de 1895 (Figura 02) elaborado pela Comissão Geográfica e Geológica de Minas Gerais em escala 1:100000 representando o território do município, disponível no Arquivo Público Mineiro;

Figura 2: Detalhe mostrando a Carta Topográfica de SJDR de 1895, original e vetorizada. Fonte: Original, Arquivo Público Mineiro; Vetorizada por Marcelo Silva, 2015.

b) Planta da Cidade de São João Del-Rei de 1927, na escala aproximada de 1:50000 elaborado pela Secretaria de Agricultura do Estado de Minas Gerais, disponível no Álbum Chorográphico5 de Minas Gerais; c) Planta da Cidade de São João del-Rei de 1944, sem informação de autoria em escala de 1:8000 representando os perímetros urbano e suburbano da cidade, além das áreas tombadas pelo Serviço Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN); d) Plantas Cadastrais da Cidade de São João del-Rei, plantas sem informação de data, porém, acredita-se que sejam da década de 1970, elaboradas pelas Centrais Elétricas de Minas Gerais S.A. (CEMIG) em escala 1:2000 representam a topografia da área urbana, a divisão em parcela das quadras e o posicionamento das edificações nas parcelas. Trata-se da melhor base documental cartográfica, ainda que incompleta, a que tivemos acesso; e) Mapa Viário da Cidade de São João del-Rei, elaborado pela Prefeitura Municipal no ano de 2006 para a elaboração do Plano Diretor com base na ortofoto da área urbana de 2005. Este mapa foi complementado com o levantamento das plantas dos loteamentos aprovados no período entre 2006 e 2015 e ainda com o apoio de imagens de satélite disponibilizadas em softwares como o Google Earth Pro.

Palavra de origem grega (khora + graphein) que se refere à descrição de uma região ou de uma parte importante do território.

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f)

Topografia digital de parte da sede Municipal com equidistância de 1 metro entre as curvas de nível, produzida por empresa desconhecida e contratada pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto de SJDR, no ano de 2007.

A maioria destas bases foram encontradas disponíveis em formato digital6 o que possibilitou que fossem inseridas no software de desenho assistido por computador AutoCAD7 e, a partir disso, pudemos produzir o mapa vetorizado da área urbana de São João del-Rei nos diferentes períodos. Uma vez que as plantas cadastrais da década de 1970 foram produzidas no sistema de projeção Universal Transversa de Mercator (UTM), foi possível produzir a versão vetorial georreferenciada das mesmas com base nas coordenadas nelas informadas. A partir disso, as demais bases vetoriais foram georreferenciadas e sobrepostas a partir do alinhamento de pontos geográficos coincidentes entre si 8. Vale ressaltar que alguma imprecisão ou distorção neste processo pode estar relacionada às diferentes metodologias e projeções empregadas na confecção das bases originais. Já a análise da relação entre o construído e o sítio ficou restrita à área do Bairro do Alto das Mercês e a parte do “Centro Histórico”, consistindo da análise das declividades e das microbacias hidrográficas que constituem o terreno (Figura 03), o que entendemos como um estudo tridimensional para além do proposto na abordagem histórico-geográfica. Neste momento o terreno foi modelado tridimensionalmente e foram adquiridas as informações desejadas com auxílio do software AutoCAD Civil 3D. Com a terceira etapa foi possível complementar a base cartográfica, produzida sobre as que a precederam, inserindo novas edificações e vielas, já que os mapas existentes da cidade não incorporam ou representam tais áreas, como se não existissem ou não se tratassem de lugares relevantes ou históricos. Também foram representados os elementos edificados durante o lapso temporal entre a produção da ortofoto e a realização do trabalho, ou que não foram identificados devido aos limites impostos pela resolução das imagens mais recentes e disponíveis. Já a análise da morfologia social envolveu diferentes atividades de pesquisa e análise em gabinete ou em campo. Sendo coletados registros fotográficos e outras iconografias em arquivos históricos e pessoais, bibliografias sobre o desenvolvimento urbano e dados primários do censo populacional de 2010 e sobre a

6 Exceto a Planta de 1944, cuja versão impressa faz parte do acervo do Museu Regional de São João del-Rei e foi digitalizada por nós e salva no formato JPG. 7 A opção por este programa se justifica pois o mesmo é largamente utilizado entre os entre os estudantes do Curso de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), superando a utilização de softwares de Sistema de Informação Geográfica (SIG). Entendemos que a sua aplicação na produção de bases cartográficas não impede a utilização destas em outros processos e analises, incluindo no próprio SIG. 8 Os pontos utilizados para o georreferenciamento foram: a confluência entre os córregos do Rio Acima e do Lenheiro, na região central, e a confluência entre o Córrego do Lenheiro e o Rio das Mortes, na região entre o Bairro Fábricas e a Várzea da Colônia do Marçal.

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infraestrutura urbana junto à Administração Pública, além da coleta de relatos de moradores com a aplicação de entrevistas e da metodologia de história oral.

Figura 3: Mapa de análise da relação entre declividade da topografia e o conforto dos pedestres. Autoria: Marcelo Silva, 2015

Este processo incluiu ainda alguns mapeamentos coletivos realizados com a participação de moradores do Bairro, e que serviram tanto para o seu reconhecimento, quanto para a identificação e espacialização de problemas existentes. Discussão de processos e resultados A principal dificuldade encontrada na produção deste trabalho esteve relacionada à lacuna entre as bases cartográficas e a diversidade de escalas, variando entre 1:50.000 e 1:2.000, bem como das metodologias utilizadas na confecção das bases originais. O que se evidencia pela existência de cartas elaboradas segundo métodos topográficos criteriosos como as cartas de 1895 e da década de 1970 e de outras produzidas quase que artesanalmente, como a planta da cidade de 1944 e o mapa viário de 2006. Neste sentido, frisamos que a diversidade de metodologias utilizadas neste trabalho busca suprir, simultaneamente, aquilo que compromete e contribui para a produção das bases cartográficas e sua qualidade final (Figura 04).

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Figura 4 Mapas de evolução urbana elaborados a partir da base cartográfica citada no item Materiais e Métodos. Notar que não há registro cartográfico sobre a ocupação da região da colônia no período entre 1895 e os anos 2000. Autoria: Marcelo Silva, 2015 PNUM 2016 709

Há que se notar que, com exceção das cartas cadastrais da década de 1970, em nenhuma das bases cartográficas com as quais trabalhamos havia informações quanto ao parcelamento do solo urbano ao longo dos últimos 120 anos. E que, mesmo com a ortofoto ou as imagens de satélite a que tivemos acesso, não foi possível identificar os lotes na área estudada devido principalmente à característica de ocupação do sítio, baseada na autoconstrução do espaço, fugindo à lógica da parcela na cidade legal (Maricato, 2003), bem como devido à baixa resolução das imagens encontradas e utilizadas. Apesar da ausência destes dados interferir na qualidade final dos resultados do estudo histórico-geográfico, prejudicando a compreensão aprofundada do processo de formação e estruturação do tecido urbano, a mesma demonstra a relevância de estudos dessa natureza, sobretudo de áreas segregadas e com o objetivo de tornar e se atuar na cidade inteira, como um todo e na qual seus habitantes sejam considerados cidadãos. Ressaltamos que apesar de a abordagem histórico-geográfica estar estruturada em etapas bem definidas, a produção da base para os estudos morfológicos do mundo prático sensível deve incorporar um processo de contínua construção e revisão. Assim, as três etapas podem ocorrer concomitantemente, sobretudo em casos onde os registros cadastrais inexistem, como no caso estudado. Ao nosso ver, isto evidencia que a divisão em etapas distintas possui caráter puramente didático e que os processos de elaboração, levantamento e analise cartográfica contribuem em muito para a compreensão tanto dos objetos, quanto dos objetivos. Deste modo, identificamos quatro períodos morfológicos (OOLYHLUDe PLQKR, 2011) em São João del-Rei: o primeiro inicia-se em fins do século XVIII e vai até aproximadamente a década de 1850 – que estaria relacionada ao ciclo do ouro, o segundo se estende desta década até a década de 1960 – marcado pelo predominância comercial e de industrialização -, o terceiro, da década de 1960 a fins da década de 1980 – marcado por estagnação econômica - e o último se inicia nos anos 1990 até a atualidade – predominância da expansão urbana sem refletir acerca da questão da preservação urbana e socioambiental. Apesar de a ocupação da encosta onde se situa o Bairro do Alto das Mercês remontar à origem da cidade e estar relacionada à mineração, sua ocupação mais intensiva se dá a partir do terceiro período morfológico, quando a cidade recebe fluxos de migração oriundos de cidades e zonas rurais vizinhas (década de 196070) e quando há um processo de expulsão de moradores de áreas próximas ao centro devido à valorização da terra e dos aluguéis (década de 1980) (Carneiro, 2007). Dentre as questões surgidas no processo de realização do trabalho, a relacionada ao alcance das políticas públicas evidencia as práticas de gestão política, que investe recursos e promove ações em áreas restritas do território, principalmente naquela reconhecida como centro histórico, ainda que questionados sobre modos e procedimentos relacionados à “preservação” do patrimônio cultural. Sobressai-se ainda que esta

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gestão desconhece a cidade e, desse modo, fica incapaz de rever diretrizes urbanas e territoriais, assim como de exercer efetivamente seu papel. O Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSJ, com apenas 7 anos de existência, tem avançado e contribuído nesse sentido, diretamente com a população (via ensino, pesquisa e extensão) e indiretamente e cientificamente com a publicação destes trabalhos. Agradecimentos Reconhecemos e agradecemos a colaboração dos moradores do bairro Alto das Mercês, da Prefeitura Municipal de São João del-Rei, do Museu Histórico e Regional desta cidade e da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Referências Carneiro E (2007) Apropriação das condições naturais e construção histórica de territórios em São João del-Rei (MG) XXIV Simpósio Nacional de História, Anais, Associação Nacional de História, São Leopoldo. Castells M (2009) A questão urbana, 4. Ed, Paz e Terra, Rio de Janeiro. Lefebvre H (2008) A revolução urbana, Editora UFMG, Belo Horizonte. Maricato E (2003) Conhecer para resolver a cidade ilegal, L Castriota (org) Urbanização Brasileira: redescobertas, C/ Arte, Belo Horizonte. Nascimento A (2009) (Arte) e (Cidade): Ação cultural e intervenção efêmera, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Rio de Janeiro. Nascimento A, Silva M (2013) Transição (entre) o sentido da forma e conteúdo: Territorialidades e temporalidades em São João del-Rei, IN: Pinto, A Almeida (eds) Livro de Actas, Coimbra. Nascimento A, Saraiva, A, Ferreira, A. (2016) Leitura de uma parte a Rua Costa Cabral no Porto segundo Conzen. IN: Diferentes abordagens no estudo da forma urbana. FEUP Edições, Porto. Oliveira V PinhoP(2011) The study of urban form in CITTA. LQ: Bringing City Form back into Planning. Citta 3rd Annual Conference on Planning Research. FEUP,FCT, Citta, Porto. Ribeiro (2012) Por uma sociologia do presente: Ação, técnica e espaço. ANPUR, Letra Capital, Rio de Janeiro. Rossi A (2001) A arquitetura da cidade, Ed Martins Fontes, São Paulo. Villaça F (2009) Espaço intra-urbano no Brasil, 2 Ed, Studio Nobel, São Paulo.

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7. Agentes e processos de transformação

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Na fonte das cidades, as águas e as pessoas: a experiência do projeto Parque Capibaribe no bairro das Graças (Recife, Brasil) Fabiano Diniz, Danielle Rocha, Werther Ferraz e Anna Karina Alencar Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pernambuco Av. Prof. Moraes Rego, 1.235 - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50670-901 | Fone/Fax: 55 81 2126-8771 [email protected] / [email protected] / [email protected] [email protected]

 Resumo Da formação das cidades se apreende que os sítios onde se assentam os aglomerados humanos são modelados pelas águas, que impõem restrições e/ou oferecem possibilidades para a construção do artefato cidade. Desde seus primórdios, as comunidades urbanas estabeleceram com os cursos d’água um vínculo misto de dependência (para abastecimento d’água e escoamento de esgotos) e de receio (dos desastres provocados pelas águas que eles carregam). As cidades crescem num movimento de oposição às águas e à dinâmica dos sistemas naturais de drenagem. A ocupação de fundos de vales; os aterros; a impermeabilização do solo; a retificação e/ou revestimento de cursos d’água agravam o conflito água-urbanização. No Recife, essa relação conflituosa é patente. Fundada entre o mar e os rios, essa cidade estuarina tem sua forma em boa medida determinada pelos meandros de seus cursos d’água e suas áreas de influência. Do traçado da malha urbana às tipologias construtivas ali consolidadas, muito se depreende dos limites e possibilidades impostos pelas águas. A relação desigual da produção do espaço urbano e a consolidação de territórios em que esses conflitos imperam tomam a forma de uma cidade avessa às águas. Desde 2013, urbanistas buscam rever o trato das relações águas-cidades, empregando fundamentos contemporâneos de gestão urbana “sensível às águas”. O projeto Parque Capibaribe visa à humanização e à integração das margens desse rio com espaços verdes da cidade, redesenhando a estruturação do espaço urbano a partir de uma lógica “aquacêntrica”. Fruto de convênio entre o grupo de pesquisa InCiti e a Prefeitura da Cidade do Recife, o projeto repensa o modo como os recifenses vêem e vivem a cidade, estimulando uma construção colaborativa de espaços socialmente inclusivos. Concebendo o planejamento urbano a partir do rio Capibaribe, elemento imprescindível na estruturação e expansão do Recife e intimamente ligado à sua história, exige-se uma mudança de mentalidade da população e dos gestores públicos em relação às águas. O caso da elaboração de um projeto de mobilidade à beirario no bairro das Graças ilustra essa pretensão, através da transformação dos paradigmas de produção e da natureza dos espaços públicos urbanos. Concebido inicialmente como um projeto viário, com quatro faixas para automóveis, a via passa a ser pensada como um parque linear humanizado, que põe o Capibaribe em evidência. O trabalho investiga como, baseado na ideia de transformação a partir das pessoas, os atores envolvidos lançam as bases das mudanças nesse espaço urbano à beira-rio. Palavras-chave Águas e cidades; espaços públicos; gestão territorial urbana; atores sociais e participação; morfologia urbana.

O Recife e o Capibaribe: histórico da relação da cidade com suas águas A identificação do Recife com o rio Capibaribe remete à sua fundação, no século XVI, quando o núcleo original foi construído sobre um istmo, entre o oceano Atlântico e o estuário do rio Capibaribe, que ligava um porto natural de arrecifes ao monte mais próximo, onde se construiu a Vila de Olinda, primeira capital PNUM 2016 727

de Pernambuco. Quase um século depois, os ocupantes holandeses converteram este povoado junto aos arrecifes no principal centro econômico regional, posteriormente elevado a capital provincial e uma das maiores cidades brasileiras até o século XIX. A presença das águas é uma peculiaridade relevante do seu sítio geográfico e caracteriza a formação desta cidade onde “o que não é água, foi água ou lembra a água, sendo essa a razão por que a crismaram de ‘cidade anfíbia’” (Oliveira, 1942, 48).

A malha urbana recifense se expandiu sobre a planície alagada na foz do Capibaribe, condicionada pelo enfrentamento/adaptação aos corpos d’água ()LJXUD). Amorim e Loureiro (2000) utilizaram ferramentas da sintaxe espacial (Hillier, 1984) para analisar mapas históricos do Recife. Neste estudo, observa-se que as linhas mais integradas do tecido urbano se voltavam às margens do estuário, sendo a conexão da rede fluvial com o tecido urbano incontestável na gênese morfológica do Recife.

 Figura 1. Mapas de Recife e Olinda elaborado por Cornelis de Goliath (1648) (Het Scheepvaartmuseum, Amsterdam).

Até começos do século XX, o Capibaribe, uma das principais vias de transporte, lugar de lazer e higiene , era central na estruturação urbana. O vertiginoso crescimento populacional naquele século e a substituição do transporte fluvial pelo terrestre reduziram sua influência na organização do espaço urbano. Outros fatores contribuíram para isso: o alagamento periódico da rede fluvial, remodelando as margens e



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dificultando ocupações permanentes e a troca dos banhos de rio pelos banhos de mar, devido à degradação do estuário por insuficiente cobertura de saneamento face ao crescimento populacional.

Grande parte das áreas ribeirinhas e alagadas do Recife não recebeu a devida atenção no processo de urbanização, sendo ocupada pela população com menores rendimentos. Palafitas e mocambos tornaramse elementos típicos da paisagem ribeirinha. Muitos dos bairros recifenses se originaram do aterro de áreas alagadas, inicialmente pela população de baixa renda, depois por outras classes sociais, incorporando algumas dessas áreas ao mercado imobiliário e expulsando antigos moradores.

No século passado, em detrimento de propostas de Parques Urbanos no estuário às margens do Capibaribe, o processo de degradação desses ambientes continuou. Nas décadas recentes, os planos/projetos para o rio focaram ações de engenharia hídrica, baseadas na artificialização dos cursos d'água. Um deles promoveu a retificação e alargamento de trechos do rio, eliminando curvas e meandros originalmente presentes neste ecossistema. Outro projeto de impacto propôs vias expressas ao longo de quase toda a margem urbana do Capibaribe, que, mesmo implantado parcialmente, prejudicou a relação águas-cidades impondo barreiras à apropriação das margens do rio. Apesar dessa relação umbilical e histórica com as águas do Capibaribe, Recife chega ao século XXI com uma estrutura urbana que não a valoriza. As intervenções em cursos d’água ainda pregam o paradigma do domínio sobre a natureza, contribuindo para a degradação das áreas ribeirinhas. Neste contexto, a proposta do Parque Capibaribe vem sendo construída, buscando romper esse paradigma buscando uma gestão urbana “sensível às águas”.

Projeto Parque Capibaribe: gestão urbana “sensível às águas” O Projeto Parque Capibaribe-PPC resulta do convênio entre a Prefeitura da Cidade do Recife-PCR e a Universidade Federal de Pernambuco-UFPE, representada pelo grupo de Pesquisa e Inovação para as Cidades-INCITI. A demanda inicial da PCR focava apenas as margens do rio, mas o INCITI-UFPE propôs uma abordagem ampliada, abrangendo os afluentes da bacia do Capibaribe no Recife, incluindo o tratamento de remanescentes da Mata Atlântica. Disso resultou a ampliação da área de influência do Parque, e a proposição de um cenário futuro de transformação do Recife em uma “Cidade Parque”, até 2037, nos 500 anos de sua fundação. O conceito de “Cidade Parque” pressupõe espaços públicos com ambiente favorável ao contato com a natureza e à boa convivência entre pessoas. O Parque Capibaribe visa integrar as margens desse rio e seus afluentes à rede de espaços públicos, redesenhando o espaço urbano a partir de uma lógica “aquacêntrica”. O propósito é repensar o modo como os recifenses percebem e vivem a cidade, estimulando a construção colaborativa de espaços socialmente inclusivos. Parte-se da lógica de um plano “aberto”, buscando romper certos paradigmas urbanísticos e usar os projetos de cada trecho como catalisadores de outros movimentos de transformação da cidade.



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A estratégia de ação estabelece eixos centrais: recuperação ambiental do Capibaribe e afluentes; conexão desta rede de rios e riachos à malha urbana e uso da rede hídrica como vetor de articulação de soluções para mobilidade sustentável. Os projetos distribuem-se nas linhas de ação: Ɣ Chegar: tratando vias e riachos que conduzem à margem do rio, tornando-os “vias parque”, articulando as margens ao tecido urbano. Ɣ Percorrer: viabilizar percursos ecológicos, educativos e de lazer ao longo das margens, rompendo bloqueios e reconquistando as margens para uso público. Ɣ Atravessar: conectando margens opostas do rio, por passarelas e barcos, atenuando as barreiras representadas pelo rio em partes da cidade. Ɣ Abraçar: promovendo espaços de permanência, atividades de lazer e convivência nas margens do rio, ampliando a acessibilidade física e visual, a contemplação da paisagem.

A abrangência da proposta do Parque Capibaribe se evidencia na delimitação da “Zona Parque”, apresentada na )LJXUD

Figura 2. Mapa parcial do Recife com a Zona Parque, delimitada pelo Projeto Parque Capibaribe. Fonte: INCITI / UFPE.



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Bairro das Graças: protagonismo dos moradores em defesa do habitat urbano Situado na margem esquerda do Capibaribe, a 7 km da foz, o bairro das Graças tem o rio Capibaribe como limite a oeste, em cujas águas moradores mais antigos relatam terem-se banhado e cujas margens eram lugar para brincadeiras. Originado no século XIX, quando foram parceladas as terras do Engenho Capunga, em 2010 tinha 20.538 habitantes (IBGE, 2010) e uma densidade ocupacional de 143,08 hab./ha. Sua localização central e bem servida de infraestruturas, além do elevado perfil socioeconômico de seus moradores (renda média de € 2.105/mês e taxa de alfabetização de 99,2%), inscreve-o entre os bairros mais atraentes para o mercado imobiliário no Recife.

Nas últimas décadas, esse bairro sofreu profundas alterações em sua morfo-tipologia visando à ampliação do potencial construtivo local. Através de remembramentos, lotes menores que acolhiam imóveis residenciais com até dois pavimentos passam a abrigar arranha-céus multifamiliares que alcançam 40 pavimentos. Atividades originais vem sendo substituídas, desconsiderando as necessidades da coletividade. A estrutura física e os espaços públicos, na impossibilidade de serem ampliados, explicitam os limites do adensamento através dos engarrafamentos. Redes e sistemas urbanos, não comportando a pressão da demanda crescente, evidenciam a saturação das infraestruturas nos transbordamentos de esgotos, nos alagamentos e nas perfurações indiscriminadas de poços para o abastecimento d’água. O bairro aprazível, bem arborizado e com ruas tranquilas passa a ser identificado como "enclave" de mobilidade em meio às grandes vias do entorno.

Os espaços livres verdes concentram-se em terrenos privados: escolas, centros culturais, residências. Ainda que protegidos pela legislação local como IPAV (Imóveis de Proteção de Área Verde), são exemplares isolados e inacessíveis aos citadinos. Os poucos espaços públicos acessíveis restringem-se a praças resultantes de espaços residuais do sistema viário. O acesso às margens do Capibaribe, nos fundos de lotes privados, é limitado. A desarticulação entre esses espaços, seu tratamento inadequado e as infraestruturas urbanas sobrecarregadas comprometem o sentimento de pertencimento por parte dos moradores do bairro, que contrapõem-se ao processo de deterioração e ao impacto dos novos empreendimentos imobiliários sobre a qualidade de seu habitat.

O primeiro ímpeto de resistência dos moradores das Graças remonta aos anos 1980, quando se opuseram aos bares e casas de espetáculo ali instalados, causadores de transtornos (poluição sonora, estacionamento irregular, insegurança). Nascia o movimento “Graças a Nós”, congregando moradores em torno de interesses comuns e capitaneando negociações pela restrição aos usos incômodos. Essa mobilização foi exitosa, tendo sido quase plenamente acatadas as demandas de então. No início do século XXI, já se sentiam os efeitos dos parâmetros permissivos da legislação municipal, com a substituição brutal dos padrões morfológicos históricos, que romperam a lógica de construção do espaço a partir das quadras.



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A verticalização exacerbada está na raiz de problemas de circulação, de supressão de superfícies vegetadas (sítios e quintais), de saturação das infraestruturas urbanas. Contra esse processo, os moradores organizados novamente no movimento “Graças a Nós 2” apelam à limitação de novas edificações. Como resultado desse segundo movimento, incorporou-se à legislação municipal a Lei nº 16.719/2001, que criou a Área de Reestruturação Urbana condicionando "o uso e a ocupação do solo à oferta de infraestrutura instalada, à tipologia arquitetônica e à paisagem urbana existentes" (Art. 4º, III).

Recentemente, diante da apresentação de um projeto viário na porção sudoeste das Graças, os moradores voltaram a se mobilizar, desta vez no movimento “Por amor às Graças”, rejeitando a concepção de uma via de quatro faixas às margens do Capibaribe, que seria instalada parcialmente sobre o leito do rio. Novamente, a perspectiva dos citadinos, em busca de espaços humanizados, opõe-se à concepção "oficial" de cidade, e as diretrizes do projeto beira-rio são redefinidas, por força da mobilização dos moradores. A concepção do PPC apoiou esse movimento.

Via beira-rio: transformação de paradigmas na concepção de espaços públicos Simultaneamente à assinatura do convênio para o PPC, a PCR anunciou a revisão do antigo projeto da “Avenida Beira Rio” a ser implantado nas Graças. A proposta original, elaborada nos anos 1990, seguia o traçado estabelecido no projeto de “retificação” da calha do Capibaribe após as enchentes dos anos 1970, quando as águas ocuparam 80% do território urbano, causando danos materiais e matando centenas de pessoas. Em resposta ao evento, as três esferas de governo investiram recursos em projetos para reorganizar a ocupação urbana no entorno do rio. Em meados dos anos 1980, o traçado do rio foi sensivelmente modificado com o objetivo de conter suas águas em uma calha bem delimitada. Pela lógica vigente, um grande sistema viário era o uso mais adequado para as margens do rio, e apenas alguns deles foram “decretados” parques públicos.

Embora a Avenida Beira Rio tenha sido construída de forma fragmentada, comprometendo sua eficiência, seu projeto permanece válido, sendo considerado na aprovação de novas construções às margens do rio. Esse aspecto do projeto foi positivo por restringir a ocupação, contribuindo para fazer valer, mesmo parcialmente, os limites estabelecidos no Código Florestal. Entretanto, no trecho das Graças, a limitação imposta pelo projeto foi “estranhamente” desconsiderado, e duas grandes edificações foram erguidas às margens do rio, motivo pelo qual a prefeitura apresentou uma mudança no traçado da beira rio, fazendo o sistema viário avançar sobre o leito do rio para acomodar as quatro faixas projetadas, além de ciclovia e calçada.

Após quatro décadas das inundações do Capibaribe, a calha do rio já modificada volta a ser alvo da interferência urbanística, com discurso técnico de um impacto ambiental reduzido, pois as vias seriam



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erguidas sobre pilares. A forte reação da opinião pública ao projeto deu-se em meio ao acalorado debate sobre a prioridade dada pelos investimentos públicos às obras viárias. Tais questionamentos recebem influências de um movimento mundial de rejeição a este modelo de cidade onde impera o uso dos carros (a “carrocracia”). A eficácia da intervenção foi questionada por especialistas, alguns afirmando que ela poderia até piorar os congestionamentos, pois interligaria duas pontes que já apresentam trânsito intenso. Vale salientar que no âmbito da administração municipal, o projeto não era consensual.

A população das Graças mobiliza-se e realiza eventos públicos para questionar o projeto da PCR e exigir a elaboração de outra solução. Nesse contexto, a equipe do INCITI/UFPE, responsável pelo Projeto Parque Capibaribe é convocada para assumir a “mediação técnica” entre a população das Graças e a gestão municipal. Após negociações, a PCR assumiu o compromisso de reelaborar o projeto seguindo as diretrizes do PPC. Tal posição representou a legitimação dos princípios desse Projeto, repercutindo o debate sobre novos referenciais para intervenções em espaços públicos da cidade, especialmente em áreas ribeirinhas.

Ao assumir a reelaboração desse projeto, o INCITI/UFPE estimulou maior participação dos moradores das Graças. A proposta buscava articular os conceitos de espaço urbano sustentável e humanizado com as demandas para fluxo de veículos, pois alguns técnicos municipais pressionavam para a manutenção da circulação de veículos, admitindo apenas a redução do número de faixas para automóveis. A avaliação criteriosa do sítio onde o projeto seria construído e o apoio da população foi essencial para consolidar uma proposta de ruptura “radical” com o projeto original, pois seria impossível acomodar todas as faixas segregadas (veículo, ciclistas e pedestres) e ainda espaços para lazer e contemplação, sem avançar sobre o rio. Em uma perspectiva de sustentabilidade, também não faria sentido aterrar o leito do rio para atender a esse “programa urbanístico”. A proposta final priorizou dotar as margens de espaços humanizados, onde os veículos poderiam circular, mas com restrições, preferencialmente no sentido da saída do bairro para as vias do entorno.

Um dos resultados mais relevantes dessa proposta foi reduzir o impacto na topografia das margens, evitando movimentações de terra sobre o rio. O projeto interrompe a circulação de carros em alguns trechos, pois seria inviável assegurar esta funcionalidade sem sacrificar o espaço dos pedestres e ciclistas, ou avançar sobre o leito do rio. Nos trechos onde foram projetadas estruturas sobre o rio, estas se destinam a pedestres e ciclistas, com impacto construtivo muito mais leve. O caráter da proposta final associa-se à ideia de uma “via parque” com espaços públicos de qualidade, uma das conquistas mais relevantes nessa disputa de concepção urbanística. O contraste entre o impacto urbanístico e ambiental das duas propostas pode ser observado nas figuras 3 e 4.

 

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Figura3. - Ilustração da proposta da Avenida Beira Rio apresentada inicialmente pela Prefeitura do Recife. Fonte: INCITI / UFPE

Figura4. - Ilustração da proposta da “Via Parque” apresentada pela equipe do Parque Capibaribe / INCITI / UFPE. Fonte: INCITI / UFPE

Conclusão: águas e pessoas redefinindo a cidade Os três movimentos das Graças, embora em momentos distintos e com diferentes participantes, refletem a sensibilização de parte da população moradora face à ameaça de homogeneização do quadro urbano, temerosa das mudanças das características identitárias que lhes conferem especificidades. O conceito de lugar como espaço antropológico (Augé, 1996) traz em si aspectos que remetem à história, à construção no tempo, à herança: o habitante do lugar antropológico “não faz história, vive na história.” Se o primeiro movimento das Graças é um grito pela preservação do uso predominantemente residencial, os dois



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seguintes ancoram-se na adoção de padrões morfo-tipológicos capazes de dialogar com os anteriores advindos de sua formação histórica.

O que parece ter impulsionado os moradores das Graças a se mobilizarem pela preservação da qualidade urbana de seu bairro foi o sentimento de pertencimento a este e de identificação com suas especificidades e tipicidades. Embora respaldadas pelo PPC desenvolvido pelo InCiTi/UFPE, as condições de êxito das pautas dos moradores fundam-se na sua classe social, na influência junto a políticos e gestores locais, no seu nível educacional e saberes técnicos para fundamentar os argumentos em prol de suas reinvidicações. No processo de elaboração da Lei 16.719/2001, por exemplo, o movimento “Graças a Nós 2” mapeou os novos edifícios em construção e estimou o aumento do volume de circulação de automóveis a partir das vagas de estacionamento previstas. A agenda de negociação coma PCR se deu com o apoio de uma vereadora, arquiteta-urbanista moradora do bairro.

Não se pode deixar de reconhecer as relações de valor de uso e de valor de troca dos imóveis que se imbricam na luta pelo direito à cidade (Lefebvre, 2001), considerando que se os moradores das Graças lutam simultaneamente pela qualidade de vida no morar, circular e consumir no seu bairro (valor de uso), e pela manutenção do determinado “valor” financeiro, associado ao seu patrimônio imobiliário (valor de troca). Somam-se a estas, a luta pela manutenção do status quo e da homogeneidade social dos que ali convivem (valor simbólico). Note-se que, numa cidade como Recife onde mais da metade da população habita em assentamentos precários, apenas três bairros não possuem nenhum destes assentamentos, entre os quais se inclui as Graças.

Mesmo que ainda não tenha sido implantado fisicamente, o novo projeto da via beira-rio no bairro das Graças desenvolvido no bojo do PPC ilustra dois aspectos essenciais do resgate da natureza aquacêntrica do Recife. Por um lado, resgatar o papel do Capibaribe como eixo estruturador do território municipal, através do incentivo ao contato e à fruição dos espaços em torno desse rio (pelas ações articuladas de chegar-percorrer-atravessar-abraçar) representa a revalorização dos cursos d’água e a refundação de uma relação afetiva com estes. Por outro lado, desenvolver esse processo pressupõe sensibilizar e mobilizar os citadinos, tornando-os atores protagonistas de uma mudança cultural, baseada na transformação do sentimento de receio e repulsa para com os rios em uma relação de respeito e valorização destes últimos.

O caso da mobilização dos moradores das Graças demonstra quão importantes são as relações entre os modelos urbanísticos que guiam a produção do espaço urbano e a percepção da qualidade do habitat urbano. Para além de aspectos tipo-morfológicos, como desenho da malha viária, tamanhos das quadras e lotes, gabaritos das edificações, densidade de ocupação e natureza dos espaços públicos etc., a própria presença dos cursos d’água, seus meandros e margens influenciam essa percepção e contribuem para qualificar (positiva ou negativamente) o espaço urbano. Na oposição entre o modelo de espaço urbano  

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idealizado pelos agentes do mercado imobiliário (e pelo poder público municipal) e o ideal de manutenção de parâmetros ancestrais do bairro, legado histórico que aporta elementos de uma relação identitária dos moradores com seu lugar de vida urbana, a aparentemente simples discussão acerca das caraterísticas de uma via beira-rio impulsiona o debate sobre a concepção de cidade que se está consolidando no Recife.

Nesse movimento, traz-se à luz o próprio rio (e suas águas), recolocando-o no centro da estruturação do espaço urbano, a partir da articulação entre diversos espaços públicos às suas margens e às margens de seus afluentes. O Projeto Parque Capibaribe contribui para o “afloramento” de uma nova cultura de produção do espaço urbano, da cidade, tendo em sua fonte os potenciais das águas urbanas como eixos norteadores da urbanização e a capacidade dos cidadãos em tomar parte efetiva na concepção desse espaço.

Referências bibliográficas Augé M (1994) Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, Papirus, Campinas. Certeau M (1994) A Invenção do Cotidiano, Arte do Fazer, Vozes, Petrópolis. Diniz F (2015) “Urbanização pela água”: vieses de ordenamento territorial e gestão urbana, XVI Enanpur, Belo Horizonte. Hillier B, Hanson J (1984) The social logic of space, Cambridge University Press, Cambridge. Léfèbvre H (2001) O direito à cidade, Centauro, São Paulo. Loureiro C, Amorim L (2000) O mascate, o juiz, o bispo e os outros: sôbre a gênese morfológica do Recife, Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v1, n3, Recife. Melo V (2003) Um recorte da paisagem do rio Capibaribe: seus significados e representações, tese de doutorado, MDU-UFPE, Recife. Oliveira W (1942) Geologia da planície do Recife – contribuição ao seu estudo, Tese de concurso à Cátedra de História Natural da Escola Normal de Pernambuco, Câmera Gráfica do Jornal do Commercio, Recife. Souto Maior M, Silva L D (1992) Recife, quatro séculos de sua paisagem, Editora Massangana, Recife. Villaça F (1996) A segregação e a estruturação do espaço interurbano: o caso de Recife, II Seminário da Rede de Dinâmica Imobiliária e Estruturação Intraurbana, ANPUR , Pirenópolis.



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RECONHECIMENTO E CATEGORIZAÇÃO TIPOLÓGICA DOS SISTEMAS DE ESPAÇOS LIVRES: O ESTUDO DE CASO DE GUARATIBA – RJ Mariana Moreira (1); Bruno Mendonça (2); Vera Tângari (3) Programa de Pós Graduação em Arquitetura - PROARQ, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Av. Pedro Calmon, 550/sl. 433 - Prédio da Reitoria, Ilha do Fundão - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Tel: + 55 (21) 3938-1661 / + 55 (21) 3938-1662

Temas: Agentes e processos de transformação / Espaço público e transformações recentes Resumo Grandes transformações territoriais e sociais têm ocorrido nos últimos anos na cidade do Rio de Janeiro em consequência da realização de megaeventos culturais e esportivos, como os Jogos Pan-americanos em 2007, a Jornada Mundial da Juventude em 2013, a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. As mudanças urbanísticas e arquitetônicas, a maior oferta de serviços e a visibilidade internacional geraram um renovado processo de aquecimento do mercado imobiliário, que se voltou para o maior e mais recente trecho de expansão e transformação urbana da cidade: a zona oeste. Nesse contexto, o presente artigo tem o propósito de apresentar a região de Guaratiba, que apresenta acelerada transformação da paisagem através de um intensivo espraiamento urbano, sendo objeto dessa análise, a fim de compreender as demandas e lógicas de ocupação do solo e realizar uma avaliação da forma urbana e do sistema de espaços livres. Acredita-se que através desse estudo foi possível reconhecer a dinâmica da ocupação, entender a transformação da paisagem e caracterizar o perfil da morfologia urbana. Através da metodologia utilizada pelo grupo de pesquisa QUAPÁ-SEL da FAU-SUP e pelo laboratório SEL-RJ da FAU-UFRJ, cruzando o levantamento de dado in-loco e discussões acerca da região, chegou-se a um padrão de análise que serviu como diretriz para definir os tipos morfológicos específicos de ocupação (Tângari, 1999 e 2013). Foram levados em consideração os seguintes aspectos: características de ocupação da região, morfologia do traçado urbano, características de ocupação do lote e percentual médio de ocupação dos espaços livres públicos e privados. Diante disso, categorizaram-se os espaços livres apropriados pela população e foi possível traçar um perfil da ocupação consolidada contraposto às áreas do território que ainda são passíveis de ocupação. Após o estudo realizado, percebeu-se que o território apresenta significativos espaços livres, porém com extensas áreas ambientalmente sensíveis como manguezais, áreas de proteção ambiental e encostas de morros. Apesar de sua grande extensão territorial, Guaratiba possui adensada ocupação apenas em áreas fragmentadas e desconectadas entre si, mantendo assim tipologias próprias de ocupação. Todas essas particularidades corroboram para a relevância do estudo em questão, que tem como objetivo final auxiliar as políticas e planos urbanísticos para uma região de expansão urbana. PNUM 2016 737

Palavras-chave Morfologia urbana; Paisagem urbana; Sistemas de Espaços Livres; Guaratiba. 1. Introdução A cidade do Rio de Janeiro apresenta um território em crescente expansão, através das novas dinâmicas imobiliárias que direcionam o vetor de ocupação para regiões até então periféricas, gerando um novo padrão de ocupação do solo e consequências para a paisagem urbana. Um exemplo desse processo é o caso de Vargem Grande, bairro adjacente à Guaratiba, e foco de pesquisas anteriores desenvolvidas pelo Grupo SEL_RJ do PROARQ-UFRJ (Tângari e Cardeman, 2014; Cardeman, 2014). A pesquisa atualmente abrange a Região Administrativa de Guaratiba, também localizada na zona oeste e que atualmente sofre pressões do mercado imobiliário. A Região Administrativa de Guaratiba abrange três bairros: Guaratiba (1), Pedra de Guaratiba (2) e Barra de Guaratiba (3). Como bairros adjacentes e que tiveram influência direta na ocupação dessa região, pode-se citar os bairros do Recreio dos Bandeirantes (4), Campo Grande (5), Vargem Grande (6) e Sepetiba (7), conforme Figura 1.

Figura 1: Mapa da Cidade do Rio de Janeiro, com indicação da área de estudo. Fonte: Portal Georio / bairros cariocas. Mapa editado pelos autores

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O bairro de Guaratiba apresenta os maiores índices territoriais, habitacionais e populacionais dentre os três bairros contidos na Região Administrativa, apresentando também grandes extensões de área militar e áreas sujeitas a alagamentos. Em contrapartida, o setor mais populoso, considerando-se a relação de número de habitantes por hectare, é o bairro Pedra de Guaratiba que possuí densidade, cuja ocupação é mais antiga e consolidada1. A região possui um ecossistema de importância regional e extensas áreas ambientalmente sensíveis, como manguezais, áreas de proteção ambiental e encostas de morros.

Algumas leis ambientais

regulamentam a região, como é o caso da APA (Área de Preservação Ambiental) das Brisas (1999), Morro do Silvério e Morro Capoeira Grande (2010). Tais medidas buscam orientar um ordenamento territorial visando o uso sustentável e a preservação dos recursos naturais existentes na área. 2. Padrões morfológicos de ocupação 2.1.Vetores de ocupação Como atividade preliminar, realizou-se o levantamento dos vetores de ocupação da região. Esse levantamento de caráter histórico colabora para a compreensão da paisagem urbana e seu processo evolutivo. Foram identificados dois polos iniciais de ocupações. O primeiro indica que o território começou a ser povoada a partir de 1579, com doação de faixa de terras de sesmarias a Manoel Velloso (Pinto, 2000), ao mesmo tempo em que territórios adjacentes eram administrados por padres jesuítas. Seria a partir dessa ocupação de terras próximas ao mar que o atual bairro de Pedra de Guaratiba (1) foi ocupado, originando o primeiro povoado. A Capela Nossa Senhora do Desterro (1629) e a Igreja Matriz Salvador do Mundo (1755), ainda preservadas, são marcos dessa ocupação. O segundo possível polo de ocupação se relaciona com o bairro de Campo Grande, adjacente ao bairro de Guaratiba. Durante o século XVIII, inúmeras vias foram abertas com o primeiro intuito de encurtar distâncias e gerar acessos; foram as chamadas Estradas Reais (Belchior, 1965). Dentre essas, destacase a Estrada Real de Santa Cruz (2), na época de vital importância para a distribuição de café e açúcar oriundos dos engenhos da região. Posteriormente, com a implementação do serviço de transporte

1

Área, População, Domicílios e Densidade de Guaratiba – RJ. Fonte: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas Acesso em: 17 de maio de 2015. Guaratiba Pedra de Guaratiba Barra de Guaratiba Área Territorial (ha)

13.950,12

363,69

944,2

Total da População

110.049

9.488

3.577

Total de Domicílios

41.669

4.773

2.163

Densidade dem.(hab/ha)

7,88

26,08

3,79

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público executado através de bondes, implantou-se nessa área uma linha (1984) que fazia o trajeto Campo-Grande-Largo da Ilha (3). A Estrada Real de Santa Cruz e o percurso da linha de bondes permeavam a região anteriormente citada entre as duas vias principais que atualmente interligam esses bairros. Somando-se a isso, através da análise tipológica arquitetônica em campo, alguns rastros históricos das antigas linhas de bondes corroboram com tal hipótese. 2.2 Análise morfológica Guaratiba é uma área caracterizada por forte caráter ambiental. Relevo, hidrografia e vegetação acabam sendo preponderantes na distribuição da ocupação do solo. Outro fator que acaba direcionando essa ocupação diz respeito à grande extensão de área militar. Tais questões definem o crescimento e expansão urbana e são responsáveis por uma falta de conectividade entre as machas de ocupação, como pode ser visto na Figura 2, onde é representada a relação de espaços livres de edificação e áreas ocupadas.

2

3 1 1

Figura 2: Mapa figura x fundo da região de Guaratiba. Fonte: Instituto Pereira Passos / Armazém de dados. Mapa editado pelos autores

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O território apresenta três manchas principais de ocupações: a primeira, localizada a noroeste (1), expõe uma ocupação mais adensada e uniforme, maior percentual de áreas residenciais e de serviços, com equipamentos de lazer, saúde e educação. Essa primeira mancha pode ainda ser subdividida em duas subáreas, uma mais ao sul, caracterizada por uma ocupação consolidada, estritamente residencial unifamiliar, influenciada pela atividade pesqueira; e uma mais ao norte, de ocupação mais recente, polarizada fortemente pelo bairro adjacente de Campo Grande, em que ocorre uma ocupação mista, (residencial e comercial) e edificações multifamiliares. Atualmente essa área mais ao norte vem recebendo investimentos em infraestrutura urbana, implantação de corredores expressos de ônibus (BRT – Bus Rapid Transit) e conjuntos residenciais de programas habitacionais do Governo Federal (Programa Minha casa Minha Vida). A segunda mancha de ocupação, localizada a nordeste (2), próxima à região de encosta do Maciço da Pedra Branca e por consequência de cota mais elevada, apresenta uma ocupação menos homogênea, caracterizada pelo predomínio de grandes propriedades de uso agrícola (chácaras e sítios), ocupação residencial ainda em processo de expansão, descentralizada e de baixa renda. É também nesse local que existe a maior extensão de terras ocupada por habitações informais (favelas). A terceira, por fim, a sudeste (3) possui ocupação de encosta, traçado viário orgânico e sinuoso, delimitado pelas franjas do Maciço da Pedra Branca e pela faixa alagadiça do conjunto de mangues da área militar. Forte ocupação agrícola de subsistência e residencial, sendo adensada nas margens da via principal, a Estrada Roberto Burle Marx. 3. Sistemas de espaços livres Sistema de Espaços Livres (SEL) é um conceito de grande complexidade em sua abrangência, devido à sua direta relação com o meio urbano (Magnoli, 1982). Segundo a autora, pode ser considerada parte desse sistema tudo que estiver contido em área urbana e não for edificado, como vias, parques, praças, praias, rios, florestas, vazios urbanos, quintais. Além dessa característica, existem aspectos que agregam atributos a esse conceito, como afirma Silvio Macedo. Conforme esse autor, os espaços livres possuem ainda um caráter de conectividade e complementaridade, mesmo que não tenham sido pensados para tal finalidade (Macedo et al., 2007). Diante dessa abrangência conceitual, para auxiliar o estudo, os SEL foram subdivididos em SEL Privados e SEL Públicos, de acordo com seu caráter fundiário. Podemos diferenciá-los da seguinte maneira: Os SEL Públicos podem ser definidos como espaços de propriedade e acessibilidade de caráter público, tais como ruas, calçadas, praças, parques, praias, florestas, rios, entre outros. Já os SEL Privados apresentam propriedade privada e acesso restrito, podendo ser identificados como espaços não edificados na escala do lote ou da gleba, tais como quintais, jardins, lajes de favelas (coberturas de edificações de baixa renda utilizadas geralmente como terraços para fins de lazer e atividades de

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caráter social) e áreas condominiais de diversas características e dimensões (Moreira Mendonça Tângari, 2015).

3.1 Sistemas de espaços livres públicos No levantamento dos SEL Públicos da RA de Guaratiba, levaram-se em consideração os espaços naturais característicos da região como as orlas das praias, assim como os marcos naturais e espaços de convivência selecionados na pesquisa e que podem ser identificados na Figura 3. O primeiro elemento analisado foi o sistema viário, onde as principais vias estruturantes foram identificadas. Levou-se em consideração também a identificação das estações de ônibus do corredor expresso (BRT), implantadas recentemente. No levantamento de praças, largos e campos de futebol foram identificados 34 áreas com tais características, das quais 28 são praças, 05 largos e 01 campo.

Figura 3: Mapa sistemas de espaços livres público da Região Administrativa de Guaratiba. Fonte: Fabíola Angotti e Paula Sbaffi (2015)

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Analisando esse levantamento, Guaratiba possui SEL destinados à apropriação de maneira fragmentada, da mesma forma que ocorre sua ocupação, em grande parte devido à incidência de grandes áreas de preservação ou restrição ambiental. Isso nos leva a perceber que o desenho urbano acaba tornando a localização de praças, largos e parques uma consequência do traçado das áreas urbanizadas, sendo muitas vezes locados em áreas residuais. A fragmentação dos SEL públicos nos faz perceber que o potencial de expansão urbana verificado na área indica a necessidade de projetos que priorizem espaços públicos de qualidade, não os limitando a áreas com restrições à inundação resultantes do parcelamento do solo. 3.2 Sistemas de espaços livres privados Para a análise, identificação e posterior categorização dos sistemas de espaços livres privados, uma diretriz foi previamente estabelecida a fim de elencar os tipos mais recorrentes de ocupação, com base nos critérios referenciados na metodologia utilizada pelo grupo de pesquisa QUAPÁ-SEL e pelo laboratório SEL-RJ (Tângari, 1999 e 2013), conforme descritos abaixo, e apresentado na figura 4. a) Características de ocupação da região Foram adotadas as características temporais de ocupação, resultando em três possibilidades: ocupação recente, intermediária e consolidada; b) Morfologia do traçado urbano Foram considerados traçado em malha ortogonal, traçado misto (orgânico e ortogonal), orgânico e traçado informal (que se aplica ao caso de favelas e demais ocupações irregulares); c) Padrões de ocupação do lote Levaram-se em consideração os seguintes tipos: casas unifamiliares, edifícios multifamiliares, edificações comerciais, edificações institucionais; d) Percentual médio de ocupação dos espaços livres privados Taxa de ocupação no lote que gera, consequentemente, a taxa de SEL privados.

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Figura 4: Mapa sistemas de espaços livres privados Região Administrativa de Guaratiba. Fonte: Bruno Mendonça e Mariana Valicente (2015)

A partir dessa categorização, chegou-se a um total de seis diferentes padrões de ocupação na área estudada. Uma tipologia de padrão especial foi acrescentada, levando em consideração a existência das áreas militares, áreas agrícolas, áreas informais (favelas) e vazios urbanos. Com esses padrões analíticos estabelecidos tornou-se possível a categorização dos tipos de sistemas de espaços livres de caráter privado e os padrões construtivos identificados (Apêndice 1). 4. Unidades de paisagem Após a análise dos mapas desenvolvidos para a pesquisa, a coleta dos dados históricos e levantamentos em campo, puderam-se identificar os padrões morfológicos da região, hierarquizar os tipos de ocupação e de sistemas de espaços livres, públicos ou privados. Como fruto dessa análise foi possível realizar p mapeamento das unidades de paisagem (UP) existentes em Guaratiba. A definição de Unidade de Paisagem pode ser entendida como o “resultado da apreensão visual, da antropização, da intervenção

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humana e como resultado aos processos de ocupação, uso e apropriação do território” (Sampaio et al., 2009). Essa definição se relaciona também a conceituação sobre paisagem, segundo Silvio Macedo: A paisagem pode ser considerada como um produto e como um sistema. Como um produto porque resulta de um processo social de ocupação e de gestão de um determinado território. Como sistema, na medida em que a partir de qualquer ação sobre ela impressa, com certeza haverá reação correspondente, que equivale ao surgimento de uma alteração morfológica parcial ou total. (Macedo, 2009).

Foram identificadas no total doze unidades de paisagem, apresentadas na Figura 5, com suas particularidades, tendo sido nomeadas a partir de marcos ou informações relevantes da área, descritas para que se possam esclarecer os critérios que as diferenciaram na pesquisa.

Figura 5: Mapa Unidades de Paisagem RA Guaratiba. Fonte: Bruno Mendonça (2015)

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UP1/Maciço da Pedra Branca– Área de cotas mais elevadas, delimitada pelas encostas montanhosas. Caracterizada por uma ocupação rarefeita e traçado urbano orgânico com elevado índice de espaços livres graças à presença de chácaras e sítios, e edificações unifamiliares de baixa renda. Apresenta vegetação arbórea densa. UP2/Santa Cruz – Região próxima ao bairro vizinho de Santa Cruz de ocupação rarefeita e de baixa renda. Traçado urbano orgânico com áea de cotas elevadas delimitada pela Serra do Cantagalo. Elevado índice de espaços livres graças à presença de chácaras e de grandes lotes de edificações unifamiliares. .Apresenta vegetação arbórea densa. UP3/Silvério – Área de cotas elevadas, delimitada pelo Morro do Silvério. Apresenta em sua base ocupação recente e rarefeita, de edificações unifamiliares de média renda e de até dois pavimentos. Apresenta vegetação arbórea densa. UP4/Barra de Guaratiba – Área de cotas mais elevadas, delimitada pelo Maciço da Pedra Branca. Caracterizada por uma ocupação rarefeita de encosta e traçado urbano misto (ortogonal e orgânico). Na parte plana, tem ocupação mais recente e homogênea de edificações até quatro pavimentos uni e multifamiliares de média e alta renda, caracterizada por condomínios particulares. Apresenta vegetação rarefeita e associada à arborização viária. UP5/Matriz Mato Alto – Área de ocupação recente, traçado urbano misto, caracterizado por edificações unifamiliares de baixa renda. Nessa região se encontram as maiores manchas urbanas de edificações informais (favela). Os espaços livres privados são representados por grandes lotes ainda passíveis de ocupação. Tem vegetação rarefeita, na escala do lote, e arborização viária. UP6/Campo Grande – Área de ocupação com traçado urbano ortogonal, caracterizado por edificações unifamiliares de até três pavimentos de baixa renda. Região polarizada pelo bairro adjacente de Campo Grande, apresentando dessa maneira diferentes características de uso e de apropriação do solo nas áreas vizinhas de Guaratiba. É excessivamente adensada, com baixa cobertura arbórea na escala do lote e da via. UP7/Estrada da Pedra – Área de ocupação recente e bem adensada, traçado urbano ortogonal, caracterizado por edificações unifamiliares de até dois pavimentos e baixa renda, com vias em sua maioria não pavimentadas. Nível médio de arborização no nível do lote e insuficiente no nível da via. UP8/Campus Fidei – Região de elevado índice de espaços livres privados caracterizados por grandes áreas alagadiças, não ocupadas. UP9/Severino Rodrigues – Ocupação similar a UP7, porém apresenta quase metade de sua área ocupada por habitações informais (favelas), e que por esse motivo a diferencia. Apresenta arborização insuficiente em toda a área. UP10/Brisa – Área de ocupação recente e bem adensada. Traçado urbano ortogonal, caracterizado por edificações unifamiliares de até dois pavimentos e média renda. Apresenta vegetação de restinga e

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manguezal correspondente à Área de Preservação Ambiental-APA das Brisas. Tem arborização média no nível do lote e insuficiente no nível da via. UP11/Pedra de Guaratiba – Região de ocupação consolidada e bem adensada com traçado urbano orgânico e edificações de até três pavimentos de baixa e média renda. Apresenta vegetação de restinga e manguezal, nas áreas preservadas e arborização média no nível do lote e da via. UP12/Área Militar – Elevado índice de espaços livres privados pertencentes ao Exército. Compreende uma extensa área de preservação ocupada por vegetação de restinga e manguezal em terreno alagadiço. A ocupação é pontual, muito rarefeita, é caracterizada por instalações militares e um edifício fabril. 5. Conclusão O presente artigo buscou apresentar a análise sobre o território de Guaratiba e seus sistemas de espaços livres, tendo como resultado final, uma divisão em Unidades de Paisagem (UP’s) com o propósito de identificar as fragilidades e potencialidades de uma região ambientalmente sensível. Conclui-se que a área analisada possui uma grande extensão territorial em espaços livres privados que poderão sofrer processos de parcelamento e edificação, mesmo com a ocupação limitada por decretos de proteção ambiental, por fatores naturais como o relevo e o solo com cotas baixas e áreas inundáveis e por parte do território pertencer a instalações militares. Com o estudo realizado, observou-se um crescimento acelerado de habitações de baixo padrão de renda em locais desprovidos de infraestrutura urbana e uma ocupação do solo heterogênea com áreas informais principalmente nas regiões mais afastadas dos principais eixos viários. Outro fator que merece destaque é o solo com características sensíveis no que diz respeito ao escoamento das águas pluviais. Pode-se prever que com a expansão urbana, poderá ocorrer aumento dos índices de impermeabilidade do solo, devido à maior pavimentação prevista, assim como modificação das condições de arborização, devido à supressão de vegetação. Diante dessa realidade torna-se evidente a necessidade de ordenamento de ocupação da área, levando em consideração os interesses de expansão mas buscando preservar os SEL públicos e privados de qualidade, garantindo qualidade de vida aos moradores, preservação ambiental e manutenção das ambiências existentes.

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6. Referências Belchior E O (1965) Conquistadores e Povoadores do Rio de Janeiro, Livraria Brasiliana Editora, Rio de Janeiro. Campos A, Queiroga E, Galender F, Degreas H, Akamine R, Macedo S, Custódio V (eds) (2011) Sistemas de Espaços Livres – conceitos, conflitos e paradigmas, FAUUSP, São Paulo. ______ (eds) (2012) Quadro dos sistemas de espaços livres nas cidades brasileiras, FAUUSP, São Paulo. Cardeman, R (2014) A transformação da paisagem e da forma urbana: processos, agentes e ações no caso de Vargem Grande no Rio de Janeiro, Tese de doutorado, PROARQ-UFRJ, Rio de Janeiro. Macedo S, Custódio V, Gallender F, Queiroga E, Robba F (2007) Os sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea no Brasil, in C Terra, R Andrade (eds) Coleção Paisagens Culturais, vol. 3, EBAUFRJ, Rio de Janeiro, 286-297. Macedo S (1999) Quadro do paisagismo no Brasil, São Paulo, Quapá. Magnoli M (1982) Espaços livres e urbanização: uma introdução a aspectos da paisagem metropolitana. Tese de LivreDocência, FAUUSP, São Paulo. Moreira M V, Mendonça, B R, Tângari V R (2015) Reconhecimento e Categorização Tipológica dos Sistemas de Espaços Livres Privados: O Estudo de Caso de Guaratiba – RJ, in Anais do X Colóquio QUAPÁ-SEL. FAU-USP, UNIP, UnB, Brasília. Pinto N (2000) A História de Guaratiba. Rio de Janeiro. Pesquisa realizada em dezembro de 2000. Tângari V R (1999) Um outro lado do Rio (tese de doutorado), FAUUSP, São Paulo. ______ (2013) A configuração da paisagem urbana no Rio de Janeiro: identificando os tipos morfológicos dos subúrbios ferroviários da zona norte, in Proceedings of PNUM2013. University of Coimbra-Dept. of Civil Engineering, Coimbra, 1135-1147. Sampaio, M et al. (2009) Análise tipo-morfológica da paisagem e do sistema de espaços livres de edificação na cidade do Rio de Janeiro, in V Tângari, R Andrade, Schlee M B. (Eds) Sistema de espaços livres, apropriações e ausências. FAU/UFRJ-PROARQ, Rio de Janeiro. Tângari V R, Cardeman R (2014). Simulation techniques to analyze transformations of urban form, landscape and micro climate in Vargem Grande, Rio de Janeiro/RJ, Brazil, in V Oliveira, P Pinho, L Batista, T Patatas (eds) Our common Future in Urban Morphology, ISUF/FEUP, Porto, 443-444.

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APENDICE 1 Áreas Edificadas Padrões

Vista aérea

Visada 01

Visada 02

Área 01

Ocupação Morfologia Ocupação da região do traçado do lote

UHFHQWH

RUWRJRQDO

KRPRJrQHD

% % SEL Ocupação Priv.*





Área 02

LQWHUPHGLiULD RUWRJRQDO KHWHURJrQHD

D 



Área 03

FRQVROLGDGR

RUJkQLFR

KHWHURJrQHD

D 



Área 04

LQWHUPHGLiULD RUWRJRQDO

KRPRJrQHD

D 



Área 05

UHFHQWH

PLVWR

KHWHURJrQHD

D 



Área 06

UHFHQWH

PLVWR

KRPRJrQHD





Áreas Especiais

Área militar

2FXSDomRFRQVROLGDGDEDUUHLUDItVLFD HOHYDGRtQGLFHGH6(/SULYDGR

Área agrícola

2FXSDomRLQWHUPHGLiULDHOHYDGRtQGLFHGH 6(/SULYDGR

Favelas

2FXSDomRUHFHQWHWUDoDGRLQWXLWLYR UHGX]LGRtQGLFHGH6(/SULYDGR

Vazios urbanos

)RUWHLQIOXrQFLDGDGLQkPLFDLPRELOLiULD

*SEL Priv.:6LVWHPDGH(VSDoRV/LYUHV3ULYDGRV

Tabela 1: Tabela comparativa dos tipos de sistemas de espaços livres privados e padrões construtivos. Fonte: Bruno Mendonça, Mariana Valicente, 2015

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Sistema de espaços livres e urbanidade em uma cidade média brasileira: Araguari, Minas Gerais Lucas de Oliveira, Eugenio Queiroga Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo Rua do Lago, 876, Cidade Universitária, São Paulo (SP), Brasil CEP 05508 080, Tel: 55 (11) 3091-4544 [email protected], [email protected]

Resumo O trabalho apresenta resultados da pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da FAUUSP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), na Área de Concentração Paisagem e Ambiente, intitulado “Araguari: o sistema de espaços livres na forma urbana”. Analisou-se a cidade de Araguari, localizada na região do Triângulo Mineiro, Estado de Minas Gerais, a partir das inter-relações existentes entre seu sistema de espaços livres e a forma urbana. Avaliou-se a gestão da paisagem urbana, seus atuais agentes de produção e a urbanidade do sistema de espaços livres em duas escalas, da mancha urbana e das unidades de paisagem, orientada por quatro aspectos sintetizados, sobretudo, a partir de Lynch (2012) e Cocozza (2007): adequação, centralidade, densidade e conectividade. Dois conceitos fundamentais adotados no trabalho foram: espaço livre e urbanidade. O primeiro entende-se como sendo todo e qualquer espaço não edificado, não coberto por elemento construído, seja ele de propriedade pública ou privada, tratado paisagisticamente ou não, como propôs Magnoli (1982). O segundo caracteriza-se como a condição socioespacial em que o espaço livre público é capaz de se oferecer enquanto elemento fundamental ao uso e à interação das pessoas. Depende dos graus de diversidade social e de uso e ocupação do solo, da legibilidade e da continuidade espacial dos espaços com a rede urbana. Neste artigo, foca-se na avaliação da urbanidade na escala intraurbana, nos quatro aspectos apresentados. A aplicação do método levou a se observar que a qualidade dos espaços livres urbanos em muito se distingue nas diferentes áreas da cidade, seja nos aspectos qualitativos, seja na distribuição, evidenciando uma clara disparidade centro-periferia. No entanto, é possível conferir à cidade um incremento à sua urbanidade a partir do reconhecimento e valorização de seu sistema de espaços livres, tanto na cidade consolidada, quanto nas novas áreas de urbanização.

Palavras-chave Palavras-chave: sistemas de espaços livres, forma urbana, cidade média brasileira, urbanidade.

Introdução O artigo que se apresenta contribui com a discussão sobre a qualidade do sistema de espaços livres e suas inter-relações com a forma urbana, avaliando o caso de Araguari, Minas Gerais, Brasil. A cidade abriga cerca de 115 mil habitantes e, na escala urbana brasileira, é considerada cidade de médio porte. Na dinâmica econômica, contribui para o sistema agrícola e agroindustrial, especialmente, logístico ferroviário agroexportador. Baseia-se conceitual e metodologicamente na pesquisa QUAPÁ-SEL II – “Os sistemas de espaços livres na constituição da forma urbana contemporânea no Brasil: produção e PNUM 2016 751

apropriação”, em desenvolvindo na FAUUSP  (MDFHGR; QXHLURJD, 2015). Ainda, colabora com o esforço de pesquisa sobre as principais cidades da região do Triângulo Mineiro: Uberlândia, Uberaba, Araguari, Patos de Minas e Ituiutaba (CRFR]]D et al, 2015), almejando, assim, contribuir de modo efetivo para uma melhor compreensão da paisagem urbana das cidades médias interioranas brasileiras. Os resultados apresentados auxiliam no planejamento da paisagem urbana sendo capaz de subsidiar a elaboração de projetos urbanos com qualidade, com ênfase na vida pública e que considerem as especificidades locais. A compreensão do sistema de espaços livres na forma urbana se enriquece com o entendimento das condições espaciais que tais espaços são capazes de oferecer para a sua apropriação, proporcionando o uso adequado e a interação das pessoas. Ou seja, o entendimento da urbanidade do sistema. Sinteticamente, entende-se que a urbanidade depende dos graus de diversidade social e de uso e ocupação do solo, da legibilidade, continuidade espacial e conectividade dos espaços com a rede urbana, conceitos consolidados, principalmente, a partir de Jacobs (2000), Lynch (2012), Hillier (1984) e Holanda (2003). Assim, quanto melhor é a observação destes aspectos, maiores são as possibilidades de se criar um contexto urbano coeso. Consequentemente, maiores são os graus de urbanidade. A partir desta consideração, foram elencados os quatro aspectos a serem analisados sobre Araguari. O primeiro aspecto de avaliação, “adequação”, buscou entender a adequação do espaço livre ao corpo humano do ponto de vista do espaço construído, isto é, o suporte para o movimento e a permanência. O aspecto “centralidade” avaliou o uso do solo para o entendimento das centralidades existentes, sejam nucleares ou lineares. No aspecto “densidade” estudou-se a ocupação do solo e a relação entre o espaço construído e o espaço livre, identificando a relação entre urbanidade e a otimização de espaços livres em correlação aos ocupados. Já o aspecto “conectividade” avaliou as conexões entre os espaços livres, as centralidades e as moradias.

Adequação do Sistema de Espaços Livres Além das vias e passeios (ruas, avenidas, travessas e vielas), a cidade apresenta diferentes tipos de espaços livres públicos que compõem seu sistema, como praças, parques, canteiros centrais, faixas de domínio, áreas de preservação ambiental, campos de várzea, entre outros. Entretanto são as praças e os canteiros centrais que marcam a paisagem da cidade nesse aspecto. Destes, poucos apresentam devida adequação, com exceção de algumas praças centrais, de maior visibilidade, valor simbólico e acumulação de investimentos. Na periferia, nota-se a adequação pontual de alguns espaços, mas os estoques de espaços livres de recreação não qualificados se sobressaem. Os canteiros centrais das principais avenidas possuem alguns segmentos qualificados, mas, pouco contribuem, ainda, para interrelações do sistema. A cidade apresenta dois parques urbanos propriamente ditos, nucleares e de PNUM 2016 752

pequeno porte, sendo um minimamente adequado, associado a uma reserva de mata nativa e outro à eventos. Para um melhor entendimento, o sistema de espaços livres foi categorizado entre espaços de caráter ambiental, de prática sociais, de circulação e pedestres, associados à sistemas de circulação, associados à infraestrutura urbana, associados à edifícios e entidades de serviços públicos, privados de uso coletivo e particulares.

Figura 1. Mapa de categorização dos espaços livres públicos.

Os hibridismos de funções e usos, que se caracterizam por áreas de difícil categorização, mostram-se como interessantes elementos para análise, como rotatórias-praça, avenidas-parque ou ferrovia-parque. “São saudavelmente ambíguos para que se permitam uma criação ampla de significados” (MDJQROL, 1982). As rotatórias, por exemplo, inserem-se na categoria espaços livres de circulação, mas usualmente tem em Araguari caráter de práticas sociais, adequadas ou não. Nos projetos dos parcelamentos recentes percebe-se uma pulverização desse tipo nos seus desenhos, sendo já contabilizadas como áreas de recreação. Já em relação aos canteiros centrais das avenidas de maior porte (Mato Grosso e Minas Gerais), ainda pouco ou nada qualificados, podem ser considerados importantes elementos na configuração do sistema com grande potencial de suporte a espaços de convívio e lazer, bem como circulação, com passeios e ciclovia.

Densidades Construtiva e Populacional

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A análise da densidade bruta, caracterizada pela relação habitantes/hectare, relaciona-se de modo inversamente proporcional à análise do espaço livre de edificação intraquadra. Nas áreas habitacionais horizontais, quanto mais denso, menos espaço livre. Isto é, as quadras com menor espaço livre intraquadra coincidem com o as áreas dos setores censitários com maiores taxas de habitantes/ha, disponibilizadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Os espaços livres intraquadra, predominantemente privados, são caracterizados principalmente pelos jardins, quintais e recuos, nos casos residenciais, e estacionamentos, pátios de depósitos e vias internas, nos casos de comércio, serviços e indústrias. São importantes para o sistema de espaços livres, pois influenciam na drenagem urbana, no microclima e na sociabilidade (de modo positivo ou negativo para a qualidade do sistema).

Figura 2. Densidade demográfica bruta por setor censitário (hab/ha). Fonte: IBGE, 2010.

Na área central observam-se taxas de espaços livres intraquadra menores que 30%. São lotes intensamente edificados ao longo do tempo para atender aos usos de comércio e serviços. Na área pericentral as taxas de espaços livres intraquadra variam entre 30% e 50%. Nela observam-se ainda a presença de quintais, favorecidos por lotes profundos propiciados pelo parcelamento ortogonal em quadras de maior porte. Mas a tendência à impermeabilização é verificada nas reformas ou em novas construções. Na periferia observam-se duas situações. Nas áreas marcadas ainda pela baixa ocupação, as taxas de espaços livres intraquadra são ainda maiores que 50%, consequência, não de lotes com menor taxa de ocupação, mas de quadras com lotes ainda não ocupados. Tal característica encontra-se presente em 3/5 da área urbanizada. Já nos parcelamentos antigos e conjuntos de habitação de interesse social consolidados, a taxa é menor que 30%, devido à ampliação completa dos embriões residenciais PNUM 2016 754

nos lotes usualmente de menor dimensão. Nos conjuntos habitacionais de interesse social recentes, as transformações intraquadra já são observadas, tais como fechamento por muros e ampliações, como garagens, varandas e edículas. O que mostra uma intensa ocupação do espaço livre privado.

Figura 3. espaços livres privados intraquadra.

Centralidade Na área central observa-se uma grande animação e movimento de pessoas e veículos em todo o horário comercial. No período noturno, feriados e fins de semana a animação certamente diminui, mas ainda se mantém devido à presença de restaurantes, hotéis, bares, boates e equipamentos de lazer. No entanto, o caráter residencial permanece, fortalecido pela construção de edifícios habitacionais pontuais. As linhas de força de movimento que se originam na área central são caracterizadas por ruas ou avenidas que exercem relativas centralidades de bairros, como eixos que percorrem a periferia alcançando as saídas para a zona rural, onde se observa certa especialização, como lojas agropecuárias, de sementes e fertilizantes, veterinárias, ferragistas e de materiais de construção civil. Não se pode afirmar, no caso de Araguari, que estes se fortaleçam devido a um processo de descentralização da área central. São centralidades complementares de consumo cotidiano, poucas vezes concorrentes, que se beneficiam do fluxo centro-periferia. Esta periferia, por sinal, mantém, ainda, uma forte relação com a área central, por mais que os eixos de centralidades se desenvolvam. Entende-se que este trânsito é favorecido pela relativa pouca distância entre o centro e a periferia (no máximo quatro quilômetros para os PNUM 2016 755

assentamentos mais distantes) e pelas facilidades de deslocamento geradas pela topografia favorável, uso de bicicletas ou moto-táxis. Assim como nos eixos viários, em algumas praças desenvolvem-se subcentros, centros de bairro de menor dinamismo, fortalecidos por equipamentos institucionais, como saúde e educação. Visualiza-se que estes usos relacionados a praças são importantes para o planejamento local de seus bairros e deveriam ser qualificados, potencializando a urbanidade, como resultado. As centralidades ganham representatividade a partir de sua estruturação como ponto nodal e de articulação das atividades, local de encontro de fluxos, aglutinador de permanência e do convívio coletivo. Como a paisagem urbana está em constante transformação e crescimento, centralidades podem se enfraquecer ou se fortalecer e novas podem surgir, principalmente centralidades pontuais, como um hipermercado, ou mesmo um shopping center (mall). Neste último caso será uma pena para a dinâmica sociodiversa do centro.

Figura 4. Centralidades. À esquerda: eixos de centralidade de bairros. À direita: região central.

Conectividade O aspecto de conectividade relaciona-se diretamente com as centralidades analisadas, já que estas se desenvolveram ao longo do tempo muito em função da boa interligação das vias. O estudo da conectividade, ou axialidade, entende a cidade como um sistema de espaços através de seu tecido físico, verificando os diferentes graus de integração da malha urbana. Esta relação evidencia o comportamento

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dos fluxos na cidade e tem como objetivo estimar como a configuração da malha urbana influencia nos caminhos da cidade. Segundo Bill Hillier, há duas teorias que direcionam para essa compreensão, a do movimento natural e a do movimento econômico. O primeiro ocorre por forças naturais, e se dá pela própria estrutura que configura o espaço de forma homogênea, sem a necessidade de atrativos. A segunda é a dinâmica central do crescimento das cidades, e combina o movimento natural e a estrutura da grade com os usos da terra e a densidade, em caminhos diversos para diferentes espaços culturais. Dentro dessa diversidade criada pela vida urbana, Hillier afirma que o espaço necessita de fato ser a linguagem comum da cidade. (CRFR]]D, 2007, 83).

A conectividade, então, tem a potencialidade de intensificar a centralidade e a densidade. As avenidas Mato Grosso e Minas Gerais são as vias mais conectadas da cidade, entretanto, por apenas tangenciarem o centro, não exercem ainda grande centralidade, muito menos passam por um adensamento. Possuem, de fato, centralidades pontuais, como faculdade, escolas ou instalações de comércio e serviço relevantes. Mas, são vias predominantemente tranquilas, pacatas. No entanto, são estruturas fundamentais para o futuro da cidade. Comprova-se, com o estudo de conectividade, como os eixos de centralidade já identificados, que se originam no centro, são vias intensamente conectadas na malha urbana. São vias bem integradas e de grande inteligibilidade no sistema viário. Nas novas áreas de urbanização, vetores oeste e nordeste, observa-se como o tecido reticular desconexo dificulta a integração destas com o tecido existente. Importante observar, também, como os bairros historicamente segregados socioespacialmente são desconectados da malha urbana.

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Figura 5. Axialidade da malha urbana. Avenida Mato Grosso (destaque em vermelho, sentido leste-oeste). Avenida Miinas Gerais (destaque em vermelho, sentido norte-sudoeste). Elaborado pelo autor por meio do programa computacional XSPACE.

Considerações Finais A avaliação da qualidade do sistema de espaços livres guiada pelos critérios de urbanidade pré-definidos se mostrou satisfatória. Percebeu-se que a apropriação do espaço livre não está condicionada a sua adequação, embora espaços adequados convidem e melhor disciplinem seus usos. Não é possível perceber uma relação evidente entre apropriação e densidade construtiva e populacional. As áreas mais adensadas são, justamente, as áreas carentes de espaços livres públicos adequados. A área central, com espaços livres melhor qualificados e apropriados não é a área mais densa da cidade, como o senso comum poderia entender. É, com efeito, uma área privilegiada do ponto de vista da qualidade ambiental urbana. As centralidades são áreas bem conectadas, no entanto, o contrário nem sempre ocorre. Vias bem conectadas ao sistema viário não significam que são eixos de centralidade, mas podem vir a ser. Os espaços livres melhores apropriados estão nas áreas de centralidades, seja se relacionando aos eixos de centralidade ou a centralidades pontuais. Mais do que elencar aqueles espaços exemplos de boa adequação projetual e inserção urbana, compreendeu-se que promoção de urbanidade passa, necessariamente, por equilibrar a distribuição de espaços livres públicos adequados pela cidade e levar centralidade à periferia. A pesquisa descobriu que cerca de 60% da população urbana habita áreas carentes de espaços livres qualificados. Levar PNUM 2016 758

centralidade à periferia não significa medidas que contribuam para a perda de importância do centro, mas sim, prover a periferia de diversidade de usos e uma qualidade ambiental urbana que não pode ser privilégio da área central adequada, se comparada às cidades médias brasileiras no geral.

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Agradecimento À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo auxílio financeiro concedido à pesquisa.

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Repensando a cidade informal: a regulação da forma urbana e suas repercussões socioespaciais Mariana Costa Lima Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Ceará Avenida da Universidade, 2890, Telefone/fax: +558533667491 [email protected]

Resumo A cidade informal, expressão mais visível das condições de exclusão socioespacial enfrentadas por uma parte significativa da população urbana global, ocupa a maior parte dos territórios das cidades brasileiras, predominando em quantidade e extensão sobre a cidade formal (Maricato, 1996; Martins, 2006; Rolnik, 1997). O fenômeno da informalidade é frequentemente permeado por mitos e concepções equivocadas. É explicado inclusive em documentos oficiais - como produto essencialmente da pobreza, da globalização e da urbanização aceleradas, da insuficiência de investimento público e até da incapacidade de planejamento, numa visão que desconsidera a complexidade da organização urbana e as dinâmicas espaciais provocada pelos diversos agentes produtores da cidade e que coloca a informalidade como resultado de um processo inevitável. É, no entanto, crescente a percepção de que a informalidade é produto da ação do Estado - e não da sua ausência - e mais especificamente que as regulações territoriais são fatores relevantes para a promoção e a persistência da informalidade. O presente trabalho tem como objetivo compreender essas relações, em especial aquela entre a informalidade urbana e as regulações da forma urbana, sob a forma de revisão bibliográfica multi e interdisciplinar, no âmbito nacional e internacional, com enfoques urbanístico (i.e. Rolnik, 2015), econômico (i.e. Biderman, Smolka & Sant’Anna, 2008), social (i.e. Roy & Alsayyad, 2004) e jurídico (i.e. Fernandes, 2011). Busca, assim, refletir sobre os limites e as possibilidades do planejamento urbano em edificar um espaço que expresse as necessidades sociais, econômicas e culturais dos seus fruidores, diante de um descolamento cada vez maior entre as diretrizes e a prática, entre cidade legal e real. Palavras-chave planejamento urbano, regulação urbana, informalidade, exclusão

Introdução A cidade informal, expressão mais visível das condições de exclusão socioespacial enfrentadas por uma parte significativa da população urbana global, ocupa a maior parte dos territórios das cidades brasileiras, predominando em quantidade e extensão sobre a cidade formal (Maricato, 1996). O fenômeno da informalidade é, não raro, explicado como produto da pobreza, da globalização e da urbanização aceleradas, da insuficiência de investimento público e até da incapacidade de planejamento, numa visão que desconsidera a complexidade da organização urbana e que coloca a informalidade como resultado de um processo inevitável. É, no entanto, crescente a percepção de que a informalidade é produto da ação do Estado - e não da sua ausência - e mais especificamente que as regulações territoriais são fatores relevantes para a promoção e a persistência da informalidade. O presente trabalho busca compreender essas relações, em especial aquela entre a informalidade urbana e as regulações territoriais, reveladas tanto pela literatura brasileira como a internacional, sob a forma de revisão bibliográfica multi e PNUM 2016 761

interdisciplinar. Visa, assim, a refletir sobre os limites e as possibilidades do planejamento urbano em edificar um espaço que expresse as necessidades sociais, econômicas e culturais dos seus fruidores, diante de um descolamento cada vez maior entre cidade legal e real. O conceito de informalidade é amplo e multidisciplinar, abrangendo aspectos socioeconômicos, jurídicos e territoriais (Fernandes, 2011), o que faz dele um conceito impreciso e elástico. A natureza contraditória e complexa da informalidade contrasta com a visão dualista predominante que coloca a informalidade como uma negação da formalidade, quando na verdade os dois conceitos são dependentes e se sobrepõem (Mukhija & Loukaitou-Sideris, 2014; Rolnik, 2015; Roy, 2009). Consideraremos aqui a priori a informalidade urbana, conforme Roy (2009), como a condição em que a posse, o uso e a finalidade do solo urbano estão em desconformidade com o conjunto de leis vigentes. Por outro lado, essas leis não são compatíveis com as diretrizes enunciadas nos planos urbanos e não conduzem aos objetivos de interesse coletivo, o que a definição anterior simplista - sobretudo diante da complexidade do fenômeno da informalidade -, mas necessária para iniciar a discussão. Nesse sentido, julgamos mais importante do que definir o que é a informalidade, desmistificar suas interpretações pré-concebidas e entender sua natureza e suas relações. A primeira parte do trabalho trata, sob um enfoque social, da relação entre informalidade e pobreza. Em seguida, numa visão política e jurídica da informalidade, aborda-se a sua relação com o Estado e com a Lei. Por fim, é discutida a relação entre a informalidade e a regulação da forma urbana, sob os enfoques econômico e territorial.

Informalidade e Pobreza O fenômeno da informalidade é considerado, não apenas pelo senso comum, mas também por importantes exemplares da literatura e documentos oficiais, como sinônimo ou produto essencialmente da pobreza. Discursos como o de Oscar Lewis, sobre “a cultura da pobreza”, nos anos 60, e de Hernando De Soto, em seu “O Mistério do Capital”, nos anos 2000, colocam a responsabilidade da pobreza nos pobres e equacionam a informalidade com a pobreza (Alsayyad, 2004), ignorando que a informalidade é parte de uma realidade bem mais complexa englobando diversos níveis de poder e exclusão (Roy, 2005). Essas noções começaram a ser desmanteladas por estudos latino-americanos nos anos 70 e 80, mas ainda persistem nos discursos dominantes das mais diferentes partes do globo (Roy & Alsayyad, 2004).

Embora a maioria dos habitantes de assentamentos informais seja, de fato, uma população de menor renda, a extensão e a persistência da informalidade, observada sobretudo nos países em desenvolvimento - mas ocupando cada vez mais espaço também nos países desenvolvidos -, não pode ser explicada somente pela pobreza, cujos níveis têm diminuído, enquanto os de informalidade tem aumentado (Biderman, Smolka & Sant'anna, 2008; Fernandes, 2011; Mukhija & Loukaitou-Sideris, 2014).

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Mukhija & Loukaitou-Sideris (2014) acrescenta à discussão quando aponta a capacidade da condição de informalidade de ser tanto produtiva quanto exploradora, de acordo com a circunstância. Embora parte da literatura norte-americana tende a destacar a capacidade da informalidade de desafiar a natureza exploradora das regulamentações restritivas (i.e. Ward, 2014), a literatura latino-americana tem focado nos encargos da informalidade (i.e. Fernandes, 2011), destacando a sua natureza exploradora. Nesse sentido, os autores latino-americanos argumentam que, muito mais que expressão ou produto da desigualdade socioeconômica, a informalidade é agente de reprodução dessa desigualdade, visto que corresponde a um status de cidadania incompleta que reitera essa condição, compreendendo estigma da criminalidade, dificuldades de acesso ao crédito, custos de vida mais elevados (construção, transporte, aluguel) e pouco acesso a oportunidades de trabalho, cultura ou lazer (Maricato, 1996; Smolka, 2003). A informalidade repercute, assim, nas outras relações sociais, até mesmo aquelas aparentemente sem relação com a terra ou com a habitação (Rolnik, 2015), fornecendo, assim, uma "base para que a exclusão se realize em sua globalidade” (Maricato, 1996, 32).

Observa-se ainda que os assentamentos informais são muitas vezes tolerados quando não ocupam espaços bem localizados (Maricato, 2013) e sobretudo quando é do interesse dos grupos dominantes. Por outro lado, o estigma relatado é essencial para a construção da legitimidade da expulsão: sob justificativas que relacionam os assentamentos informais à doença e à violência, por exemplo, diversas famílias foram e são retiradas de sua moradia com uma autorização muda da sociedade. A tolerância e a expulsão, no entanto, formam dois lados da moeda político-eleitoral da anistia seletiva da regularização. Iniciativas de regularização de determinados assentamentos baseiam-se na “manutenção de uma ordem que não se transforma para incorporar diferentes formas de ocupação do espaço, mas apenas tolera, seletivamente, exceções à regra.” (Rolnik, 2015, 183). Diante dessa realidade, é pertinente questionar a relação entre a informalidade, o Estado e a lei.

Informalidade, Estado e Lei

A rápida e intensa urbanização da cidade é colocada frequentemente como explicação para o fenômeno da informalidade, em um discurso que o posiciona como um resultado de um processo maior e aparentemente inevitável (Fernandes & Copello, 2009). Ademais, informalidade é muitas vezes relatada como resultado da ‘ausência do Estado’ e de uma eterna 'falta de planejamento’, tratando a informalidade, como afirma Smolka (2003, 2), "como produto da omissão do poder público, sob a alegação de incapacidade administrativa”. A combinação desses discursos é revelada por Roy (2009, 77), quando fala da Índia, da "narrativa da megacidade caótica que desafia todos os controles e previsões do planejamento" (tradução nossa). Tais narrativas podem ser ilustradas por um trecho do Plano Local de Habitação de Interesse Social de Fortaleza, no Brasil:

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"Com a velocidade do processo de urbanização, as cidades foram incapazes de promover a inclusão das camadas mais pobres. Essa população buscou alternativas para sua moradia, ocupando informalmente imóveis públicos e privados em áreas sem infraestrutura e por vezes com risco ambiental. Junto a este contexto, as políticas públicas de promoção de moradias revelaram a ineficiência do poder público quanto ao problema da falta de moradia digna para a população de baixa renda ao longo do tempo.” (Prefeitura de Fortaleza, 2010, não paginado)

Esse tipo de discurso, também difundido na mídia, assume que um planejamento dito exitoso seria capaz de controlar todos os processos de formação da cidade e de resolver conflitos resultantes destes. Esta visão do planejamento redentor resume a solução de todos os males urbanos a uma questão técnica (Maricato, 2013) e ignora a complexidade da cidade e a dinâmica espacial e os conflitos envolvendo os vários agentes da produção do espaço urbano.

É crescente a percepção - sobretudo na literatura da América Latina e do Sul da Ásia (Alsayyad, 2004) de que a informalidade é produto, dentre outras coisas, das ações do Estado, seja enquanto mediador dos processos de formação, consolidação e remoção de assentamentos informais, seja através da elaboração de planos e leis. Por outro lado, a narrativa técnica parece ignorar a arbitrariedade da lei, cuja aplicação depende das circunstâncias e dos interesses envolvidos. Sobre a lei no Brasil, Villaça (2001, 338) discorre: “esta, é sabido, é feita pela e para as burguesias. Isso se revela pelo fato de se colocar na clandestinidade e na ilegalidade a maioria dos bairros e das edificações de nossas metrópoles”. Assim, a informalidade não acontece à revelia do planejamento, mas é um atributo dele, cujo suposto fracasso é, na verdade, do ponto de vista político, o seu maior êxito (Rolnik, 2015; Roy, 2009).

Alguns autores questionam, nesse sentido, a legitimidade da lei, na medida em que seus padrões, inatingíveis por grande parte da população, e sua aplicação induzem à condição de informalidade (i.e. Martins, 2006). Cymbalista (1999) aponta, nesse sentido, as condições de informalidade como subproduto e não como desvio da legislação. Para Fernandes (2011), em uma visão mais jurídica, por outro lado, os assentamentos informais têm sim problemas de ilegalidade e mais que questionar a legitimidade da lei, cabe refletir sobre a construção de uma “ordem legal legítima e incidente, que respeite os processos informais de justiça distributiva” (Fernandes, 2011, 6). Rolnik (2015), por sua vez, rejeita a absolutização da classificação dos assentamentos informais enquanto ilegais e enuncia diferentes situações em que a legalidade e a ilegalidade se sobrepõem.

Até agora, abordamos a forma como o Estado, através do planejamento e da lei, de uma maneira geral, tem função central na promoção e na manutenção da informalidade, dentro da lógica política dominante.

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Dentre essas leis, a regulação urbanística possui papel fundamental, na medida em que reune os atributos espaciais da ordem legal vigente e repercussões mais concretas no espaço urbano.

A Regulação Urbanística e o preço da terra

Desde os anos 70, a literatura econômica tem revelado o papel fundamental das normas urbanísticas, em especial as de uso e ocupação do solo, ao estabelecer padrões mínimos, no aumento do preço da terra e da propriedade, impossibilitando o acesso ao mercado formal pelos habitantes de menor renda (Biderman, 2008).

Estudos mais recentes mostram que as regulações urbanísticas não apenas aumentam os preços, mas induzem mais informalidade, o que constitui um passo adiante com relação às narrativas enunciadas anteriormente, ao apontar razões endógenas - e não razões exógenas e processos aparentemente fora do alcance de soluções locais, como a globalização e a pobreza urbana - como parte da responsabilidade pelo fenômeno da informalidade.

Biderman (2008) reconhece a existência de diversas causas para a informalidade para então refletir sobre uma delas, o que ele chama de regulações inapropriadas de uso do solo e de edificação, cujo aspecto excludente da regulação é semelhante nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Para o autor, uma análise sobre essa relação entre informalidade e regulação, sobretudo nos países em desenvolvimento, deve encarar o caráter duplo - formal e informal - do mercado: a regulação não só aumenta os preços do mercado formal, mas aumenta a demanda no mercado informal.

Mais recentemente também as pesquisas começaram a mensurar qual é, de fato, o impacto dessas regulações no mercado de terra urbana (Fernandes, 2011), como é o caso dos estudos de Biderman, Smolka & Sant'anna (2008) e de Avila (2015) para o Brasil.

Biderman, Smolka & Sant'anna (2008) fazem uso do fato que os municípios brasileiros implementaram as regulações de uso e ocupação do solo em tempos bastante diferentes para tentar isolar o papel da regulação dos outros aspectos que podem afetar o mercado imobiliário. Eles classificam as regulações em quatro tipos principais, a saber: normas de parcelamento, zoneamento, fronteiras/limites de expansão urbana e códigos de edificação. No estudo, Os autores chegaram a conclusão de que:

"Os resultados mostram claramente um impacto significativo da regulação sobre a informalidade e refutam a noção de que os mercados formais e informais de habitação são independentes. É evidente que a informalidade PNUM 2016 765

pode ser induzida pelas mesmas regulações que se aplicam aos mercados formais, o que significa que não é correcto conceber políticas circunscritas às áreas informais” (Biderman, Smolka & Sant'anna, 2008, 18).

Os estudos empíricos de Avila (2015) tratam mais especificamente sobre os impactos da lei brasileira de parcelamento do solo (Lei N. 6766/1979). O autor chega à conclusão de que essa lei, ao aumentar a rigidez na aprovação de loteamentos, acabou por ter o efeito oposto, visto que ao diminuir a oferta de terra formal para a demanda de menor renda, fez com que os promotores imobiliários tenham direcionado seus negócios ou para a informalidade ou para empreendimentos voltados para a classe alta.

Vale destacar que tanto Biderman (2008) quanto Avila (2015) deixam claro que o problema não está nem na falta de legislação, nem na presença dela, mas no fato de que a regulação existente estabelece padrões mínimos apenas para aqueles que podem pagar e não levam em conta as diferentes condições de acesso à terra dos diferentes grupos sociais. Para Biderman (2008), deve-se reconhecer a necessidade de subsídios para aqueles que não podem pagar por habitações que cumpram esses padrões mínimos.

Regulação Urbana e repercussões socioespaciais

A abordagem econômica, no entanto, não é suficiente para uma compreensão territorial da informalidade enquanto repercussão da regulação urbana. Essa é uma das facetas mais intrigantes da regulação, porque ela é colocada como elemento qualificador, uma espécie de molde da cidade ideal, mas ao instituir os limites entre o permitido e o proibido, define territórios legais e ilegais (Rolnik, 1997), tornandose instrumento de segregação e incapaz, assim, de qualificar o ambiente urbano como um todo, visto que determina apenas a menor parte do espaço urbano (Maricato, 1996).

Exigentes normas urbanísticas, sob a forma de leis de de zoneamento, de parcelamento, uso e ocupação do solo, de códigos de edificações, importadas de países centrais, definem um modelo de cidade ideal baseado em parâmetros como taxas de ocupação, coeficientes de aproveitamento, tamanhos mínimos de lotes - que desconsidera as necessidades e as capacidades de pagamento da maior parte da população, julgando-a capaz de alcançar esses padrões, algo impensável nos países periféricos (Maricato, 2013; Rolnik, 2000). Como consequência, esse modelo "cuja obediência produziria uma cidade saudável acaba por produzir imensos territórios descolados eterna ilegalidade, [acaba] produzindo assim efeitos contrários àqueles que os índices pregam." (Rolnik, 2000, 9). Martins (2006) corrobora com essa visão quando declara:

"Adequado ou não, só é irregular o que a legislação estabelece como tal. Aí se torna evidente o grande fosso entre o desejável (padrões estabelecidos nas leis) e a PNUM 2016 766

realidade urbana. Na maioria de nossas metrópoles - particularmente em sua parcela mais periférica, o irregular predomina em quantidade e extensão sobre o regular. Nessas condições, o que se poderia chamar de regularidade ou de “padrão”?" (Martins, 2006, 42)

Isso acontece porque as regulações urbanísticas não só contemplam apenas os padrões morfológicos e tipológicos de grupos dominantes, como também sistematicamente proíbem formas de morar tradicionais de boa parte da população, e mais especificamente de certas práticas socioculturais, promovendo um processo não só de segregação social, mas também étnico-cultural (Rolnik, 2015). Esses processos que, como vimos anteriormente, muitas vezes se sobrepõem, ocorrem não somente nos mais diferentes países em desenvolvimento, como também na Europa (Rolnik, 2015) e nos Estados Unidos (Mukhija & LoukaitouSideris, 2014). Essa visão adiciona aos fatores anteriormente citados como promotores da informalidade, a inadequação das regulações existentes à complexidade e à heterogeneidade das populações urbanas, cujas formas e estratégias de organização são explicitamente reprimidas por essas normas (Mukhija & Loukaitou-Sideris, 2014; Rolnik, 2015).

Não podemos entretanto, pressupor que essas restrições ocorrem por acaso, quando, desde as suas origens, as normas urbanísticas aparecem como garantia de proteção do espaço das elites. Nas cidades brasileiras, hoje se sabe, isso ocorre, por exemplo, desde a aprovação da Lei de Terras - que diante do fim da escravidão visava a proteger a propriedade privada da terra contra as ocupações dos trabalhadores assalariados - passando pelos códigos de obras e posturas higienistas - que traziam preceitos de salubridade e privacidade, com exigências muito acima da realidade das habitações populares, como o cortiço - e finalmente as leis de zoneamento, justificado como instrumento para controlar a densidade de ocupação do solo e para evitar conflitos entre usos incompatíveis, que é até hoje utilizado como elemento segregador de classes sociais impedindo à desvalorização dos bairros nobres (Maricato, 2013; Netto & Saboya, 2010; Rolnik, 1997).

Conclusão

Como foi abordado ao longo desse trabalho, a informalidade é frequentemente permeada por mitos e concepções equivocadas, porém não por acaso. Colocar a culpa apenas em razões estruturais, como a urbanização acelerada e/ou a pobreza urbana, ou ainda eximir o Estado e as leis da responsabilidade é uma combinação bastante confortável para encobrir os verdadeiros interesses econômicos, políticos, sociais e territoriais da informalidade. Por outro lado, até mesmo as demonstrações de que as regulações urbanísticas restritivas exercem papel fundamental na promoção e na manutenção da informalidade podem ser utilizadas para justificar uma desregulamentação, a qual, de fato, tem-se apresentado como a tendência

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atual para se lidar com assentamentos informais, o que pode ser ainda mais perversa que os regulamentos restritivos.

No entanto, como se pôde constatar, as regulações não são neutras e da mesma forma que possuem significativa capacidade de induzir processos de exclusão socioespacial e fomentar a informalidade urbana, também podem ser utilizadas como instrumento de inclusão. De fato, muitos dos autores que verificaram a relação entre regulação e informalidade, apresentam sugestões que compreendem não a desregulamentação ou a necessariamente uma diminuição das restrições normativas, mas sim uma reavaliação dessas normas de modo à aproximarem-nas da cidade real (Biderman, 2008; Fernandes, 2007; Mukhija & Loukaitou-Sideris, 2014). Fernandes (2007) sugere por exemplo algumas medidas para democratizar o acesso ao solo, a saber: normas menos elitistas, zoneamentos especiais, mudanças nos mecanismos fiscais de contrapartida da valorização do solo.

Por fim, dentro dessa discussão mais ampla sobre o papel das regulações urbanas na promoção da informalidade, consideramos importante discutir a posteriori até que ponto a relativa invisibilidade da cidade informal contribui para a sua perpetuação. O desconhecimento sobre a informalidade e sobre as consequências do planejamento facilitam a implementação de planos descolados da realidade e de regulações excludentes. Assim, uma ferramenta importante na reavaliação das normas urbanísticas vigentes é a informação – necessariamente espacializada - sobre a cidade real, de modo a evidenciar seus problemas e fundamentar cientificamente políticas mais includentes.

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Algumas considerações sobre o papel do Desenho Urbano na evolução e controlo dos tecidos urbanos: Bairro Alto, um caso de estudo. Beatriz Ribeiro1, Teresa Marat-Mendes2 Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE-IUL, DINÂMIA’CET-IUL Escola de Tecnologias e Arquitetura, Departamento de Arquitetura e Urbanismo Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal, Telefone: 00 351 930441852 [email protected], [email protected]

Resumo A presente comunicação parte do pressuposto de que para se poder intervir no tecido urbano da cidade consolidada, através de propostas de desenho urbano, é necessário conhecimento aprofundado sobre os comportamentos da forma urbana (Marat-Mendes, 2002). De acordo com a condição anterior e tomando como caso de estudo o Bairro Alto em Lisboa, procura-se identificar, em primeiro lugar, quais os comportamentos da forma urbana do Bairro Alto, registados ao longo do seu processo evolutivo. Em segundo lugar, entender como esses comportamentos são gerados, ou seja, quais as transformações que ocorrem e como estas são provocadas, nomeadamente quais os agentes e contextos geradores dessas alterações na forma urbana do bairro. Em último e terceiro lugar, pretende-se compreender como o processo de desenho urbano pode informar opções metodológicas que contribuam para melhores práticas futuras na intervenção no Bairro Alto. O Bairro Alto constitui o primeiro exemplo de malha ortogonal construído na cidade de Lisboa até ao séc. XV, em 1498. Embora este não tenha sido objeto de um plano de Desenho Urbano convencional, foi alvo de um articulado de legislação, que assegurou a configuração de uma estrutura de traçado regular, cuja permanência até à atualidade permitiu conservar a sua estrutura fundiária original, apesar dos diversos planos e projetos propostos ao longo do tempo. A sua análise sugere-nos, portanto, um exercício pertinente para o confronto da evolução da sua forma urbana ao longo do tempo. Esse confronto permitirá um melhor entendimento e crítica sobre outras propostas também realizadas para o Bairro Alto, nomeadamente: i) o Plano Diretor de Urbanização de Lisboa, de Étienne de Gröer (1948); ii) o Estudo Parcial de Urbanização – Remodelação do Bairro Alto, de Luís Cristino da Silva & Gustavo Sequeira (1949-1951); iii) com os pressupostos normativos no controlo da forma urbana da área em estudo impostos pelo Plano Diretor da Cidade de Lisboa; iv) assim como pelo Plano de Urbanização para o Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica, estes dois últimos ainda em vigor. Finalmente, através da apresentação dos resultados das análises comparativas aqui enunciadas esperamos contribuir para um maior conhecimento da forma urbana do Bairro Alto e respetivos processos de comportamento, permitindo assim informar sobre futuras práticas de intervenção neste bairro. Pois o confronto entre a análise morfológica e as propostas de normas e desenho urbano para o Bairro Alto, estabelece uma nova abordagem metodológica, que propõe uma leitura distinta sobre as opções de desenho urbano.

Palavras-chave Forma Urbana; Desenho Urbano; Transformação; Evolução; Bairro Alto.

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Introdução Neste artigo proporciona-se uma leitura dos comportamentos da forma urbana do Bairro Alto, cujo propósito remete para a compreensão das transformações a que o seu tecido urbano foi sujeito. Consequentemente essa leitura permite avaliar as transformações ocorridas na forma urbana, identificando-as consoante os agentes que as geraram ou moldaram. Pois, a intervenção em tecidos da cidade consolidada através de propostas de desenho urbano, requer conhecimento aprofundado sobre os comportamentos da forma urbana (Marat-Mendes, 2002). É objetivo deste trabalho apresentar uma análise comparativa tendo como objeto de estudo a evolução da forma urbana do Bairro Alto entre 1498 e hoje, na qual se encontram incluídos os pressupostos normativos no controlo da forma urbana da área em estudo, impostos pelo ‘Programa de Reordenamento da Cidade de Lisboa’, 1498-99, pelo Plano Diretor da Cidade de Lisboa (Câmara Municipal de Lisboa, 2012), assim como aqueles do Plano de Urbanização para o Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica (Assembleia Municipal de Lisboa, 1997; 2014), bem como o Plano Diretor de Urbanização de Lisboa (Gröer, 1948) e o Estudo Parcial de Urbanização – Remodelação do Bairro Alto (Silva & Sequeira, 19491951; Silva, 1952). O trabalho é desenvolvido com base numa análise morfológica do caso de estudo, o Bairro Alto em Lisboa, pretendendo contribuir para a formulação de questões referentes a futuras orientações metodológicas e de opções de desenho urbano a tomar relativamente ao bairro. A análise aqui proposta constitui uma abordagem distinta daquela conduzida por Helder Carita (1994), na medida em que promove o confronto entre a análise morfológica da forma urbana do Bairro Alto com as várias legislações e propostas de desenho urbano para o bairro. Para dar resposta aos objetivos atrás enunciados, este artigo estrutura-se em três partes. Numa primeira parte, caracteriza-se o Bairro Alto, objeto de estudo, através do seu enquadramento histórico e geográfico, à escala da cidade. A segunda parte identifica o método seguido para a realização da análise morfológica aqui proposta à forma urbana do Bairro Alto. Esta análise é feita a duas escalas. Num primeiro momento é realizada uma análise à escala do bairro, e num segundo momento, através de uma análise à escala dos vários elementos morfológicos que integram o tecido urbano do bairro. Na última e terceira parte são apresentados os resultados da evolução da forma urbana, aplicados especificamente numa área restrita de análise da Rua da Atalaia, confrontando o processo de transformações ocorridas com a leitura das normas e planos urbanos propostos para o bairro. O Bairro Alto. O Bairro Alto surge na sequência da abertura de um conjunto de ruas em Lisboa, em 1498, nos terrenos extra muralhas, aforados a Luíz de Atouguia1, denominado por ‘Vila Nova de Andrade’. Na origem do bairro estão fatores políticos e sociais gerados pela crise quatrocentista, que revelaram uma cidade

Aforamento dos terrenos das Herdades da Boa Vista e de Santa Catarina, cujos domínios originalmente pertenciam a Guedelha Palaçano.

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medieval muralhada incapaz de acompanhar o aumento de fluxo demográfico que se verificava, à época, na cidade de Lisboa (Castilho, 1954). Consequentemente, a urbe de Lisboa inicia um processo de expansão para fora das muralhas, no sentido poente, registando desde logo uma nova estrutura urbana diferente de Lisboa medieval, localizada no interior das muralhas. Simultaneamente à expansão, a fim de dar resposta a um grupo de questões de ordem urbana, surgiu “um vasto conjunto de acções de carácter arquitectónico e urbano com profundas implicações na construção duma nova estrutura e imagem para a cidade” (Carita, 1999, 53), que deu lugar à realização de um conjunto de ‘Reformas da Câmara Real’, denominado por ‘Programa de Reordenamento da Cidade de Lisboa’, 1498-992. Estes dois fenómenos constituíram os principais impulsionadores do desenvolvimento da ‘Vila Nova de Andrade’, que surgiu sem plano formal ou desenho urbano convencional, mas impulsionado por interesses económicos e sociais, no sentido de acompanhar o crescimento de Lisboa. Sem plano, o Bairro Alto foi desenvolvido por fases, conforme verificado por outros autores, como Carita (1994), França (1987) e Teixeira & Valla (1999). Neste artigo, distinguem-se, especificamente, três fases de desenvolvimento do bairro, caracterizadas pela composição e estrutura do seu tecido urbano. A primeira fase, 1498-1513, define-se pelo crescimento lento do aglomerado, com origem nas ruas paralelas à R. do Alecrim. Aqui os lotes preenchiam a totalidade dos quarteirões. A segunda fase, 15131553, caracteriza o início do edificado a norte da Estrada de Santos, atual Rua do Loreto. Aqui os quarteirões apresentam uma configuração de forma retangular, estreita e longa, e definem as suas ruas de sentido Sul-Norte, perpendicularmente ao rio. A terceira e última fase teve início em 1553 com a instalação dos jesuítas em São Roque, definindo então um polo dinamizador urbano, que veio testemunhar a alteração da configuração dos quarteirões para uma forma quadrangular, dispondo-se no sentido Este-Oeste, revelando uma nova estrutura urbana do bairro, com orientação perpendicular à anterior. O Bairro Alto, como exemplo da aplicação direta das normas do ‘Programa de Reordenamento da Cidade de Lisboa’, estabelece-se como um novo modelo urbano, que contrasta com a estrutura urbana medieval no interior das muralhas da cidade de Lisboa. Desde a sua origem até aos dias de hoje, o Bairro Alto revela a preservação da sua estrutura fundiária original, que é organizada pelo traçado regular imposto pelo sistema de rua-travessa. Este, por sua vez, hierarquiza e ordena o espaço urbano do Bairro Alto, sugerindo uma composição específica do seu desenho urbano, conforme também sugerido por Helder Carita e Edite Alberto em Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa (2012). Método de análise e avaliação da forma urbana Para se proceder à análise e avaliação da forma urbana é necessário ler o objeto de estudo nas suas diversas vertentes, seja a dimensão histórica, a dimensão do desenho geométrico, e ainda a dimensão

2 Constatado na carta régia de Agosto de 1498 relativa ao desenvolvimento das obras gerais da cidade, in Livro 1º de D. Manuel I (cópia de 2 de Julho de 1719), doc. 26, cóp. XVIII, fl. 21.

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das propriedades físicas da forma urbana (Marat-Mendes, 2015). Assim, ao considerar a dimensão histórica, a análise morfológica compreende uma leitura evolutiva, na qual o fator tempo é fundamental para que se possam estudar as transformações ou sua ausência na forma urbana. Consequentemente possibilita uma análise comparativa entre os vários momentos considerados relevantes para o caso de estudo. Esta dimensão é complementar com a análise das propriedades físicas dos elementos da forma urbana, nomeadamente as dimensões das áreas e dos perímetros dos quarteirões, lotes, logradouros e ruas. O estudo das propriedades físicas permite obter resultados mais completos, quando aplicado em paralelo com a análise do desenho geométrico. Desta forma, a análise morfológica é considerada como um processo a aplicar a várias escalas, na medida em que os resultados adquiridos provêm de diferentes perspetivas sobre o objeto de estudo. Visto a análise morfológica consistir na leitura dum processo evolutivo morfológico da forma urbana, a definição das escalas deve ser ponderada consoante o caso de estudo em questão, com o intuito de adquirir uma leitura completa das transformações ocorridas na forma urbana, indicando possíveis pressupostos necessários à fundamentação dos comportamentos analisados. A metodologia apresentada nesta comunicação corresponde a um processo encontrado ao longo da recolha e análise da informação sobre o Bairro Alto. Assim sendo, a metodologia seguida consistiu na (1) Pesquisa e recolha, em arquivo, da informação textual e cartográfica histórica, referente ao Bairro Alto; (2) Pesquisa e recolha, em arquivo, das normas urbanas e planos propostos para o Bairro Alto, para o período de 1498 a 2014; (3) Trabalho de análise sobre os desenhos cartográficos à escala do bairro e da rua, após exercício de vectorização que permitiu trabalhar as peças recolhidas à mesma escala. Esta análise baseou-se no redesenho dos elementos morfológicos do bairro, a partir do desenho dos quarteirões, lotes e logradouros. Selecionada a área de estudo da Rua da Atalaia, desenharam-se também, os perfis considerados relevantes; (4) Sistematização da informação obtida, permitindo a identificação das propriedades físicas da forma urbana do bairro, bem como a análise dos resultados das transformações ocorridas; (5) Confronto dos resultados da análise morfológica com as normas e planos urbanos propostos para o bairro. De acordo com o objetivo indicado para este artigo, a análise morfológica da forma urbana do Bairro Alto, é demonstrada e aplicada a uma rua, nomeadamente a Rua da Atalaia. Através da seleção de uma identidade urbana, torna-se possível demonstrar as transformações das diferentes unidades morfológicas em apreço, identificadas no bairro. Por unidade morfológica entende-se a área que demonstra uma estrutura histórico-geográfica da paisagem natural ou urbana semelhante (Oliveira, Monteiro & Partanen, 2015), que para o caso de estudo em análise, foram delimitadas de acordo com a forma dos quarteirões e hierarquia das ruas, equivalendo naturalmente às fases de desenvolvimento do bairro. A análise morfológica da forma urbana do Bairro Alto, aqui aplicada na Rua da Atalaia é concretizada em dois momentos, que se traduzem em duas escalas diferentes. No primeiro momento, a análise efetuada

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diz respeito à escala do bairro, na qual se lêem as transformações do tecido urbano relativas à disposição e processos de amalgamação ou divisão dos quarteirões e lotes, organização das unidades morfológicas e ocupação/apropriação dos vazios urbanos e logradouros. O segundo momento de análise consiste na desfragmentação do tecido urbano da Rua da Atalaia nos elementos urbanos que a compõem. Para além da análise morfológica desses elementos urbanos, é realizada ainda uma leitura quantitativa que permite identificar as dimensões dos quarteirões, a área da superfície coberta, o número de lotes, a área dos logradouros, o perfil e dimensionamento das ruas. Esta informação quantitativa encontra-se sistematizada em quadros, permitindo uma leitura organizada dos diversos elementos estudados ()LJXUD 2). Nesses quadros os valores apresentados resultam de uma quantificação obtida após um trabalho de vectorização que precedeu a identificação dos diversos elementos morfológicos em análise. Assim, foi calculada a área dos quarteirões cujo valor contabiliza a área total, contida dentro do seu perímetro, incluindo superfície coberta (espaços construídos) e logradouros (espaços não construídos). Os valores relativos à superfície coberta consideram todas as construções que ocupam área no interior do quarteirão. Os valores referentes aos logradouros contabilizam todo o espaço vazio verificado no interior do quarteirão, não distinguindo os espaços comuns dos privados. Para compreensão das alterações e relação entre os valores das áreas da superfície coberta e dos logradouros, é feita uma leitura desses valores em percentagem. A análise morfológica realizada à Rua da Atalaia, implicou o redesenho do objeto de estudo apoiado em cartografia original, recolhida em diversos arquivos3. A cartografia utilizada abrange o período compreendido entre a data de origem do Bairro Alto, 1498, e a atualidade, promovendo assim uma análise mais rigorosa, constando nas referências cartográficas. Complementarmente também a análise das normas legislativas aplicadas e propostas ao Bairro Alto, foram objeto de estudo. Por conseguinte, os pressupostos normativos ()LJXUD1) referentes ao período analisado cartograficamente são confrontados, a fim de aferir o seu impacto no processo de transformação do tecido urbano do Bairro Alto. Esse estudo confronta a existência (x) ou ausência (-) da análise teórica e da análise de desenho urbano, na Área Metropolitana de Lisboa (AML), na cidade de Lisboa e no Bairro Alto, presentes nos planos urbanos considerados. Como à data de alguns planos não existia a designação de AML, essa não foi considerada para os mesmos, apresentando uma área cinzenta. Deste modo, o processo de análise referido remete para a importância do processo de confronto entre os resultados das transformações morfológicas da forma urbana do Bairro Alto, verificadas na cartografia e identificadas nas normas e planos urbanos referentes ao controlo do desenho e forma urbana, propostos para o Bairro Alto.

Arquivo Municipal de Lisboa – Arco do Cego; Arquivo Municipal de Lisboa – Núcleo Histórico; Biblioteca Nacional de Portugal; Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian.

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Rua da Atalaia: aplicação do método e análise morfológica Com base na análise morfológica realizada e na sua sistematização, podemos agora aferir que a forma urbana do Bairro Alto, mais concretamente a da Rua da Atalaia, apresenta um conjunto diverso de elementos morfológicos de registos variados, nomeadamente tipologias de quarteirão e respetivas transformações dos lotes e logradouros. O exemplo estudado revela-nos assim uma amostra de diferentes possibilidades de comportamento da forma urbana para o próprio Bairro Alto. A partir da leitura da análise morfológica dos desenhos, verifica-se a preservação da estrutura fundiária original do bairro, até aos dias de hoje. Essa estrutura consiste no conjunto formado pelos quarteirões, ruas e travessas, cujas dimensões físicas, nomeadamente a área e o perímetro, assim como o alinhamento das fachadas não apresentam alterações. O bairro reflete, desta forma, as normas urbanas implícitas e aplicadas em 1498-99, pelo ‘Programa de Reordenamento da Cidade de Lisboa’, demonstrando, assim, a sua adequação aos vários contextos de evolução e desenvolvimento do bairro com a cidade. Através do confronto entre a leitura histórica anteriormente realizada e os desenhos elaborados, compreende-se a existência de diferentes tipologias de quarteirão. Essa distinção tem como base as fases de desenvolvimento urbano do Bairro Alto, bem como a configuração e organização dos respetivos quarteirões. Identificam-se três tipos de quarteirão: (1) o quarteirão estreito, que apresenta uma forma retangular, alongada e estreita, orientado no sentido S/N, cujo o lado de maior comprimento se revela para a rua; (2) o quarteirão quadrangular, caracterizado por uma forma de dimensões mais equilibradas entre si, assemelhando-se a um quadrado, está orientado no sentido oposto do anterior, ou seja E/O, revelando assim o lado de maior comprimento para a travessa; e (3) o quarteirão irregular, que resulta de adaptações à topografia acidentada do local ou de transformações entre os quarteirões existentes. Efetivamente, a maioria das transformações verificadas ocorrem através da relação urbana estabelecida entre os lotes e os logradouros, funcionando como um fenómeno causa-efeito. Estas transformações acontecem no interior do perímetro do quarteirão, através de processos de divisão, amalgamação ou demolição de lotes, que influenciam diretamente a utilização do espaço dos logradouros. Neste sentido, são confrontadas duas épocas distintas, 1950 e hoje. Em 1950, verifica-se um aumento exponencial da densidade de ocupação do bairro, que se traduziu numa apropriação massiva da área dos logradouros e consequente subdivisão dos lotes em áreas menores, resultando no aumento do número de lotes face à pequena percentagem de área dos logradouros. Atualmente, regista-se uma diminuição do número de lotes, e um aumento da percentagem de área dos logradouros, contrastando com as observações relativas ao quadro de 1950 ()LJXUD 2). Pois, a redução do número de lotes, possibilita o aumento da área da superfície coberta, sem comprometer a ocupação dos logradouros. Complementarmente, as transformações identificadas são caracterizadas pelos fenómenos verificados entre os lotes e os logradouros, estabelecendo relação com as respetivas tipologias de quarteirão (Figura ). No que diz

PNUM 2016 776

respeito à tipologia do quarteirão estreito, a maioria dos casos apresenta uma assimilação dos lotes, permitindo o aumento dos logradouros, através da união de vários num único elemento, ou através dum novo desenho provocado pela disposição dos lotes. Estes quarteirões procuram recuperar área não só nos logradouros, como nos próprios lotes, através da diminuição do seu número. Por outro lado, a tipologia de quarteirão quadrangular regista uma ocupação da área dos logradouros, com a extensão dos lotes já existentes, embora seja compensada pela diminuição do número de lotes. Estes são integrados entre si, apresentando uma forma de lote quadrangular. Relativamente ao quarteirão irregular, não se observa nenhum fenómeno em comum. Para além da relação estabelecida entre as tipologias de quarteirão, os lotes e logradouros, é necessário acompanhar essa leitura com as transformações que se refletem na comparação entre os perfis da Rua da Atalaia (Figuras  e ). Estes mostram um aumento das cérceas da maioria dos edifícios, relativamente à atualidade. Os edifícios que apresentavam em 1950, a configuração do lote inicial do Bairro Alto, com 2 a 3 pisos, foram alterados através da repetição dessa fachada na quantidade de pisos necessária para a nova construção. Apesar, de segundo, os planos urbanos em vigor, nomeadamente o PDM 2012 e o PUNHBAB 2014, restringirem o aumento da cércea até ao edifício que apresente maior altura do quarteirão, esta ação provoca maior ensombramento nas ruas e travessas, uma vez que as suas dimensões são desproporcionais, quando consideradas com um edifício de altura superior a 4 pisos. Outra situação confirmada pelo confronto das imagens, passa pela demolição de edifícios antigos, tipologias originais do Bairro Alto, para dar lugar a novas construções, que apenas consideram o perímetro do quarteirão como restrição, não tendo em conta a configuração do espaço urbano do bairro. Conclusão Esta comunicação pretende contribuir para o estudo do comportamento da forma urbana, através da análise morfológica de um caso de estudo, nomeadamente o Bairro Alto. A abordagem aqui considerada estabelece uma base metodológica para a intervenção em tecidos urbanos da cidade consolidada. Pois o processo de análise exposto em pontos anteriores, evidencia a importância do confronto entre os resultados das transformações e comportamentos da forma urbana, referentes ao objeto de estudo, verificados na cartografia utilizada, com as normas e planos urbanos propostos para o Bairro Alto, como opções de desenho urbano. A análise ao bairro combina uma leitura comparativa dos resultados, promovendo assim um processo de estudo sistematizado que engloba a vertente histórica e morfológica do Bairro Alto. A análise da sua forma urbana, segundo a cartografia e as normas urbanas propostas e aplicadas, permite obter resultados que correspondem a momentos distintos do processo evolutivo do bairro. Para estudar as suas transformações da forma urbana, na dimensão morfológica, foi aplicada na Rua da Atalaia, a metodologia enunciada, que proporcionou uma análise pragmática do objeto de estudo, facilitando o confronto dos resultados obtidos. Estes permitiram identificar o comportamento da forma urbana do Bairro Alto como

PNUM 2016 777

resiliente, uma vez que face ao desenvolvimento da cidade de Lisboa e às diversas propostas de desenho urbano para o espaço do bairro, a sua estrutura urbana original é preservada, com uma renovação constante de novos usos. Pois a configuração dos quarteirões não se altera, mesmo perante as transformações internas com os respetivos lotes e logradouros. Apesar destes últimos refletirem as transformações da sua forma entre si, os quarteirões funcionam como um marco territorial, praticamente independente dos restantes elementos morfológicos. Esta leitura de ‘chão’, configurada quer no ‘Programa de Reordenamento da Cidade de Lisboa’, quer nos atuais planos urbanos em vigor, provoca uma dicotomia na leitura do espaço urbano, ou seja, a nova construção substitui apenas o espaço do lote, mas não a leitura de fachada do perfil de rua. Os usos proporcionam uma renovação social e urbana do bairro, e que por sua vez influenciam na transformação dos elementos da forma urbana, nomeadamente no aumento da cércea e na extensão dos lotes para o interior do quarteirão.

AUTORES

ANÁLISE TEÓRICA

ANO

CIDADE LISBOA

BAIRRO ALTO

1498- 1502

x

AML

ANÁLISE DO DESENHO URBANO CIDADE LISBOA

BAIRRO ALTO

-

x

-

AML

Programa de

Provedoria de Obras

Reordenamento da

Reais e Senado da

Cidade de Lisboa

Câmara

Plano Diretor de

Arq. Étienne Gröer

1938-48

x

x

x

x

Estudo Parcial de

Arq. Luís Cristino da

1949-52

x

x

x

x

Urbanização –

Silva, Prof. Gustavo

Remodelação do

Matos

Bairro Alto

Prof. Fluerry

Plano de

Câmara Municipal

Urbanização do

de Lisboa

Urbanização de Lisboa

Sequeira,

1996-97

-

-

x

-

-

-

2012

x

x

-

-

-

-

2014

-

-

x

-

-

-

Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica (PUNHBAB) Plano Diretor

Câmara Municipal

Municipal de Lisboa

de Lisboa

(PDM) Alteração do

Câmara Municipal

PUNHBAB

de Lisboa

)LJXUD. Quadro com a sistematização da análise dos planos urbanos e legislações estudadas.

PNUM 2016 778

1950 Nº dos quarteirões

Área total dos quarteirões [m2]

Superfícies cobertas [m2]

%

Logradouros [m2]

Nº de Lotes

%

Q1

2522,34

2286,15

90,6%

236,19

9,4%

15

Q2

2632,13

2303,25

87,5%

328,88

12,5%

1

Q3

1706,26

1586,46

93,0%

119,8

7,0%

20

Q4

1132,7

1058,47

93,4%

74,23

6,6%

9

Q5

718,06

711,87

99,1%

6,19

0,9%

9

Q6

1516,62

1464,89

96,6%

51,73

3,4%

12

Q7

1702,53

1611,33

94,6%

91,2

5,4%

21

Q8

1924,86

1749,73

90,9%

175,13

9,1%

15

Q9

1301,45

1234,64

94,9%

66,81

5,1%

11

Q10

1407,96

1369,26

97,3%

38,7

2,7%

11

Q11

2950,39

2517,38

85,3%

433,01

14,7%

18

Q12

1764,72

1696,43

96,1%

68,29

3,9%

21

Q13

1932,08

1675,3

86,7%

256,78

13,3%

12

Q14

1565,82

1516,82

96,9%

49

3,1%

15

Q15

714,09

311,32

43,6%

402,77

56,4%

1

Q16

1116,8

1044,22

93,5%

72,58

6,5%

13

Q17

2450,75

1991,34

81,3%

459,41

18,7%

19

Q18

3447,31

2892,03

83,9%

555,28

16,1%

25

Atualidade Nº dos quarteirões

Área total dos quarteirões [m2]

Superfícies cobertas [m2]

%

Logradouros [m2]

Nº de Lotes %

Q1

2460,16

1955,6

79,5%

504,56

20,5%

8

Q2

2632,13

2356,74

89,5%

275,39

10,5%

1

Q3

1684,89

1466,21

87,0%

218,68

13,0%

13

Q4

1132,12

1053,97

93,1%

78,15

6,9%

6

Q5

718,06

711,87

99,1%

6,19

0,9%

6

Q6

1476,26

1339,21

90,7%

137,05

9,3%

1

Q7

1749,75

1641,32

93,8%

108,43

6,2%

22

Q8

1937,43

1705,12

88,0%

232,31

12,0%

15

Q9

1387,17

1221,92

88,1%

165,25

11,9%

8

Q10

1463,81

1377,12

94,1%

86,69

5,9%

11

Q11

2985,17

2524,32

84,6%

460,85

15,4%

13

Q12

1722,61

1652,77

95,9%

69,84

4,1%

20

Q13

1985,19

1693,53

85,3%

291,66

14,7%

7

Q14

1733,37

1668,25

96,2%

65,12

3,8%

14

Q15

699,01

634,91

90,8%

64,1

9,2%

2

Q16

1199,22

1077,77

89,9%

121,45

10,1%

12

Q17

2432,67

1957,72

80,5%

474,95

19,5%

16

Q18

3434,93

3065,21

89,2%

369,72

10,8%

26

)LJXUD2. Quadro com os valores quantitativos referentes à análise morfológica da Rua da Atalaia.

PNUM 2016 779

Figura . Painel com informação das transformações da forma urbana na Rua da Atalaia, em 1950. Créditos de imagens: [1] Carita, H. (1994) Bairro Alto - Tipologias e Modos Arquitectónicos. 2ª ed. LisboaCML.; [2 e 3] n.i. (1898-1908) Rua da Atalaia. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa.

PNUM 2016 780

Figura . Painel com informação das transformações da forma urbana na Rua da Atalaia, na atualidade. Créditos de imagens: [H] Fotografias de Beatriz Ribeiro de Abril de 2016.

PNUM 2016 781

Figura . Quadro de análise das transformações da forma urbana, confrontando 1950 com a atualidade.

PNUM 2016 782

séc. XIX-XX

[Orientação variável: consoante as transformações da forma urbana]

QUARTEIRÃO IRREGULAR

séc. XVII-XVIII

[Orientação O-E: o lado maior revela-se para a travessa]

QUARTEIRÃO QUADRANGULAR

séc. XVI-XVII

[Orientação N-S: o lado maior revela-se para a rua]

QUARTEIRÃO ESTREITO

TIPOLOGIAS DE QUARTEIRÃO

Q12 - 2012

Q18 - 2012

Q13 - 2012

Q13 - 1950

Q18 - 1950

Q11 - 2012

Q11 - 1950

Q15 - 1950 Q15 - 2012

Q12 - 1950

OCUPAÇÃO

Q14 - 1950

DOS LOGRADOUROS

Q14 - 2012

Q1 - 2012

Q1 - 1950

Q16 - 1950

Q8 - 1950

Q16 - 2012

Q8 - 2012

DESOBSTRUÇÃO

DOS LOGRADOUROS

Q3 - 2012

Q9 - 1950 Q9 - 2012

Q3 - 1950

Q17 - 1950

UNIÃO

Q17 - 2012

DOS VÁRIOS LOGRADOUROS

Q6 - 1950 Q6 - 2012

Q10 - 1950 Q10 - 2012

NOVOS

LOGRADOUROS

Q2 - 1950

Q4 - 1950

Q5 - 1950

Q2 - 2012

Q4 - 2012

Q5 - 2012

Q7 - 1950

SEM ALTERAÇÕES

Q7 - 2012

INTEGRAÇÃO DE LOTES

NOVOS LOTES

SEM ALTERAÇÕES

INTEGRAÇÃO DE LOTES

NOVOS LOTES

UNIFICAÇÃO DOS LOTES DO QUARTEIRÃO

INTEGRAÇÃO DE LOTES

NOVOS LOTES / LOTE PÁTIO

FENÓMENOS VERIFICADOS

Referências bibliográficas Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa (2012) Bairro Alto: mutações e convivências pacíficasCML, Lisboa. Assembleia Municipal de Lisboa (1997) Plano de Urbanização do Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica Diário da República, II série, n.º 238. CML, Lisboa. Assembleia Municipal de Lisboa (2014) Aprovação da alteração do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico do Bairro Alto e Bica Diário da República, 2ª série, n.º 83. CML, Lisboa. Câmara Municipal de Lisboa (2012) Plano Diretor Municipal de LisboaCML, Lisboa. Carita H (1994) Bairro Alto - Tipologias e Modos Arquitectónicos 2ª ed. CML, Lisboa. Carita H(1999) Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495-1524) Livros Horizonte, Lisboa. CastilhoJ (1954) Lisboa Antiga - O Bairro Alto 3ª ed. Oficinas Gráficas da CML, Lisboa. França J-A(1987) Lisboa Pombalina e o Iluminismo 3ª ed. Bertrand Editora, Lisboa. Gröer É (1948) Plano Director de LisboaCML, Lisboa. Marat-Mendes T (2002) The Sustainable Urban Form. A comparative study in Lisbon, Barcelona and Edinburgh Tese de Doutoramento, The University of Nottingham, United Kingdom. Marat-Mendes T (2015) Adaptabilidade, continuidade, flexibilidade e resiliência. Algumas considerações sobre as propriedades das formas urbanas. Revista de Morfologia Urbana, 3, 132-134. OliveiraV, Monteiro, C & Partanen J (2015) A comparative study of urban form Urban Morphology, 19, 73-92. SilvaL C (1952) Memória descritiva: estudos prévios para a elaboração de um ante-plano. CML, Lisboa. Silva L C & Sequeira G (1949-1951) Estudo parcial de urbanização: remodelação do Bairro Alto, inquérito e análise CML, Lisboa. TeixeiraM C & Valla M (1999) O Urbanismo Português. Séculos XIII-XVIII Livros Horizonte, Lisboa.

Referências cartográficas [Planta da cidade de Lisboa, na margem do rio Tejo: [desde o Bairro Alto até Santo Amaro]. (17--), n.d. s.l. Braun G (1593) Olissippo quae nunc Lisboa, ciuitas amplissima Lisitaniae, ad Tagum... n.d. Civitates Orbis Terrarum, Lisboa. Câmara Municipal de Lisboa (1950) Planta topográfica de Lisboa - Planta da Cidade de Lisboa, 1:1000. CML, Lisboa. Câmara Municipal de Lisboa (2013) Planta da Cidade de Lisboa, n.d. CML, Lisboa. Folque F (1856-58) Atlas da carta topográfica de Lisboa, 1:1000. CML-Repartição de Obras Públicas, Lisboa. Fundação

Calouste

Gulbenkian

(2009)

Espólio

Cristino

da

Silva

[Online]

http://biblarte.gulbenkian.pt/Biblarte/pt/Coleccoes/ColeccoesDigitais/EspoliosDeArquitectura

Disponível

em:

[Acedido

a

30.03.2015]. Pinto S (1904-11) Levantamento da Planta de Lisboa, 1:1000. CML - Repartição de Obras Públicas, Lisboa. Tinoco J N (1650) Planta da cidade de Lxa em q se mostrão os muros de vermelho com todas as ruas e praças da cidade dos muros a dentro... 1:3000. Direcção Geral dos Trabalhos Geodesicos do Reino, Lisboa.

PNUM 2016 783

Estrutura morfológica da grande cidade brasileira Eugenio Queiroga, Silvio Macedo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Rua do Lago 876, São Paulo, SP , Brasil Telefone 55 11 3091 4687 [email protected], [email protected]

Resumo As grandes cidades brasileiras, com população acima de um milhão de habitantes, assumem, na segunda década deste século, certas características morfologicas similares, decorrentes de processos comuns de produção do espaço. Via de regra, salvo Brasília, possuem estrutura viária incompetente para atender as demandas dos milhares ou milhões de automóveis que nelas trafegam. Ao longo das novas vias estruturais e dos trechos das rodovias que cortam as cidades se organizam eixos comerciais e de serviços adequados para receber clientes motorizados como shopping centers, centros empresariais, hipermercados, out lets e lojas delivery. O processo de urbanização baseado no transporte por onibus, caminhões e especialmente por automóveis tem se caracterizado pela estruturação de manchas urbanas extensas (fato favorecido pela extensão do território nacional), pelo crescimento das bordas urbanas de modo ora contínuo, ora fragmentado e pelo surgimento de um processo de dispersão funcional urbana e de dispersão fisica e funcional. Paralelamente observa-se um processo de verticalização bastante expressivo, que se espraia pelos mais diversos pontos, assim como o surgimento de centenas de condomínios e loteamentos fechados, em especial nos suburbios. Parte importante das grandes cidades, em especial naquelas onde as desigualdades socais são mais expressivas, são extensas as áreas construidas de modo informal, em geral pela população de baixa renda, apesar de existir ocupação irregular de alta renda, sobretudo na forma de lotamentos fechados. A cidade brasileira de grande porte é densamente construida, mas ainda é predominantemente horizontal, com áreas de convívio e lazer de caráter público, como praças e parques, em número bem aquém das demandas atuais, sendo que nas cidades do litoral as praias assumem tais funções. A construção destas paisagens tem sido favorecida pela atuação do Estado por meio de investimentos de porte em avenidas e estradas, pela implementação de parques lineares e ciclovias, por alguns projetos urbanos de porte, que possiblitaram o surgimento de áreas de orla tratadas paisagísticamente e pelo incentivo à construção massiva de habitações populares (o Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal possibilitou, nos últimos oito anos a construção de pelo menos 3.000.000 de unidades residenciais, a maioria nas bordas e periferias.

Palavras-chave Paisagem urbana, grande cidade brasileira, forma urbana, padrões morfológicos, sistema de espaços livres PNUM 2016 785

Paisagem urbana brasileira A cidade brasileira de médio e grande do século XXI é basicamente horizontal, constituída de estruturas baixas, de não mais de três ou quatro andares, entrecortadas por um sistema viário denso e altamente conectado entre si, sendo interrompido apenas por barreiras naturais, como enseadas e montanhas, constituído de grandes vias, avenidas e estradas/avenidas urbanas e uma complexa malha viária local, que geralmente está mal dimensionada para as atividades cotidianas. A esta horizontalidade está associada um alto índice de ocupação do solo, com as construções recobrindo porcentagens expressivas do lote urbano, sendo que o espaço destinado a jardins, pátios e quintais é frequentemente ocupado por acréscimos nas construções, conhecidos popularmente por “puxadinhos”. Como resultado uma alta impermeabilização do solo urbano e uma arborização que quando existe é em geral pouca e dispersa de um modo pontual na quadra, resultando que no tecido urbano não se observe em geral muita arborização, na maioria das cidades, sendo que grandes concentrações arbóreas são somente encontradas em parques, praças, terrenos a espera de ocupação e áreas de conservação e proteção ambiental, (estas se existirem). A arborização viária, inicialmente introduzida nos bairros de elite na virada do século XIX para o XX é bastante comum sendo que ruas totalmente arborizadas são encontradas em áreas mais centrais e em alguns bairros mais antigos, sendo que na maioria das vias sua introdução de torna difícil pela exiguidade dimensional das calçadas e a grande quantidade de entradas de garagem existentes. Por outro lado nas ultimas décadas apesar do crescimento populacional, a densidade urbana média é baixa, dificilmente ultrapassando 200 habitantes por hectare enquanto se tem em geral uma alta densidade construtiva. O adensamento construtivo e o aumento populacional nem sempre tem sido acompanhado em uma necessária ampliação do sistema de espaços livres públicos, em especial áreas de recreação e na existência de ruas com calçadas e mesmo o leito carroçável com dimensões adequadas.

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Figura 1. Vista geral da região centro oeste de São Paulo, observando-se a grande densidade construida, a escassez de vegetação, apesar de ser a área mais rica da cidade e o predomínio das formas horizontais sobre as verticais, apesar dos milhares de prédios existentes. Fonte: Silvio Macedo, 2015.

A cidade brasileira média passa por um processo de intensa transformação urbana, com o um crescimento populacional de porte, com um aumento da geração de domicílios maior ainda, pois em 2015 as famílias são menores que a poucas décadas atrás, o que significa uma maior demanda de novos apartamentos e casas. Como resultado uma expansão urbana que se dá de três modos, por adição de novas áreas urbanas, na forma de loteamentos e condomínios fechados, loteamentos abertos, áreas industriais, por sobreposição, isto é pela substituição de antigas estruturas construídas por outras novas, como prédios de apartamentos e complexos comerciais e por complementação, quando antigas áreas vazias, a espera de ocupação em meio ao tecido urbano, são loteadas ou ocupadas por complexos comerciais, industriais ou culturais. No tocante aos espaços livres as transformações mais significativas dentro da estrutura urbana s da maioria das cidades brasileiras de porte são aquelas advindas das reformulações viárias, que objetivam reestruturação de sistemas estrutural de seu sistema de circulação, como pontes e viadutos, alargamento e construção de novas avenidas, inserção de ciclovias e ciclofaixas, construção de linhas especiais de VLT e BRT e em alguns dos maiores centros novas linhas de metro. Tem se então que Manaus, Macapá, Serra, Rio de Janeiro, Curitiba são bons exemplos dessa demanda, que permite que os milhares de veículos possam continuar a circular de um modo mais ou menos eficiente. Dispersão funcional intraurbana e o seu reflexo na configuração da cidade e na hierarquia dos seus espaços livres. Ao contrário dos processos de transformação de grande parte do século XX, o crescimento da cidade do final deste século e do início do XXI se dá de um modo bastante diverso, baseado no citado crescimento da frota nacional, que associado às novas formas de comunicação permitiram ao cidadão uma mobilidade PNUM 2016 787

bem maior dentro da cidade, assim como facilitaram e tornaram possíveis a dispersão por dentro da malha urbana e ainda por fora dela das mais diversas atividades, do trabalho, a recreação e a moradia. Trabalhase em um bairro ou cidade, se mora em outro, ou outra e se vai a praia ou ao sitio a quilômetros de distancia, em um movimento pendular diário, que movimenta milhões de pessoas, que de automóvel, moto ou ônibus, que já faz parte do cotidiano urbano nacional há algumas décadas. Nos últimos vinte anos, este processo se intensifica com o aumento de renda real da população, com o consequente aumento da produção de veículos e ainda com a instalação e diversificação do número e tipo de montadoras, fatos estes associados a melhoria do sistema viário existente nas cidades. Observa-se um processo de dispersão funcional, por todas as principais cidades, com a saída total ou parcial de atividades comerciais, de serviços e administrativas das áreas centrais. Poucas são as áreas centrais que ainda mantém sua estrutura de 30 anos atrás, com a criação de novos polos de atividades em centros como Vitória, Salvador, São Paulo, Manaus, Belém do Pará ou ainda com o deslocamento parcial para áreas vizinhas ou longínquas dos velhos centros. Mesmo em cidades de médio porte como Anápolis, Uberaba, São José dos Campos ou Sorocaba este fato acontece ao longo de avenidas e rodovias, que possuem áreas de fácil acesso e permitem a instalação de torres corporativas, centros de negócios e grandes áreas comerciais. O processo de transformação da cidade, que se dá de um modo continuo, ora de um modo mais intenso, ora de um modo bastante discreto, não sendo percebido praticamente no cotidiano, que se dá por pequenas alterações nas construções, reformas e construção de “puxadinhos”, crescimento da vegetação, em especial das arvores, etc. Os processos mais evidentes são aqueles que se dão pela expansão de fronteiras urbanas, isto é da mancha urbana, que se dá nas suas bordas, ocupadas tanto por loteamentos fechados e condomínios para classes alta, média e de baixa renda, como por exemplo, os empreendimentos das companhias MRV e Alphaville com produtos para baixa (casas e pequenos prédios) e alta renda (loteamentos e condomínios fechados, centros comerciais) respectivamente e ainda os empreendimentos vinculados ao programa federal MCMV – Minha Casa Minha Vida.

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Figura 2. Eixo São Paulo – Campinas, em primeiro plano, loteamentos fechados e condomínios nos municípios de Valinhos e Vinhedo, uma das tantas formas da urbanização no país, no caso a de uma área de classe média e alta, de caráter fragmentado e disperso. Foto: Silvio Macedo, 2015.

Estes são responsáveis pela adição de importantes áreas ao tecido urbano das cidades brasileiras, loteamentos e condomínios destinados a logística e industrias, assim como a construção de portos secos, terminais petrolíferos e químicos. Nas áreas litorâneas ainda, como durante toda a segunda metade do século passado uma expansão e crescimento urbano fragmentado e disperso, expresso na forma de uma ocupação intensiva e extensiva por loteamentos, abertos e fechados destinados a casas de veraneio, condomínios e resorts ao longo de importantes segmentos da zona costeira. Nas suas grandes cidades, capitais ou não as, algumas das principais áreas residenciais se situam junto ao mar e passam em boa parte por um intenso processo de verticalização. Sobre os espaços livres A mudança de hábitos da população, que já se delineava ao final do século passado, com o aumento da pratica de andar a pé, correr, andar de bicicleta, passear o hábito de andar na rua, passear com cachorros, sentar em bares na calçada e mais recentemente o fenômeno das passeatas, de todos os portes, tanto em áreas centrais como em bairros, avenidas e estradas distantes exigem um outro olhar sobre os espaços livres públicos e se refletem no fechamento de ruas, avenidas, etc. tanto durante a semana, de um modo tanto voluntário como involuntário, como nos fins de semana, em ocasiões especiais, tanto de um modo também involuntário, no caso de grandes protestos e passeatas como propositalmente, de uma forma programada, como o fechamento de vias e viadutos aos fins de semana e para a recreação, caso por exemplo da avenida Paulista em São Paulo.

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Figura 3. Passeata em São Paulo, na saída de um túnel ao final da Avenida Paulista, uma das mais importantes avenidas da cidade e um dos seus sete centros financeiros. Foto: acervo Quapá, 2015

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Figura 4. A mesma Avenida Paulista, no mesmo trecho, com o transito fechado aos domingos para recreação da população. Foto: Silvio Macedo 2016.

Lado a lado a estas novas formas de apropriação do espaço público, perdura a preferência pó parte da população de frequentar parques e, que continua a mesma e até superior de há décadas e tense a aumentar, não importa em que ponto da cidade estejam. Atendendo a estas demandas existe um processo constante de abertura de novos parques, reconhecidos como elementos urbanos importantes, especialmente em bairros novos e nas periferias urbanas tanto em áreas de habitação popular como de classe média. Entretanto muitos estão parcialmente contidos em áreas de proteção ambiental e, portanto são áreas inacessíveis a população, outros tantos estão ainda no papel, mas o fato é que seu aumento em número tem sido significativo, em diversos dos centros urbanos de porte do país. São Paulo é com certeza um dos melhores exemplos do aumento significativo de parques, apesar da sua deficiência crônica de tal equipamento ainda permanecer em extensas áreas da metrópole, passando de cerca de 50 unidades, para mais de 100 logradouros. O aumento da oferta e do número de parques varia de região a região e de cidade a cidade do país, crescendo de um modo exponencial nos últimos quinze anos em Goiânia, Sorocaba, São José dos Campos, Anápolis, Brasília (Distrito Federal) e Sorocaba, enquanto em outros como Santos, Salvador, Maceió, Campina Grande e Recife, não existe praticamente nenhum tipo de investimento em tal tipo de equipamento e o Rio de Janeiro, uma dos centros urbanos mais importantes do país, tem apenas um parque aberto recentemente, o parque Madureira na zona norte da cidade. Nas cidades costeiras os investimentos públicos tendem a se focar na melhoria e no aumento das áreas de calçadão de praia, pois as áreas de praia e suas vizinhanças são de fato extensos parques lineares, em especial pelas suas possibilidades de uso para recreação durante quase todo ano, sendo espaços de alta visibilidade e de alto interesse para investimentos públicos.

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Paralelamente algumas experiências interessantes têm sido feitas nos espaços públicos, tanto em canteiros centrais de avenidas, como em praças, ou em calçadas de praia, que tem instalados novos tipos de equipamentos como aparelhos de recreação para terceira idade, (que são utilizados por pessoas de todas as idades), academias completas ou mesmo equipamentos isolados de ginástica, pistas de caminhada, pistas de skate e ciclovias, que tem de um modo ou de outro atraído mais usuários, que os tradicionais playgrounds e quadras esportivas. A prática de esportes no espaço público, o futebol em primeiro lugar tem sido comum no país desde a segunda metade do século XX, e foi formalizada pela introdução de quadras poliesportivas nas praças públicas, desenvolvida nos centenas de campinhos de futebol informais, que ainda persistem, ainda que em menor quantidade nos subúrbios das cidades, em número bem menor que anos atrás. Nas ultimas três décadas a popularização de outros esportes ao ar livre, como o skate, o segundo em popularidade no país, têm trazido outras formas de apropriação dos espaços públicos, causando conflitos entre usuários tradicionais e regras tem que ser estabelecidas para minimizar tais conflitos. Regras são estabelecidas e espaços são adaptados ou construídos especialmente para os novos usuários. No âmbito privado, dentro dos loteamentos fechados, e em especial nos espaços livres que circundam as torres e conjuntos de apartamentos, a partir dos anos 1980 em algumas cidades, e neste século por todo o país, são introduzidos equipamentos esportivos, quadras, piscinas, etc. e recreativos como play grounds, que de algum modo complementam a não existência de espaços públicos destinados a tais atividades. Estes são em geral por jardins ou simplesmente dispostos de um modo isolado em meio a pátios de estacionamento ou lajes de recobrimento de garagens.

Figura 5. Torres residenciais em Manaus, com seus espaços livres tratados paisagisticamente e equipados com quadras e piscinas. Foto: Silvio Macedo, 2015.

Este fato, quase uma compensação, tem a ver com o baixo investimento do Poder Publico em tal tipo de equipamentos, associado a necessidade das empresas construtoras de tornar mais atrativo estes espaços, que pela legislação urbanística, devem ser deixados livres de edificação, devido a taxas de ocupação

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generosas.A existência de torres isoladas no lote e na quadra, acaba beneficiando sensivelmente a insolação e a ventilação dos prédios, fato este positivo em um país tropical como o Brasil. Até os anos 1980 estes espaços eram comumente ocupados por jardins, mas já a partir desta década foram introduzidas tais amenidades, primeiramente playgrounds e piscinas e depois muitos outros itens de lazer.Tais práticas começaram no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, na Barra da Tijuca, na capital fluminense e em São Paulo nos bairros em Moema e Morumbi e daí se espalharam por todo o país, e por todas as partes destas cidades, se tornando comuns em condomínios verticais para as camadas médias e alta e ainda em loteamentos fechados e condomínios horizontais. Este tipo de estrutura aparece em todas as cidades de algum pontual. . Considerações A cidade brasileira da segunda década século XXI está em fase de consolidação, sendo bem diversa daquela existente apenas poucas décadas atrás, mas continua quase sempre sendo resultado da imponderabilidade das práticas políticas e das ações das empresas privadas. Por outro lado a forma urbana, não entra nunca nas políticas e ações públicas, assim como os sistemas espaços livres jamais são considerados como infraestrutura urbana. Somente no Distrito Federal, leia-se Brasília e suas cidades satélites, por tradição derivada de seu processo de gestação existe e perdura há décadas um processo de controle e quase total direcionamento da sua configuração morfológica. Da mesma forma poucas são as cidades que têm ações integradas sobre seu sistema de espaços, sobre todos os seus elementos, das ruas as praças e parques, apesar de um incremento real em alguns núcleos urbanos dos investimentos no sistema e todas as suas escalas de abrangência, sendo que no geral o que se observa são ações pontuais, devidas a oportunidades, como foi o caso do surgimento de parques em áreas de proteção ambiental, (no Brasil são denominadas de APPs urbanas, encostas, margens de rios e bosques urbanos,) em uma série de cidades ou ainda a disponibilidade de uso de terrenos pertencentes a entidades privadas, que de algum modo passaram para o Estado.

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A rua Primeiro de março e a centralidade na cidade do Rio de Janeiro: Uma análise urbanística Leonardo Pereira Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU), Escola de Arquitetura e Urbanismo (EAU), Universidade Federal Fluminense (UFF) Estrada Velha da Tijuca, 1134 / 101, Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro-RJ, Telefone/fax: 0055 21 24831400 [email protected]

Resumo Os centros urbanos das grandes cidades foram se modificando ao longo dos tempos e expressam a história de cada lugar, de como o povo se desenvolve, e de que maneira se apropria daqueles espaços. O artigo pretende buscar uma análise das relações entre patrimônio, morfologia urbana e a centralidade da rua Primeiro de março, antiga rua Direita da cidade do Rio de janeiro, tendo como base e critérios de avaliação, os conceitos de “cidade como artefato” e “cidade como campo de atuação de forças” - entendimento da cidade, enquanto construção histórica e estrutura complexa, calcado nas ideias de análise de Bernardo Secchi, Aldo Rossi e Manfredo Tafuri, os chamados neo-racionalistas - e pesquisas de campo com abordagem quantitativa e qualitativa para análise das hipóteses formuladas. Compreender o que ficou desta cidade colonial que detinha, no centro do Rio de Janeiro, sua principal referência de cidade – afinal na escala da cidade colonial aquela era “a cidade” – ao longo dos diversos planos que se sucederam (proposta do prefeito Pereira Passos, Plano Agache), é o foco primordial desta pesquisa. Neste contexto, a rua Direita, grande eixo comercial da cidade colonial latinoamericana, se constitui como destaque ainda em cidades preservadas como Paraty e Ouro Preto e em metrópoles nacionais como Salvador. Algo ficou desta antiga rua direita? A centralidade permanece? A centralidade, aqui concebida, é entendida como local onde os cidadãos concretizam, vivenciam e potencializam seus direitos às funções da cidade: habitação, trabalho, circulação e recreação, por exemplo, para citarmos as funções modernas atribuídas à cidade na Carta de Atenas. Nesta lógica, é importante verificar se o conjunto da rua Primeiro de março (antiga rua direita) perdeu importância ao longo da história e se a centralidade da região foi enfraquecida nos últimos anos. A pesquisa se configura em proposta à reflexão sobre morfologia, história e anseios sociais locais para melhor entendimento urbanístico da região, visando políticas públicas de desenvolvimento das cidades, que se modificam, transformam-se, crescem, reinventam-se a todo momento.

Palavras-chave Centro do Rio de janeiro; Rua Primeiro de março; Morfologia urbana; Teoria e história da formação da cidade; Análise urbanística PNUM 2016 795

Introdução Os centros urbanos das grandes cidades foram se modificando ao longo dos tempos e expressam a história de cada lugar e de como o povo se desenvolve e de que maneira se apropria daqueles espaços. Com este entendimento da cidade enquanto artefato, conceito amplamente abordado pelos chamados neo-racionalistas1, para estudos de urbanismo, enquanto disciplina preocupada em resolver os problemas destas estruturas complexas denominadas cidades e que se modificam, transformam-se, crescem, reinventam-se através dos tempos. O urbanismo obviamente mudou com o tempo e continua a mudar sem passar por revoluções científicas, sem seguir a trajetória de um progresso imediatamente reconhecível. Ao contrário, sua história mais parece à sucessão de uma série de pontos de convergência de correntes opostas e tendências conflitantes. (SHFFKL, 2006 60)

Por volta de 1565 os portugueses se estabeleceram no Rio de Janeiro, onde assentaram-se, primeiramente, nas bases do Pão de Açúcar e, mais tarde, nos arredores do Morro do Castelo. Foi nas bases deste morro que estabeleceram-se as tradições urbanas medievais advindas do Velho Mundo. Apesar de existirem divergências quanto ao modo em que se deu a ocupação das terras brasileiras pelos portugueses, é certo que o traçado urbano realizado seguia as sinuosidades da topografia, como foi colocado em umas das primeiras obras que tratavam o tema: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. Com uma visão diferenciada, a obra Evolução Urbana do Brasil de Nestor Goulart Reis Filho, tem uma contribuição fundamental estudar a urbanização entendida como processo social, além de considerar a rede urbana em suas diversas escalas, da local à internacional. Avançando pelo século XX, observamos que as noções sobre o espaço urbano, a cultura e o passado, foram adquirindo feições que interferiram diretamente na visão sobre aquilo que pode ser considerado patrimônio. Sobre tal mudança, podemos destacar que a pretensa capacidade do patrimônio em reforçar um passado e uma série de valores comuns.

Trata-se aqui dos teóricos vinculados, principalmente, à escola italiana de análise urbanística, onde são incluídos Bernardo Secchi, Aldo Rossi e Manfredo Tafuri, dentre outros.

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Figura 1 - Evolução da Região ao longo dos tempos, vista da Praça XV. Fonte: Instituto Pereira Passos (IPP), Prefeitura do Rio de Janeiro.

É necessário compreender o que ficou desta cidade colonial que detinha, no centro do Rio de Janeiro, sua principal referência de cidade ao longo dos diversos planos que se sucederam (Proposta do Prefeito Pereira Passos, Plano Agache)2. Neste contexto a Rua Direita, grande eixo comercial da cidade colonial latino americana de origens portuguesas, tão presente e preservada em outras cidades com relevância histórica no Brasil, aqui, por vezes, parece enfraquecida. Utilizada para ligar dois dos principais morros da cidade – Morro do Castelo e Morro de São Bento – a via adquire papel de protagonismo no núcleo urbano antigo, onde situam-se ainda a Igreja de N.S. do Carmo, denominada Capela Real no tempo de D. João VI e palco de coroamentos e casamentos da família Real e o Paço Imperial, denominado antes Paço Real, antiga residência oficial do governo colonial e da família real. Passa a ser denominada Rua Primeiro de março na ocasião do término da Guerra do Paraguai, em fins do século XIX.

Planos de “modernização” do centro da cidade no contexto do início do século XX que modificavam a escala e a referência de centralidade existente até aquele momento. O surgimento da Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco) configura-se como expressão emblemática daquele período de transição.

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A cidade definida por Henri Lefebvre como centralidade, a cidade como eixo histórico-social que determina o desenvolvimento da sociedade da Antiguidade à Idade Média e da época industrial, parece condenada pelo Capitalismo. A degradação do meio urbano provém do conflito do uso do solo e do seu valor comercial. A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso e do valor de troca. Instrumentos e análises Mediante a na introdução abordada acima, firma-se, como pressuposto téorico, o entendimento de cidade como artefato e como campo de atuação de forças, além de considerar a centralidade como local onde os cidadãos concretizam e vivenciam e potencializam seus direitos às funções da cidade – habitação, trabalho, circulação e recreação, por exemplo, para citarmos as funções modernas atribuídas na Carta de Atenas. Foram estabelecidas três hipóteses principais antes do desenvolvimento da pesquisa, a saber: O conjunto da rua Primeiro de março (antiga rua direita) perdeu importância ao longo da história; A centralidade da região foi enfraquecida nos últimos anos. Porém, entende-se que ainda existe centralidade; E a centralidade está ligada à conformação das edificações. Os instrumentos de análise da região deram-se através da realização de 100 (Cem) entrevistas em 10 pontos ao longo da rua Primeiro de março (abordagem quantitativa), e conversas livres com transeuntes ao longo da rua (abordagem qualitativa) e registros fotográficos, em Maio de 2015. Foram desenvolvidos estudos da área baseado em métodos analíticos de reconhecimento de morfologia urbana presentes nas ideias de Bernardo Secchi, Aldo Rossi e Manfredo Tafuri.

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Análises morfológicas

Figura 2 Apresentação de mapa analítico da região como artefato. Fonte: Google Maps com intervenção do autor.

Análise baseada na teoria dos fatos urbanos que propõe a identificação da cidade como artefato. A hipótese da cidade como artefato, consiste no entendimento da cidade como obra de arquitetura ou de engenharia que cresce no tempo. A cidade emerge de modo autônomo quando a consideramos como dado último, como construção, como arquitetura; em outras palavras, quando analisamos os fatos urbanos pelo que são como construção última de uma elaboração complexa. É por meio dos códigos que se procede a leitura das obras arquitetônicas no decorrer da história e desta forma é permitida a preservação da memória não só do edifício, mas também do cenário urbano. Seguindo este pensamento, Tafuri (1979 133) afirma que: (...) O modo de receber uma mensagem, os processos de decodificação utilizados, os ‘erros’ que têm lugar nessa decodificação, são os elementos determinantes para o estabelecimento de uma relação produtiva entre comunicação e comportamento social. (...) desde a década de 30, a cultura arquitetônica tem preferido procurar no seu próprio seio os problemas que só poderiam derivar de uma análise completa e isenta dos modos como a sociedade mítica a que ela se dirigia decodificada, altera,

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transforma e utiliza concretamente as mensagens lançadas pelos construtores de imagens, isso é, um indício do estado de insegurança da cultura arquitetônica.

Para proceder à análise do lugar foi necessário estabelecer a priori os limites dentro dos quais essa análise é definida. Neste sentido foi definida a escala da rua conceituada em Tricart 3: A escala da rua, que compreende as construções e os espaços construídos que a circundam. O princípio que torna as edificações relacionáveis e homogêneas é o conteúdo social que elas apresentam. Neste sentido, o tipo deve ser entendido como a estrutura interior de uma forma, ou como um princípio que contém a possibilidade de variação formal infinita, e até de sua própria modificação estrutural. O tipo é princípio estrutural da arquitetura, não podendo ser confundido com uma forma passível de descrição detalhada. Para evitar problemas de classificação da tipologia dos edifícios e de sua relação com a cidade foram considerados sempre os edifícios como momentos e partes de um todo que é a cidade. Nesta análise podemos perceber a convivência de edificações e espaços públicos de diferentes épocas ao longo da Rua Primeiro de Março, que, por sua importância ao longo da história, materializou as ideias de concepção de arquitetura e urbanismo vigentes em cada momento na cidade. Destaque para a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, reminiscência de 1761, que representa a maioria de tipologia espacial (grupo denominado reminiscências – século XVII a 1922) presente na área de estudo. Espaços dos grupos Modernidade e Contemporaneidade, juntos, se equivalem e criam embate acirrado com as reminiscências, porém não adquirem mesma força e importância no contexto visual e identitário da rua.

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Jean Tricart (1920-2003) geógrafo francês ligado à Geomorfologia e à Geografia Social. PNUM 2016 800

Figura 3 - Apresentação de mapa analítico da região como campo de atuação de forças. Fonte: Google Maps com intervenção do autor.

Na análise político/social o espaço urbano é entendido como local de embates/debates de ideologia, abordando o problema político da cidade como problema de escolha, pela qual a cidade se realiza através de sua própria ideia de cidade. O problema político da cidade encontra consistência nos argumentos de Manfredo Tafuri, em crítica ao sistema capitalista, associando as questões fundamentalmente ligadas aos problemas econômicos da dinâmica urbana ou deles deriváveis. Este entendimento da cidade como campo de aplicação de diferentes forças, corroborado por vários autores, em diferentes âmbitos, como Carlos Nelson Ferreira dos Santos, no clássico A cidade como um jogo de cartas4, é fundamental e substancial para a análise urbanística da região. Em análise ao mapa produzido acima, podemos perceber a inexistência da força habitacional na região, que trava um embate acirrado entre a força institucional e religiosa – em consonância com a tipologia de expressão espacial denominada reminiscências – e a força comercial – em consonância com as tipologias de expressões espaciais denominadas modernidade e contemporaneidade.

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Santos C (1988) A cidade como um jogo de cartas, Universidade Federal Fluminense, Niterói. PNUM 2016 801

Pesquisas de campo: Abordagens qualitativas e quantitativas A situação atual do Centro do Rio de Janeiro - sendo afetado por obras de revitalização da Zona Portuária e implantação de VLT (Veículo leve sobre trilhos) na Avenida Rio Branco – é visível sua influência na vida das pessoas que utilizam este local. Esta dinâmica afeta a Rua Primeiro de Março principalmente em termos de fluxos, onde a antiga Rua Direita da cidade assume uma carga de veículos maior que de costume, trazendo consigo engarrafamentos e atraso de transportes coletivos o que desestimula a utilização da região, contribuindo para uma imagem negativa da via que culmina com o êxodo de pessoas, empresas e instituições – enfraquecimento da centralidade. Região é centralidade importante principalmente para moradores de municípios da região metropolitana e zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Em pesquisa, 40% dos usuários da região entrevistados responderam morar fora do Rio (fora do município do Rio de Janeiro), onde a centralidade se estabelece por conta de maior oportunidade de emprego se comparado ao centro de suas cidades e 30% na Zona Norte da cidade (proximidade e referência histórica). Porém, outro dado importante para o reconhecimento do perfil dos usuários da localidade objeto da pesquisa se dá com as respostas obtidas para a variável “Por dia, quanto tempo gasta para ir e vir de casa para a sua atividade?” onde (34%) responderam que gastam mais de 2 horas para chegar à localidade objeto de estudo e 27% responderam levar de 1:31 a 2:00 horas. A população que atinge as duas respostas corresponde a mais da metade (61%) dos entrevistados. Este perfil auxilia no reconhecimento da área como centralidade específica (oportunidades de emprego) das cidades da região metropolitana e áreas periféricas da região norte da cidade ainda que os usuários tenham dificuldade de locomoção e percorram grandes distâncias. A pesquisa indicou prioridade pelo tema lazer por parte dos entrevistados. 68% demonstraram altíssimo interesse no tema e 51% demonstraram haver poucas oportunidades na região. Em conversa livre com usuários da localidade e a partir de observações sistemáticas, percebe-se que a Praça XV constitui-se no principal marco da área em estudo, seguido do Centro Cultural Banco do Brasil o que garante um reforço do caráter identitário da localidade, voltada para o encontro e atividades públicas e culturais – Centralidade específica da atualidade.

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A pesquisa apontou que 63% dos entrevistados não têm diminuído a frequência de utilização da rua nos últimos tempos e que a frequência de uso da rua apresenta distribuição trimodal e 59% ao todo frequentam vários dias da semana. Considerações finais As pesquisas de campo foram fundamentais para reconhecer uma centralidade reforçada, ao contrário do que se pensava com a hipótese inicial. Adota-se então um viés conclusivo de que o “enfraquecimento” pode estar relacionado à ausência de políticas públicas de valorização da via no âmbito da importância que possui não só para a cidade, quanto para a região. A centralidade atual está de acordo com a sociedade atual, sociedade hipertexto conforme conceitua Ascher (2004), multifocada, onde existem várias centralidades neste novo entendimento de cidade, em contraposição à centralidade da cidade colonial. Atualmente estamos ligados à retórica do planejamento estratégico, onde as intervenções urbanas são fragmentadas e específicas, de acordo com a zona (área administrativa, projetual, estipulada de acordo com interesses políticos, econômicos e sociais) de inserção. Não há mais espaço para o planejamento urbano integrado, que represente uma ideia de cidade em sua totalidade, é a era do pós-modernismo que nos apresenta Harvey (2007)5 nas suas dissertações sobre a condição pós-moderna que vivemos, e onde a cidade se mostra como palimpsesto de formas antigas e modelos correntes. A centralidade proposta por Henri Lefebvre como caráter essencial do espaço urbano, relacionada à base de direito à cidade, é renegada enquanto premissa principal do estudo de planejamento urbano usual corrente, acirrando os conflitos sociais e a criação de guetos. O entendimento do urbanismo como resposta às necessidades concretas e imediatas, conhecimento e praxis política ajustados a uma única estratégia que não pode prescindir nem da imaginação, nem da utopia, também proposto por Henri Lefebvre não encontra mais espaço para cogitação e com isso espaços como os centros de grandes cidades como o Rio de Janeiro ainda não encontram um equilíbrio nas relações sociais, longe da restituição ao indivíduo o poder de decisão sobre seu ambiente cotidiano, e da melhoraria da qualidade de vida da cidade para todos. A atual centralidade da rua Primeiro de março está entre a criação de cenários para formulações culturais e sociais específicas por parte das reminiscências morfológicas históricas (Igrejas, Museus, Arco do Teles, Praça XV) e de emulação do centro enquanto local das corporações político-administrativofinanceiras (Assembléia 10, Alerj, Tribunal de Justiça, Prédios contemporâneos – ou retrofit – com 5

Harvey D (2007) Condição pós-moderna, Edições Loyola, São Paulo. PNUM 2016 803

escritórios do setor de serviços), que disputam espaço, considerado, pelo status quo, mais adequado para os anseios da sociedade atual. Esta leitura da cidade se faz fundamental para a proposição de soluções urbanísticas que permitam abarcar as nuances e especificidades de cada ambiente para que tentemos não reproduzir modelos préfabricados em dissonância com a morfologia, história e anseios sociais locais. Referências bibliográficas Ascher F (2004) Los nuevos princípios del urbanismo – El fín de las ciudades no está a la orden del dia, Alianza Editorial, Madrid. Broadbent G (1990) Emerging concepts in urban space design, E & FN Spon, London. Choay F (2001) A alegoria do patrimônio, UNESP, São Paulo. Goldemberg M (1997) A arte de pesquisar. Como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais Record, Rio de Janeiro, 44-60. Gomes M (2009) Urbanismo na América do sul EDUFBA, Salvador. Harvey D (2007) Condição pós-moderna Edições Loyola, São Paulo. Hollanda S (1973) Raízes do Brasil 7 ed., José Olympo, Rio de Janeiro. Lefebvre H (1991) O direito à cidade Ed. Moraes, São Paulo. Maia D (2008) Ruas, casas e sobrados da cidade histórica: entre ruínas e embelezamentos, os antigos e os novos usos. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008, Barcelona. Marconi M, Lakatos E (1982) Técnicas de Pesquisa Atlas, São Paulo. Pessôa J (2009) Análise Urbana: Abordagem/autores – morfogênese Apresentação - mídia digital, Rio de Janeiro. Rossi A (2001) Arquitetura da cidade Martins Fontes, São Paulo. Secchi B (2006) Primeira lição de urbanismo Ed. Perspectiva, São Paulo. Tafuri M (1979) Teorias e história da arquitetura Presença, Lisboa Tafuri M (1985) Projecto e utopia: arquitectura e desenvolvimento do capitalismo Presença, Lisboa. 

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Transformação na Forma Urbana Brasileira – Estudo de Dois Centros Urbanos. Rafael Pegoraro, Silvio Macedo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), Laboratório QUAPÁ Rua do Lago, 876, Cidade Universitária, São Paulo, Brasil. Telefone: +55 11 30914687 [email protected], [email protected]

 Resumo  Este trabalho investiga áreas de transformação da paisagem urbana do início do século XXI em duas cidades brasileiras de grande porte: Campinas e Curitiba, com foco específico na forma urbana e nos Sistemas de Espaços Livres. Visando o aprofundamento de discussões já levantadas, a investigação apoia-se na metodologia e em resultados obtidos pelo projeto. QUAPÁ-SEL II – “Os Sistemas de Espaços Livres na constituição da forma urbana contemporânea no Brasil: produção e apropriação” em desenvolvimento pelo laboratório QUAPÁ-FAUUSP, São Paulo, Brasil. No empenho de delinear o comportamento de tais processos em curso busca-se a elaboração de um quadro que parte do mapeamento e da caracterização morfológica de áreas transformadas e passa para um processo de análise em múltiplas escalas. Assim se espera traçar bases para a compreensão dos produtos em consolidação e seu impacto nos Sistemas de Espaços Livres das cidades estudadas, base da vida cotidiana do cidadão.



Palavras-chave Forma Urbana; Transformação; Espaços Livres. 

INTRODUÇÃO

A abordagem do espaço urbano adotada baseia-se no entendimento do espaço como uma totalidade complexa, formada pela materialidade e pela sociedade. Segundo Milton Santos o espaço se configura a partir de uma síntese na qual “processos (sociais), resolvidos em funções, se realizam através de formas”1. O termo “transformação”, por sua vez, corresponde à junção dos conceitos de mudança na forma”. Assim entende-se transformação, para fins deste estudo, como a ação de alteração, de mutação ou de mudança na forma que resultaram na variação desta através do tempo. Processos de transformação podem ser compreendidos de distintas formas. Aqui propõe-se uma divisão entre processos de adição, responsáveis pelo incremento em área da mancha urbana; processos de sobreposição, que agem sobre áreas urbanizadas já consolidadas e processos de consolidação, que preenchem os vazios dentro da mancha urbana deixados pela expansão urbana. A caracterização morfológica do resultado desses processos se apoia na metodologia desenvolvida pelo laboratório QUAPÁ da FAUUSP para o projeto QUAPÁ-SEL II – “Os Sistemas de Espaços Livres na constituição da forma urbana contemporânea no Brasil: produção e apropriação”. A interpretação desses tipos morfológicos e da forma como se organizam no espaço urbano, por sua vez, subsidiam a compreensão das dinâmicas de transformação da paisagem urbana nas cidades de Curitiba, no Paraná e de Campinas em São Paulo no  Santos

M (1985) Espaço e Método, Nobel, São Paulo, 11 PNUM 2016 805



início do século XXI. Tais dinâmicas de transformação podem ser compreendidas em três escalas distintas. A partir da escala metropolitana, que permite a compreensão do contexto no qual as transformações se inserem. A escala municipal, que permite o estudo de conjuntos de áreas de transformações que estejam vinculadas a lógicas comuns e estejam sob mesma regulação urbanística. E por fim a escala intra-urbana, que permite a caracterização dos produtos resultantes das transformações.

PROCESSOS DE TRANFORMAÇÃO

Os elementos que constituem o espaço urbano possuem característica variável no tempo. Para Milton Santos, o conteúdo e a significação desses elementos estão sempre em mutação2. A própria palavra “TRANSFORMAÇÃO” surge da junção de três conceitos: “Trans.(mudança)”, “Forma” e “Ação”. Indica uma ação de alteração, de mutação ou de mudança na forma. A noção de transformação urbana, desse modo, para os fins deste estudo, assume o papel das ações que resultaram na variação da forma urbana através do tempo. Essa abordagem da transformação urbana vai de encontro com aquilo que Philippe Panerai define como o crescimento de uma aglomeração urbana, pois este crescimento é entendido como “um conjunto de fenômenos de extensão e adensamento aprendidos de um ponto de vista morfológico, isto é, a partir da sua inscrição material no território”3. Assim a noção transformação cria um vínculo com as ações de extensão e de adensamento. Relacionadas com esses processos, as áreas de transformação das cidades brasileiras do início do século XXI podem ser divididas em três tipos: áreas de transformação por adição, áreas de transformação por consolidação e áreas de transformação por sobreposição: As áreas de transformação por adição consistem em áreas de transformação de uma porção de espaço não urbano em espaço urbano, isto é, no parcelamento do solo feito mediante loteamento visando a criação de novas áreas urbanas e sua consecutiva ocupação. Áreas de transformação por sobreposição, por sua vez, consistem em áreas com alteração da volumetria construída e da ocupação de uma área previamente urbana já ocupada por outra volumetria construída com a preservação da estrutura existente na paisagem urbana, e mudanças nas formas das edificações, se destacando o surgimento de verticalização em áreas previamente ocupadas por edificações horizontais. É possível encontrar diferentes áreas de sobreposição dispersas e coexistindo dentro da mancha urbana,  idem 3

Panerai P (2006) Análise Urbana, Editora UNB, Brasília, 51 PNUM 2016 806



suas diferenças são resultado da sobreposição de diferentes exigências em relação ao uso e a ocupação do solo urbano através do tempo. Áreas de transformação por consolidação são áreas de transformação que se caracterizam pela ocupação de áreas vazias incorporadas ao espaço urbano, ou no sentido de estabelecer a continuidade do espaço urbano entre dois núcleos urbanizados dispersos. (A classificação deste tipo de área é dependente do recorte a ser analisado, podendo ser interpretada, por vezes, como áreas de transformação por adição. Para fins deste trabalho os recortes realizados consideram a escala metropolitana da mancha urbana, por isso, transformações no sentido de urbanizar áreas de forma a estabelecer a continuidade da mancha entre dois núcleos urbanos são interpretadas como áreas de consolidação).

MATERIAIS E MÉTODOS

O desenvolvimento do trabalho se deu a partir da comparação de fotos tiradas por satélite entre os anos de 2005 e 2015 (Google Earth) e na consequente identificação de áreas de transformação na volumetria construída. Tais áreas de transformação foram classificadas em relação ao tipo de processo de transformação (adição, sobreposição ou consolidação), em relação à volumetria resultante da transformação, além da quantidade de espaço livre, recuos e arborização existentes nas áreas transformadas (todas estas de acordo com as categorias de caracterização morfológica estabelecidas pelo laboratório QUAPÁ-FAUUSP). Tais dados foram levantados e sintetizados graficamente com o auxílio de softwares SIG (Sistema de Informações Geográficas). O processo de análise se inicia com a interpretação do contexto metropolitano no qual o município se insere. Parte para a delimitação de zonas de transformação que agrupem um número de áreas transformadas guiadas por lógicas comuns. E então para a caracterização de produtos consolidados que estejam vinculados aos tipos morfológicos caracterizados. Assim as conclusões se debruçam sobre os agentes responsáveis pela consolidação desses produtos e sobre o impacto deles no Sistema de Espaços Livres urbanos.

RESULTADOS

Curitiba é um município de grande porte localizada no estado do Paraná, Região Sul do país, que ocupa a posição de capital estadual. Segundo o IBGE, o município possuía em 2010 a população equivalente a 1.751.907 habitantes, sendo a projeção para 2014 igual a 1.864.416 habitantes. O município possui a área de 435,036 km², é marcado pelo rigor urbanístico e dividido em setenta e cinco bairros agrupados em nove regionais. Sua área urbanizada, entretanto, é conurbada com áreas urbanizadas de municípios vizinhos, PNUM 2016 807



formando uma metrópole com uma vasta mancha urbana (Figura 1). Campinas, por sua vez, também é um município de grande porte, porém localizada no estado de São Paulo, Região Sudeste do país, a 99 quilômetros da capital estadual. Segundo o IBGE, Campinas possuía em 2010 a população equivalente a 1.080.113 habitantes, sendo a projeção para 2014 igual a 1.154.617 habitantes. O território do município possui a área de 794,571 km² de campinas é dividido em 18 administrações regionais e subprefeituras. Sua área urbanizada, entretanto, abrange as cidades vizinhas formando uma região metropolitana na qual o Campinas possui o papel de município central. São assim, ambas, metrópoles de interior, com extensas áreas urbanizadas. Buscando a interpretação do contexto metropolitano no qual os municípios se inserem, foram identificadas dinâmicas metropolitanas enquanto vetores de transformação das manchas urbanas. O estudo da mancha urbana pode buscar delinear aspectos específicos a cada cidade ou evidenciar dinâmicas que podem ser interpretadas como comuns a diversas cidades. A especificidade da mancha urbana surge de sua posição no território, de sua relação com o suporte físico e com a infraestrutura de transporte4. Podemos entender a mancha urbana Curitiba (Figura 2) a partir de um modo complexo de transformação capaz de conjugar diversos outros modos distintos, entretanto, percebe-se que a marcação de uma extensa área contínua na porção central, e apenas suas bordas apresentam composições em formas lineares e de fragmentação nucleada. A mancha de Campinas (Figura 2) também pode ser entendida a partir de um modo misto de transformação. Mas quando comparada com Curitiba, percebe-se que ela está mais marcada pela fragmentação linear com diversos núcleos estruturados a partir de vias de circulação, e que cada núcleo, com destaque para o central, apresenta formas de crescimento contínuo. Devido ao fato que a mancha urbana extrapola a área administrativa do município em ambas as cidades, torna-se necessária sua compreensão a partir da escala da região metropolitana. Sua forma então corresponde a tendências metropolitanas, que estruturam o contexto no qual os municípios estudados estão inseridos, e por isso, dele são dependentes. Apesar de distintas, notase vetores de dispersão e fragmentação nas bordas de ambas as cidades.  



E (2015) Quadro analítico preliminar, estudo de dez cidades e metrópoles brasileiras, in: Os sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea no Brasil, Relatório de pesquisa (processo FAPESP nº 2006/56623-2).

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  Figura 1. Aspectos morfológicos de Curitiba (acima) e Campinas (abaixo) Fonte: Anotações do Autor sobre fotos do acervo QUAPÁ-FAUUSP (2011 

 Curitiba é um município de grande porte localizada no estado do Paraná, Região Sul do país, que ocupa a posição de capital estadual. Segundo o IBGE, o município possuía em 2010 a população equivalente a 1.751.907 habitantes, sendo a projeção para 2014 igual a 1.864.416 habitantes. O município possui a área de 435,036 km², é marcado pelo rigor urbanístico e dividido em setenta e cinco bairros agrupados em nove regionais. Sua área urbanizada, entretanto, é conurbada com áreas urbanizadas de municípios vizinhos, PNUM 2016 809



formando uma metrópole com uma vasta mancha urbana (Figura 1). Campinas, por sua vez, também é um município de grande porte, porém localizada no estado de São Paulo, Região Sudeste do país, a 99 quilômetros da capital estadual. Segundo o IBGE, Campinas possuía em 2010 a população equivalente a 1.080.113 habitantes, sendo a projeção para 2014 igual a 1.154.617 habitantes. O território do município possui a área de 794,571 km² de campinas é dividido em 18 administrações regionais e subprefeituras. Sua área urbanizada, entretanto, abrange as cidades vizinhas formando uma região metropolitana na qual o Campinas possui o papel de município central. São assim, ambas, metrópoles de interior, com extensas áreas urbanizadas. Buscando a interpretação do contexto metropolitano no qual os municípios se inserem, foram identificadas dinâmicas metropolitanas enquanto vetores de transformação das manchas urbanas. O estudo da mancha urbana pode buscar delinear aspectos específicos a cada cidade ou evidenciar dinâmicas que podem ser interpretadas como comuns a diversas cidades. A especificidade da mancha urbana surge de sua posição no território, de sua relação com o suporte físico e com a infraestrutura de transporte5. Podemos entender a mancha urbana Curitiba (Figura 2) a partir de um modo complexo de transformação capaz de conjugar diversos outros modos distintos, entretanto, percebe-se que a marcação de uma extensa área contínua na porção central, e apenas suas bordas apresentam composições em formas lineares e de fragmentação nucleada. A mancha de Campinas (Figura 2) também pode ser entendida a partir de um modo misto de transformação. Mas quando comparada com Curitiba, percebe-se que ela está mais marcada pela fragmentação linear com diversos núcleos estruturados a partir de vias de circulação, e que cada núcleo, com destaque para o central, apresenta formas de crescimento contínuo. Devido ao fato que a mancha urbana extrapola a área administrativa do município em ambas as cidades, torna-se necessária sua compreensão a partir da escala da região metropolitana. Sua forma então corresponde a tendências metropolitanas, que estruturam o contexto no qual os municípios estudados estão inseridos, e por isso, dele são dependentes. Apesar de distintas, nota-se vetores de dispersão e fragmentação nas bordas de ambas as cidades.  





E (2015) Quadro analítico preliminar, estudo de dez cidades e metrópoles brasileiras, in: Os sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea no Brasil, Relatório de pesquisa (processo FAPESP nº 2006/56623-2).

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Figura 2. Dinâmicas metropolitanas em Curitiba (acima) e Campinas (abaixo) Fonte: Ilustração do Autor (2015)



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O Entendimento da categoria da transformação consiste na compreensão da relação estabelecida entre a área transformada e sua situação anterior, podendo ocorrer de três maneiras: adição, sobreposição ou consolidação. Estas áreas estão especializadas em mapas de transformação urbana (Figuras 3) que permitem sua compreensão no território a partir dos quais compreende-se as seguintes dinâmicas: Em Curitiba (figura 3) Percebe-se uma concentração de áreas de transformação por sobreposição em dois eixos que se estendem sobre áreas de ocupação mais antigas e consolidadas no interior do município. Tal fenômeno é relacionado à recorrente manutenção de um plano de ocupação desenvolvido para Curitiba que define claramente eixos de verticalização, fenômeno que geralmente se espalha no território a partir de transformações de sobreposição à antiga forma constituída. Em Campinas (figura 3) percebe-se a concentração de pequenas áreas de transformação por sobreposição em um núcleo no interior do município. Esse fenômeno se dá pelo fato de tratar-se de uma área já consolidada, de urbanização mais antiga, sem quantidades consideráveis de vazios. Assim o processo de transformação é dado pela substituição de certos tipos morfológicos construídos por outros tipos morfológicos construídos. Contornando os eixos de transformação por sobreposição de Curitiba (Figura3) encontra-se um anel de áreas de transformação por consolidação. É notável como esse tipo de transformação é volumoso e bastante disperso sobre a mancha urbana, sendo a forma de transformação que mais contribuiu para a mudança da forma urbana de Curitiba dentro do período estudado. Em Campinas (Figura 3) nota-se a formação de um anel de áreas de transformação por consolidação contornando o núcleo de sobreposições. Isso se dá pelo fato de existirem diversos vazios a serem ocupados decorrentes da dispersão e fragmentação do processo de urbanização. As áreas de transformação por adição de Curitiba (Figura 3), por sua vez, formam um anel periférico parcial ao redor de toda a ocupação mais antiga e de forma associada ao anel rodoviário da metrópole. A parcialidade desse anel pode ser explicada por dois fatores: em primeiro lugar, o caráter metropolitano e compacto da constituição da mancha urbana de Curitiba, que se une aos territórios urbanos dos demais municípios como um território contínuo e faz com que o anel de áreas aditivas seja dividido entre elas; em segundo Em Curitiba nota-se a formação de um anel periférico de transformações por adição (Figura 3). Apesar do município estar inserido dentro de uma região metropolitana, a mancha urbana não é compacta nem contínua, sua característica é dispersa e nucleada, nos permitindo observar os processos de adição territorial de cada um desses núcleos. O fato de existir um único anel periférico de adição, a despeito do fato de existirem diversos núcleos de urbanização no município, é decorrente da pequena distância em que se encontram esses núcleos. Dessa forma o processo de adição territorial entre núcleos, que os aproxima, foi interpretado como um processo de transformação por consolidação.

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Figura 3. Áreas de Transformação por Curitiba (acima) e Campinas (abaixo) Fonte: Mapa do Autor produzido com auxílio do Laboratório QUAPA-FAUUSP (2015) 

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A caracterização destas áreas de transformação forma feitas a partir de levantamentos de Espaços Livres Intraquadra, Recuos intraquadra e Arborização Intraquadra e por fim de Morfologia Construída. Foram então agrupadas de acordo com lógicas comuns em Zonas de transformação. A essas zonas de transformação também estão vinculados certos produtos como elementos resultantes de um processo de transformação observáveis na escala intra-urbana, nos quais as volumetrias construídas encontram-se vinculadas à uma função específica. A maior parte destes produtos são disponibilizados no mercado imobiliário e portanto voltados a certas faixas de renda. Apesar das especificidades observadas, alguns produtos se apresentaram como figuras recorrentes na transformação de Campinas e Curitiba compreendida entre 2005 e 2015. Estas informações foram organizadas em mapas sintéticos de produtos da transformação (Figuras 4 e 5) que apresentam as áreas de transformações evidenciando sua volumetria construída a partir dos principais agrupamentos morfológicos: Horizontal 1, de edificações inseridas em quadras urbanas padrão de até 3 pavimentos; Horizontal 2, de edificações de maiores proporções inseridas em quadras com menor divisão de lotes; Vertical, de edificações com 4 ou mais pavimentos e Encraves, de grandes estruturas capazes de inserir descontinuidades no território. No plano de fundo é possível notar o mapa de volumetria construída da cidade produzido pelo Laboratório QUAPÁ mostrando o contexto geral da cidade e com cores mais fortes a volumetria da forma transformada.

 Figura 4. Mapa síntese de produtos da Transformação (2006-2015) - Curitiba Fonte: Mapa do Autor produzido com auxílio do Laboratório QUAPA-FAUUSP (2015)

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Figura 5. Mapa síntese de produtos da Transformação (2006-2015) - Curitiba Fonte: Mapa do Autor produzido com auxílio do Laboratório QUAPA-FAUUSP (2015 

  Entende-se, assim, que a maior parte dos resultados do processo de transformação possa ser compreendida enquanto produtos disponíveis para consumo no mercado imobiliário. Observa-se que a maior parte das transformações em ambas as cidades geram: Edifícios Habitacionais de médio e alto padrão, loteamentos fechados, condomínios horizontais, edifícios comerciais, empreendimentos vinculados ao Programa Minha Casa Minha Vida, grandes e médias estruturas de varejo e edifícios de salas comerciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se concluir que existe a vinculação entre alguns processos de transformação e certos tipos de volumetria construída. Processos de sobreposição, por exemplo, estão ligados a processos de verticalização, enquanto processos de adição estão vinculados ao surgimento de loteamentos fechados e condomínios horizontais. Tais vinculações não se apresentam de forma clara para processos de consolidação, o que existe, porém é uma predominância deste tipo de transformação em relação aos anteriores. Enquanto a cidade modernista se expandiu muito em área, a cidade contemporânea se transforma principalmente através do preenchimento de áreas vazias deixadas anteriormente. Em relação

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aos agentes produtores, nota-se uma tendência crescente de atuação dos setores privados na produção da forma urbana das cidades estudadas com protagonismo das empresas de base imobiliária. Isso se dá principalmente a partir da intensificação da quantidade de produtos baseados na existência de áreas coletivas de propriedade privada. Em relação ao papel dos Sistemas de Espaços Livres três subsistemas são considerados determinantes na relação com a estruturação recente da forma urbana das cidades, o primeiro vinculado aos automóveis, o segundo vinculado ao ócio e ao lazer e o terceiro vinculado à preservação ambiental.

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Cidade como Universidade, Universidade como Cidade: A morfologia do recinto universitário Luísa Cannas da Silva, Teresa Heitor CERIS, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa Av. Rovisco Pais, nº.1, 1049-001 Lisboa, Telefone/fax: 00 351 218418344 [email protected], [email protected]

Resumo O espaço universitário tem sido amplamente discutido nas últimas décadas. No âmbito das economias e sociedades do conhecimento, a universidade é, cada vez mais, entendida como um agente importante nas dinâmicas económicas e urbanas, e valorizada como elemento dinamizador. Considera-se que o espaço universitário funciona em si mesmo como veículo de conhecimento. É através da sua dimensão física, localização e nível de participação nas dinâmicas urbanas, que a universidade expressa a sua missão, valores e estratégias pedagógicas. É também através do seu espaço físico que a universidade se integra na envolvente, podendo estabelecer-se como estrutura contínua e complementar ou disruptiva no tecido urbano. Deste modo, o recinto universitário assume não apenas um papel passivo, de contentor de actividades, mas um papel dinâmico, integrador e dinamizador, que transcende o universo académico, estendendo-se a todos os utilizadores do espaço universitário e da sua envolvente. Neste artigo explora-se o papel do espaço físico universitário como elemento de ligação entre academia e sociedade e de transição entre as escalas do espaço (privado) de aprendizagem e do espaço (púbico) da cidade. Através da análise morfológica centrada na escala urbana e do recinto, enfatizam-se as condições espaço-funcionais com influência na capacidade de a universidade se estabelecer como entidade sinergética e activa, comprometida com a sua missão, tendo em conta a relevância da relação universidade-cidade no contexto das sociedades do conhecimento. O artigo está organizado em duas partes. Na primeira são apresentados diferentes modelos de recintos universitários, definidos em função das suas características morfológicas e de localização no território, assim como das funções que oferecem e do tipo de vivências que proporcionam. Na segunda, são definidas as variáveis utilizadas na observação deste tipo de recintos, criando uma metodologia de análise aplicável a larga escala. Argumenta-se que estas variáveis influenciam o nível de relação morfológica que a universidade estabelece com a cidade. São considerados factores como a distância ao centro urbano, a compacidade do recinto ou o tipo de limites deste, analisando as relações de continuidade ou descontinuidade com as malhas adjacentes. Salienta-se o impacto que o limite do recinto tem na sua inserção urbana. Finalmente, são extrapoladas as condições espaço-funcionais com influência na capacidade desses recintos contribuírem para que a universidade se institua como um organismo sinergético.

Palavras-chave Recinto universitário, campus, cidade, morfologia urbana, sinergia. PNUM 2016 817

Introdução

A universidade enfrenta actualmente um contexto de mudança. Não só os novos recursos tecnológicos estão a alterar os paradigmas associados à educação superior, como as transformações sociais, políticas e económicas das últimas décadas se reflectem na forma como a criação e difusão de conhecimento são entendidas e valorizadas. Num mundo progressivamente mais globalizado, e em que o tipo de conhecimento valorizado tende a ser progressivamente mais operacional, performativo e menos teórico (Barnett 2000), a universidade está a deixar de ser o único produtor de conhecimento. Importa repensar o seu papel, e a forma como esta se relaciona com a sociedade. Este contexto de alteração influencia também os processos de ensino e aprendizagem e o espaço físico em que estes decorrem.

Isto significa que o papel da universidade já não pode ser desempenhado isoladamente, mas esta deve assumir-se como organismo sinergético e participativo em dinâmicas urbanas e sociais (Corneil and Parsons 2007), respondendo a solicitações e resolvendo desafios diversos. Como produtor e difusor de conhecimento, a universidade terá tanto mais força quanto mais enraizada e conectada estiver dentro do seu ambiente urbano, dado que, mesmo atendendo à globalização, a produção de conhecimento e, em especial, o desenvolvimento tecnológico, são sempre sensíveis ao contexto em que se desenvolvem (Heitor 2012) e podem ser positivamente influenciados por este. A universidade, como entidade com uma presença física em meio urbano, inclui também uma componente educativa (Campos Calvo-Sotelo 2010), como veículo transmissor de informação, valores, e cultura universitários, assim como por projectar uma imagem de educação superior, participando activamente no seu ambiente. Além disso, o seu impacto em ambiente urbano manifesta-se até na revitalização de ambientes e áreas em declínio (Filion et al. 2004), considerando-se que a universidade pode contribuir para criar dinamismo na sua envolvente urbana (Adhya 2008) através do seu espaço físico e das dinâmicas e movimentos que este gera.

O espaço físico não só deve acompanhar a evolução tecnológica, adequando-se a novas exigências técnicas, mas também acolher e potenciar o desenvolvimento de novas estratégias de aprendizagem e produção de conhecimento (den Heijer 2011), fomentando novos tipos de interacções (Bacharel Carreira 2015).

Este artigo defende que as ligações estabelecidas entre a universidade e a envolvente (cidade) têm potencial para promover um desenvolvimento urbano e social sustentável (van Winden 2015), suportado em actividades relacionadas com a criação, transmissão e aquisição de conhecimento. Estas ligações podem estabelecer as condições necessárias para obter inovação e desenvolvimento (Williams HWDO2008). Dado que o espaço físico é relevante para a criação destas ligações e relações, é objectivo deste artigo analisar as características morfológicas que o espaço universitário pode assumir de forma a fomentar uma mais forte interacção com o aglomerado urbano em que está inserido. Trata-se de uma abordagem próxima PNUM 2016 818

dos conceitos base na concepção da University of Virginia, por Thomas Jefferson em 1817, em que se destacava a importância da comunicação e da interacção à escala do recinto (Turner 1984), aplicando os mesmos princípios na transição de escalas. Estes princípios têm sido amplamente defendidos na concepção e adaptação de universidades actualmente (Barnett and Temple 2006, Temple and Barnett 2006, Mitchell 2007, Wiewel and Perry 2008, Gensler 2012), contribuindo para a alteração do papel social da Universidade.

Neste artigo explora-se o papel do espaço físico universitário como elemento de ligação entre academia e sociedade e de transição entre as escalas do espaço (privado) de aprendizagem e do espaço (púbico) da cidade. Através da análise morfológica centrada na escala urbana e do recinto, enfatizam-se as condições espaço-funcionais com influência na capacidade de a universidade se estabelecer como entidade sinergética e activa, comprometida com a sua missão, tendo em conta a relevância da relação universidadecidade no contexto das sociedades do conhecimento.

Metodologia O espaço físico universitário constitui um elemento fulcral no desenvolvimento da educação superior. O recinto1 como entidade assume uma relevância social marcada, e serve como transmissor da imagem da educação superior globalmente.

Considera-se que espaço físico universitário actua quer como variável dependente, quer como variável independente (Holanda 2010), na relação da universidade com os seus utilizadores. Ou seja, por um lado, o espaço depende da concepção da universidade, expressando os seus usos, e transmitindo valores que variam desde a missão da universidade à sua estrutura pedagógica e funcional. Por outro lado, o espaço influencia também os seus utilizadores, servindo em si próprio como veículo educativo e de propagação da cultura da universidade.

A universidade contemporânea deve estabelecer-se como organismo sinergético, criador de movimentos e interacções. Assim, foram seleccionadas algumas variáveis com a capacidade de influenciar a utilização do espaço académico, quer pelos utilizadores directos do espaço (comunidade académica), quer por utilizadores externos, pertencentes ou não à comunidade local. Estes mesmos elementos são também influenciados pela concepção da universidade, materializando a sua cultura e modelos pedagógicos.

 O termo campus refere directamente um modelo específico de recinto universitário, intimamente ligado à educação superior Norte-Americana (Turner 1984) optando-se por isso pelo recurso ao termo “recinto”, de significado mais vasto.   

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Para o estudo, foi definida uma amostra de 50 recintos universitários, distribuídos mundialmente, seleccionados tendo em conta a sua dimensão, pertinência no panorama educativo do seu contexto, e a relação morfológica que estabelecem com a cidade ou região em que estão inseridos.

Da observação da amostra, defende-se a existência de dois modelos distintos de localização e relação entre o espaço universitário e a envolvente urbana. Considera-se que a universidade e a cidade podem relacionar-se com níveis de profundidade e envolvimento diferentes, logo desde a sua concepção. Esta relação é, por um lado, produto do espaço físico, por outro, representada nele.

O primeiro modelo - Universidade como Cidade - engloba os casos em que a universidade subsiste autonomamente em relação à cidade mais próxima ou em que está inserida. Estas universidades materializam-se fisicamente em recintos que oferecem todas as funções necessárias à presença permanente de pessoas. Em casos extremos, é a universidade o grande dinamizador da área urbana, estabelecendo-se uma relação praticamente de dependência do aglomerado urbano perante a universidade.

Por outro lado, o segundo modelo – Cidade como Universidade – diz respeito às universidades cujo recinto está dependente da cidade em que se insere. Estes recintos não contemplam funções associadas à subsistência, apenas respondendo a funções relacionadas com as componentes académicas, sociais e complementares (tais como actividades de lazer) da vida universitária.

Foram identificadas quatro categorias distintas de recinto universitário para cada um dos modelos descritos. O primeiro – Universidade como Cidade – engloba quatro tipologias distintas: recinto autónomo (1), recinto contíguo (2), recinto interno (3) e recinto promotor (4). O segundo – Cidade como Universidade – engloba também 4 tipologias: recinto fechado (5), recinto aberto (6), recinto fragmentado (7) e recinto ubíquo (8). A Figura 1 apresenta as oito tipologias descritas, relacionando-as com a sua integração no tecido urbano e o nível de interdependência que apresentam face à envolvente.

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Figura 1 – Tipologias de recintos universitários e relação com a cidade 

Estas tipologias diferem no modelo de localização e dispersão no território, dimensão, compacidade e densidade do seu ambiente construído, limites e acessibilidade, assim como nas funções oferecidas no recinto. Assim, construiu-se uma matriz de análise, definindo quais as variáveis com influência na capacidade de o recinto se estabelecer como organismo sinergético.

A análise separa os dois modelos descritos – Universidade como Cidade e Cidade como Universidade com base no elemento dominante na relação universidade-cidade. No caso dos recintos que funcionam autonomamente, o elemento dominante é a universidade, enquanto nos restantes casos é a cidade que adquire o papel de elemento mais relevante. Este factor afecta a distribuição de funções no interior do recinto, dado que, nos casos em que a cidade é dominante, é esta que oferece as funções adicionais à actividade académica e lectiva, garantindo os espaços complementares, nomeadamente associados às valências e actividades de habitação, lazer, negócios, entre outros.

Analisou-se a localização dos recintos, tendo em conta a distância ao centro urbano mais próximo e o contacto estabelecido com os tecidos adjacentes ao recinto. Esta é fundamental no estabelecimento das condições de fronteira dos recintos.

No que diz respeito à compacidade do recinto, detectaram-se apenas dois modelos – compacto (1) e disperso (2) - sendo que o primeiro modelo se encontra maioritariamente nos recintos autónomos e com maiores níveis de isolamento, enquanto o segundo é exclusivamente urbano e apenas visível em recintos centrais. O primeiro apresenta vantagens de diminuição de custos operacionais, além de fomentar encontros aleatórios que podem promover interacções entre a comunidade académica. O segundo revelase mais vantajoso no estabelecimento de ligações com a comunidade não académica, pela multiplicidade de espaços distribuídos pelo aglomerado urbano.

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Comparou-se a densidade de construção dos recintos em estudo com a das malhas urbanas contíguas ou mais próximas, de forma a perceber a continuidade da malha no perímetro universitário. Avaliou-se assim a densidade não de forma comparativa entre casos dispersos, mas na sua relação contextual.

Os limites foram analisados tendo em conta duas dimensões: a dimensão física (1), materializada em barreiras ou impedimentos no acesso ao recinto, e a dimensão perceptiva (2), que se analisa na extensão e sobreposição da presença universitária no espaço urbano.

A acessibilidade é considerada à escala do espaço urbano e à escala regional. A primeira depende directamente da posição geográfica, embora seja complementada com a oferta de alternativas de transporte existentes. A segunda, depende da infra-estrutura existente a nível regional, nomeadamente no que se refere ao transporte de médio e longo curso.

Finalmente, o foco diz respeito à abertura à envolvente. É uma materialização física do que era a postura da universidade perante o conhecimento à altura da sua concepção, que podia assumir-se como externalista ou internalista (Caldenby 2009). Estas duas correntes divergiam na postura perante a origem do conhecimento, que acreditavam derivar da observação e resolução de problemas concretos, observados fora do ambiente académico, ou da investigação teórica, prosseguida em contexto exclusivamente universitário, respectivamente.

Na Figura 2 é feita a descrição resumida de cada tipologia de recinto, tendo em conta variáveis e traços morfológicos relevantes para a promoção de interacção entre a universidade e a cidade em que se insere.



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Figura 2 – Tipologias de recinto universitário – resumo de características morfológicas

 Conclusão Algumas tendências podem verificar-se na amostra em estudo. Recintos urbanos tendem a ser menos compactos, mas de construção mais densa, embora se observe nos recintos que envolvem em sincronia com a envolvente urbana, que as densidades de construção tendem a ser semelhantes.

No que diz respeito ao tipo de limites e barreiras no acesso ao recinto, a análise mostra que a existência e tipo destes está directamente ligada ao carisma da universidade à data de concepção, e não à localização do recinto. No entanto, a maioria das universidades procura algum isolamento face à envolvente directa dos seus recintos, de forma a conferir privacidade ao seu interior.

É visível uma tendência para maior ligação com a comunidade e mais participação nas dinâmicas urbanas por parte das universidades cujos recintos não têm barreiras, ou têm barreiras permeáveis face à sua envolvente. Espaços universitários cujos limites se fundem no espaço urbano, sem uma clara delimitação, PNUM 2016 823





tornam-se mais atractivos e permeáveis à passagem e permanência de utilizadores de fora da comunidade académica. Uma localização central dentro do espaço urbano também é um convite aos atravessamentos informais, assim como a existência de espaços abertos de carácter público ou semi-público no interior dos recintos, como por exemplo, espaços verdes de permanência.

No entanto, mesmo recintos com um carácter mais isolado e distante das malhas adjacentes conseguem atingir um elevado grau de relação com a cidade onde estão inseridos, desde que a universidade se empenhe na terceira componente da sua missão, a da ligação à comunidade, e que quer a comunidade académica, quer a sociedade civil participem em actividades de envolvimento mútuo. É notória a tentativa de aproximação da parte de algumas universidades, ao criarem pontos de contacto com a comunidade em centros urbanos, embora a maioria das suas actividades se localizem em recintos isolados. É o caso de iniciativas como as “Science shops”, promovidas pela Comissão Europeia (European Comission Community Research 2003).

A complexidade de limitar as diversas variáveis ao analisar universidades dificulta a medição do impacto exacto de cada elemento do espaço físico na criação de relações entre a universidade e a sua envolvente. No entanto, o espaço físico, além da sua importância para o processo de ensinoaprendizageminvestigação, pode ser usado para estabelecer ligações a diversas escalas, desde o compartimento de aprendizagem até à escala urbana.

O recinto universitário assume a responsabilidade de, por um lado, acomodar todas as actividades consentâneas com o desenvolvimento intelectual e a criação de conhecimento, enquanto funciona como modelo de estratégias de inclusividade e cooperação, mantendo o seu carisma e carácter, sem prescindir da sua independência e autonomia.

Esta análise, partiu da comparação entre diversos casos, em contextos e localizações diferentes, expressando diferentes modelos pedagógicos. Permitiu obter respostas quanto aos traços morfológicos que possibilitam a interacção e fomentam actividades de cooperação entre a comunidade universitária e a nãoacadémica. Desenvolvimentos futuros incluirão linhas de orientação e boas práticas de projecto, de modo a atingir objectivos específicos de interacção em recintos universitários. Referências bibliográficas Adhya A 2008 The Public Realm as a Place of Everyday Urbanism: Learning from Four College Towns, University of Michigan. Bacharel CarreiraM 2015 In-between Formality and Informality Learning Spaces in University Context, Universidade de Lisboa. PNUM 2016 824



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Agradecimentos Este artigo foi desenvolvido no âmbito da investigação de doutoramento da autora, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. PNUM 2016 825

Algumas questões teóricas sobre a produção imobiliária privada urbana Hugo Louro e Silva, Candido Malta Campos Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade Presbiteriana Mackenzie Endereço: Rua da Consolação, 930 – Consolação - CEP 01302-907 – São Paulo – SP [email protected] / [email protected]

Resumo O referencial francês para a produção urbanística da cidade de São Paulo, Brasil, fora estudado pelo grupo de pesquisa que os autores deste artigo integraram nos últimos anos com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do MackPesquisa 1. Essa pesquisa indicou que esse referencial permanece presente na produção urbana contemporânea e vem pontuando as intervenções com particular recorrência nessa cidade há mais de cem anos, desde o exemplo haussmaniano em 1900 até a implantação das Zones d’Aménagement Concerté (ZAC’s) em Paris, importante precedente para as atuais operações urbanas vigentes, mesmo sobre as díspares realidades metropolitanas das cidades de Paris e de São Paulo. O enfoque dessas possíveis interferências urbanísticas foi essencial na construção do conhecimento e da pesquisa para balizar uma investigação que transcendeu os usuais esquemas que identificam a circulação dos ideários de produção imobiliária formal, ajudando a identificar cruzamentos e, enfim, a verificar em que medida o contato com as realidades e demandas brasileiras e paulistanas. O embasamento dos dados apurados permitiu os autores identificarem e ponderarem elementos teóricos da sociologia urbanística e do urbanismo produzido pela produção imobiliária privada no Brasil, observando questões que insinuam a repetição de um modelo de produção morfológica condicionada a algumas premissas econômicas. Esse texto sistematizará algumas premissas e condições econômicas da realidade brasileira, como por exemplo a terra como bem de consumo matricial da construção civil num cenário capitalista e o monopólio territorial. Palavras-chave Urbanismo; Produção Urbana; Economia Urbanística; Sociologia Urbana; Mercado Imobiliário.

1

Órgão de fomento à pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie. PNUM 2016 827

Introdução O referencial francês para a produção urbanística da cidade de São Paulo fora estudado pelo grupo de pesquisa2 que os autores desse trabalho integraram nos últimos anos. Essa pesquisa indicou que esse referencial permanece presente e vem pontuando as intervenções com particular recorrência há mais de cem anos, desde o exemplo haussmaniano em 1900 até as ZAC’s, importante precedente para as atuais operações urbanas vigentes, mesmo sobre as díspares realidades metropolitanas das cidades de Paris e de São Paulo. O enfoque dessas possíveis interferências urbanísticas foi essencial na construção do conhecimento e da pesquisa para balizar uma investigação que transcendeu os usuais esquemas que identificam a circulação dos ideários de produção imobiliária formal, ajudando a identificar cruzamentos e, enfim, a verificar em que medida o contato com as realidades e demandas brasileiras, em especial na referida cidade.

1.

Capital Territorial e Estado

Para entendimento da produção imobiliária contemporânea, torna-se chave a compreensão da renda fundiária – ou renda da terra – que teve seu germe no modelo feudalista. A hierarquia dos espaços urbanos organizadas de modo a atender a dinâmica de produção e translado produtivo, aditado ao modelo de monopólio do controle da terra, ponderou a propriedade fundiária e a renda (o pagamento de seu uso por parte de um terceiro) são fundamentos jurídico e ideológico da formação econômico e social capitalista (Botelho, 2007, 67), gerando os primeiros estudos com base no embasamento teórico da economia política de David Ricardo e, anos depois, desdobrados por Marx de maneira não aprofundada – por ter se concentrado nas questões da terra agrícola (MARX, 1989) – e que,

Esta pesquisa teve a participação dos autores no grupo de pesquisa “Protagonistas do Ideário Urbanístico Europeu em São Paulo, 1910-2010”, liderado pelo Doutor Candido Malta Campos, financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e pelo Mackpesquisa. Esse grupo teve como objetivo, partindo dos trabalhos já acumulados sobre essa temática e do campo de conhecimento existente, contribuir para esclarecer o envolvimento de alguns personagens e suas relevâncias para a semear e circular os aportes do pensamento urbanístico na cidade de São Paulo. Todos os personagens citados então nessa pesquisa se referenciaram a partir das proposições de Haussmann, trazidas por Freire e Bouvard, passando pelo urbanismo da S.F.U., representado por Agache, Corrêa Lima e Bardet, pelo urbanismo modernista e dos C.I.A.M.’s, simbolizado por Le Corbusier, pelo movimento Économie et Humanisme dos anos 1950-1960 liderado por Louis-Joseph Lebret, pela escola de sociologia urbana francesa, nos anos 1960 e 1970, com Lefebvre e Castells, entre outros; até os proponentes do urbanismo contemporâneo, do planejamento estratégico e dos projetos urbanos, que chegaram à cidade por meio de novas consultorias, protagonizadas principalmente por catalães, mas também da matriz ideológica francesa, como o próprio Castells e Jordi Borja. Na bibliografia fundamental do grupo e, durante o mês de outubro de 2014 em consulta pessoal ao acervo das sedes do Centre d’Études, de Documentation, d’Information et d’Action Sociale (CEDIAS) e Centre d'archives d'architecture du XXe Siècle do Institut Français d'Architecture, foi identificado que os principais autores que debatem sobre as questões urbanas a partir das décadas de 1970 e 1980, além de serem a maioria de origem francesa, “debatem a renda fundiária sobre fundamentos marxistas” (Botelho, 2007, 68), como Alain Lipietz (Lipietz , 1974), Jean Lojkine (Lojkine, 1997), Christian Topalov (Topalov, 1984), Henri Lefebvre, além de David Harvey.

2

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inclusive afirma, que o solo não é capital, logo, não produz lucro, mas gera a renda que “nada mais é do que parte da mais valia global produzida pelo trabalho que é paga ao proprietário em troca do direito ao uso da terra” (Botelho, 2007, 71). Esse texto não pretende esgotar em resoluto os temas abordados, mas ao ponderar o que julga os principais conceitos que orientam a composição do cenário contemporâneo da propriedade territorial. Nesse sentido, torna-se oportuno citar Lipietz quando esse afirma que o “proprietário em troca do direto ao uso de seu solo contra um direito sobre a mais-valia que será produzida” (Lipietz, 1974, 83) e, em complemento, Topalov resume a questão quando pondera sua existência em dois itens: 1) O domínio do modo de produção capitalista e o desenvolvimento desigual

entre os seus setores (agricultura e indústria); 2) A resistência da propriedade fundiária frente ao capital. (Topalov, 1984,

53) Na teoria, Lojkine (1997, 92-3) estuda em aglomerações urbanas o que denomina como hipótese da renda em cascata gerada pelo monopólio e a transformação do solo em “valor”, tendo em vista que Botelho (2007, 77) também afirma que o crescimento do preço não é induzindo somente pelo crescimento econômico, mas por atividades econômicas sucessivas, como a aquisição de áreas pelo setor imobiliário e execução de projetos de uso múltiplo, entre outras. Ainda, segundo ele, essa divisão econômica e social do espaço gerada sob o capitalismo é a materialização da segregação sócio espacial no tecido urbano. Com Henry Lefebvre, a vertente marxista humanista é menos reducionista, admitindo a configuração do espaço urbano como a concretização de uma multiplicidade de preocupações sócio materiais e vislumbrando a existência de movimentos sociais urbanos desvinculados do capital que poderiam conduzir o direcionamento da atuação estatal sobre a cidade (Lefebvre, 1968 e 1972). Para o entendimento da importância do Estado como regulador e condutor dos investimentos e das prioridades políticas de intervenções urbanas, em quaisquer cenários, é mister assumir que a agenda de suas atividades esteja ligada ao modelo político vigente. A materialização dessas ações de modo legislativo, em qualquer âmbito de administração pública, se dá através dos marcos reguladores. Harvey, por exemplo, afirma no seu livro Espaços da Esperança sobre a interface do Estado como responsável pela promoção aos negócios urbanos e as mudanças de economia “As alterações de territorialização do mundo (...) o Estado de certo modo viu-se reduzido ao papel de descobrir maneiras de criar um clima favorável aos negócios” (Harvey, 2004, 94). Sobre algumas das questões que envolvem a produção espacial e a ação do Estado por meio de seus marcos reguladores, Milton Santos pondera no livro Ensaio sobre a urbanização latino-americana que para o problema da urbanização a solução não pode ser encontrada ao nível dos planejadores administrativos ou das comunidades locais, posto que essas questões, no presente e no futuro, estão em “estreita dependência das forças econômicas internacionais e das decisões do Estado” (Santos, 1982, 186). Ainda PNUM 2016 829

segundo Santos, a importância do Estado “direcionador” detêm o poder de transformação conjunto que pode haver entre os planejadores administrativos e as comunidades3.

Qualquer análise que se conduza hoje no campo dos estudos urbanos deve considerar estas duas saídas essenciais. Sem elas não se podem criar uma solução viável do problema de urbanização e corre-se o risco de falsificar tanto a análise como as soluções (Ibidem, 186). Esse risco de falsificação na proposição de soluções, possíveis em intenções e proposições políticas não transparentes, como explanado por Santos, e a força regulatória do Estado se cristalizam na capacidade de mudança ou de permanência do status quo ou, ainda, o desequilíbrio de valor territorial urbano como debatido por Torres (1996) através de artigo que, por exemplo Através do zoneamento de uso e ocupação do solo e da regulamentação do parcelamento da terra urbana, o Estado procura estabelecer as condições mínimas de produção e organização do espaço urbano. No entanto, ao regular condições de uso e ocupação do solo diferenciadas sobre a cidade, por um lado, os diferenciais sobre a cidade, o poder público estará criando, por outro lado, os diferenciais urbanos e, de outro, a escassez de terras urbanizadas. (Torres, 1996, 17)

Logo, destaca-se a importância do Estado na administração e gerência do solo urbano frente sua importância como matéria-prima para o segmento imobiliário.

2.

Setor imobiliário e território capitalista

Posto acima as questões abordadas pelos teóricos da política urbana, sobretudo os franceses, torna-se importante pondera algumas variações de abordagem que perseguem o entendimento do papel do capital no território, fazendo-se pertinente o entendimento das questões territoriais no capitalismo contemporâneo. O setor imobiliário se distingue de outros setores por atuar no desenvolvimento local e físico, utilizando produtos de consumo com uma matéria prima sem reposição simples: a terra.

3

Entendendo como tal não só habitantes comuns da cidade, mas empresas que colaboram em diversos âmbitos para

a produção urbana. PNUM 2016 830

O desdobramento de explicação mais ampla do “setor imobiliário” poderia englobar desde a produção de, por exemplo, tijolos, até a extração de aço ou cimento para a construção civil. Esse trabalho se propõe às dinâmicas de ocupação urbana e produção da cidade, fazendo-se oportuno pontuar que quando é referido “setor imobiliário”, trata-se da atividade de aquisição de terras, desenvolvimento imobiliário e construção civil para projetos privados. Posta a definição do setor para esse artigo, faz-se oportuno tecer sobre alguns pontos que o ligam diretamente ao mercado financeiro, através do uso – termo adequado – do território na matriz capitalista. Na matriz capitalista, torna-se imprescindível a marcação heterogenia das classes sociais de modo que os interesses dos elementos de poder administrativo ou socialmente abastado, quando agrupados defendam seus interesses comuns pela fragmentação da classe com menores recursos financeiros. As cidades, como materialização social dessas classes, é acompanhada por uma crescente fragmentação do espaço, que se materializa na diminuição das áreas de transição e de convívio entre distintas camadas socioeconômicas da população (Botelho, 2007, 15) além de ressaltar, segundo Lefebvre, a segregação sócio espacial aí existente, através do “processo triádico” de homogeneização, fragmentação e hierarquização do espaço (Lefebvre, 2000; 1980) que culmina, segundo o mesmo autor na “nãocidade” ou “anti-cidade” (Lefebvre, 1991 e 1999). Ainda sobre alguns dos conceitos que esse autor desdobra para justificativa de adoção de abordagem desse “processo triádico” que Ocorre a segregação. A hierarquização toma formas gerais específica: a distinção entre os “pontos fortes” do espaço e os centros (de poder, de riqueza, de trocas materiais ou espirituais, de lazeres, de informação e das periferias (elas também hierarquizadas, mais ou menos afastadas de um centro principal, ou secundário, até tomar a forma de um lugar deserto, abandonado. (Lefebvre, 1980, 155-6). Sob essa luz, Botelho afirma o espaço como uma condição geral de existência do capitalismo (2007, 22) sendo consumido produtivamente pelo setor imobiliário como uma matéria-prima propriamente dita. Nesse sentido, o consumo produtivo do território urbano detém um uso e um valor de uso. Ele também produz (Lefebvre, 1991, 34), o que implica em uma crescente privatização do espaço na medida em que este se incorpora ao capital como meio de produção (Botelho, 2007, 23). Ainda segundo Lefebvre, o “capital imobiliza-se no imobiliário” (1999, 146-7) e, frente a sua inerente necessidade de “distância social” (Botelho, 2007, 13) Deve-se assim abandonar qualquer tipo de busca de um “equilíbrio espacial” sob o modo de produção capitalista; faz parte de sua dinâmica espacial a constante desvalorização do capital fixo, transformando em ambiente

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construído, e a recorrente mudança da localização relativa dos diversos capitais. (Ibdem, 2007, 30) Sobre a questão da hierarquia de usos do solo e sua dinâmica de segregação – premissa matriz – é que o processo de valorização ocorra frente ao seu uso frente à centralizada instaurada na dinâmica urbana em questão, como descrito também por Lipietz (1974, 37-49). Sobre a segregação advinda da hierarquia de valor, Lojkine sintetiza - A oposição entre o centro, onde do solo é mais caro, e a periferia. - A separação entre zonas e moradias reservadas às camadas sociais mais

privilegiadas e zonas de moradia popular. - O desmonte generalizado das “funções urbanas”, disseminadas em zonas

geograficamente distintas e cada vez mais especializadas (zonas de escritórios, zonas residenciais, zona industrial, etc.). É o que a política urbana sistematizou e racionalizou sob o nome de zoneamento. - A segregação no nível dos equipamentos coletivos (creches, escolas,

equipamentos esportivos, etc.) o subequipamento dos conjuntos “operários” opondose a “superequipamento” dos conjuntos burgueses. - A segregação no nível do transporte domicilio-trabalho – a crise dos

transportes coletivos para o operariado contrastando com os privilégios “burgueses” do uso do automóvel. (Lojkine, 1997, 244-5) Na prática, essa hierarquização gera uma dinâmica de alterações de preços que opera oportunamente a segregação espacial que, por fim, dá razão estratégica aos interesses do capital na legibilidade simbólica dos espaços, estratificando tendencialmente a sociedade e, segundo Topalov, essas camadas superiores e populares se excluem no espaço pelo processo de expulsão derivado do preço cobrado pelo espaço (Topalov, 1984, 160-1). Com a valorização do espaço urbano, a dinâmica (ou simples possibilidade) de verticalização torna-se como alternativa de melhor proveito dessa matéria-prima limitada. Segundo Somekh, Essa dinâmica de segregação advinda da hierarquização, muitas vezes marcada pela extração de verticalidade permitida pelo Estado, e simbiótica valorização fundiária estimula a produção da verticalização através de dois processos: desenvolvimento de áreas valorizadas onde o preço do produto final é garantido, ou busca novos lugares para valorizar (Somekh, 1987)

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Essa dinâmica do uso do solo virtual operacionalizado pelo Estado permite que o desenvolvimento do capital ocorra em alinho com as expectativas de consumo dos imóveis produzidos pelos consumidores e investimento dos desenvolvedores imobiliários.

Considerações finais Com base do arcabouço teórico do grupo de pesquisa composto pelos autores sobre a sociologia urbana, em especial de origem francesa, e da pesquisa realizada para desenvolvimento de dissertação de defesa do título de mestrado que abarcava análise da produção imobiliária sobre esse prisma econômico e teórico da atividade capitalista no território, em especial na cidade de São Paulo, esse artigo sistematizou pontos envoltórios à relação da atividade do setor imobiliário e da sociologia urbana aplicada. Ao pontuar aspectos sobre a relação do capitalismo territorial com o Estado e suas funções e, ainda, do setor imobiliário com o território capitalista em consolidação, objetivou-se a aproximação analítica das questões econômicas que formam as cidades em geral e as questões da ocupação desse plano material com as relações sociais de classes e de ocupação hierarquizada. Por fim, frente à contemporaneidade urbana, o artigo evidencia a necessidade acadêmica de aproximar os debates sociais e econômicos, relacionando-os através de causa e efeito na realização de suas soluções erroneamente isoladas, corroborando para uma crítica urbanística concisa, fundamentada nos fundamentos econômicos como ferramenta e não como uma interface de análise isolada.

Agradecimentos À minha esposa Natália Franco Louro, que tanto amo. Às professoras e doutoras Nádia Somekh e Silvana Zione que compondo banca de análise para obtenção do título de mestre pontuaram oportunamente os fundamentos desse artigo, interferindo oportunamente nas premissas ventiladas.

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PNUM 2016 833

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Morfologia e Propriedades Topo-Geométricas dos Condomínios Horizontais da Cidade de João Pessoa, Brasil Alexandre Castro, Anneliese Lira, Paulo Vítor Freitas Centro de Tecnologia, Universidade Federal da Paraíba Avenida Aluísio Franca, 283 – Manaíra/ João Pessoa, Brasil, Telefone/fax: +55 83 998339826 [email protected], [email protected], [email protected]

Resumo O atual processo de produção das cidades brasileiras tem como uma de suas principais consequências a formação de espaços excludentes. Este fenômeno foi potencializado com o surgimento de condomínios horizontais, que constituem um conjunto de extensas glebas privadas, dotados de barreiras físicas com acesso restrito, alterando os padrões de deslocamento das pessoas. Essa modalidade residencial atrai seus moradores não apenas pelas suas características internas, mas pelo acesso à supostos benefícios, como privatização dos serviços de segurança, e possibilidade de retornar a morar em casas inseridas em uma paisagem predominantemente suburbana atrelada às expectativas de um “modo de vida saudável”, o que direciona a sua implantação para áreas da cidade consideradas mais amenas, periféricas, e com maior estoque de terrenos. Entendendo-se que a forma urbana é um dos principais elementos que interferem na acessibilidade espacial e nos padrões de deslocamento das pessoas, o presente artigo tem como objetivo central analisar as propriedades morfológicas dos condomínios horizontais da cidade de João Pessoa, Brasil, a partir de dados analíticos multicritério e multiescala. Os objetos de estudo desta pesquisa foram delimitados a partir de critérios como densidade demográfica, dimensão espacial e localização, configurando-se em três condomínios: Cabo Branco Residence Privê, Villas do Farol e Alphaville. Foi utilizada como método principal a Teoria da Lógica Social do Espaço, ou Sintaxe Espacial, para avaliar o potencial de integração e acessibilidade, com base na forma urbana. Foi realizada a Análise Angular de Segmentos, através da modelagem de um mapa de segmentos da cidade de João Pessoa, sob uma base georreferenciada, para analisar as propriedades morfológicas dos objetos de estudo sob critérios topológicos, angulares e métricos, bem como nas escalas global e local. Os dados obtidos foram exportados para o Sistema de Informação Geográfica livre QGIS, no qual foram feitos os cruzamentos dos dados sintáticos com outros dados urbanísticos. Os achados obtidos mostram que, na escala global, os três condomínios estudados apresentam boa acessibilidade, encontrando-se próximos dos principais corredores de transporte da cidade, favorecendo o uso do automóvel. No entanto, quando se analisa a acessibilidade na escala do pedestre, tanto o entorno imediato como a área de influência direta dos objetos de estudos apresentam condições precárias de deslocamento, levando-se em conta as propriedades morfológicas do espaço. Os valores de acessibilidade espacial encontrados condizem com o grau de urbanização do entorno de cada condomínio: quanto maior e mais consolidado o grau de urbanização, maiores são as oportunidades de deslocamento.

Palavras-Chave: Morfologia Urbana, Condomínios Horizontais, Sintaxe Espacial PNUM 2016 835

Introdução

As cidades de porte médio brasileiras passaram por um acelerado processo de crescimento populacional na década de 2000, o que, de acordo com Machado et al. (2015), pode ter contribuído para modificações na organização espacial dessas cidades, a exemplo da dispersão e fragmentação da área urbana.

Nesse processo de produção do espaço urbano que as cidades brasileiras passaram, tem se caracterizado a segregação socioespacial explícita, baseada no pressuposto do aumento da insegurança urbana e da redução da qualidade de vida. Dessa forma, novos modelos habitacionais são formados pelo mercado imobiliário, a exemplo dos condomínios fechados (Goes, 2014).

Netto et al (2012) salienta que tem ocorrido um processo de dissolução da malha urbana nas cidades brasileiras, através da mudança de tipologias edilícias tradicionais por um de ligações mais frágeis com o espaço público. Segundo o autor, esse processo de degradação dos espaços públicos urbanos, seria acompanhado de aumento das distâncias, redução do movimento de pedestres e da microeconomia local, além de problemas de segurança pública e a subsequente formação novos tipos de segregação.

Nesse cenário, o tecido urbano das cidades modernas sofreu por mudanças radicais, não somente por este processo de expansão urbana acelerada anteriormente citado, mas també m através de transformações intraurbanas: cidades que, anteriormente eram densas, compactas e com tessitura urbana contínua passaram a ser difusas, dispersas e descontínuas. Esta transformação foi acompanhada pela mudança da escala do espaço urbano, com o aparecimento de megaestruturas, que ocupam grandes parcelas de terra urbana (Levy, 1999).

O surgimento de condomínios horizontais na cidade de João Pessoa, apesar de ter sido iniciado na década de 1980, se firmou com maior intensidade a partir do final da década de 1990, tardiamente em relação a outras capitais brasileiras. Entretanto, durante a década de 2000, esta modalidade residencial movimentou bastante o mercado imobiliário da cidade, tornando-a foco de investimento de grandes construtoras nacionais.

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Com base no que foi apresentado, esta pesquisa tem como objetivo principal analisar as propriedades morfológicas do entorno de três condomínios fechados na cidade de João Pessoa, Paraíba, Brasil, levando em consideração variáveis topo-geométricas.

Objeto de Estudo

O presente trabalho tem como recorte espacial três condomínios horizontais fechados localizados na cidade de João Pessoa. Capital do Estado da Paraíba, Brasil, a cidade possui uma população estimada de 791.438 habitantes, de acordo com estimativa populacional do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) para o ano de 2015. Possui uma configuração espacial semirradial, com a presença de sete corredores de transporte, que convergem da área central da cidade, além de u m contorno rodoviário (BR-230), que faz a interligação perimetral com estes corredores. Foram estudados três condomínios horizontais da cidade de João Pessoa:

x

Cabo Branco Residence Privê: inaugurado em 1998, é um dos condomínios horizontais mais antigos da cidade. Localiza-se na Avenida Hilton Souto Maior, em uma região pouco urbanizada, caracterizada pela presença de outros condomínios horizontais e de áreas de preservação ambiental, além da presença de outros grandes equipamentos ao longo da avenida, como campus universitário (Universidade Federal da Paraíba), Fórum e concessionária de automóveis.

o

Vilas do Farol: inaugurado em 2008, o condomínio situa-se numa região pouco ocupada, com o

predomínio de loteamentos não ocupados.

o

Alphaville: inaugurado em 2008, o condomínio encontra-se situação no setor estruturado pela Avenida Presidente Epitácio Pessoa, em área já consolidada da cidade de João Pessoa. O empreendimento também está próximo da rodovia federal BR-230.

A concentração de condomínios horizontais voltados para classe social alta nestas áreas se justifica, provavelmente, por que esses bairros possuem resquícios de vegetação primitiva e baixa densidade habitacional, que são aspectos incluídos no marketing para induzir o pensamento dos compradores de que irão morar mais próximo da natureza, longe dos problemas urbanos (Figura 1).

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Figura 1. Localização dos condomínios estudados, na cidade de João Pessoa.

Aporte Teórico e Metodológico Os condomínios horizontais são considerados uma nova forma de segregação urbana, uma vez que há restrições de acesso entre a área pública e a particular. Abrangem, em geral, grandes extensões de terra, e

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estão localizados em áreas periféricas aos centros urbanos, isolados de seu entorno, cujo processo de reestruturação do padrão residencial é restrito aos moradores do empreendimento (Silva et al, 2015).

Este modelo residencial surgiu na década de 1970 no Brasil, e constitui um novo modelo também de morfologia urbana. Estes condomínios surgem geralmente nas porções periféricas das cidades, devido à disponibilidade de grandes áreas. Diferente dos condomínios verticais urbanos, os horizontais têm como origem a maximização ao acesso aos sítios de amenidades e melhor aproveitamento da infraestrutura urbana. Nas décadas seguintes, os condomínios passaram a constituir símbolo de status social e meio de manutenção de estilo de vida para as classes de alta renda (Lopes e Monteiro, 2007). Devido às alterações ocasionadas pelas restrições físicas dos condomínios horizontais com o espaço público (pelas conexões funcionais e visuais), há a tendência de alterações no uso de seus espaços adjacentes.

A maioria dos condomínios residenciais brasileiros já é projetado em áreas privadas, não necessitando de intervenção jurídica para instalação em área pública. Há, porém, alguns casos de associações de moradores que fazem o fechamento de ruas públicas, por intermédio de requerimento legal. A configuração espacial do entorno destes equipamentos, portanto, sofrem rupturas que comprometem não somente os espaços adjacentes ao condomínio, mas podem causar consequências na estrutura urbana como um todo, tanto na escala local como urbana nos padrões de acessibilidade.

De acordo com a Teoria das Cidades (Hillier, 2001), a estrutura urbana é dualista: na escala local, apresenta propriedades métricas, cujas evidências vêm de fenômenos como a intensificação das malhas viárias ortogonais para reduzir o tempo médio de deslocamentos às áreas centrais, a redução do fluxo de pessoas à magnetos de atração com distância métrica; na escala global, a tessitura urbana apresenta propriedades topogeométricas, pela necessidade de utilizar tanto a geometria como a conectividade de redes urbanas em grandes escalas para capturar medidas configuracionais que se aproximem dos padrões de movimento na rede urbana.

Nesse sentido, Hillier et al. (2010) sugere uma clarificação acerca da estrutura genérica das cidades: a distância universal métrica captura as propriedades locais da rede urbana, tanto formalmente como funcionalmente, enquanto que medidas topo-geométricas identifica a estrutura que supera localidades e conecta a malha urbana como um todo em diferentes escalas. Estas propriedades espaciais são importantes para entende como o processo de produção das cidades influência nas dinâmicas sociais em diferentes escalas.

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O método empregado na presente pesquisa é a Teoria da Lógica Social do Espaço (Hillier e Hanson,1984). Também denominada Sintaxe Espacial, a teoria analisa a eficiência da forma urbana e a relaciona com aspectos sociais, através de modelos gravitacionais. Foi aplicada a técnica da Análise Angular de Segmentos (Turner, 2000; 2001), vertente da Sintaxe Espacial que analisa o espaço livre público por segmentos de rua, ponderando o ângulo de incidência entre os segmentos.

Foi modelada uma base vetorial do tipo Road-Centre Lines, adaptada para análises sintáticas, por expressar resultados melhores que os mapas axiais tradicionais (Turner, 2005, 2007). Esta base foi modelada no software SIG (Sistema de Informação Geográfica) livre QGIS 2.8.2 Wien. A base vetorial tem como limite geográfico o município de João Pessoa, visto que os objetos empíricos de estudo possuem abrangência apenas na cidade, e possui 30958 segmentos.

Alguns trabalhos buscaram relacionar a morfologia urbana com a localização de condomínios fechados em cidades brasileiras (Becker e Reis, 2004; Carmo Júnior, 2010), porém empregando apenas métricas topológicas. O presente trabalho pretende contribuir para o tema com a utilização de propriedades tanto topológicas como geométricas, a partir de modelagens que permitam utilizar dados mais detalhados e precisos da eficiência da forma urbana. Assim, foram analisadas as seguintes medidas sintáticas:



Integração Angular Normalizada (NAIN): medida de centralidade por proximidade, a medida representa, de acordo com Hillier (2009), a facilidade de alcançar um determinado segmento partindo de todos os outros. A medida foi normalizada, de acordo com os procedimentos de Hillier et al (2012), de forma que a escala de valores seja mais compatível com análises comparativas; o raio empregado para a análise desta métrica foi de 1200 metros que, de acordo com Serra e Pinho (2013), equivale aproximadamente a uma caminhada a pé de 15 minutos.

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cenário parecido com o encontrado no condomínio Villas do Farol, localizado em um tecido urbano desconectado do núcleo principal da cidade, o que potencializa seu caráter segregador.

Mesmo o condomínio Alphaville estando localizado em um setor mais consolidado da cidade de João Pessoa, o seu entorno apresenta baixa integração no raio analisado. Dessa for ma, percebe-se que, diferentemente nos resultados encontrados na medida NACH, os condomínios estudados estão morfologicamente segregados na escala local (Figura 3).

Figura 3. Integração Normalizada, com raio de análise de 1200 metros.

Com a utilização da técnica de Step Depth na escala métrica, foi possível analisar a possibilidade de acesso a partir de determinadas distâncias. Utilizando a entrada dos condomínios como ponto inicial da contagem de profundidade e os raios de 400 metros (equivalente a 5 minutos de caminhada) e 1200 metros (equivalente a 15 minutos de caminhada), percebeu-se o potencial de acessibilidade local de cada condomínio estudado.

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O condomínio Cabo Branco Residence Privê obteve o pior resultado nesta métrica, viso o tamanho do quarteirão e a falta de conectividade das vias. Na distância de 500 metros, é possível apenas alcançar a via de acesso ao empreendimento e, em 1200 metros, poucos espaços adjacentes. O baixo grau de urbanização, com a presença de grandes equipamentos contribui para a deficiência nesse aspecto.

O condomínio Villas do Farol apresentou resultados melhores, por estar inserido em uma região de loteamentos, e apresentar mais quadras adjacentes ao condomínio. No entanto, mesmo considerando a distância de 1200 metros, não é possível alcançar uma via principal, o que dificulta o acesso na escala do pedestre. O Condomínio Alphaville apresentou os melhores resultados desta métrica. Espacialmente, as áreas passíveis de acesso nas escalas abordadas aparecem num formato próximo de um círculo, o que indica uma menor quantidade de barreiras ao movimento. Nesta escala, ainda é possível acessa a Avenida Presidente Epitácio Pessoa, ao sul, que é uma das vias principais da cidade. Mesmo com a proximidade entre os condomínios Villas do Farol e Cabo Branco Residence Privê, os raios de 1200 metros desses equipamentos não se interceptam, devido à presença de segmentos de rua longo e a forma fragmentada do tecido urbano.

Dessa forma, observa-se que há o predomínio da dificuldade de acesso local, e que a s facilidades encontradas são mais justificadas pelo padrão de urbanização do entorno que pelo condomínio em si (Figura 4).

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Figura 4. Step Depth Métrico a partir da entrada dos condomínios horizontais estudados.

Ao combinar as propriedades topológicas (expressas aqui na medida NACH) e geométricas (expressas na medida Integração Normalizada de raio 1200 metros) da forma urbana, é possível capturar as condições gerais de acessibilidade e identificar a eficiência da forma urbana. Nos três condomínios estudados, não há a presença de vias entre os 10% com maior potencial de escolha (NACH), o que indica a inexistência de grandes corredores de acessibilidade na escala global. Além disso, os 3 condomínios estão nos espaços 20% mais segregados localmente. Percebe-se, assim, que os objetos de estudos estão localizados em locais cuja configuração espacial é segregada em diversas escalas e variáveis, sendo de difícil acesso e contribuindo para a segregação socioespacial (Figura 5).

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Figura 5. Análise Patchwork do recorte de estudo.

Considerações Finais

Os condomínios fechados horizontais, além de serem enclaves sociais pela restrição de acesso ao espaço que foi privatizado, possui uma lógica de localização que converge com o pensamento de segregação social e espacial. A forma urbana em que determinados empreendimentos são erigidos pode contribuir para o acesso ao solo urbano ou para aumentar as restrições já existentes. Os três condomínios estudados na cidade de João Pessoa, Brasil, possuem características similares, no que diz respeito à eficiência morfológica dos seus respectivos entornos. Apesar de estarem localizados em pontos com graus de urbanização distintos, ficou claro com os achados desta pesquisa que todos possuem precariedade na acessibilidade espacial, tanto na escala global e local, como nas propriedades topológicas e geométricas.

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Por intermédio da Teoria da Sintaxe Espacial para avaliar a morfologia urbana, viu-se que os condomínios horizontais são espaços excludentes tanto na proposta em si da forma de morar como nos padrões morfológicos dos locais de implantação, principalmente na escala humana. Os melhores resultados da acessibilidade, mesmo que de forma ainda pouco satisfatória, foram obtidos na escala do automóvel, agravando a segregação já existente.

Referências Bibliográficas

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A cidade entre edifícios. Reflexão sobre meio século de mudanças num conjunto habitacional modernista. Jorge Gonçalves1, Luís Carvalho2, João Rafael3 1Cesur-CEris,

Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa

Av. Rovisco Pais, 1, 1049-001 Lisboa, Telefone: 00 351 218418312 Email: [email protected] 2CIAUD,

Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa

R. Sá Nogueira, 1349-055 Lisboa, Telefone: 21 361 5000 Email: [email protected] 3CIAUD,

Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa

R. Sá Nogueira, 1349-055 Lisboa, Telefone: 21 361 5000 Email: [email protected]

Resumo O movimento moderno tanto se destacou por uma concepção arquitectónica singular como por um desenho urbano resultante de uma disposição dos edifícios em ruptura com qualquer das formas que até então existiam. Aliás, este último aspecto teve mesmo implicações profundas, ainda que restritas no espaço e no tempo, na estrutura e funcionamento da cidade pois ao lhe juntarmos o princípio da exclusividade funcional de cada uma das partes o resultado é um conjunto muito diferente da cidade canónica. Há, assim, um continuum no pensamento moderno que vai desde a arquitetura até à cidade, produzindo uma sólida consistência paradigmática. Tendo como princípio a produção massificada de habitação, de fácil replicação e autonomia face a pré-existências, a sua aplicação no caso português foi sendo sujeita a interpretações de diversos matizes (Tostões, 1998). O que se pretende aqui interrogar é a capacidade de adaptação de um exemplar notável do movimento moderno face aos tempos pósmodernos. O que ficou; o que mudou? No edifício, no espaço público, nas redes de integração na cidade. Para contribuir para essa reflexão recorre-se, nesta comunicação, à leitura das transformações operadas sobre um conjunto de quatro edifícios nos Olivais Norte, Lisboa, projectados no final dos anos 50, de clara matriz arquitectónica e urbanística modernista.. Serão quatro os aspectos a abordar - mobilidade, sociabilidade, consumo e espaço público - de modo a avaliar a resiliência do desenho urbano face ao meio século de mudanças. As conclusões apontam para um leque alargado de persistências, mudanças e de estratégias de adaptação desenvolvidas pelos residentes mas também pelos utilizadores do espaço, no que respeita à mobilidade e à organização e apropriação do espaço residencial e do conjunto urbano. A reabilitação física dos edifícios e até a sua adaptação pontual por razões de segurança e acessibilidade bem como a procura imobiliária de que continuam a ser alvo demonstram bem a sua resiliência. PNUM 2016 849

Este é, portanto, um relato e uma reflexão que julgamos valer a pena fazer em torno da sobrevivência de um pequeno espaço urbano de configuração modernista à torrente de mudanças e de críticas sobre o seu modelo que sobre ele se abateram no último meio século. Palavras-chave Movimento moderno, espaço público, transformações urbanas, resiliência

1. Introdução Desenvolvidos no âmbito da expansão programada da zona oriental de Lisboa, os Olivais Norte constituem um caso singular no panorama urbanístico e arquitectónico do século XX em Portugal. Esta singularidade poderá reconhecer-se em três aspectos: 1) o âmbito governamental da iniciativa, formulada pelo Decreto-Lei nº 42454 de 18 de Agosto de 1959, 2) a ruptura com princípios morfológicos até então dominantes e a adopção de princípios fundamentais da Carta de Atenas, consagrados na discussão do Congresso Nacional dos Arquitectos de 1948, e 3) a introdução pioneira de soluções arquitectónicas antes ensaiadas em edifícios pontuais, mas agora numa escala alargada a um conjunto urbano cuja dimensão e lógica organizativa assumem plenamente um carácter colectivo. Este pioneirismo deve-se em grande medida ao facto de no final dos anos 50 uma parte substancial dos projectos, tanto da urbanização como dos conjuntos habitacionais, se encontrarem, total ou parcialmente, desenvolvidos e se tornarem também de fácil, ainda que necessária, adaptação aos princípios do referido diploma legal (Heitor, 2000). O Plano de Olivais Norte (Figura 1) surge num quadro de reforço da intervenção do Estado na promoção do desenvolvimento económico traçado pelo I Plano de Fomento (1953-1958), nomeadamente através do estímulo à urbanização e à construção de habitação. No quadro da política urbana municipal de Lisboa, com a aprovação do Plano Director de 1948 (e revisão em 1959), estabelecendo a moldura infraestrutural e zonal para a expansão urbana, a par da constituição de vastas bolsas de terreno expropriado herdadas da gestão de Duarte Pacheco, estão lançadas as bases para a estruturação da zona norte e oriental da cidade como território para grandes operações residenciais e industriais1. Face ao reconhecimento de uma carência estrutural de oferta residencial e ao agravar das condições de habitabilidade da população, a escala das operações, a programação quantitativa e os princípios urbanísticos adoptados, reflectem uma visão em que a habitação colectiva de grande escala passa a ser encarada com a alternativa necessária face às limitações de experiências anteriores de promoção pública de habitação em Lisboa. Cruzam-se assim três linhas de racionalidade: a crescente industrialização da construção, a conceptualização urbana do movimento moderno que tem na dotação de habitação colectiva um dos seus pilares, e a capacidade operativa do Estado e da Câmara Municipal em promover,

Intervenções em Olivais Norte, Olivais Sul e Chelas cujos planos se desenvolveram basicamente entre 1955 e 1965 e que abrangem no seu conjunto mais de 800 ha.

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sobre solo público, uma operação de grande envergadura no quadro da modernização infraestrutural e produtiva da capital, garantindo uma oferta de habitação com custos e com rendas económicos.

Figura 1. Plano dos Olivais Norte Fonte: Gabinete Técnico da Habitação (GTH) da Câmara Municipal de Lisboa (CML)

2. Olivais Norte ou a arqueologia de um conjunto habitacional Do ponto de vista urbanístico, o Plano de Olivais Norte posiciona-se numa área servida por novos eixos viários estruturantes da área noroeste de Lisboa, entre o Aeroporto e a frente portuária e industrial de Cabo Ruivo/Beirolas2. Confrontando-se com o Bairro da Encarnação3, exemplar da abordagem residencial do final dos anos 30, ainda de carácter essencialmente ruralizante, Olivais Norte propõe uma disposição baseada na dissolução do vínculo morfológico entre vias e unidades edificadas – a rua consagrando a implantação livre como solução espacial seguindo os princípios estabelecidos na Carta de Atenas. A circulação automóvel desenvolve-se numa rede autónoma face à rede pedonal, constituindo uma ténue delimitação entre conjuntos de edifícios e servindo um núcleo comercial e um equipamento escolar que, num âmbito muito local, garantem a vida de bairro como unidade de vizinhança. Cada edifício ganha liberdade para se dispor e orientar segundo critérios de exposição solar e ventilação, para trabalhar as fachadas sem a hierarquia frente/tardoz, e para se relacionar de forma mais plástica como massa que levita sobre um fundo generoso de espaço público, tendencialmente trabalhado como espaço verde. A organização tipológica de cada edifício revela a sua condição programática: às quatro categorias de edificações de carácter colectivo, organizadas de acordo com o estrato socioeconómico das famílias a alojar, correspondem soluções em banda, em bloco e em torre. Os edifícios de categoria III e IV, que correspondiam a blocos habitacionais com mais pisos (8 a 12) – os quais davam expressão ao conceito de unidade de habitação colectiva racionalista - localizam-se no centro da área de intervenção sendo que os blocos com menos pisos e edifícios em banda Plano elaborado pelo Gabinete de Estudos de Urbanização da Câmara Municipal de Lisboa – Guimarães Lobato, Sommer Ribeiro, Pedro Falcão e Cunha e outros, 1955-1958 3 Paulino Montez, 1940. 2

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(correspondendo às categorias I e II) se localizam na periferia dos Olivais Norte4. Integrantes da categoria III, o conjunto de edifícios objecto desta comunicação, constituído por 4 blocos habitacionais de carácter colectivo, de 10 pisos5, localiza-se precisamente no centro dos Olivais Norte entre a escola primária e o (previsto) centro cívico6. Projecto de 1959 dos arquitectos Artur Pires Martins e Cândido Palma de Melo e do engenheiro civil Jaime Pereira Gomes este conjunto habitacional7, tal como grande parte dos edifícios previstos no plano, seriam construídos na década seguinte registo de uma notável celeridade do processo de urbanização e de edificação dos Olivais Norte8. Capacitado por um plano cuja estrutura permitia grande independência na solução formal dos projectos (Heitor, 2000) cada um dos edifícios é assumido como um elemento integrante de um “quarteto” no qual se sublinha a relação entre os seus elementos de tal forma que a relação de cada um dos edifícios com a envolvente se subjuga à do conjunto e em que o próprio papel de cada um dos edifícios só se consegue ler à luz da lógica estabelecida pelo “quarteto” (Figura 2).

Figura 2. Vista geral dos Olivais Norte (no início dos anos 70) com os 4 blocos habitacionais à esquerda. Fonte: Gabinete Técnico da Habitação (GTH) da Câmara Municipal de Lisboa.

3. O quadrilátero da mudança: mobilidade, sociabilidade, consumo e espaço público As arestas deste quadrilátero são, na verdade, apenas tópicos que facilitam a narrativa da mudança. Quando o espaço urbano é vivido e olhado de perto, estas arestas passam a protagonistas que convivem lado a lado não se distinguindo até, muitas vezes, entre si. Constituem, não obstante, dimensões fundamentais da transição socioeconómica e urbanística para a pós-modernidade. O objetivo da descrição e o da compreensão do leitor sobrepõe-se a outros também eles legítimos. No final, porém, farse-á um esforço de integração e leitura conjunta (Figura 3). O edifício em torre (afecto à categoria II) constitui-se como a exceção a essa regra de correspondência entre o número de pisos e a categoria das edificações de carácter colectivo. 5 Nesses 10 pisos inclui-se o piso térreo de acesso e ainda um piso inferior destinado a garagens sendo os 8 pisos superiores destinados exclusivamente a habitação num total de 32 fogos (4 por piso) repartidos entre T3 e T4. 6 O previsto centro cívico acabou por ser o único elemento significativo do plano que não foi integralmente implementado. Em seu lugar ergueram-se diversos blocos de usos mistos ainda assim dominados pela habitação com unidades comerciais ou de serviços nos pisos térreos. 7 Cada edifício – exclusivamente habitacional – alberga 32 fogos de tipologia T3 ou T4 com áreas úteis de 119 e 139 m2 respectivamente. 8 Em 1959 procedeu-se desde logo à revisão dos projectos dos edifícios destinados aos Olivais Norte e nesse mesmo ano lançaram-se os concursos para realizar as respectivas empreitadas sendo que diversos arruamentos se encontravam já lançados. 4

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Figura 3. Vista geral da zona poente da área em análise observando-se 3 dos 4 edifícios do conjunto.

3.1. Mobilidade Os Olivais Norte são um bairro periférico. Sim, periferia e centro não são localizações absolutas. Dependem da perspetiva de quem olha. Mas também vale a perspetiva dominante. O seu afastamento ao centro da cidade histórica continua a conferir-lhe o estatuto de periférico mesmo após a criação da nova centralidade oriental de Lisboa (Parque das Nações), de novas vias de alto débito (IC2, Túnel do Grilo) e de novas infraestruturas (quatro estações de metropolitano: Olivais, Cabo Ruivo, Encarnação e Aeroporto e ainda a Gare do Oriente). É evidente o contraste atual com os anos 60. Uma carreira de autocarro ligava o bairro ao centro. Uma estação de comboio na sua periferia ligava-o ao centro e norte do país. Como se satisfaziam então as necessidades de deslocação? Em primeiro lugar é preciso dizer que eram menores. A taxa de emprego feminino era muito baixa o que retira alguma expressão ao problema. Em segundo lugar, a proximidade casa-trabalho preconizada desde sempre como um dos fatores mais relevantes para uma menor pressão sobre o sistema de acessibilidade verifica-se aqui de algum modo. Começa desde logo com as características das próprias habitações dos edifícios que se estão em estudo onde se pode encontrar “o quarto da empregada” que deveria, portanto, ser interna, ou seja, o trabalho coincide com a residência. Depois, verificava-se a presença de enormes empregadores a uma distância pedonável (ou entendida como tal nos anos 60 e 70 da século XX) como o Aeroporto de Lisboa, as instalações militares na Av. Alfredo Bensaúde, Beirolas e Figo Maduro, a extensa zona industrial da Avenida D. Henrique, os serviços municipais do Matadouro e Inspeção e Classificação de Ovos, entre tantos outros. Finalmente, o recurso ao automóvel ao estar contemplado em 30 lugares em espaço público e 9 garagens (sorteadas no início da ocupação) mostra que mesmo que o rácio de lugares de estacionamento por fogo fosse 1,0 os 32 apartamentos de cada edifício disporiam de boas condições de resposta ao estacionamento. Entretanto todas estas condições prévias mudaram. As instalações militares encerraram ou perderam fôlego. As indústrias e serviços foram desaparecendo. As empregadas internas deram lugar à empregada

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a dias. O emprego feminino cresceu. A lógica de multidestino sobrepôs-se à do vector simples casatrabalho. Surgiram outros polos empregadores mas, genericamente, mais distantes. A tolerância aos percursos pedonais diminuiu. O recurso ao automóvel aumentou. Aumentaram as carreiras de autocarro de ligação ao centro e internas ao bairro. Passou a existir mesmo linhas de transporte público de iniciativa da Junta de Freguesia dos Olivais ligando os principais serviços e pontos-chave dos Olivais. Surgiram as já referidas quatro estações de metropolitano nos Olivais estando a da Encarnação no interior da área em análise (Figura 4).

Figura 4. À esquerda, construção da estação de metro Encarnação (2011), à direita, depois das obras (2016).

As distâncias-tempo medidas entre este local e diferentes centralidades de Lisboa mostram bem como a ideia de periferia foi sendo contrariada ao longo do tempo, sendo, em 2015, de 15 minutos ao Terreiro do Paço e 30 minutos ao Marquês de Pombal em Transporte Público e um pouco menos em transporte individual. Menos de 10 minutos à gare do Oriente em transporte individual ou público. Assim, o que resulta em larga medida das transformações sentidas é que aumentou a necessidade de deslocação motorizada e que se reduziu a capacidade de resposta de estacionamento deste território que se torna insuficiente face ao aumento número de veículos médio por família mas também face à procura de estacionamento de quem depois se serve do metropolitano.

3.2. Sociabilidade A sociabilidade num contexto circunscrito a “entre edifícios” remete-nos sobretudo para a ideia do grau de interações entre vizinhos, visível no espaço público (Gonçalves, 2006). Os relatos sucedem-se sobre a celebração no espaço público dos dias festivos como os Santos Populares ou ainda sobre como era natural os jovens e crianças brincarem na rua assim como sobre os vizinhos que se encontravam nos relvados nas cálidas noites de verão. Esses relatos que se repetem são apenas estórias de um passado que desapareceu há já algum tempo. Os muros, os bancos, os relvados, os degraus, os jogos inscritos no espaço público (Figura 5), os pequenos palcos estavam preparados e ansiavam por essa intensa vida social de proximidade que, aliás, já vinha do próprio edifício com as suas galerias a ligar os dois corpos e até da ausência de tráfego de passagem.

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Figura 5. O jogo da macaca inscrito na calçada.

Note-se que para um total de 2.315 fogos previstos no plano dos Olivais Norte era estimada uma população residente de 9.260 habitantes. Considerou-se assim uma média de 4 residentes por fogo o que é praticamente o dobro da dimensão média de família em 2011 o que ilustra as mudanças radicais ocorridas ao longo deste meio século que nos enquadra9. As segundas gerações, quando cresceram, encontraram outros locais de residência; os pais envelheceram, mudaram-se ou faleceram; os novos moradores apenas se contactam nas reuniões de condomínio ou no elevador. O individualismo, as novas estruturas e relações familiares, o apelo da TV e internet ou os tipos de espaços comerciais hoje dominantes, esvaziam as antigas solidariedades e interações. Quem vive então “entre edifícios” hoje em dia? São três os grupos de utilizadores: jovens e outros indivíduos que ali se abrigam ou se refugiam para conviver algum tempo, sobretudo à noite; os donos de cães que com uma enorme regularidade passeiam por este território; os frequentadores do metro que se deslocam a pé e, por terem origens múltiplas, a atravessam indiscriminadamente seguindo caminhos formais ou “escavando” novos através dos relvados e através das passagens existentes nos edifícios. Estas três “comunidades” continuam a dar vida a este espaço ao longo dos dias e das noites embora de forma muito diferente da inicial. A apropriação do lugar é agora mais volátil e, nalguns casos, até de grande indiferença, pois a utilidade deste espaço para alguns é apenas funcional (de acesso a outros locais), quando antes constituía verdadeiramente um prolongamento da própria casa.

3.3. Consumo A ausência de espaços comerciais nos pisos térreos e a distribuição das polaridades funcionais a uma walking distance marca a paisagem comercial desta área, aliás, vinca bem o seu carácter modernista. Algumas interrogações se levantam todavia. A walking distance é igual se o indivíduo carregar 5 kg de compras? É igual se tiver 20 anos ou 73? E se existirem desníveis significativos? E no caso de pisos desconfortáveis para o caminhar? A walking distance é um conceito objetivo ou subjetivo? 9

Dimensão média da família em 2011 na AML é de 2,3 (Fonte: INE, 2011). PNUM 2016 855

O que sucede é que tudo isto foi mudando. A média de idades dos residentes foi aumentando. A taxa de motorização também. A oferta de bens e serviços mudou estruturalmente não só na forma como se organiza como também na forma como chega aos clientes/utentes, de que é exemplo o surgimento de serviços pessoais e familiares ao domicílio como as engomadorias, dog walking ou cuidados pessoais e de saúde. Neste meio século em análise os abastecimentos domésticos passaram dos mercados municipais (Encarnação norte e Encarnação sul que se localizam a uma curta distância na transição entre dois bairros, Olivais Norte e Encarnação) para gradualmente irem passando para os supermercados de bairro (Spar, ACSantos, Minipreço) e para outros ainda mais distantes (Pingo Doce, Continente, Lidl, El Corte Inglês). O encerramento de agências bancárias (CGD), de correios entre outros serviços localizados na proximidade são reveladores de uma nova racionalidade na oferta das referidas entidades mas também do tipo de procura que existe no bairro. As lojas fechadas nos polos funcionais existentes e o definhar dos mercados municipais revelam uma perda de centralidade nas lógicas de abastecimento e de satisfação de outras necessidades da população atual certamente também ligadas a estratégias comerciais muito agressivas por parte de algumas empresas designadamente na esfera da distribuição, onde o conceito de entregas ao domicílio ganhou relevo. Neste quadro, e aparentemente, a resposta à transformação nas lógicas de consumo não se traduziu numa alteração significativa do uso do edificado ou do espaço urbano, mas antes na adoção de novos circuitos de procura e de oferta, eles próprios indissociáveis das vertentes de mobilidade e de sociabilidade.

3.4. Espaço Público Há marcas que não se apagam. Os impasses, as áreas relvadas, as ligações pedonais, os muretes e degraus, os jogos na calçada, as passagens inferiores, os pequenos anfiteatros, o mobiliário urbano. Passado meio século, quase tudo se manteve e algo mais se acrescentou. Quase tudo se manteve porque apenas as passagens inferiores aos edifícios foram sendo gradeadas, impedindo não só a passagem como a permanência de elementos geradores de insegurança. Algo mais se acrescentou quando se pensa nas rampas de acesso aos edifícios como forma de responder tanto à crescente idade média dos moradores como às novas exigências legais e quando se pensa nas mudanças geradas pela presença da linha de metro. Nas imediações das saídas da estação existem novos pavimentos pedonais, espaços de estadia e respiradores que se assumem como novos elementos marcantes na paisagem urbana. A qualidade deste espaço público sofreu com a idade mas continua a manter integralmente a sua funcionalidade embora menos utilizado no espírito a que lhe deu origem. Como pano de fundo, a caraterização dominante do espaço público como espaço verde reflete-se numa mudança segundo pautas mais subtis, decorrentes da transformação própria da arborização e da PNUM 2016 856

vegetação, do seu crescimento natural e constante renovação; não tanto da alteração de uso ou ocupação edificada. O espaço público, aquele que se entende como campo relacional, já não se circunscreve ao desenho daquele pano de fundo; é, ao invés, uma construção mais heterogénea, tecida entre espaços reais e redes virtuais, de proximidade, racionalidade e configuração bem mais fluidas (Gonçalves, 2006). O espaço público de Olivais Norte é hoje, portanto, um nível relativamente discreto e não tão determinante para a vida na cidade quanto, porventura, se imaginara nos seus primórdios.

4. Notas finais Respeitando o registo destas notas subordinado ao quadrilátero proceda-se, antes de mais, ao sublinhado de duas notas prévias: 1) assume-se o processo de mudança, o registo da incidência do tempo, como o denominador comum aos quatro vértices do quadrilátero o que denuncia a elevação a um semelhante patamar de protagonismo do conjunto urbano objecto do estudo e dos diversos intervenientes que o marcaram ao longo deste meio século; 2) reconhece-se uma dupla excepcionalidade, das mudanças ocorridas entre a concepção (plano e o projecto) e da persistência da integralidade de um conceito simultaneamente pioneiro e (quase) solitário no panorama do urbanismo português. Da mobilidade: a progressiva adaptação dos residentes, dos visitantes e dos (novos) utentes das (novas) redes de transporte a uma relativa rigidez programática e de desenho, inscrita na lógica do movimento moderno; Da sociabilidade: de uma organização corporativa que acabou por determinar uma certa passividade social (que ainda assim foi abanada por uma reação à ocupação dos Olivais Norte, tal como nos anos 40 em relação ao Bairro da Encarnação) a uma acentuada e estrutural mudança socioeconómica marcada pela alteração do próprio regime de propriedade dos fogos (da corporação para o individuo). Do consumo: a persistência de um uso quase exclusivo – o habitacional – e a ausência de adaptação do piso térreo a outros usos, nomeadamente o comercial de um vasto território constituído por diversos conjuntos de edifícios habitacionais, do qual faz parte o desenhado por Pires Martins e Palma de Melo. Ao contrário de outros contextos (vidé conjuntos residenciais nos antigos países socialistas), a persistência do piso térreo sem ocupação, não só reforça a resiliência das características urbanísticas iniciais – a ausência da rua –, mas revela também a existência de outros níveis de satisfação de consumo, que não os exclusivamente locais. Do espaço público: a excepcional persistência - temporal e territorial - da relação do conjunto dos quatro edifícios com o sistema de espaços públicos exemplificada pela integração das amplas áreas verdes nesse sistema, pela capacidade de adaptação (ainda que de forma muitas vezes no limite) às novas e exigentes procuras de estacionamento ou pela integração de novos elementos (estação de metro).

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Referências bibliográficas Gabinete Técnico da Habitação (GTH) da Câmara Municipal de Lisboa, Boletim Volume 3, n.º 20, 1.º Semestre 1971 INE (2012), Censos 2011. Resultados definitivos Instituto Nacional de Estatística/LVERD Gonçalves J (2006), Os espaços públicos na reconfiguração física e social da cidade Editora da  8QLYHUVLGDGHLusíada/LVERD Heitor T (2000) Olivais e Chelas, operações urbanísticas de grande escala (online), in in3.dem.ist.utl.pt/msc_04history/aula_5_c.pdf, (acesso em 27 de Abril de 2016) Tostões A (1998) Modernização e Regionalismo, 1948-1961, in A Becker, A Tostões, W Wang (ccord.) Catálogo da Exposição Arquitectura do Século XX, Portugal. Deutches Architektur Museum, Franckfurt am Main e Centro Cultural de Belém, Prestel, Munchen, /LVERD41-53.

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A produção do espaço urbano de Toledo-PR a partir da instalação do Frigorífico Pioneiro S/A: aspectos do planejamento municipal Sabine Campos, Sílvia Pereira Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus Francisco Beltrão Rua Maringá, 1200, Francisco Beltrão/PR, Telefone: 55 046 35204848 – ramal 4845 [email protected], [email protected]

Resumo Através deste trabalho será apresentada parte de pesquisa em desenvolvimento para a elaboração de dissertação de mestrado. O município de Toledo, objeto de estudo, está localizado no Oeste paranaense, Sul do Brasil, na faixa de fronteira com a Argentina e o Paraguai, sendo um dos principais polos de uma região onde predomina a indústria do agronegócio. A colonização dessa área aconteceu a partir da década de 1940 e, com a criação do município em 1951, apresentou um processo rápido de crescimento e desenvolvimento. Atualmente com mais de 130 mil habitantes (IBGE, 2015), a cidade cresce significativamente, destacando-se o setor de serviços, a ampliação do campo industrial e a abertura de universidades públicas e privadas. Conforme Rippel (1995) e Campos (2007), o principal expoente do desenvolvimento industrial foi o Frigorífico Pioneiro S/A, instalado em 1959 para o abate de suínos e adquirido pela Sadia S/A em 1964 (Silva; Bragagnollo; Maciel, 1988). Hoje, essa planta industrial integra o maior complexo agroindustrial frigorífico da América Latina, a BRF S/A. Segundo Rippel (1995), sua existência impulsionou a criação de outras indústrias, a prestação de serviços e o comércio, que atendem a montante e a jusante o complexo agroindustrial. Além disso, para Campos (2007), o desenvolvimento proporcionado pelo frigorífico e a mão de obra disponível, atraíram indústrias de outras áreas, contribuindo para intensificar o processo de urbanização. Conforme Sposito (2014), a industrialização é um dos principais processos que induzem a urbanização e, segundo Fischer (2008), a indústria, por seu papel nas polarizações espaciais, se tornou um instrumento maior das políticas de ordenamento do território e influencia diretamente o crescimento urbano, a evolução qualitativa dos conteúdos urbanos e a estruturação das hierarquias urbanas regionais. Nesse contexto, parte da pesquisa irá verificar como o planejamento urbano de Toledo foi influenciado pela presença do frigorífico. Para isso, serão indicados os principais condicionantes da localização da indústria na escala intra-urbana e seu impacto na transformação do entorno; serão identificados os principais marcos do planejamento territorial municipal e; será analisada as diretrizes dos planos diretores conforme as necessidades do frigorífico. Para esta parte da pesquisa está sendo desenvolvida revisão bibliográfica sobre alguns conteúdos, tais como industrialização, produção do espaço urbano e legislação municipal. Com isso, será desenvolvida parte da reflexão sobre a produção do espaço urbano em Toledo-PR, a partir da instalação do Frigorífico Pioneiro S/A.

Palavras-chave Palavras-chave: espaço urbano, legislação urbana, industrialização. PNUM 2016 859

Introdução

O espaço urbano é objeto de pesquisa na elaboração da dissertação de mestrado em desenvolvimento 1, onde será analisada a produção do espaço urbano de Toledo, a partir da instalação do Frigorífico Pioneiro S/A. O município de Toledo está localizado no Oeste do Estado do Paraná, região Sul do Brasil (Figura 1). Através deste artigo serão apresentados resultados parciais da pesquisa, referentes à análise dos aspectos da legislação municipal que possam ter sido influenciados pela presença do frigorífico.

Figura 1. Localização do Município de Toledo, PR, com identificação do Distrito-sede. Elaborado pelas autoras. Fonte dos dados: IBGE (2014); Ipardes (2014).

Historicamente, a industrialização é um processo de transformação das cidades, cuja existência como materialização da organização da sociedade foi uma das condições que permitiu o desenvolvimento da indústria. Urbanização e industrialização são processos simultâneos no contexto econômico capitalista, com diferentes agentes atuando na produção do espaço. Assim, na pesquisa será analisado como, de modo geral, a industrialização determinou a produção do espaço urbano de Toledo e, de modo específico, quais agentes atuaram diretamente, considerando a implantação do frigorífico, os processos e as formas espaciais resultantes. Pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGG – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste – Campus Francisco Beltrão, com início em março de 2015, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Sílvia PNUM 2016 Regina Pereira. 860

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Conforme Rippel (1995) e Campos (2007), o expoente do desenvolvimento industrial em Toledo foi o Frigorífico Pioneiro S/A, instalado em 1959 e adquirido pela Sadia S/A em 1964. Hoje, essa planta industrial integra o maior complexo agroindustrial frigorífico da América Latina, a BRF S/A. Segundo Rippel (1995), sua existência impulsionou a criação de outras indústrias, a prestação de serviços e o comércio. Além disso, para Campos (2007), o desenvolvimento proporcionado pelo frigorífico e a mão de obra disponível atraíram outras indústrias, contribuindo para intensificar o processo de urbanização.

Com o intuito de compreender se a legislação urbana de Toledo foi influenciada pela presença do Frigorífico Pioneiro S/A, o presente artigo foi estruturado em cinco seções, contando esta introdução. Na segunda seção foram indicados os condicionantes da localização da indústria na escala intraurbana e seu impacto na transformação do entorno, através de revisão bibliográfica. A terceira seção apresenta a relação da legislação urbana local que determina o planejamento territorial municipal, obtidos por meio de levantamento da legislação junto ao setor jurídico da prefeitura municipal. Já na quarta seção, foi realizada a análise sobre a relação da legislação urbana levantada com a presença do frigorifico, levando em consideração as condicionantes indicadas na segunda seção. Na quinta e última seção, são apresentadas considerações sobre as reflexões em pauta, bem como a indicação de encaminhamentos para a pesquisa em desenvolvimento.

A indústria no espaço urbano

Esta seção tem como objetivo indicar os condicionantes da localização da indústria na escala intraurbana e seu impacto na transformação do entorno. Para isso, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o tema.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que a escolha da localização de indústrias é feita a partir da análise da região. Conforme Villaça (2001, 20), a “[...] estruturação do espaço regional é dominada pelo deslocamento das informações, da energia, do capital constante e das mercadorias em geral [...]”, sendo que a localização é influenciada pelo melhor acesso a esses sistemas de circulação. Na mesma direção, Fischer (2008) observa que as empresas diferenciam o espaço através do nível dos conteúdos e qualidades do ambiente, considerando a diversidade dos equipamentos técnicos, econômicos e sociais e a qualidade do quadro de vida, “[...] fatores cada vez mais seletivos com respeito ao espaço geográfico” (Fischer, 2008, 37). Com isso, de onde implantar determinada indústria depende do acesso à circulação de produtos, serviços e mão de obra, incluindo melhores condições de reprodução da vida dos trabalhadores.

Por outro lado, definida a cidade, a localização da indústria na escala intraurbana é determinada pelas forças PNUM 2016

internas estabelecidas. Segundo Villaça (2001, 21), 861“[...] em qualquer ponto do espaço intra- urbano ou

intrametropolitano, os custos da energia e das comunicações são iguais [...], tornando esses espaços uniformes ou homogêneos do ponto de vista da disponibilidade de energia e comunicações”. Assim, “[...] a segregação espacial das camadas de mais alta renda surge como o elemento interno mais poderoso no jogo de forças que determina a estruturação do espaço intra-urbano [...]” (Villaça, 2001, 13-14), influenciando o preço da terra: quem pode paga pela melhor localização. Nesse caso, conforme o modelo de distribuição espacial proposto por Côrrea (1999) para as cidades latino-americanas, as indústrias se localizam em posição oposta à classe dominante, pois os agentes proprietários dos meios de produção, os industriais, “[...] necessitam de terrenos amplos e baratos [...]” (Corrêa, 1999, 13).

Com a definição da área onde será instalada a indústria, se processa a transformação do seu entorno. Se em um primeiro momento a escolha da cidade implica no acesso a transporte, informações, capital constante e presença de mão de obra, num segundo momento a localização intraurbana leva a modificações de infraestrutura e de usos. Conforme Singer (2002, 23), a fábrica é um fenômeno urbano que:

[...] exige, em sua proximidade, a presença de um grande número de trabalhadores. O seu grande volume de produção requer serviços de infraestrutura (transportes, armazenamento, energia, etc.), que constituem o cerne da moderna economia urbana. Quando a fábrica não surge já na cidade, é a cidade que se forma em volta dela.

A transformação, ou criação, de uma cidade em volta da indústria se dá, então, pela construção de novas áreas residenciais, implantação de novo sistema de transporte, armazenamento, fornecimento de energia e de serviços complementares. Como observa Corrêa (1999), a população de baixa renda se localiza próxima das indústrias por compor grande parte de sua mão de obra, criando junto novos centros de comércio e serviços pela dificuldade de acesso ao centro urbano.

Diante do exposto, fica indicado que a localização da indústria na escala intraurbana é definida por forças internas, mais especificamente, pela autossegregação das classes de mais alta renda. A busca por grandes áreas de terras de baixo valor leva a uma localização oposta às classes de alta renda, surgindo em seu entorno conjuntos residenciais de baixa renda e em alguns casos, pequenos centros, compostos por estabelecimentos comerciais e de serviços locais.

A configuração do espaço urbano de Toledo pode ser visualizada na Figura 2, por meio da qual é possível PNUM identificar que a localização do frigorífico é oposta ao 2016 centro urbano estabelecido, onde reside a classe de 862

renda mais alta. Em seu entorno surgiram loteamentos residenciais de baixa renda, no interior dos quais, foram constituídos centros de comércio e de serviços que se configuram como centros secundários na escala da cidade.

Figura 2. Renda Média Mensal nos domicílios, por setor censitário - Toledo, PR, com demarcação da BRF S/A e das vias de comércio e serviço. Fonte: Campos, 2015, editado pelas autoras.

Com isso, é possível afirmar que a produção do espaço urbano de Toledo segue a lógica do contexto econômico capitalista. A seguir, serão identificadas quais as leis municipais que regulamentam a produção do espaço urbano.

A legislação sobre o planejamento do espaço urbano O objetivo nesta terceira seção é identificar a legislação do planejamento territorial municipal de Toledo. Entretanto, para uma seleção adequada, é preciso definir quais as características desses diplomas legais. PNUM 2016 863

Para identificar as leis importantes, a primeira característica a ser considerada se refere à data de vigência. O recorte temporal da pesquisa em desenvolvimento se inicia com a instalação do Frigorífico Pioneiro S/A em Toledo, em 1959. Assim, os diplomas legais vigentes nessa época, que tratam sobre o planejamento territorial municipal, são importantes para compreender o que determinava a legislação sobre o espaço urbano antes da implantação do frigorífico, para então verificar as alterações realizadas.

Definido o período de vigência das leis, é necessário compreender a natureza das mesmas. Para isso é preciso verificar na legislação federal e na legislação estadual quais são os instrumentos legais de planejamento urbano. No período analisado pela pesquisa, o Brasil foi regido por três constituições federais, as dos anos de 1946, 1967 e 1988. Foi apenas nesta última, em vigor, que surgiu um capítulo específico sobre política urbana, onde ficou definido que a política de desenvolvimento urbano é executada pelo Poder Público municipal e tem no Plano Diretor o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (Brasil, 1988). Esse capítulo é composto pelos artigos 182 e 183 e foi regulamentado pelo Estatuto da Cidade, Lei Federal n.º 10.257, de 10 de Julho de 2001. A partir da definição dada pela legislação federal, serão levantadas as leis que tratam do Plano Diretor, além de outros instrumentos previstos no Estatuto que interferem diretamente na forma e nas funções espaciais expressas no espaço urbano. Conforme o Guia para implementação pelos municípios e cidadãos do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001, 55):

As normas urbanísticas definidoras das exigências para o adequado aproveitamento da propriedade urbana, devem ser instituídas por uma lei municipal específica (artigo 182, parágrafo 4º), não se confunde com o Plano Diretor, que contém as linhas mestras e os crítérios para a propriedade urbana atender a sua função social.

Em consonância a isso, em 2006 o Estado do Paraná normatizou a política de planejamento e desenvolvimento urbano (Paraná, 2006). Além do Plano Diretor municipal, ele determina a elaboração de leis sobre perímetro urbano, parcelamento do solo para fins urbanos, uso e ocupação do solo urbano e rural, código de obras, código de posturas, sistema viário, e instrumentos instituídos pelo Estatuto úteis ao município. Assim, foram também selecionados para análise os diplomas legais previstos nessa legislação estadual. Todos estão relacionados em forma de tabela na Figura 3.

Relação de Leis de Planejamento Territorial do Município de Toledo Número Lei Municipal n.º 9 Lei Municipal n.º 21

Data 3 de junho de 1953 25 de setembro de 1953

Lei Municipal n.º 62

de 1954

Súmula Cria e delimita as zonas urbanas da cidade de Toledo. Provê sobre o loteamento e urbanização de áreas de terras a serem incorporadas à zona urbana ou suburbana da cidade ou vilas e povoados. Institui o Código de Posturas Municipais. PNUM 2016 864

Lei n.º 520 Lei n.º 687 Lei n.º 778

20 de outubro de 1969 30 de dezembro de 1972 2 de setembro de 1974

Lei n.º 780

2 de setembro de 1974

Lei n.º 1.003

7 de outubro de 1980

Lei n.º 1.185

2 de julho de 1984

Lei n.º 1.358

2 de julho de 1987

Lei n.º 1.430

30 de junho de 1988

Lei n.º 1.483

27 de março de 1989

Lei n.º 1.561

21 de dezembro de 1989 17 de abril de 1991

Lei n.º 1.635 Lei n.º 1.714

Lei Complementar n.º 3 Lei n.º 1.777

16 de dezembro de 1991 28 de dezembro de 1993 23 de dezembro de 1993 30 de junho de 1995

Lei n.º 1.778

30 de junho de 1995

Lei n.º 1.815

29 de maio de 1998

Lei n.º 1.841

14 de novembro de 2001 27 de agosto de 2003 17 de novembro de 2003 17 de novembro de 2003 20 de novembro de 2003 17 de julho de 2006 5 de outubro de 2006

Lei n.º 1.759

Lei n.º 1.865 Lei n.º 1.867 Lei n.º 1.868 Lei n.º 1.869 Lei n.º 1.932 Lei Complementar n.º 9

Lei n.º 1.941 Lei n.º 1.942 Lei n.º 1.943 Lei n.º 1.944

27 de dezembro de 2006 27 de dezembro de 2006 27 de dezembro de 2006 27 de dezembro de 2006

Dispõe sobre loteamentos e dá outras providências. Aprova o Plano Diretor de Desenvolvimento de Toledo, fixando, seus objetivos e diretrizes básicas. Regulamenta o crescimento urbano de Toledo através do Zoneamento, Loteamento e Normas de Edificação, e dá outras providências, e alterações. Institui o código de posturas de Toledo – Paraná, e dá outras providências, e alterações. Dá nova delimitação à área de expansão urbana da cidade de Toledo. Fixa critérios para a declaração de áreas como pertencentes à zona urbana da cidade de Toledo e dá outras providências. Dá nova delimitação à área de expansão urbana da cidade de Toledo. Dá nova delimitação à área de expansão urbana da cidade de Toledo. Estabelece metas para o processo de expansão industrial no Município de Toledo e dá outras providências. Dá nova delimitação ao perímetro urbano da cidade de Toledo. Dá nova delimitação à área de expansão urbana da cidade de Toledo. Dá nova delimitação à área de expansão urbana da cidade de Toledo. Dispõe sobre o perímetro urbano da cidade de Toledo. Dispõe sobre o Plano Diretor de Toledo. Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o zoneamento do uso e da ocupação do solo urbano no Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o Código de Obras e Edificações do Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o perímetro urbano da cidade de Toledo. Dispõe sobre o perímetro urbano da cidade de Toledo. Dispõe sobre o zoneamento do uso e da ocupação do solo urbano no Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o Código de Obras e Edificações do Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o perímetro urbano da cidade de Toledo. Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de Toledo, estabelece diretrizes e proposições para o planejamento, desenvolvimento e gestão do território do Município, e alterações. Define os perímetros das zonas urbanas do Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o sistema viário básico do Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o Código de Obras e Edificações do Município de Toledo, e alterações. Dispõe sobre o zoneamento do uso e da ocupação do solo urbano no Município de Toledo, e alterações. PNUM 2016 865

Lei n.º 1.945 Lei n.º 1.946

27 de dezembro de 2006 27 de dezembro de 2006

Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no Município de Toledo, e alterações, e alterações. Dispõe sobre o Código de Posturas do Município de Toledo, e alterações.

Figura 3. Tabela com a Relação das Leis de Planejamento Territorial do Município de Toledo. Elaborado pelas autoras. Fonte dos dados: Toledo, 2016.

A lista da legislação relacionada mostra que está em vigor o terceiro Plano Diretor municipal. Dentre as leis complementares, a do perímetro urbano sofreu mais alterações. A seguir, será apresentada a análise sobre a pertinência dessa legislação ao frigorífico.

A presença do frigorífico e a legislação municipal Nesta seção será analisada a relação da legislação de planejamento territorial do município de Toledo com a presença do frigorifico. Para isso, será identificado se as demandas de uma indústria em relação à estruturação urbana foram incorporadas pela legislação levantada. Não será realizada a análise de todas as leis: serão destacados os pontos significativos que permitem a definição de conclusões parciais e novos encaminhamentos para a pesquisa. Em primeiro lugar, a lista levantada representa um panorama inicial da história do planejamento de Toledo. Essa relação permite definir quatro intervalos de planejamento a serem analisados: o primeiro se inicia em 1953 e termina em 1972, o segundo vai até 1993; o terceiro até 2006 e, por fim, o quarto até 2015 (ano final para coleta de dados da pesquisa, marcando também o encaminhamento de nova proposta de legislação à Câmara de Vereadores). Esses intervalos correspondem à publicação da lei denominada Plano Diretor, considerado o instrumento básico de planejamento e desenvolvimento municipal. Durante os períodos identificados, a legislação sofreu alterações a serem verificadas, considerando o objeto de estudo da pesquisa em pauta. Para atingir o objetivo proposto a esta seção, cada intervalo identificado será analisado separadamente.

O primeiro período de planejamento do município de Toledo, entre 1953 e 1972, é marcado por uma legislação que delimita a zona urbana, orienta o loteamento e a urbanização de áreas a serem incorporadas. Nessa legislação não são feitas referências diretas à área de implantação ao frigorífico. O que se observa é que o frigorífico foi instalado fora da zona urbana, afastado do centro urbano, onde os custos da terra são mais baixos e onde seria possível a aquisição de uma grande área, conforme indica Corrêa (1999) sobre as necessidades da indústria e o padrão de ocupação das cidades latinoamericanas.

Com o processo de planejamento que culminou na aprovação do primeiro Plano Diretor Municipal, e que marca o segundo período, houve a incorporação do imóvel ocupado pelo frigorífico ao perímetro urbano. Essa incorporação trata da regularização de umPNUM fato existente, já que o frigorífico foi implantado em 1959. 2016 866

No texto da lei do Plano Diretor não são observadas diretrizes que tratam especificamente do frigorífico, mas são observadas diretrizes gerais para oferecer condições básicas ao desenvolvimento econômico e isenção fiscal para a implantação de novas unidades manufatureiras. Quanto à lei de zoneamento, não há definição de usos para onde está o frigorífico. O que se apresentou como uma resposta às demandas da indústria à estruturação do espaço urbano foi a projeção de um contorno viário de Sul a Oeste no plano de vias de 1974, que passaria no limite sul do imóvel do frigorífico, correspondendo hoje à Avenida Egydio Munaretto. No ano de 1976 foi realizada ampliação do perímetro urbano, assim como em 1989. Isso está relacionado diretamente à presença do frigorífico, já que corresponde a ampliação do perímetro urbano em seu entorno, o que permitiu a criação de novos bairros residenciais para abrigar funcionários, o que pode ser observado na Figura 4.

Figura 4. Evolução do Perímetro Urbano no Distrito-Sede do Município de Toledo. Elaborado pelas autoras. Fonte dos dados: Prefeitura Municipal, Departamento de Planejamento Urbano.

Na análise do terceiro período, verificou-se a indicação de diretrizes que garantem a expansão do frigorífico na lei do Plano Diretor. São elas diretrizes econômicas para a indústria, como o estímulo à expansão e modernização do parque industrial, proporcionando base tecnológica, e a consolidação das áreas industriais existentes e; diretrizes para a política de desenvolvimento rural, indicando a adequação das estradas rurais por onde escoa a maior parte da matéria-prima. Quanto a lei de zoneamento, o imóvel do frigorífico ficou inserido na Zona Urbana 1, o que foi uma incongruência com a realidade existente: para essa zona não era permitido esse tipo de uso e empreendimento, mesmo o frigorífico existindo há 36 anos. Alteração posterior PNUM 2016 867

da lei criou o Corredor de Serviços, onde poderia se instalar indústria não poluente (a lei definiu como indústria poluente aquela que polui atmosfera, solo, cursos d’água e produtoras de mau cheiro). O perímetro urbano do entorno do frigorífico foi ampliado, sendo que os loteamentos residenciais existentes hoje estão inseridos no perímetro urbano deste período (Figura 4). No que diz respeito ao quarto e atual período de vigência das leis, a ação de planejamento identificada em relação à estruturação do espaço urbano a partir do frigorífico foi a definição de vias com uso e ocupação diferenciadas, no interior das áreas residenciais criadas para abrigar parte de sua mão de obras, como demarcado na Figura 2. Por concentrarem usos comerciais e de serviços, formaram centros secundários, proporcionando mais autonomia no cotidiano de seus moradores em relação ao centro urbano principal. Em relação ao perímetro urbano, foi observada uma pequena ampliação do seu limite territorial próximo ao frigorífico.

Diante do exposto, é possível afirmar que, apesar das demandas geradas a partir da instalação de uma indústria no espaço urbano, o planejamento através de leis municipais pouco tratou da estruturação da área na qual se instalou o frigorífico em destaque. As ações do poder público local em prol das demandas existentes foram implementadas ao longo do tempo, sem planejamento prévio, e por isso contribuiram para uma estruturação urbana que apresenta problemas. Uma indústria criada fora da zona urbana está hoje inserida no meio da cidade, ocasionando problemas de tráfego e exigindo a presença de grandes estruturas para o fornecimento de energia, além dos resíduos resultantes da atividade que precisam de tratamento e destinação adequados.

Encaminhamentos Ao longo deste artigo foram apresentados resultados parciais de uma pesquisa em curso. Por meio desse estudo será possível compreender a produção do espaço urbano de Toledo, a partir da instalação do Frigorífico Pioneiro S/A. O estudo do processo de produção do espaço é importante para a compreensão da forma urbana, que é determinada pela ação de diversos agentes. Neste caso, a análise foi baseada na ação dos industriais e do poder público local através da legislação.

Na segunda seção foram identificadas as principais demandas em relação à estruturação urbana a partir da instalação de indústrias no espaço urbano. São eles: acesso à circulação de informação, mercadorias, energia e capital; amplos terrenos a baixo custo; presença de mão de obra e toda estrutura de serviços e equipamentos necessários à sua reprodução.

A seguir, na terceira seção, foi relacionada toda legislação pertinente ao planejamento territorial do município, considerando a definição da legislação federal e estadual vigentes. Foram encontradas leis PNUM 2016 868

correspondentes para todo o período de existência do município, considerando que a sua criação data de dezembro de 1951, sua instalação foi em dezembro de 1952 e as primeiras leis datam de junho de 1953.

A análise apresentada na quarta seção possibilita concluir que o planejamento territorial do município de Toledo previsto na legislação não determinou muitas ações específicas com relação à presença do frigorífico. Não foi observada uma clara ação estruturadora do espaço urbano, mas sim ações que respondiam a demandas urgentes. A demanda por habitação para seus funcionários levou à ampliação do perímetro urbano em seu entorno para permitir o parcelamento do solo pela iniciativa privada. O contorno de Sul a Oeste criado como rodovia estadual, para facilitar o escoamento de matéria-prima e de mercadorias, hoje representa um limite e um divisor da cidade, já que a Sul dela se desenvolveu uma ampla área residencial, carente de um sistema viário que permita acessibilidade ao centro urbano. As vias de caráter comercial no interior das áreas residenciais surgiram após o estabelecimento do uso e não por meio do planejamento. De modo geral, nada difere das políticas nacionais enraizadas em nossa cultura: há uma ausência de planejamento pautado na realidade.

Com isso, observa-se que a estruturação urbana a partir da presença da indústria se deu conforme os interesses dos agentes econômicos. Esses agentes sempre defenderam o atendimento das suas demandas, justificadas como necessárias para o pleno funcionamento dos seus empreendimentos, não considerando os reflexos das suas interferências quanto às alterações nas legislações e no espaço urbano. Com o espaço urbano sendo estruturado e reestruturado para servir aos interesses econômicos, os segmentos de menor renda são os mais prejudicados nesse processo, pois não são atendidos na mesma proporção no que diz respeito às necessidades básicas cotidianas.

Diante da constatação de que pouco se planejou a partir das leis que regem a estruturação do espaço urbano de Toledo, é fundamental estabelecer aqui alguns encaminhamentos para a continuidade dessa pesquisa, com o intuito de compreender como foi produzida sua forma urbana. É preciso identificar se há outras demandas criadas com a instalação do frigorífico no espaço urbano, bem como analisar a implementação da infraestrutura necessária e o estabelecimento de áreas residenciais para a mão de obra trabalhadora. A partir dessas informações, será possível ampliar as reflexões sobre a produção do espaço urbano de Toledo a partir da instalação do Frigorífico Pioneiro S/A.

Referências

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Desenvolvimento Regional e Agronegócio) Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, PR. Campos S, Dias S (2015) A desigualdade social espacializada na cidade de Toledo, PR, 4.ª Conferência da Rede Lusófona de Morfologia Urbana, Brasília, Distrito Federal. Corrêa R (1999) O espaço urbano, Editora Ática, São Paulo. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (2014) Cidades (Banco de Dados Digital) Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2014. IPARDES – Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (2014) Mapas (Banco de dados Digital) Disponível em:
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