Assumindo-se como Édipo

August 13, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Philosophy
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ASSUMINDO-SE COMO ÉDIPO por Waldísio Araújo Através da história de Édipo os gregos parecem falar da necessidade do mergulho em nós mesmos rumo a um conhecimento que não é o de um eu transcendente ou transcendental, mas descoberta de que a ordem que fizermos de nós mesmos não é incompatível com a crença num caos que perpassa todas as coisas e as constitui. O que Odisseus prendeu ao mastro foi, como vimos no artigo Aprisionando-se como Ulisses, a sua própria vontade; não, porém, para que ela se aquietasse ou se extinguisse, mas para que contemplasse o Abismo em segurança após conhecer a seu modo um essencial segredo: que a verdade insondável do universo não está na Sentado, o viajante Édipo tenta desvendar o enigma distância intransponível de uma transcendência mortal da Esfinge. Cerâmica grega antiga. mas na vizinhança não menos abissal de uma imanência. Ora, num outro mito, o do encontro de Édipo com a Esfinge, esse abismo imanente está não somente nos interstícios entre os homens ou entre estes e os deuses, mas “dentro” dos próprios homens, desses seres que a cultura ainda não tomara como “finitude” e dos quais Sófocles dizia: “Há muitas maravilhas no mundo, mas nenhuma maior que o homem”. Arrastando consigo o trágico conhecimento que lhe revelara o Oráculo – isto é, de que mataria seu próprio pai e desposaria a mãe – e após assassinar um ancião num bate-boca de trânsito, Édipo depara-se em Tebas com a Esfinge, ser híbrido como as Sereias e que, como elas, provoca a morte dos que se deixam fascinar excessivamente pelo conhecimento. Aqui, o que provoca a morte não é mais o lançar-se cegamente ao objeto exterior do fascínio, mas o não ver que tal objeto está situado tão íntimo que se torna difícil de perceber: a Esfinge pergunta aos viajantes que animal anda sobre quatro pernas na manhã, duas pernas de tarde e três à noite; Édipo, ao contrário dos outros viajantes, procura e encontra a solução em si mesmo e responde que o animal é o homem, que na infância engatinha, depois caminha ereto e na velhice apoia-se num cajado. Tendo-lhe sido decifrado o enigma, a Esfinge se mata, salvando-se assim por Édipo a cidade de Tebas, que lhe oferece em gratidão o trono, que se tornara vago após o asssassinato do antigo rei, e o casamento com a rainha viúva. Somente mais tarde, ao investigar as causas de catástrofes que se vêm a abater sobre a cidade, Édipo descobre que o ancião que ele matara na estrada era o antigo rei, que este era seu pai e que, portanto, a rainha que desposara era sua própria mãe. O malfadado herói então vaza os olhos e toma o caminho do exílio. Ulisses conhecia o perigo de obedecer cegamente aos próprios impulsos, e usou o saber para contemplar impunemente algo do Abismo; Édipo apenas sabe de seu destino temporal individual inexorável, revelado pelo Oráculo, mas isso em nada lhe ajudará a fugir do inevitável: a verdade está o tempo todo sob seus olhos, mas jamais é vista como tal e qualquer tentativa de esclarecê-la apenas precipita o desenlace fatal, o esclarecimento surgindo apenas quando as consequências de

suas ações já se haviam posto a caminho e não mais podem ser detidas. Amarrado ao mastro do navio com ordens para que se obstruam os ouvidos dos companheiros, Ulisses evitou o naufrágio do navio e com isso salvou a todos; Édipo, por sua vez, salva a cidade ao exilar-se, ao livrá-la de sua pesença impura, mas por amarrar-se ao seu próprio destino naufraga seu eu miseravelmente. Ulisses deixou-se prender porque queria ser todo olhos e ouvidos para o Abismo que o fascinava; Édipo se deixará cegar porque o Abismo que ele gostaria de não ter que ver nunca esteve somente diante de seus olhos mas atrás deles e de tudo aquilo que ele poderia sentir, pensar e ser. Ao tornar-se cego e errante, Édipo apenas está retornando à condição em que estava diante da Esfinge. Esta lograra matar tantos homens porque lhes colocara um enigma transparente como a superfície de um espelho e opaco como o fundo deste. Mas a vitória edipiana sobre a Esfinge apenas interioriza o espelho ao deslocar a imagem do destino genérico do homem (que nasce, cresce, envelhece e morre) para a imagem do destino individual e não compartilhável. Foi fácil para ele desvendar o que é o homem em termos genéricos, mas agora está diante de uma singularidade tão intimamente inefável que o que dela se reflete como um “eu” ou “consciência” é meramente um minúsculo efeito visível do que o Desconhecido constrói e que em essência não remete a uma forma geral e ensinável de “autoconstrução”. Reencontramos aqui a mesma ambiguidade entre o inalcançável e o transcendente que vimos no artigo anterior, mas em Édipo as portas que a Esfinge escancara convidativamente abrem-se para dentro e tornam o herói cego (literalmente) para tudo o mais, para tudo o que poderia ser determinação formal, espacial ou mesmo temporal. A ele, como a Ulisses, pertence a escolha entre tomar a si próprio como substância moldada desde sempre pelos deuses ou como autoderminação a partir de um caos que está por toda parte, não lhe sendo possível conhecer verdadeiramente nenhuma das duas realidades ou mesmo simplesmente saber se alguma delas é falsa. Os gregos pressentiam a onipresença dessa ambiguidade, mas seus herdeiros (entre os quais nos incluímos) dedicaram-se intensamente a conjurá-la como uma ameaça, negando ou mesmo proibindo qualquer solução que não implique uma transcendência qualquer. Somente após a crítica de Nietzsche aos valores (sobretudo do valor da “verdade objetiva a todo custo”) retoma-se a possibilidade de pensarmos que nada se cria sem que o poder, a beleza e a intensidade do criador e do criado sejam extraídas desse Abismo no qual tudo se encontra mergulhado. Para além da pseudoprofundidade da chamada Teoria do Caos, as mais interessantes teorias científicas contemporâneas parecem dirigir-se finalmente à constatação de que é de um Indeterminado que é constituída a origem, fonte e sustento de todas as coisas, embora ainda insistam em chamar de “nada” esse Indeterminado de que aqui falaremos todo o tempo. Waldísio Araújo [email protected]

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