\"Atas das 2as Conferências do Museu de Lamego/CITCEM\"

October 4, 2017 | Autor: Museu de Lamego | Categoria: Patrimonio Cultural, Douro, Museus, Património Cultural Imaterial
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Descrição do Produto

Atas das 2as

CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM 2014 24 e 25 de outubro

QUINTAS DO DOURO História, Património e Desenvolvimento

Geraldo Coelho Dias

ATAS das 2as

CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2014 Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento Disponível online em www.museudelamego.pt

ABREVIATURAS AMVR – Arquivo Municipal de Vila Real ASCR – CQ - Amigos do Solar dos Condes de Resende – Confraria Queirosiana ASRAVD – Associação de Desenvolvimento da Rede de Aldeias Vinhateiras do Douro CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória CNRS – Centre National de la Recherche Sciéntifique, Lyon

DL – Diocese de Lamego DRCN – Direção Regional de Cultura do Norte FCSH – UNL – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto GHAP - Gabinete de História, Arqueologia e Património MD – Museu do Douro ML – Museu de Lamego

ORGANIZAÇÃO ML DRCN / CITCEM FLUP

CONCEPÇÃO E COMPOSIÇÃO GRÁFICA Pe. Hermínio Lopes (DL)

COMISSÃO ORGANIZADORA Alexandra Braga (ML DRCN) Gaspar Martins Pereira (FLUP CITCEM) Luís Sebastian (ML DRCN) Paula Montes Leal (FLUP CITCEM)

IMAGEM DE CAPA Pedro Martins. © Direção Regional de Cultura do Norte

COORDENAÇÃO EDITORIAL Alexandra Braga Luís Sebastian

EDIÇÃO © Museu de Lamego – Direção Regional de Cultura do Norte DATA DE EDIÇÃO Outubro de 2014

CONFERENCISTAS António Martinho (ADRAVD) Carlota Cabral (FCSH-UNL) Celeste Pereira (Greengrape) Gaspar Martins Pereira (CITCEM) Gonçalves Guimarães (GHAP – ASCR-CQ) Luís Ramos (UTAD) Manuel Carvalho (Jornal «Público») Natália Fauvrelle (MD/CITCEM) Nuno Magalhães (UTAD) Nuno Resende (CITCEM) Otília Lage (CITCEM) Paula Montes Leal (CITCEM) Paulo Amaral (DRCN) Pedro Peixoto (AMVR) Pedro Pereira (CITCEM/CNRS)

e-ISBN 978-989-98657-7-8

O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica são da responsabilidade dos autores.

DESIGN DE COMUNICAÇÃO Luís Sebastian COMUNICAÇÃO Patrícia Brás (ML - DRCN) SECRETARIADO Paula Duarte (ML DRCN) Patrícia Brás (ML DRCN) Teresa Sequeira (ML DRCN) LOGÍSTICA Paula Pinto (ML DRCN)

APOIOS: Liga dos Amigos do Museu de Lamego Município de Lamego Diocese de Lamego Hotel Lamego Solta Giga Casa de Santo António de Britiande ESTGL Lamego Escola de Hotelaria e Turismo do Douro – Lamego Quinta de Mosteirô

Índice Conferência de Abertura Gaspar Martins Pereira (FLUP/CITCEM) Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento ......................................................... 09

Mesa-redonda QUINTAS DO DOURO: MEMÓRIA E RECURSO António Martinho (Membro da Direção da Douro Generation – Associação de Desenvolvimento) A História e o património das quintas do Douro como valor de recurso para o Turismo ........................... 21 Celeste Pereira (Greengrape - consultoria) A importância do vinho do Porto na valorização do enoturismo e do território Douro ............................ 29

Painel 1 O PATRIMÓNIO DAS QUINTAS DO DOURO Natália Fauvrelle (Museu do Douro – Coordenadora dos Serviços de Museologia (em licença). Bolseira de doutoramento FCT/MD: Investigadora CITCEM) As quintas vinhateiras na construção do património paisagístico do Douro......................................... 35 Carlota Cabral (Mestre FCSH-UNL) Quinta do Paço de Monsul: um património singular ................................................................... 53 Nuno Resende (DCTP- FLUP) Santos da casa: capelas, devoção e poderes a sul do Douro no memorialismo paroquial .......................... 61 J,A, Gonçalves Guimarães (arqueólogo; coordenador do Gabinete de História, Arqueologia e Património – ASCR-CQ) Da intervenção arqueológica ao museu de sítio: a experiência da Quinta de Ervamoira........................... 81

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Painel 2 QUINTAS DO DOURO: PATRIMÓNIO VITIVINÍCOLA, ENOTURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL Nuno Magalhães (UTAD) O papel e importância das “quintas” na investigação e desenvolvimento da vitivinicultura duriense......... 105

Painel 3 QUINTAS DO DOURO: DOS ARQUIVOS À HISTÓRIA Paula Montes Leal (CITCEM) Arquivos de quintas do Douro: os casos de Santa Júlia e da Pacheca .............................................. 117 Pedro Peixoto (diretor do Arquivo Municipal de Vila Real) Os arquivos das quintas do Douro: que estratégias de salvaguarda?............................................... 125 Otília Lage (CITCEM) Dos arquivos patrticulares, património a preservar, à história da Quinta da Alegria de Cima (Carrazeda de Ansiães, 1890-2014) ....................................................................................................... 129

Painel 4 ARQUEOLOGIA DAS QUINTAS DO DOURO Pedro Pereira (CITCEM; UMR 5138 Archéométrie et Arqchéologie – ULLII/CNRS) A importância da Arqueologia para a história da vinha e do vinho na região do Douro .......................... 143

Conferência de abertura Gaspar Martins Pereira (FLUP/CITCEM)

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Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento texto: Gaspar Martins Pereira

Nota biográfica: Gaspar Martins Pereira  Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória». Tem desenvolvido investigação nas áreas de História Urbana, História Social, História Empresarial e História da Vinha e do Vinho. É autor de diversas obras, de que se destacam, entre as publicações mais recentes, Uma vida pela liberdade: Artur Santos Silva, 1910-2010 (Porto, 2010), Crise e Reconstrução. O Douro e o Vinho do Porto no século XIX (coord., Porto, 2010), Roriz. História de uma Quinta no Coração do Douro (Porto, 2011), Alves Redol e o Douro. Correspondência para Francisco Tavares Teles (org., Porto, 2013).

Resumo: As quintas do Douro assumem, desde há séculos, uma posição estratégica na sociedade, na economia e na cultura da região vinhateira. Partimos do reconhecimento da importância das quintas, enquanto unidades de povoamento, de exploração agrícola e de poder territorial e social na longa história da região do Douro, de que decorre, em grande parte, um riquíssimo e plural legado patrimonial, tanto material como imaterial, o que as torna, hoje, componentes centrais do território classificado como Património da Humanidade, quer como valor de memória colectiva quer como valor de recurso insubstituível para a definição, liderança e promoção do desenvolvimento regional. Nessa tripla perspectiva, pretende-se suscitar o debate em torno da história e do património das quintas, enquanto vectores de desenvolvimento da região do Douro.

Abstract: For centuries the Douro ‘quintas’ have played a strategic part in the society, economy and culture of the wine-making region. Recognizing the value of these ‘quintas’ as settlement units, places of farming, territorial and social power in the long history of the Douro region is paramount. The rich and plural patrimonial legacy of these structures, both material and immaterial, makes them, today, a central component of the territory classified as World Heritage. The place they hold on the collective memory but also as an irreplaceable resource for the definition, leadership and promotion of regional development is undeniable. From this triple perspective, we intend to raise the debate on the history and heritage of these ‘quintas’, while vectors of development of the Douro region.

Palavras-chave: Douro, Quintas, História, Património, Desenvolvimento.

Keywords: Douro, Quintas, History, Cultural Heritage, Development

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INTRODUÇÃO

C

abe-me a responsabilidade de apresentar o tema geral deste Encontro, «Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento». Antes disso, creio que vale a pena evocar o espírito destas Conferências, que se iniciaram em 2013 e que resultam de uma parceria entre o Museu de Lamego e o CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Pretende-se, essencialmente, atingir três objectivos: i) constituir um espaço de encontro e de debate científico, com periodicidade anual, reunindo investigadores das áreas de História e Património, com trabalhos realizados ou em curso sobre a Região do Douro; ii) estimular o diálogo interdisciplinar com outras áreas do saber; iii) abrir o debate à comunidade regional, assumindo não só a missão de partilhar o conhecimento que se vem produzindo na Universidade mas também de o discutir com todos os interessados na valorização do património histórico-cultural na região duriense. Ou seja, na sociedade do conhecimento em que vivemos, o saber académico não pode isolar-se no círculo estreito das universidades e centros de investigação. Sem ceder um milímetro ao utilitarismo esterilizador destes tempos neo-liberais e sem perda da liberdade de pensamento, base essencial do espírito de criação e de crítica, o conhecimento académico, na área das Humanidades, e em particular na História e no Património, pode e deve apostar na eficácia social da cultura, no seu auto-questionamento e na partilha e troca solidárias de saberes, como contributos para o desenvolvimento. Isso mesmo quisemos reflectir na primeira edição destas Conferências, subordinadas ao tema «História e Património no/do Douro: Investigação e Desenvolvimento». Na tripla perspectiva que referimos, a escolha do tema geral desta segunda edição das Conferências também não foi casual. Partimos do reconhecimento da importância das quintas, enquanto unidades de povoamento, de exploração agrícola e de poder territorial e social na longa história da região do Douro, de que decorre, em grande parte, um riquíssimo legado patrimonial, tanto material como imaterial, e que as torna, hoje, componentes centrais do território classificado como Património da Humanidade, quer como

valor de memória colectiva quer como valor de recurso insubstituível para a promoção do desenvolvimento regional. Unidades vinhateiras típicas do Alto Douro, as quintas correspondem, no entanto, a uma realidade territorial relativamente excepcional. De facto, entre as cerca de quarenta mil explorações vitícolas do Douro, as quintas representam apenas uma pequeníssima parte, da ordem das centenas. Mas a sua estrutura, como unidades de exploração vitícola integrada (reunindo vinhas, centros de vinificação e armazenagem de vinhos, casa de proprietário e/ou caseiro e trabalhadores; por vezes, também, azenha de azeite, capela, etc.), a dimensão frequentemente média ou grande (em alguns casos, centenas de hectares, como nas quintas dos Frades, Carvalhas, Ventozelo, Vesúvio, Vale Meão, etc.) e a vocação de comercialização dos respectivos vinhos conferem às quintas um lugar socioeconómico estratégico na viticultura duriense. Além disso, muitas quintas do Douro aliam a produção vitivinícola a iniciativas de enoturismo de excelência, revelando uma notável capacidade para conjugar tradição e modernidade. Independentemente dessa aposta económica, as quintas desempenham a dupla missão de guardiãs do património cultural e ambiental do Douro e de centros de irradiação eficaz quer desses valores de memória e identidade quer de dinamismo e de aperfeiçoamento tecnológico, ou seja, de conhecimento, no sentido mais abrangente e plural da palavra. Relativamente à cultura da vinha e do vinho, essa missão foi particularmente bem-sucedida ao longo da história e continua a sê-lo na actualidade. Porém, no plano do desenvolvimento regional, estamos longe de poder falar de sucesso. Por muitas razões, que vão desde a forma como se exerceu a intervenção do Estado na regulação da região demarcada até à estruturação da sociedade e dos poderes regionais, passando pelas relações que as grandes quintas mantiveram com a sociedade envolvente. Nesta perspectiva, o desafio de transformar uma região pobre e deprimida num espaço de desenvolvimento socialmente inclusivo implica que as quintas do Douro assumam uma maior integração regional, com capacidade para contagiar as comunidades vizinhas e para gerar novos dinamismos económicos, sociais e culturais.

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2. ORIGENS E EVOLUÇÃO DAS QUINTAS DO DOURO: UMA LONGA HISTÓRIA

T

alvez valha a pena começar pelas origens. Como nasceram as quintas do Douro e como evoluíram, de modo a tornarem-se unidades estratégicas de povoamento, exploração e organização do território nesta região? Estas questões remetem-nos para o período longínquo que vai do fim do Império Romano ao final da Idade Média, primeiro, de desorganização e, depois, de «reorganização social do espaço». Há muito que estas questões vêm merecendo a atenção de historiadores, filólogos, arqueólogos e etnógrafos, mas, no caso do Douro, estamos ainda longe de dispor de estudos históricos aprofundados sobre a «organização social do espaço», ao nível dos que têm sido realizados para o lado espanhol1 e mesmo para outras zonas do território português2. A perda irreparável da maior parte dos cartórios dos mosteiros de Salzedas, Tarouca e S. Pedro das Águias no incêndio que deflagrou, em 1841, no Seminário de Viseu, para onde tinham sido levados, privou os medievalistas de fontes valiosas, mas, como provam os estudos de Almeida Fernandes3 e de outros autores4, subsiste ainda muita documentação medieval que poderá trazer informações importantes para o conhecimento da história do Douro neste período. Na Alta Idade Média, a quintana (que evoluiu, foneticamente, para quintã e, a partir do século XV, para quinta) teria resultado da desagregação da villa, unidade de domínio e exploração agrária da época romana e visigótica, que se manteve, com esse significado, a par de outros (aldeia e vila), até bem tarde5. Nesses tempos conturbados que antecederam e enquadraram a formação da nacionalidade portuguesa e sobretudo a partir da implantação da ordem feudal, a quinta teria 1 

Entre muitos outros, destaquem-se os de GARCÍA DE CORTÁZAR, 1996 e 1999.

2 

Entre outros: SAMPAIO, 1923; DURAND, 1982; COELHO, 1983; AMARAL, 2007; MARQUES, 2006 e 2012.

3 

Da vasta produção do autor, destaquem-se, por exemplo, FERNANDES, 1973-1976 e 1984-1985.

4 

5 

Veja-se, por exemplo, sobre o papel dos cistercienses no Douro, DIAS; DUARTE (coord.), 1999; para as propriedades de Salzedas, MARREIROS, 1997 e ALBUQUERQUE, 2012; para Santa Maria de Aguiar, VICENTE, 1996 e RODRIGUES, 2004. Sobre a villa romana como «antepassada das quintas do Douro», veja-se ALMEIDA, 2006; PEREIRA, 2008 e 2014.

assumido um crescente estatuto de domínio senhorial, integrando a residência ou paço (a pars urbana da villa romana), por vezes com carácter defensivo e de protecção das populações vizinhas6, a par de outras instalações de apoio à exploração agrária (a pars rustica e a pars fructuaria romanas) e das terras de cultivo circundantes. Mas a evolução, tal como aconteceu com outras sub-unidades das villae, em especial os casales, esteve longe de ser linear, como têm destacado diversos estudos7. Esse carácter senhorial das quintas terá sido o principal factor de distinção relativamente a outras formas de propriedade rural, como o casal, associado a estratos sociais mais baixos8. Algumas quintas derivaram de «granjas» estabelecidas por mosteiros cistercienses, que, a partir de meados do século XII, vieram imprimir um forte dinamismo nas zonas rurais em que se implantaram. Por essa altura, segundo nos ensina Almeida Fernandes, essas granjas assemelhavam-se às «quintãs» dos ricos-homens ou cavaleiros, como domínios senhoriais9. Tal sinonímia evidencia-se, entre outros casos, para Mosteirô e Paço de Monsul, importantes «granjas» dos mosteiros de S. João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, desde a segunda metade do século XII10 e, provavelmente, até ao século XIV. No início do século XVI, na célebre descrição de Lamego, de Rui Fernandes, de 1531-1532, já aparecem designadas por quintas ou quintãs (e a designação deverá ser bastante anterior) e como grandes explorações vitícolas11. Em finais da Idade Média e no início da Época Moderna, as quintas do Douro parecem ter reforçado o seu papel de centros de exploração agrária de matriz senhorial, combinando-se com o dinamismo dos casais e com formas de domínio indirecto da terra, através da enfiteuse. Desde finais do século XVII, com a rápida expansão da viticultura duriense, estimulada pelo crescimento das exportações dos vinhos da região, as quintas já existentes, pelas suas características e dimensão, assumiram um papel liderante da resposta à procura externa, num duplo sentido. Por um lado, como unidades 6 

BARROCA, 1989: 29.

7 

SAMPAIO, 1923: 72-73; MARQUES, 2012: 439-442.

8 

GONÇALVES, 1981: 60‑72.

9 

FERNANDES, 1973: 27.

10 

FERNANDES, 1975: 22-31.

11 

FERNANDES, 2012: 79-80.

12

produtivas maiores e com capacidade de concentração das produções locais e, por outro, como principais representantes dos interesses locais face aos negociantes A par do reforço da vocação vinhateira das quintas e da expressão mercantil e exportadora dos vinhos do Douro, verificou-se um crescente investimento na criação de novas quintas e, sempre que possível, na respectiva nobilitação, através da instituição de vínculos e capelas. Em meados do século XVIII, por altura da instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, uma representação enviada ao rei pelo cônsul inglês no Porto, Robert Jackson, referia a formação recente da maior parte das quintas do Douro, resultantes da apropriação de terras dos camponeses pobres e dos baldios por parte da fidalguia rural: Se para a Feitoria houvessem de servir vinhos tão-somente de quintas grandes, incluídas em um território demarcado, nenhuma dificuldade haveria em que os seus possuidores poderosos, e abonados se unissem em um preço exorbitante, e os pobres lavradores seriam obrigados a lhes entregar os seus frutos por aquilo que os ricos quisessem, que depois de recolhidos nas suas adegas venderiam aos ingleses com a mesma exorbitância; vindo a ser por esses caminhos árbitros absolutos do negócio, e dominantes sobre o miserável povo das suas vizinhanças; que é ideia em que trabalham, dourada de aparentes conveniências, e firmada de argumentos enganosos. / A maior parte das quintas do Douro são de poucos anos, compostas de pedaços de terra que possuíam outros tais lavradores, como estes a quem os supraditos com inumanidade pretendem excluir; são algumas fabricadas em maninhos que de novo se romperam, estendidas por ribeiras de pão que se trocaram em bacelos, e quase todas espalhadas: e se o vinho dessas quintas serve para negócio, por que não servirá o mais que se cria junto delas, que os poderosos querem condenar sem mais culpa que ser vinho de gente pobre, / O vinho mais fino da Feitoria é o desses lavradores que como faltos de cabedal para comprar outros, e para materiais, e confeições, são obrigados a fazê-lo puro, e a vendê-lo sem mistura; e sendo por esse respeito o mais procurado, e de melhor aceitação, por isso é que os ricos industriosamente o condenam para depois o haverem a si, e com ele acreditarem as suas adegas, e cobrirem os vinhos baixos que nas mesmas introduzem [...]12. Poderá argumentar-se que a opinião do cônsul 12 

Cit. em FONSECA, 1949: 35-36.

inglês era suspeita, por representar os interesses dos negociantes. Mas, para o que nos interessa, evidencia três aspectos importantes, facilmente detectáveis em outros documentos da época: i) a expansão da viticultura, com a plantação de novas vinhas, inclusive em zonas baixas e em terras «de pão«; ii) a multiplicação de novas quintas, muitas delas resultantes de emparcelamentos ou de ocupação de terras maninhas ou incultas; iii) o papel das grandes quintas na concentração de produções locais de pequenos produtores. Não é difícil perceber na documentação da segunda metade do século XVIII, desde a demarcação pombalina da região do Douro, o papel estratégico desempenhado pelas quintas, como principais centros de exploração vitícola. Esse papel liderante não deixará de se manifestar em outros momentos cruciais da história da região, sob múltiplos aspectos, desde a introdução de novidades técnicas e sua difusão (como nas crises do oídio e da filoxera ou, mais recentemente, na reconversão vitícola das últimas três décadas) à defesa do produto regional e dos mecanismos reguladores da denominação de origem. A importância das quintas na história longa do Douro justificaria um maior investimento da historiografia em investigações monográficas Porém, neste ponto, apesar de alguns trabalhos realizados13, estamos quase a zero. Os trabalhos pioneiros do Visconde de Vila Maior14 e de Manuel Monteiro15, bem como o mais recente de Alex Liddell e Janet Price16, baseados sobretudo em informações locais e sem o recurso a documentação histórica substancial, continuam a ser utilíssimos para alguns casos, mas contêm bastantes imprecisões e não permitem, geralmente, uma leitura de longa duração. Embora mais rigoroso e com maior suporte documental, o trabalho coordenado por Eduardo Gonçalves e Aurélio de Oliveira17 fica-se também, na sua maior parte, por generalidades, pouco esclarecendo sobre a história das quintas do Douro, na perspectiva de longa duração. São igualmente escassos os estudos sobre quintas do Douro na perspectiva dos investimentos vinhatei13 

Veja-se FAUVRELLE, 2001; AMARAL, 2011; CABRAL, 2011; PEREIRA, 2011.

14 

VILA MAIOR, 1876.

15 

MONTEIRO, 1911.

16 

LIDDELL; PRICE, 1995.

17 

GONÇALVES; OLIVEIRA, 2012.

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ros e das práticas vitivinícolas, que seriam utilíssimos para compreendermos períodos de maior transformação, como o que rodeou a formação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro18 ou o da devastação filoxérica e da reconstrução posterior19. Uma análise histórica mais aprofundada das quintas do Douro permitiria perceber melhor as relações sociais na região (entre proprietários, frequentemente absentistas, administradores, caseiros e jornaleiros), bem como as relações entre as quintas e os casais e as aldeias vizinhas, as estratégias de investimento e as práticas vitivinícolas, etc.. Ao longo da história, tal como ainda hoje, a centralidade que as quintas ocupam no sistema vitícola do Douro, quer como espaços de poder social e económico quer como espaços de inovação técnica, contrasta com a sua relativa marginalidade na sociedade duriense. Em muitos casos, as quintas aparecem como realidades destacadas e autónomas do tecido social e económico envolvente, com o qual têm relações mais frágeis do que com a economia-mundo, a que se ligaram desde muito cedo, adoptando um elevado grau de especialização e destinando a sua produção quase totalmente ao mercado. Ao contrário dos pequenos e médios casais, em que o proprietário e os membros da família assumem directamente a gestão e a realização de grande parte dos trabalhos vitícolas, a quinta recorre com maior frequência ao trabalho assalariado. A par de algum pessoal permanente, utiliza um grande número de trabalhadores à jorna ou em regime de empreitada nos grandes trabalhos agrícolas das surribas, das plantações, das podas, das cavas e das vindimas, ou na construção e reparação de paredes dos socalcos. No passado, algumas grandes quintas chegavam a contar com centenas de trabalhadores diários. Porém, o mais vulgar era — e continua a ser, em alguns casos — o recurso a trabalhadores à jorna das aldeias vizinhas, o que constituía uma oportunidade de rendimentos ocasionais para alguns membros das famílias de pequenos lavradores. A par da oferta de trabalho, na viticultura tradicional duriense, as quintas absorviam também parte da produção dos pequenos e médios lavradores vizinhos, introduziam e difundiam as novidades

técnicas na cultura da vinha e na vinificação, fixavam preços e salários, definiam práticas e calendários que acabavam por ser seguidos pelos pequenos e médios viticultores das redondezas. A data da vindima, por exemplo, era marcada tradicionalmente pelas grandes quintas. Pode dizer-se que, no sistema do vinho do Porto, a grande quinta constituiu sempre um lugar de confluência de poderes, reais e simbólicos, da elite vinhateira regional. 3. UM PATRIMÓNIO PLURAL

P

18 

Veja-se PEREIRA, 1984 e 1998. Para períodos anteriores, o vazio historiográfico é ainda maior; havendo apenas um ou outro apontamento, como o que foi publicado sobre a Quinta da Vacaria por MARTINS, 1997.

ela sua história e pelas suas características, as quintas do Douro concentram, no seu conjunto, um vasto património material e imaterial, que importa inventariar, estudar e divulgar, quer como valor de memória e de identidade quer como valor de recurso, essencial para o desenvolvimento das actividades económicas, a começar pela viticultura e pelo enoturismo. O mais evidente património das quintas reside nas arquitecturas, eruditas ou vernaculares, das casas, capelas, centros de vinificação, mas também das arquitecturas da paisagem, socalcos, caminhos, cais, muros apiários, fornos, laranjais e outras estruturas construídas, por vezes seculares. Será sobre esse património que incidirá a comunicação da Dr.ª Natália Fauvrelle, autora de importantes estudos neste domínio20. É conhecida a espessura histórica de diversas quintas, remontando as suas origens a finais do período medieval, como acontece com as dos Frades, Mosteirô, Tourais, Pacheca, Ventozelo, Paço de Monsul (de que nos falará a Dr.ª Carlota Cabral) e outras, pertencentes aos mosteiros cistercienses de Santa Maria de Salzedas, S. João de Tarouca e S. Pedro das Águias. Em algumas quintas subsistem ainda vestígios de ocupação mais antiga, nomeadamente da época romana. É verdade que a intensidade da exploração vitícola e sucessivas remodelações apagaram muitos vestígios, mas creio que a arqueologia pode desvendar, em certos casos, alguns traços das ocupações mais antigas, como, certamente, evocarão aqui os arqueólogos Dr. Gonçalves Guimarães, Dr. Paulo Amaral e Doutor Pedro Pereira. Porém, como tive oportunidade de referir, a maior parte das quintas data da época áurea de expansão vitícola no século XVIII. No Douro Superior, a cronologia é diferente. As quintas mais célebres, como as do Silho,

19 

Para as quintas de D. Antónia Adelaide Ferreira, veja-se PEREIRA; OLAZÁBAL, 1996.

20 

Em especial, FAUVRELLE, 2001.

14

do Vesúvio, de Vale Meão, de Santiago, da Terrincha, etc., são todas do século XIX. Por outro lado, não devem desprezar-se os elementos do património natural, desde as espécies vitícolas ao conjunto da flora autóctone, com algumas espécies raras, por vezes concentradas em bosquetes e matas de vegetação primitiva, a que se associam diversas espécies da fauna local, algumas com valor cinegético. Na perspectiva que aqui nos reúne, importa talvez realçar outros tipos de patrimónios associados a muitas das mais antigas quintas do Douro. Em certos casos, a condição de propriedades vinculadas, ligadas a famílias fidalgas, bem como a instituição de capelas, fez com que se transmitissem de geração em geração, pelo menos até à abolição dos vínculos, em 1863, reunindo, por vezes, importantes acervos documentais. Mesmo com posteriores transferências da propriedade, algumas quintas conservam antigos arquivos familiares, com cronologias que chegam a remontar à Idade Média (como acontece com as quintas de Paço de Monsul21 e da Pacheca22). Além destes exemplos, poder-se-iam referir muitas outras quintas que conservam um maior ou menor acervo de documentação antiga, embora só excepcionalmente tenha sido objecto de inventariação, mesmo que sumária, como aconteceu com o Arquivo da Quinta de Santa Júlia de Loureiro23. Em diversos casos, os processos de herança ou de transferência de propriedade fizeram dispersar esses fundos documentais, o que não quer dizer que se tenham perdido. Por exemplo, importante documentação relacionada com a Quinta de Ventozelo, no concelho de S. João da Pesqueira, que esteve aforada desde o século XVI pela Casa do Poço de Lamego ao Mosteiro de S. Pedro das Águias, encontra-se no Paço de Gominhães, em Caldas de Vizela24. Muitos documentos da Quinta do Vesúvio foram integrados no Arquivo do Grupo Symington, que comprou essa quinta à família Ferreira em 1987. E o mesmo aconteceu, mais recentemente, com documentação da Quinta de Roriz, adquirida em 2009, embora parte da documentação familiar tenha continuado nas mãos da família van Zeller. Tratando-se de uma das mais importantes regiões vitícolas do mundo, quer pela antiguidade do investimento vinhateiro quer pelas características que sin21 

CABRAL, 2011: 30-31.

22  BARROS; LEAL, 2001.

gularizam a sua produção, a Região Demarcada do Douro, reconhecida pela UNESCO como Património Mundial, desde 2001, merece a atenção dos organismos responsáveis relativamente ao seu património documental, em particular o que se relaciona mais directamente com a produção vitivinícola. Disperso, desorganizado, na sua maior parte vedado aos investigadores e, em certos casos, em risco, a importância desse património justifica medidas urgentes de preservação e valorização, quer através do seu tratamento especializado quer através do seu estudo. A meu ver, deve, no entanto, promover-se, sempre que possível, a sua conservação nas casas ou quintas que os produziram, já que a sua descontextualização pode representar perdas de significado e de função. Em relação a estas colecções privadas, sejam familiares ou de empresas, penso que seria de todo o interesse promover acções de cooperação entre os respectivos proprietários, os organismos responsáveis pelo património arquivístico, centros de investigação e universidades, com vista a mobilizar recursos técnicos e humanos qualificados para a preservação, estudo e divulgação desses acervos. Foi isso que defendi, há uma boa dúzia de anos, no Museu do Douro, enfrentando a incompreensão de alguns museólogos. A meu ver, era (e é) evidente que o Museu do Douro, no âmbito das suas competências e de acordo com a Lei da sua criação, deveria tornar-se um parceiro activo nesse trabalho de preservação e valorização do património arquivístico da região, através do respectivo núcleo de Arquivo Histórico25. Mas sobre os arquivos das quintas do Douro teremos oportunidade de ouvir aqui alguns conferencistas, nomeadamente a Dr.ª Paula Montes Leal, o Dr. Pedro Peixoto e a Doutora Otília Lage. Outros importantes patrimónios das quintas do Douro merecem a atenção especializada dos investigadores: por exemplo, a arte sacra, que será abordada pelo Doutor Nuno Resende. Poderia referir ainda as riquíssimas colecções de baixela e outros objectos de prata, algumas delas hoje dispersas pelo país, como nos revela o notável trabalho que o Doutor Gonçalo Vasconcelos e Sousa realizou, em colaboração com a Dr.ª Alexandra Braga, para a Bienal da Prata26. Seria impossível abordar, no tempo limitado desta edição das Conferências, todos os aspectos do património das quintas do Douro. Além dos diversos

23  FAUVRELLE; LEAL, 1997: 377-385.

25 

PEREIRA, 2003: 139-143.

24  PEREIRA, 2002.

26 

SOUSA, 2001.

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tipos de património material, não podemos desprezar a importância do património imaterial, tradições, crenças e memórias específicas, que necessitam do mesmo trabalho de inventariação, estudo e divulgação, para não se perderem, dado que, na maior parte dos casos, se conservam apenas na memória dos mais velhos. Acrescentaria as representações literárias, algumas bem conhecidas, como a da Quinta da Cavadinha, celebrizada no romance de Miguel Torga, Vindima, publicado em 1945, ou o mais recente Vale Abraão (1991), de Agustina Bessa-Luís, que Manoel de Oliveira estendeu ao registo cinematográfico. Muitas outras obras da literatura duriense oferecem representações mais ou menos pormenorizadas da vida das quintas em diversas épocas. Vejam-se, por exemplo, os romances de Sousa Costa, Ressurreição dos mortos (cenas da vida do Douro) e As filhas do pecado. Na Terra do Vinho, publicados, respectivamente, em 1917 e 1946. Ou Ervamoïra, de Suzanne Chantal, publicado em Paris em 1982, só recentemente traduzido para português (Civilização, 2011). E muitos mais. Ainda em Janeiro deste ano, Artur Vaz publicou o seu livro Vintage para uma Vida, que cruza a história de uma quinta de Santa Marta de Penaguião com os percursos de vida dos seus proprietários, desde a época da filoxera até à crise actual. 4. AS QUINTAS DO DOURO COMO VECTORES DE DESENVOLVIMENTO

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m grande parte dos casos, pela sua posição estratégica, a sua dimensão espacial e económica, a sua estrutura integrada, por vezes com importantes núcleos arquitectónicos, as quintas aparecem, hoje, dotadas quer de maiores condições de sustentabilidade económica, quer de maior relevo do ponto de vista do património histórico-cultural. Mais ainda quando, na lógica do desenvolvimento regional, se afirma a tendência crescente de articulação entre a vitivinicultura e o enoturismo e o turismo cultural. Nesse sentido, o sucesso de algumas experiências de turismo de habitação e de turismo em espaço rural, a par de um ou outro exemplo de musealização, reforça o papel central das quintas, como agentes de desenvolvimento regional. É certo que, apesar dos investimentos realizados, há ainda muito a fazer, sobretudo numa melhor articulação e funcionamento das rotas turísticas temáticas (Rota do Vinho do Porto, Rota das Vinhas de Cister), bem

como de programação atraente e de qualidade, apoiada em bons instrumentos de divulgação. A meu ver, podemos aprender com experiências de sucesso de outras regiões vitícolas históricas, mas devemos fugir de modelos estereotipados e sofisticados, apostando na simplicidade, identidade e autenticidade, sem deixar de visar a excelência. Neste domínio, as experiências do Dr. António Martinho e da Dr.ª Celeste Pereira poderão ser extremamente úteis para uma reflexão mais fundamentada. O desenvolvimento do enoturismo não pode deixar de se fazer em estreita articulação com o sistema socioeconómico dos vinhos do Porto e Douro e com a sociedade duriense em geral. A região possui bastantes e bons exemplos de iniciativas empresariais privadas, quer de empresas exportadoras quer de produtores-engarrafadores. Diversas empresas exportadoras têm revelado um crescente interesse na manutenção e valorização (e mesmo fundação) de quintas no Douro. Em certos casos, têm realizado investimentos importantes não só no domínio das estruturas de vinificação, mas também de acolhimento turístico. Tais investimentos decorrem do interesse em qualificar as massas vínicas de origem, em aumentar a competitividade através do controlo de espaços produtivos estratégicos e suas relações com pequenos e médios produtores, em garantir o prestígio para vinhos topo de gama (Vintage, Vinhos de Quinta, etc.) e, em complementaridade, em associar a tradição histórica e cultural de casas de quinta ao acolhimento de clientes importantes. Actualmente, as empresas exportadoras possuem perto de uma centena de quintas, localizando-se as mais importantes do ponto de vista histórico no Cima Corgo, embora se tenha verificado um grande investimento na formação de quintas novas, algumas de grande beleza paisagística, como a Quinta da Ervamoira ou a Quinta da Leda, no Douro Superior. Não menos importantes e com maior abertura quer ao turismo quer à sociedade envolvente têm sido as experiências de valorização de quintas históricas por parte de diversos produtores-engarrafadores. Em vários casos, algumas delas articularam projectos de turismo de habitação e actividades de enoturismo com projectos de desenvolvimento vitivinícola, que passaram pela reconversão das vinhas, pelo reapetrechamento tecnológico e pela inserção no circuito de comercialização de vinhos de qualidade. O número e a diversidade de experiências de sucesso, tanto no sector vitivinícola como no do enotu-

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rismo, permitem afirmar que não há caminhos únicos. Mas creio que, nestes como em outros sectores necessários ao desenvolvimento regional (turismo fluvial, agroindústria, gastronomia e hotelaria, actividades de mediação e dinamização cultural, etc.), há ainda muito trabalho a fazer na perspectiva de uma maior articulação e integração. Para nos falarem sobre o papel das quintas do Douro no desenvolvimento regional, segundo diferentes perspectivas, convidámos o Dr. Manuel Carvalho, o Professor Luís Ramos e o Professor Nuno Magalhães. NOTAS FINAIS

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o longo destes dois dias em que decorrerão estas Conferências, teremos oportunidade de ouvir especialistas das diversas áreas que nos irão apresentar resultados dos seus estudos e reflexões sobre aspectos específicos da história, dos patrimónios e de questões relacionadas com o desenvolvimento do Douro, centrando-se nas quintas. Neste sentido, afirmar a centralidade das quintas do Douro não deve entender-se como figura de retórica. Ressalta da convicção de que o reforço dessa centralidade no tecido socioeconómico regional é indispensável a qualquer estratégia eficaz de desenvolvimento. Também por isso quisemos ter entre nós diversos responsáveis de quintas, não apenas com a função de dirigirem as várias sessões destas Conferências mas também para contribuírem com a sua experiência e as suas ideias nos debates — a Dr.ª Laura Regueiro, da Quinta da Casa Amarela, o Eng. António Carlos Sobral Pinto Ribeiro, da Casa de Santo António de Britiande, o Professor Eduardo Coutinho, da Quinta de Mosteirô, e o Dr. Luís de Barros, da Quinta da Avessada. Resta-me, na qualidade de co-organizador destas Conferências, agradecer a Vossa presença e participação e desejar que as intervenções provoquem uma frutuosa troca de ideias, debates animados, que tragam novas pistas e questões de pesquisas. E que, em contrapartida, os resultados de investigações aqui apresentados possam contribuir para estratégias locais e regionais de valorização da memória e da sua operacionalização como recurso de desenvolvimento.

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Mesa Redonda

Quintas do Douro: Memória e Recurso António Martinho

Celeste Pereira

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Quintas do Douro: A história e o património das quintas do Douro como valor de recurso para o Turismo texto: António Martinho

Nota biográfica: António Martinho  Nasceu em Santa Eugénia, Alijó, reside em Vila Real, tendo integrado como professor o Quadro da Escola Monsenhor Jerónimo do Amaral. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, fez uma Pós-graduação em Estudos Europeus no Instituto Superior de Economia e Gestão e frequentou com aproveitamento a componente curricular do Mestrado em Gestão Pública e Autárquica, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Foi membro do Conselho Geral da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, de Dezembro de 2009 a Outubro de 2012. De 27 de Janeiro de 2009 a 30 de Agosto de 2013 presidiu à Direção da Entidade Regional Turismo do Douro. Foi Vice-Presidente da Associação de Turismo do Porto/Agência Regional, de Outubro de 2011 a Agosto de 2013. Antes, havia sido Vogal da Direção da mesma associação – Março de 2010 a Junho de 2011. Desempenhou as funções de Governador Civil do Distrito de Vila Real, de Abril de 2005 a Janeiro de 2009. Enquanto tal, colaborou na preparação de iniciativas legislativas relativas à região; colaborou e chamou à colaboração os Governadores Civis de Bragança, Guarda e Viseu, nas Comemorações dos 250 Anos da Região Demarcada do Douro; colaborou, desde início, com a AETUR, entidade que candidatou o Douro a Maravilha da Natureza, dando o apoio institucional, imprescindível para a sua oficialização. Disponibilizou apoio institucional na organização do Centenário do Nascimento de Miguel Torga. Organizou conferências sobre Desenvolvimento Regional, sobre Proteção Civil, em colaboração com a UTAD, onde se destaca o seminário «INCÊNDIOS FLORESTAIS: (re)Pensar a Especificidade Portuguesa» e, com o Regimento de Infantaria nº 19 (Chaves), lançou as comemorações do Bicentenário das Invasões Francesas, tendo, nesse contexto, publicado uma biografia do General Silveira – “Uma Espada de Brilhantes para o General Silveira”, da autoria de Maria do Carmo Serén. Foi Deputado à Assembleia da República de 1991 a 2002, tendo integrado a Comissão de Educação, Ciência e Cultura, no âmbito da qual coordenou a

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Subcomissão do Ensino Secundário e integrado a Subcomissão de Cultura. Integrou também a Comissão de Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, à qual presidiu de 1999 a 2002. Participou em fóruns internacionais, nomeadamente, em Conferências da União Interparlamentar, onde apresentou várias comunicações. Foi Presidente da Assembleia Municipal de Alijó, 1993 - 97. Colaborou com a Estrutura do Projeto do Museu do Douro, tendo trabalhado na criação do Serviço Educativo para a exposição “Jardins Suspensos”. Ajudou a criar a Associação dos Amigos do Museu do Douro, de que foi Presidente. É membro fundador da “Douro Generation – Associação de Desenvolvimento” Tem artigos publicados em diversos jornais nacionais e regionais. Colaborou com a revista “I Like This” com artigos subordinados à temática da valorização do território. Publicou o livro “Do Parlamento – O Meu Testemunho”, nas Edições Tribuna. Coordenou e prefaciou o livro ”Comemorações Oficiais dos 250 Anos da Região Demarcada do Douro”, em edição dos GC de Bragança, Guarda, Vila Real e Viseu. Redigiu a Apresentação da Biografia do General Francisco da Silveira, assim como prefaciou o Guia Turístico da Natureza do Douro, o Guia Das Aldeias Vinhateiras e o Catálogo Prestige A Região Vinhateira do Douro, de Gaspar Martins Pereira.

Resumo As quintas, como unidades territoriais e estruturantes do Douro, têm uma história própria, encerram expressões de património material e imaterial que ajudam a compreender melhor o Douro, enquanto região vinhateira, assim como a comunidade que a edificou através dos tempos, nomeadamente, no decorrer do último milénio. Elas são já recursos turísticos. Mas, com tão elevado património e com uma história que, de algum modo, sintetiza a história do Douro, elas podem ser aproveitadas de um modo ainda mais vantajoso para a região, integrando-as com oportunidade no cluster do enoturismo. Saibam os responsáveis locais, regionais e nacionais do Turismo reconhecer as suas potencialidades e as da região que, de certo modo sintetizam. Saibamos todos preservar, valorizar e promover as marcas distintivas da identidade duriense.

Abstract: Being territorial and structural units of the Douro, the “quintas” have their unique history containing expressions of material and immaterial heritage that help to better understand the Douro as a wine region as well as the community that built it through the ages, particularly during the last millennium. They are already considered to be a touristic resource. However, because they have such a rich patrimony and a story that somehow summarizes the history of the Douro, the “quintas” can be exploited in a more advantageous way for the region if they are appropriately integrated in the wine tourism cluster. May the local, regional and national authorities for the Tourism recognize the potential of the “quintas” and that of the region that somehow they synthesize. Let us all preserve, value and promote the distinctive marks of the Douro identity.

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“quinta” é «uma unidade territorial, composta por terras cultivadas maioritariamente por vinha, com casa de habitação e construções anexas indispensáveis às tarefas agrícolas nela desenvolvidas.» É, assim, «entendida como um fenómeno territorial, histórico, social e patrimonial». 27 A definição de turismo, do “lado da procura” «encerra, (…) o estudo do movimento de pessoas para fora das suas áreas habituais de residência e por períodos superiores a vinte e quatro horas, (…) tendo por base um conjunto de motivações (…) que dizem respeito a factores sociais, culturais, patrimoniais, ambientais e económicos.»28 Por sua vez, entendido do “lado da oferta” «este deve ser perspectivado como um agregado de actividades de negócios que directa ou indirectamente fornecem bens ou serviços que suportam as actividades de lazer e recreio realizadas pelas pessoas fora dos seus locais de residência habitual», agrupando «um conjunto de actividades que se estruturam em sete eixos principais de oferta: (i) alojamento; (ii) restauração; (iii) transportes; (iv) serviços de agências de viagens e operadores turísticos; (v) rent-a-car; (vi) serviços culturais; (vii) serviços recreativos e de lazer.» 29 Os conceitos que aqui trazemos introduzem bem o tema que nos propomos abordar num contributo para as II CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO/ CITCEM. E não estivéssemos nós em Lamego, por onde passou Rui Fernandes na 1ª metade do século XVI, tendo deixado nota dos «306.700 almudes» que se produziam nestas terras, sendo «os mais excelentes vinhos e de mais dura que no Reino se podem achar e mais cheirantes». Estamos, aliás, perante um enoturista, verdadeiramente interessado pelas coisas do vinho. Registe-se que o seu interesse, para além dos almudes que refere e da qualificação dos vinhos, vai ao ponto de justificar as suas palavras especificando, «porque há vinhos de 4, 5 e 6 anos e de quantos mais anos é tanto mais excelente e mais cheiroso», referindo, ainda, as localidades em que se produz e os mercados de destino, nacionais e internacionais. 30 27 

Fauvrelle, 2001: 23.

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Costa, 2005: 283

29  Costa, 2005: 284 30 

Fonseca et alii, 1987: 17

Falemos de quintas e da importância da sua história e do seu património como recurso para o turismo. Estamos a falar de economia, num caso como no outro. Daí que devamos começar por referir a vinha. E aqui, é bom lembrar que foi a criação de condições para se poder plantar a vinha e produzir o vinho que deu origem à paisagem vinhateira, obra do Homem, construída através dos séculos, hoje, Património da Humanidade. O lavrador substituiu a Natureza e foi transformando as encostas pedregosas, muitas vezes, íngremes, em «terraços ajardinados sustentados por muros de pedra»,31 os “jardins suspensos”, nas palavras de Jaime Cortesão. As várias soluções que se foram encontrando, no decorrer dos tempos, quer na armação do terreno, quer na condução da vinha, são aspetos a realçar, que podem constituir motivo de visita, parte importante do património que recebemos através das quintas: a vinha pré e pós-filoxérica, os patamares horizontais, ou terraços com taludes de terra e a vinha ao alto. Há quintas onde é possível encontrar estes variados tipos de plantação, ou, então, encontram-se esses casos, em vinhas contíguas. Os pilheiros, que permitiam o aproveitamento dos terraços para outras culturas, a condução da vinha com recurso a tutores de madeira – a erguida de espera, em que a videira se encosta a um chantão, a erguida de rodilha em que a vide era presa na própria cepa, ou a condução através de fiadas de arame zincado, preso a esteios de pedra, ou de madeira, modo de condução que torna mais fácil o trabalho da vinha. Enfim, as diferentes formas de construir as escadas para subir as encostas, as escadas de salta-cão, as rampas calçadas com pedras de xisto até aos caminhos em terra batida em calçada ou em alcatrão que hoje facilitam o transporte das uvas por carrinhas ou tratores, assim como a passagem destes nos diferentes trabalhos levados a cabo durante o ano. Os aspetos referenciados proporcionavam melhorar e aumentar a produção, ou as produções da quinta. Mas testemunham uma interação harmoniosa com a natureza. Hoje, há quintas, abertas a visitas – algumas criam programas de enoturismo –, em que o proprietário faz questão de disponibilizar o passeio pela vinha para que o visitante possa conhecer de perto a paisagem, a forma como foi construída, as técnicas utilizadas, ontem e hoje, que constituem parte significativa do património cultural duriense. A inclinação dos terraços, que facilite o escoamento das 31 

Fauvrelle, 2003: 195.

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águas pluviais e evite a erosão, é hoje definida com o recurso a raios laser, por exemplo. A vinha não é tudo, porque se pretendia que a quinta fosse autossuficiente. Daí, as hortas, os olivais, os amendoais, os pomares, os jardins, as matas, numa grande complementaridade, mas onde se encontram, também, «patrimónios botânicos excepcionais».32 Importa ter presente que muitas destas produções não se restringiam a autoabastecimento, destinandose de igual modo à comercialização.33 E ainda, como diz Agustina no seu “Jóia de Família”, para obviar ao problema de a quinta ser um “ermo do Douro”. Não são menos importantes as casas, as de habitação e as restantes, que também constituem parte essencial da quinta. Temos, assim, a casa de habitação do proprietário, como «elemento mais visível na estrutura de uma quinta duriense»,34 a capela, a significar importância, ou um ex-voto,35 a casa do caseiro, o cardenho, «principalmente ocupados pelas rogas durante as vindimas e pelos galegos contratados para a construção dos muros».36 É interessante constatar uma certa hierarquia na ocupação dos espaços destinados aos trabalhadores. Encontram-se de igual modo, instalações destinadas a tarefas próprias da exploração agrária, tais como os lagares e a adega, estrategicamente localizados para se poder aproveitar a inclinação do terreno. Existem outros espaços, com funcionalidades, também elas, necessárias ao bom funcionamento da quinta: casa para animais, nitreiras, telheiros, pombais, frasqueiras ou garrafeiras. Nestas garrafeiras guardam-se alguns dos melhores vinhos, que fazem parte da reserva de família. A quinta, como se constata, é um recurso turístico, mas, com precisão, é um conjunto de recursos, testemunhos de uma vida, ou de muitas vidas que ali viam suceder-se os dias, ou que com ela estabeleciam algum tipo de relação. Tudo isto pode dar ocasião a mostrar (vender) melhor o Douro ao turista. Basta recorrer à parcela de inteligência que nos tocou em sorte, como nos disse há alguns anos João de Araújo Correia. A quinta surge e desenvolve-se no quadro da necessidade de organizar e desenvolver a produção

vinícola. A sua evolução está intimamente ligada à própria história do Douro que, aliás, de algum modo, se confunde com a história da vinha e do vinho que aqui se produz. Daí que Gaspar Martins Pereira conclua que o vinho impôs transformações evidentes nas formas de povoamento, fazendo surgir, pelas encostas vinhateiras, casais e quintas dispersas, criando ou desenvolvendo povoados ribeirinhos. Com o domínio da vinha, cultura que necessita de mão-de-obra abundante e especializada, acentuaram-se os processos de proletarização e de mobilidade das gentes. Mobilidade também de produtos e de capitais, que envolveu a relação privilegiada com o Porto (e Vila nova de Gaia) centro de armazenamento e escoamento do vinho, relação que foi facilitada e imposta pelo rio.

35  Fauvrelle, 2001: 78

As quintas são dispersas, com necessidade de muita mão-de-obra, em processos de proletariado e mobilidade das pessoas – algumas habitam precisamente os casais –, produtos e capitais, estabelecendo-se uma relação privilegiada com o Porto e Gaia. E observa, ainda, que esta relação do Douro com o Porto evoluiu de relação comercial para política e social, exprimindo cada vez mais uma dependência da região em relação à cidade que acabou por dar o nome ao produto mais importante e valioso que dela saía.37 Coisas da história, dir-se-á. Hoje e na perspetiva do turismo, pessoalmente, prefiro realçar a relação de complementaridade que existe entre os dois destinos, que pode e deve ser potenciada em benefício de ambos. Pela notoriedade que a denominação de origem Porto lhes dá, mas, de igual modo, pelo facto de o vinho objeto da mesma ser produzido no Douro e ter dado azo ao «prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir» (Torga, Diário XII). Porque o Porto e o Douro são Património da Humanidade. Por outro lado, porque o Porto, cidade ou área metropolitana, é hoje uma verdadeira porta de entrada para quem vem ao Douro, pelo rio, pelo aeroporto, pelo caminho-deferro. As quintas, que foram de grandes proprietários, ingleses, ou portugueses, do clero, regular ou secular, – é interessante reter que havia quintas, propriedade de mosteiros muito distantes do Douro –, enfim, de ordens militares, mostram-se como propriedades rentáveis, são centros autónomos, com produção, transformação e armazenamento do vinho e de outros produtos, com habitação e outras estruturas de

36  Fauvrelle, 2001: 88

37 

32  Fauvrelle, 2001: 81. 33  Pereira, 1991: 61 34  Fauvrelle, 2001: 65

Pereira, 2003: 105

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apoio, centros estratégicos de combate às pragas que apareceram na região e polos de inovação. As quintas ou as casas grandes são referência para os preços da pipa e das jornas. Podemos considerar que as quintas são a célula da organização económica e social do Douro e que, pese embora a evolução que se verificou por força das circunstâncias, essa forma organizativa persistiu através dos tempos. Hoje, quando o turismo aparece no quadro da economia como uma importante atividade, também no Douro – basta ter presente o Plano de Desenvolvimento Turístico do Vale do Douro (PDTVD) – a quinta, como recurso turístico, deve ser, claramente, valorizada e aproveitada. Como recurso, ou como conjunto de recursos, para sermos mais precisos. Ligada ao enoturismo, ou turismo vitivinícola, como alguns preferem chamar-lhe. Não se pode dizer que o enoturismo esteja já muito desenvolvido, é um facto. Aliás, alguns dos passos que se deram na região foram tão titubeantes que não evitaram a queda de algumas instituições. Também é verdade que os estudos sobre esta problemática se iniciaram há relativamente pouco tempo – nos últimos anos do século passado. Getz, citado por Ricardo Correia na sua Tese de Mestrado subordinada ao tema “MARKETING TURÍSTICO - UMA ABORDAGEM DE REDE” considera dever ter-se em atenção no enoturismo três diferentes perspetivas: a dos produtores, que poderão aí encontrar uma oportunidade para se diferenciarem, “educarem” os consumidores e venderem directamente o seu produto, as das agências ou regiões turísticas, que poderão desenvolver um destino em torno da mais valia associada à envolvente e tradição vitivinícola, e a dos consumidores que poderão encontrar um produto diversificado e usufruir de novas experiências.38

Temos, assim, a perspetiva do produtor, a dos responsáveis pela gestão dos destinos e a do consumidor. Como dizíamos, do “lado da procura e do lado da oferta”. O turismo vitivinícola consiste, exatamente, em potenciar os recursos do território ligados às tradições, cultura, atividades e paisagem associados à vitivinicultura, sendo indispensável uma coordenação entre as diversas componentes do produto turístico sob uma perspetiva de marketing.39 É este o sentido que atribuo a enoturismo, que também deve ser visto 38  Correia, 2005: 85 39 

Correia, 2005: 86

de forma integrada, tal como o turismo, no seu todo. É por isso que, quando falamos de turismo no Douro, devemos ter presente os três produtos estratégicos que o Plano Estratégico Nacional de Turismo (PENT), aprovado em 2007, atribui ao destino Douro, criando, em coerência, um polo de desenvolvimento turístico: touring cultural e paisagístico, Gastronomia e Vinhos e Turismo da Natureza. Tive esta realidade bem presente quando desempenhei as funções de Presidente da Entidade Regional de Turismo do Douro. Assim aconteceu na elaboração de suportes informativos ao turista – o Guia Turístico do Douro, o Guia Turístico da Natureza do Douro, na preparação e execução do protocolo com a National Geographic Society (Map guide e Website), integrando o Douro nos sítios do Geoturismo, a brochura das Quintas e Miradouros, os filmes promocionais, as coleções fotográficas, assim como em alguns eventos, de que destaco o Douro Film Harvest e o Festival da Rede de Aldeias Vinhateiras (RAV), ou o Estudo de Mercado e Plano de Marketing da RAV e o Plano de Marketing Estratégico da Turismo do Douro.) A tomada progressiva de consciência de que as condições que o Douro oferece se poderiam tornar em oportunidades, motivou vários proprietários das quintas a investir na sua valorização, no alojamento, nos centros de vinificação e de armazenamento, convidando arquitetos de renome - alguns deles, Prémios Pritzker -, para requalificarem essas infraestruturas, organizando pacotes especiais de vindimas, de degustação de vinhos e iguarias tradicionais, e ainda ofertas “spa” com base nas propriedades da uva. Este esforço tem sido muitas vezes recompensado com a atribuição de muitos prémios, nacionais e estrangeiros. De igual modo, também tem vindo a verificar-se a assunção da imagem da Quinta como um recurso. Assim, recorrendo a apoios específicos, muitos proprietários procuram manter ou reconstituir os muros de xisto, que foram essenciais à classificação da UNESCO. Algumas quintas e instituições investiram em escavações arqueológicas – o caso Quinta da Ervamoira, em Vila Nova de Foz Côa, que criou também um museu e a Quinta das Aveleiras, que musealizou a sua Oficina Vinária, em Torre de Moncorvo. O Museu do Douro tem publicado trabalhos sobre a temática das quintas. Por outro lado, a importância crescente que se vem atribuindo às questões do património, a maior atenção da opinião

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pública para a valorização da identidade e da memória tem feito surgir na sociedade respostas organizativas com vista a preservar, valorizar e promover as variadas expressões de património cultural. Com este espírito, mas também com o intuito de criar condições para a partilha de saberes entre regiões, povos e gerações, tendo presente que o património deve ser impulsionador de desenvolvimento criou-se na região a Associação Douro Generation – Associação de Desenvolvimento. Sou sócio fundador desta associação e como tal me encontro a participar nesta Conferência. Dados do PENT apontavam no sentido de um aumento de 7 a 12% de viagens no domínio do produto Gastronomia e Vinhos. Estudo recente da Qmetris para a CCDR-N, conclui que “as atividades ligadas ao vinho e à gastronomia são, no Douro, das atividades que mais tempos tomam ao turista, superadas apenas por visitas a locais históricos”. Este facto merece uma atenção especial. É mesmo caso para perguntar de que falamos quando falamos de enoturismo no Douro? Porque, efetivamente, o Douro possui todos os ingredientes para se tornar um destino atrativo, na perspetiva do enoturismo e numa visão global com uma riqueza histórica e patrimonial muito clara. É errado, também aqui, isolar produtos, dispensar recursos. O País Vinhateiro, como era chamado no tempo dos Paladinos, ou o Alto Douro Vinhateiro, como foi apresentado na candidatura à UNESCO como Património da Humanidade, na tipologia de “paisagem cultural evolutiva viva” contém «uma herança milenar, duramente construída em torno da vinha e do vinho».40 Efetivamente, os trabalhadores da vinha transformaram a montanha deserta em jardins suspensos, no dizer de Jaime Cortesão, ou aqueles que construíram os mosteiros cistercienses, bem como, já antes, os soldados romanos que, na Fonte do Milho, cavaram na rocha os seus lagares, ou os artistas que gravaram as rochas do Vale do Côa, é a todos eles que devemos este Douro. Estamos perante aspetos do património que nos deixaram as gerações que nos precederam. Como facilmente se verifica, no Douro, não é fácil separar turismo de eno, ou, para ser mais preciso, de oînos (vinho). Concluiu também o estudo da Qmetris que a internet é o segundo meio mais referido para conhecimento do destino Douro. Grande desafio este, para todos os que têm a ver com o turismo no Douro,

agentes do setor público ou do privado. Efetivamente, não se pode manter a situação atual por mais tempo. Porque é indispensável utilizar todos os meios para se poder chegar mais longe, da forma mais rápida e eficaz. São aqueles que nos visitam que no-lo dizem. Importante, pois, o esforço para corresponder a esta constatação. Sabe-se que a fibra ótica acompanha a linha do caminho-de-ferro. Quantas quintas e povoados, nas proximidades podem beneficiar desse recurso? Aliás, como estamos servidos na região? Nas vilas e aldeias? É difícil, depois, o Turismo Rural. Tudo isto tem mais sentido se tomarmos consciência dos muitos investimentos que se têm vindo a fazer, designadamente nos últimos 9/10 anos, em novas unidades de hotelaria ou na reconversão de outras. O Douro possui agora três unidades de 5 estrelas e várias de 4 estrelas. O Douro possui cerca de 3200 camas (unidade hoteleiras, apart-hotéis, Turismo de Habitação e Turismo Rural), muitas delas em unidades criadas em quintas. Paralelamente, têmse desenvolvido ações de animação de diversa índole e procurando estendê-las por todo o ano, tentando atenuar a sazonalidade e procurando encontrar formas de aumentar a taxa de permanência dos turistas. A realização do Douro Film Harvest, desde 2009, que tem na sua génese a ligação ao produto “Gastronomia e Vinhos”, além de afirmar o Douro como destino turístico de cariz cultural, mostra os cenários durienses à indústria do cinema e motiva os realizadores para a produção de filmes sobre o Douro. O filme “Life on the Douro”, de Zev Robinson, da iniciativa de um proprietário de uma quinta com a adesão de outros, é um bom exemplo. A secção “Curtas da Casa” é mais um a acrescentar ao anterior. No decorrer do festival, vários filmes são exibidos em adegas e quintas, valorizando esses espaços. Dizíamos que mais que noutro destino, no Douro não é fácil separar turismo do oinos. Ora acontece que o PENT revisto em 2013 considera o produto “Gastronomia e Vinhos” como complementar. Convenhamos. Não me parece muito objetiva e realista esta opção. O documento publicado não consegue esconder alguma contradição. Define-se aí como objetivo o seguinte:

40  Pereira: 2009, 78

41 

«Promover a riqueza e qualidade da gastronomia e vinhos como complemento da experiência turística, estimulando a aplicação da marca/conceito Prove Portugal em produtos, equipamentos e serviços»41 PENT, 2013: 18

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Ora, nas três frases seguintes deteta-se claramente uma contradição entre a 1ª e as 2ª e 3ª: «Subjacente está a convicção de que este é um produto turístico de nicho quando avaliado como motivação primária. Contudo, a maior parte dos turistas considera a gastronomia aquando do planeamento e organização da viagem, assumindo-se como importante fator de avaliação. Este produto tem registado um crescimento anual de 5% a 8% desde 2000, valores que se perspetivam poder situar-se nos 8% a 10% nos próximos anos».42

Humanidade, numa região que integra o Parque Arqueológico do Vale do Côa, que pertence à Rede de Patrimónios Douro/Duero, num total de 10 sítios classificados, englobando ou muito próximo da Rede de Aldeias Vinhateiras. Deve ter-se em consideração que os principais mercados turísticos externos do Douro, para além do mercado Espanhol, o primeiro, também pela proximidade, o mercado Britânico, Francês, Alemão, Holandês e Italiano são mercados com níveis educacionais, maioritariamente, elevados. Os turistas que daí veem residem, essencialmente, nas cidades. É, pois, natural, que as motivações da área da cultura e do património estejam presentes nas suas deslocações.43 Temos, pois, tudo ou quase tudo para afirmar o Douro como destino turístico de grande valor, mantendo e reforçando a ideia subjacente ao objetivo do Plano de Desenvolvimento Turístico do Vale do Douro, assim sintetizado: «Tornar o Vale do Douro um destino turístico de referência através de um processo dinâmico de desenvolvimento sustentável».44 Quando estamos a falar de “A história e o património das quintas do Douro como valor de recurso para o Turismo” temos presente a cultura como fator de desenvolvimento, o que significa valorizar identidades individuais e coletivas, promover a autoestima e a coesão das comunidades, bem como ter presente que as expressões da cultura podem ser um fator de crescimento em determinado território, como é o caso das regiões rurais com os seus produtos agrícolas, seus costumes e tradições, suas paisagens, hoje recursos turísticos claros. Impõe-se-nos, pois, que saibamos aproveitar os recursos que a natureza e os que nos antecederam puseram ao nosso dispor, que sejamos capazes de preservar e valorizar as marcas da identidade e que, por fim, saibamos dedicar atenção crescente ao que distingue o Douro pela autenticidade e pela excelência. Estaremos, deste modo, a utilizar bem a “história e o património das quintas”.

Os números são um pouco diferentes, não muito, do documento originário. No entanto, não deixam de ser significativos e de merecerem ser valorizados para quem tem responsabilidades de planeamento do turismo. Já vimos em cima o estudo da Qmetris para a CCDR-N, onde é explícita a importância deste produto para os turistas que procuram o Norte do país. E estamos a analisar uma região que vive do vinho e à volta da vinha, com uma história em que a vida das pessoas se confunde com tudo o que respeita à sua produção, armazenamento, comercialização e transporte. Acresce que quando se valoriza a riqueza que reside na “diversidade concentrada” existente no destino Portugal, alguns responsáveis pelo turismo nacional já consideraram o Douro como a melhor expressão dessa realidade numa área especialmente reduzida. E se considerarmos, como se afirma no Plano de Marketing Estratégico do Turismo do Douro, que o destino Douro «apresenta uma oferta turística diversificada, capaz de potenciar o desenvolvimento integral do setor do turismo, a partir dos recursos endógenos», então temos o Rio Douro, o Património Natural e Cultural e a Gastronomia e Vinhos como três recursos estratégicos, de que decorrem o Touring Cultural, o Turismo da Natureza, a Gastronomia e Vinhos, o Turismo Rural e o Turismo Náutico (note-se que o cruzeiro fluvial é considerado nos documentos oficiais no Touring Cultural e Paisagístico) como Produtos Estratégicos Primários. Ora, as quintas têm (algumas, ainda têm), paisagem natural e humanizada, possuem tudo o que pode e deve ser aproveitado como recurso de enoturismo, julgo que bem patente nesta comunicação, cada uma sintetiza de forma mais ou menos perfeita o destino Douro, com os produtos estratégicos que o potenciam. Em si mesmas, são a expressão da paisagem que a UNESCO incluiu a partir de 2001 na lista dos Patrimónios da

43 

Costa, 2005: 289

42 

44 

PDTVD, 2004: 91

PENT: 2013, 18 e 19

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BIBLIOGRAFIA: CCDR-N (2004) - Plano de Desenvolvimento Turístico do Vale do Douro – Porto. CORREIA, Ricardo Alexandre Fontes (2005) – MARKETING TURÍSTICO UMA ABORDAGEM DE REDE – Porto: Faculdade de Economia da Universidade do Porto. COSTA, Carlos (2005) – Turismo e cultura: avaliação das teorias e práticas culturais do sector do turismo (1990 – 2000) - «Revista Análise Social», vol. XL (175) p. 279-295. FAUVRELLE, Natália (2001) – Quintas do Douro. As arquitecturas do vinho do Porto. «8/CADERNOS DA REVISTA DOURO – ESTUDOS & DOCUMENTOS». Porto: GEHVID – Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto, em colaboração com Câmara Municipal de S. João da Pesqueira. FAUVRELLE, Natália (2003) – O Douro das quintas do Cima Corgo. In SOEIRO, Teresa, coord. – Viver e saber fazer – Tecnologias tradicionais na Região do Douro Estudos preliminares. Peso da Régua: Museu do Douro, p. 181-239. FONSECA, A. Moreira da et alii., (1987) – O Vinho do Porto – Notas sobre a sua História, Produção e Tecnologia. Porto: Instituto do Vinho do Porto. PEREIRA, Gaspar Martins (1991) – O Douro e o Vinho do Porto – de Pombal a João Franco. Porto: Edições Afrontamento. PEREIRA, Caspar Martins (2003) – A evolução histórica. In SOEIRO, Teresa, coord. – Viver e saber fazer – Tecnologias tradicionais na Região do Douro Estudos preliminares. Peso da Régua: Museu do Douro, p.101-127. PEREIRA, Gaspar Martins (2009) - Douro: História, Património e Enoturismo, in CARDOSO, António Barros, DUBIANO, Claudine, GONÇALVES, Eduardo Cordeiro, Coord. - Enoturismo e Turismo em Espaço Rural, Maia: ISMAI, p. 77-81. QMETRIS - Avaliação do Nível de Satisfação dos Turistas na Região do Norte, Resultados Globais 20102011. Estudo realizado para a CCDR-N. Porto. TURISMO DE PORTUGAL (2013) – Plano Estratégico Nacional de Turismo (revisto). Lisboa.

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A importância do Vinho do Porto na valorização do enoturismo e do território Douro texto: Celeste Carvalho Pereira, Greengrape – consultoria ([email protected]) Nota biográfica: Celeste Pereira Nasceu em Vila Nova de Famalicão, em 1970, é casada e tem 4 filhos. Vive em Vila Real há 22 anos. É licenciada em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto. Foi jornalista durante 18 anos, 14 dos quais no jornal Público. Trabalhou também na Antena 1, na extinta Rádio Press, Comércio do Porto, Rádio Renascença, Primeiro de Janeiro e Semanário Transmontano. Desde 2007, trabalha na comunicação e promoção de projetos ligados ao Alto Douro Vinhateiro Património da Humanidade, estando a desenvolver um projeto de agregação no Douro, o alltodouro.com, cujo objetivo é trabalhar a afirmação internacional desta região vinhateira. É fundadora da empresa Greengrape, que desenvolve comunicação em quatro áreas específicas: turismo, vinhos, gastronomia e cultura, e autora do livro “Rui Paula – Uma Cozinha no Douro”, publicado pela editora Quidnovi e com fotos de Nelson Garrido, que conquistou o 1ª Prémio “Best in the World”, na categoria “Best First Cookbook” (Melhor Primeira Obra de Gastronomia).

Resumo A importância do Vinho do Porto na valorização do enoturismo e do território Douro, tema da presente comunicação, compreende-se, antes de mais, pela sua dimensão de marca internacionalmente reconhecida, sua singularidade e valor histórico. Do Vinho do Porto como produto de valorização do território duriense, impõe-se igualmente destacar a sua relação de simbiose com as quintas do Douro, elementos cruciais do enoturismo da região. Este é, enfim, o enquadramento

do estudo que é apresentado na presente comunicação, intitulado “Estudo estratégico para a promoção e dinamização das vendas de Vinho do Porto”, de abril de 2012, realizado por Nicolas Boulanger, especialista francês em luxo/bens de consumo. Palavras-chave: Vinho do Porto, enoturismo, Douro, Quintas do Douro

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Abstract: The importance of Port wine in the appreciation of wine tourism and Douro territory, subject of this present communication, is understood, first of all, by its dimension of internationally recognized brand, its uniqueness and historical value. Port wine as a product of valuing Douro territory, imposes itself in highlight its symbiotic relationship with Douro farms, crucial elements of wine tourism in the region. This is

S

aúdo os participantes destas conferências sobre a história e o património das quintas do Douro, bem como o seu papel no desenvolvimento da região, deixando a salvaguarda, antes de mais, que a intervenção que vos apresento não resulta de uma atividade de investigação académica, área a que sou alheia. É antes um documento fundado no meu envolvimento profissional e emotivo na comunicação do Douro, enquanto território de exceção, Património Mundial da UNESCO e berço do Vinho do Porto, ícone das exportações portuguesas, com forte reconhecimento internacional. A importância do Vinho do Porto na valorização do enoturismo e do território Douro, tema da presente comunicação, compreende-se, antes de mais, pela sua dimensão de marca internacionalmente reconhecida. O Vinho do Porto é atualmente vendido em 110 países, o que, só por si, faz deste produto um cartão de visita privilegiado para a divulgação do Douro e de Portugal. Acresce a esta identificação internacional, a singularidade e o património histórico deste vinho, características que permitem associar à visibilidade da marca a notoriedade. Do Vinho do Porto como produto de valorização do território duriense, impõe-se igualmente destacar a sua relação profunda com as quintas do Douro. Elementos cruciais do enoturismo da região, as quintas são igualmente berço do Vinho do Porto, revelando uma relação de simbiose de forte potencial turístico. Seguindo na linha da analogia com a natureza, as quintas do Douro e o Vinho do Porto são duas realidades indissociáveis, de vida em comum, acabando por formar um único organismo. Se outros motivos não existissem – que existem! – bastava esta associa-

the framework of the study presented in this communication, entitled “Strategic Study for the promotion and development of Port Wine sales”, April 2012, directed by Nicolas Boulanger, French specialist in luxury /consumer goods Key words: Port wine ,wine tourism, Douro region, Douro farms

ção histórica para justificar a pertinência de iniciativas de promoção do Vinho do Porto e do enoturismo em conjunto. Definir e concretizar uma estratégia coletiva de longo prazo para promover e valorizar o Vinho do Porto e o enoturismo é reconhecido pelos players do sector como essencial, mas a realidade teima em mostrar que esta é uma emergência do Douro muitas vezes adiada. A dificuldade de agregação tem seguramente razões que os participantes destas conferências saberão estudar e explicar. Nesta comunicação, no entanto, ambicionamos apenas lembrar a importância de uma dinâmica agregadora de promoção tendo o Vinho do Porto como embaixador. Este é, enfim, o enquadramento do estudo que seguidamente é apresentado, com o título “Estudo estratégico para a promoção e dinamização das vendas de Vinho do Porto”, de abril de 2012 e promovido no âmbito do projeto de agregação alltodouro.com, ao qual estou envolvida. Encomendado à Eurostaf e realizado por Nicolas Boulanger, especialista francês em luxo/ bens de consumo, o estudo começa por apresentar um diagnóstico duro sobre o Vinho do Porto, assinalando a tendência de queda de vendas, em volume e em valor, deste produto histórico do Douro, não tendo o mesmo beneficiado da dinâmica dos mercados de vinhos e bebidas espirituosas premium que registaram uma subida a nível mundial (dados de 2011). Entre 2006 e 2011, as vendas de Vinho do Porto registaram uma queda tendencial de aproximadamente 11%, enquanto que os vinhos e espirituosos premium beneficiaram de um crescimento nas vendas de 8,8% (dados do ano de 2011). Dados de 2013, apresentados pelo Instituto dos Vi-

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nhos do Douro e do Porto (IVDP), confirmam a tendência de decréscimo do volume de vendas, embora menor (menos 3% face a 2012), mas revelam uma inversão positiva no tocante ao valor das vendas (crescimento de 4%). Este bom desempenho resulta do peso crescente das categorias especiais que impulsionaram o preço médio de venda para 4,6 euros o litro (+7,4%). Assim, a receita das categorias especiais (Vintage, LBV, Reservas ou Colheitas) cresceram 18% e representam 37% do negócio global do Vinho do Porto, em 2013. Voltando ao estudo da Eurostaf, referente ao período 2006-2011, o mesmo aponta também a forte dependência do Vinho do Porto dos mercados tradicionais, onde é considerado produto mass market banalizado, e a pouca abertura a outros mercados. França, Portugal e Holanda concentram 49,2% do valor de vendas e 56,2% do volume (nos primeiros 11 meses de 2013, segundo estatísticas do IVDP, entre os três principais mercados para o Vinho do Porto está o Reino Unido, mantendo-se a França como maior mercado - 22,8% -, seguido de Portugal - 14% -, Reino Unido - 13,7% -, e Holanda -11%) PRODUTO DE LUXO

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pesar desta situação, o Vinho do Porto tem pontos fortes a valorizar e capitalizar: história e identidade, denominação de origem e experiência do ponto de vista da produção. Três fatores, como sublinha o estudo, para o sucesso no mercado de luxo, aos quais o autor acrescenta a produção de qualidade, a notoriedade e imagem e uma boa distribuição (assegurar a sua seletividade). Assim, os grandes desafios do Vinho do Porto passam também pela dinamização das vendas nos principais mercados, através do desenvolvimento/promoção de uma oferta premium/luxo e o aumento do preço de venda por litro, bem como pela modernização da imagem (tal como fez a região de Bordéus ou Borgonha). Outro grande desafio é o de encontrar novas formas de crescimento externo, aproveitando o dinamismo das economias emergentes com capacidade para pagar e a tendência positiva dos consumidores face a produtos alcoólicos premium.

ASSOCIAÇÃO AO ENOTURISMO

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desenvolvimento de uma estratégia coletiva de longo prazo visando aumentar as vendas pressupõe, no entender de Boulanger, a criação de uma estrutura profissional de apoio, coordenação e animação; forte envolvimento das empresas, que represente a massa crítica empresarial da região, criada num movimento bottom-up, não apenas restrito às empresas de Vinho do Porto, mas incluindo outros agentes regionais (turismo, universidades). Na promoção do Vinho do Porto, refere o estudo, é essencial a associação ao enoturismo, atividade largamente explorada pelas regiões produtoras de vinho, tenham ou não tradição vínica. De facto, o enoturismo permite encaminhar uma clientela informada e dar-lhe a conhecer os produtos locais e o saber-fazer que valoriza a experiência de quem procura um turismo ligado ao vinho. Neste domínio, a região do Douro revela ter um caminho a percorrer. Segundo dados apresentados no estudo referentes ao portal online TripAvisor, os 10 principais destinos de enoturismo não incluem o Douro – Bordeaux, em França, é apresentado como o principal destino, seguido de Napa Valley, na Califórnia, La Toscane, em Itália, La Champagne, em França, La Barrosa Valley, na Austrália, La Rioja, em Espanha e Les Vignobles do Chile, da África do Sul e de Nova Zelândia. NOVOS CIRCUITOS DE VENDA

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o nível da distribuição, a aposta deve passar pela diversificação e conquista de novos circuitos de venda, nos novos mercados de grande consumo, na criação de filiais de distribuição. E, ainda, na aposta em lojas de viagens/dutty free de modo a atrair clientes internacionais, com grande poder de compra. No caso de vendas a retalho, o estudo salienta que a distribuição de vinhos e bebidas espirituosas está dominada pelas multimarcas, e que as marcas não têm contacto direto com o cliente. No segmento premium emerge a tendência de novos conceitos de distribuição como os bares de marcas de bebidas com representação internacional. Depois, os modelos de solares do

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Porto e Lisboa poderiam ser recriados internacionalmente, valorizando a identidade exclusiva do conceito. Segundo Nicolas Boulanger, estes conceitos permitiriam familiarizar o cliente, confrontando-o com o produto e a marca, estabelecendo contacto direto com este, “educando-o” para o produto; e, ainda, promover outros produtos relacionados com o Douro, como a gastronomia. Afinal, a região tem um potencial privilegiado: boas infraestruturas hoteleiras, qualidade da paisagem do vale do Douro, museus e um património vinhateiro único com adegas e quintas históricas.

Durante os últimos anos tenho vindo a desafiar o sector do Vinho do Porto e respetivo território para a definição de uma estratégia de dinâmica coletiva. Apesar das dificuldades, continuo a acreditar ser possível reunir parceiros ligados aos vinhos, enoturismo e cultura em torno de um projeto voltado para a exportação e para a afirmação internacional da única região de vinhos do Velho Mundo que ainda está por descobrir.

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Painel 1

O Património das Quintas do Douro Natalia Fauvrelle Carlota Cabral Nuno Resende Gonçalves Guimarães

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As quintas vinhateiras na construção do património paisagístico do Douro texto: Natália Fauvrelle Museu do Douro - Coordenadora dos Serviços de Museologia (em licença) Bolseira de doutoramento FCT/MD. Investigadora do CITCEM ([email protected])

Nota biográfica: Natália Fauvrelle   Mestre em História da Arte na área de património e restauro, tendo obtido o grau de mestre com uma tese sobre a arquitetura das quintas do Douro, e a frequentar o doutoramento em museologia, centrando a sua investigação na paisagem classificada do Alto Douro Vinhateiro e os desafios da gestão deste património. É coordenadora dos serviços de museologia do Museu do Douro, projeto no qual tem colaborado desde 2002, estando presentemente em licença com uma bolsa de Doutoramento em Empresas da FCT. É investigadora do CITCEM, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», com sede na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Publicou vários livros e artigos sobre o património duriense e sobre a sua história, centrando as suas investigações no património arquitectónico e na paisagem rural, em particular no património associado à vitivinicultura. Integrou a equipa responsável pela candidatura a Património Mundial do Alto Douro Vinhateiro. Resumo Pela qualidade excepcional da sua paisagem cultural a Região Demarcada do Douro viu inscrita na lista do Património Mundial parte do seu território, em 2001. Esta paisagem resulta de um processo histórico de adaptação de um território de montanha, de condições adversas, à viticultura, constituindo os testemunhos desta prática a malha patrimonial que sustenta a classificação. Neste artigo discute-se qual o papel das quintas vinhateiras na construção da paisagem duriense, tendo em conta o património vernacular que conservam e a forma como a sua acção sobre o território condiciona a transformação do terreno em paisagem.

Abstract Due to the exceptional quality of its cultural landscape, the Douro Wine Region saw part of its territory inscribed on the World Heritage Site list in 2001. This landscape is the result of a historical process of adapting a mountain region to viticulture. Testifying this practice are different types of heritage. In this paper we examine the role of the quintas (wine producing estates) in the construction of the Douro winescape, taking into account the role on preservation of vernacular heritage and how its action on the territory affects the transformation of the land into landscape.

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Palavras-chave Paisagem vinhateira, Arquitectura do vinho, Quintas

A

classificação de uma parte da paisagem do Douro, o Alto Douro Vinhateiro (ADV), como Património Mundial, em 2001, veio validar culturalmente a qualidade de um espaço cuja história, já longa, se encontra associada à produção de vinho. Incluída na Lista da UNESCO na categoria de “paisagem cultural evolutiva e viva”, a área do ADV (24.600 ha) pretende represen-

Key words Winescape, Wine Architecture, Port Wine Quintas

tar a Região Demarcada do Douro (RDD) (250.000 ha), a mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo, cuja paisagem resulta «de um processo multissecular de adaptação de técnicas e saberes específicos de cultivo da vinha em solos de especiais potencialidades para a produção de vinhos de qualidade e tipicidade mundialmente reconhecidas»45.

Fig. 1 - Mapa do Alto Douro Vinhateiro, Património Mundial. Fonte CCDR-N

45  AGUIAR, 2000: 7

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s testemunhos deste processo inscrevem-se no próprio território, já que a constituição montanhosa da região duriense obrigou a transformar as encostas para possibilitar o cultivo da vinha. Criou-se solo a partir da pedra e construíram-se socalcos para o sustentar. Mas, além dos muros, que alteraram profundamente a configuração natural do espaço, o viticultor duriense acrescentou outros elementos, como os diferentes edifícios de apoio à actividade agrícola, pomares, bordaduras de árvores, sistemas de retenção e condução de água, etc. Todas estas estruturas, resultantes da actividade agrícola, integram a paisagem do ADV, sendo agora consideradas património, tal como os saber-fazer tradicionais associados às diferentes práticas. A agricultura é assim geradora de património, material e imaterial, que se conserva na paisagem de forma cumulativa, coexistindo práticas seculares com rotinas contemporâneas do amanho da terra. Estamos perante uma “paisagem de trabalho” no sentido descrito por Elias Pastor, autor que associa o trabalho, que mantém e transforma o espaço agrícola, como o motor da paisagem, a origem das modificações territoriais.46 A exploração deste território vitícola é feita, essencialmente, através de duas formas: pequenas parcelas 46  ELIAS PASTOR, 2011: 85

Fig. 2 - Quinta do Arnozelo (Vila Nova de Foz Côa) © Museu do Douro

de vinha dispersas ou quintas. As vinhas isoladas, por vezes, organizadas em casais com sede nos povoados, marcam a paisagem através de bordaduras de árvores, muros de delimitação dos caminhos e pequenas estruturas arquitectónicas, como abrigos para guardar as alfaias ou armazéns de média dimensão, onde se fazia e guardava o vinho, espaços maioritariamente desativados no presente. Muitas vezes a vinha surge a par de pomares, hortas ou zonas de mata, servindo estes cultivos complementares essencialmente para o consumo local. As quintas são propriedades de maior dimensão, composta por número alargado de estruturas arquitectónicas, destinadas à habitação e à produção, que lhe permitem uma gestão autónoma da actividade vitivinícola. Impondo-se como ícones emblemáticos da RDD, ocupam um papel importante na modelação do território enquanto paisagem cultural. É devido a esta complexidade estrutural que aqui se interroga o seu papel na construção da paisagem do ADV e na forma como a sua gestão afecta a conservação do próprio bem classificado. Refira-se, desde logo, que a área Património Mundial, com excepção da zona do Baixo Corgo até aos rios Corgo e Varosa, é marcada por quintas de média a grande dimensão, algumas com grande simbolismo para a história da Região.

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nquanto unidade de exploração agrícola deste território, a quinta evidencia-se pela sua organização funcional associada à vitivinicultura, sobressaindo em local estratégico, entre as áreas de cultivo e de monte, um núcleo de edifícios estruturados entre caminhos e pátios fechados, onde se concentram as principais estruturas de habitação e de produção, na sua maioria associadas à actividade vinhateira, mas também adaptadas a outras culturas. Lembre-se que a monocultura da vinha é um fenómeno recente, pois até meados do século XX o isolamento da maioria das quintas obrigava ao desenvolvimento de outros cultivos e actividades, que garantiam a subsistência de quem lá habitava e trabalhava.

As estruturas habitacionais organizam-se também em função do trabalho, reflectindo a hierarquia laboral. Associados a uma época de trabalho essencialmente manual, que exigia grande quantidade de mão-de-obra para a execução da maioria das tarefas, os edifícios dividem-se de acordo com o tipo de ocupantes, havendo casa para o proprietário, para o caseiro e para os trabalhadores. Nestes últimos, nota-se em alguns casos uma estratificação dos espaços de acordo com a categoria do trabalhador, reservando-se aos operários especializados, como podadores, enxertadores, artistas e tanoeiros, espaços próprios e individuais (FAUVRELLE, 2001: 89), distintos dos cardenhos, camaratas comuns destinadas aos jornaleiros, com diminutas condições de higiene e conforto.

Fig. 3 – Casa do proprietário da Quinta dos Frades (Armamar) © Museu do Douro

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sta relação estreita com o trabalho é notória na casa do proprietário. Representativa do status social e económico da família ou empresa que a possui, aqui se agregavam inicialmente as funções produtivas, associadas à transformação das uvas — o piso térreo era destinado a adega de armazenamento e o sobrado a habitação, implantando-se o edifício dos lagares na cota superior

Fig. 4 –Quinta do Noval (Alijó) © Museu do Douro

junto à casa. Este esquema evolui com o crescimento do negócio do vinho do Porto, que ditou a separação entre a casa e as funções produtivas. O volume de vinhos e a importância dada ao seu armazenamento implicou a construção autónoma da oficina vinária, onde se reúnem lagares e armazém de vinho. Afastando-se da casa, implanta-se junto a vias de comunicação, como os caminhos e o rio, facilitando a condução do vinho para fora da Região.

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eflectindo o desenvolvimento da dinâmica agrícola ao longo do tempo, a quinta comporta uma grande diversidade de arquitecturas de produção, cuja forma mais evidente é a que resulta dos sistemas de armação do terreno, em particular para a cultura da vinha, de que se fala mais à frente. Não tão monumentais como os muros de vinha, as estruturas de apoio e transformação são construções vernaculares que enformam a paisagem duriense e que contribuem para a sua diversidade. Nem sempre directamente associados à vitivinicultura, como referido, são testemunhos materiais de uma dinâmica agrícola passada, a memória de um Douro mais diverso, que gerava os produtos necessários ao funcionamento do dia-a-dia, como o azeite, a farinha, a telha, a cal ou os próprios instrumentos de trabalho. Não cabendo nesta análise o tratamento individual e detalhado de cada produção e seus ciclos produtivos, elencam-se aqui apenas alguns dos vestígios materiais que se conservam nas quintas pela sua importância enquanto patrimónios a (re)conhecer na paisagem duriense. Neste contexto inserem-se as construções para animais, como cavalariças, pocilgas, galinheiros,

Fig. 5 – Abrigo na Quinta do Paço (Mesão Frio) © Museu do Douro

pombais e os mais diversos cobertos a elas associadas, para armazenamento de alimentos ou abrigo dos trabalhadores que deles cuidavam. Na sua maioria são construções simples e precárias, mas que em alguns casos se evidenciam pela qualidade, como no caso dos galinheiros da Quinta da Pacheca47 ou da Quinta da Eira Velha, onde cada espécie animal é sinalizada por azulejo de figura avulsa e a pocilga está equipada com chuveiro de água quente e fria.48 Igual estrutura rudimentar apresentam as oficinas ou telheiros destinadas aos artesãos especializados, que se deslocavam às quintas para produzir e reparar ferramentas, vasilhas, cestos e outros instrumentos necessários no dia-a-dia. Ao registo destas construções é importante juntar o reconhecimento quer dos objectos produzidos, quer dos saber-fazer associados, já largamente descontinuados. O mesmo se aplica a outras estruturas de transformação, como os fornos de telha ou cal, associados à construção dos edifícios da própria quinta, agora já sem qualquer uso, sendo condenados ao desaparecimento, muitas vezes por desconhecimento da sua importância enquanto memória. 47  FAUVRELLE, 2001: 101 48  AGUIAR, 2000: A-16

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odas as estruturas de transformação associadas a outras culturas que não a vinha têm idêntico destino, já que a sua pouca rentabilidade e obsolescência ditou o abandono. Refiram-se a esse propósito as construções associadas à cultura dos cereais, à secagem de frutas ou à cultura da oliveira. Se esta última continua activa, marcando presença na paisagem duriense, já as estruturas ligadas à transformação da azeitona, que muitas quintas possuíam, estão na sua maioria em desuso, como é o caso dos lagares tradicionais, de tracção animal ou mecânicos, conhecidos pelos seus “carrinhos”, por não corresponderem às exigências higienistas actuais. De igual forma deixou de fazer sentido manter grandes armazéns para guardar azeite, como se conservam em quintas como os Aciprestes, o Arnozelo ou o Monte Meão. O mesmo sucede com a secagem de frutos como o figo ou a amêndoa – se os cultivos persistem a sua transformação não é feita localmente mas em unidades industriais apropriadas, levando ao abandono dos fornos de figos ou das estruturas secagem da amêndoa.

Fig. 7 – Eira na Quinta do Boucal (Mesão Frio) © Museu do Douro

Fig. 6 – Forno de secar figos (Alijó) ©Museu do Douro

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s culturas que desapareceram da paisagem, como é o caso do cereal, vêem o seu património ainda menos protegido. Se as eiras de debulha parecem sobreviver por entre outras estruturas, já as unidades de moagem, particularmente as situadas nas margens do Douro, foram condenadas ao desaparecimento devido à alteração do leito do rio provocada pela construção de barragens.

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sses vestígios estão igualmente presentes na transformação do solo que cada actividade determinou, como os socalcos e bordaduras criadas pela cultura da oliveira, as estruturas muradas para o resguardo dos

laranjais e apiários, os socalcos compartilhados por espécies hortícolas ou as manchas de vegetação densa formadas por matas, espontâneas ou plantadas. Todas estas intervenções alteram o território e contribuem para a sua polimorfia, característica fundamental da paisagem duriense.

Fig. 8 – Quinta das Sopas, onde sobressai o laranjal circular murado (Sabrosa) © Museu do Douro

Fig. 9 – Entrada do laranjal da Quinta das Peixotas (Peso da Régua) © Museu do Douro

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ns mais monumentais e complexos que outros, estes elementos testificam um período da história agrotécnica duriense, presente também nos diferentes instrumentos e utensílios necessários para o desenvolvimento de cada actividade, bem como nos saber-fazer associados. Só um olhar global do património permite o entendimento das cadeias operatórias de cada ciclo produtivo, sendo a frequente descontextualização dos objectos um impedimento para o conhecimento efectivo da realidade. Esta questão tanto se aplica a culturas descontinuadas, como o cereal, como à própria vitivinicultura, onde a evolução/inovação técnica rapidamente põe de parte muitos instrumentos e práticas,

como é o caso dos antigos lagares de pedra, preteridos por modernos sistemas de vinificação. Uma das características mais peculiares, e que confere autenticidade à paisagem vinhateira duriense, é a constante transformação a que está sujeita, gerando diferentes sistemas de armação do terreno de acordo com as contingências de cada momento. O território torna-se um “livro” onde as marcas da identidade se revelam pela metamorfose do espaço e do tempo. Neste aspecto, o papel das quintas é fundamental, pois a gestão de cada unidade, em função do contexto social e económico, tem o seu maior reflexo na paisagem, sendo a intervenção mais visível a da armação do terreno para o plantio da vinha.

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e forma sumária, consideram-se dois tipos de técnicas de armação do terreno, as históricas e as contemporâneas ou modernas segundo Nuno Maga49 lhães , sendo as primeiras associadas ao trabalho manual e as mais recentes à introdução de meios mecânicos. As formas de armação históricas, praticadas até às décadas de 1960/1970, têm como principal característica o recurso a muros de pedra, xisto ou granito consoante a zona, para a contenção do solo, exigindo uma grande quantidade de mão-de-obra, que manipulava uma variedade limitada de ferramentas, como a marra ou o ferro de desmonte, recorrendo-se ocasionalmente à dinamite para desfazer rochas de maior dimensão, se a disponibilidade financeira assim o permitisse. Quando tal não era possível, estas fragas eram incorporadas na própria parede. 49  MAGALHÃES, 2011

Ainda que já não se edifiquem na actualidade, a sua manutenção vem sendo estimulada, dado o estatuto de Património Mundial da região, conservando-se algum do saber-fazer associado às técnicas de construção vernacular. O antropólogo Elias Pastor nomeia este tipo de paisagem de “paisagens vinhateiras esquecidas”, isto é, aquelas que, pela introdução de novas tecnologias, se estão perdendo e das quais restam poucos exemplos a nível mundial50. Este termo poderá ter significado em regiões onde a presença do terraceamento com muros de pedra é marginal. Contudo, no caso do Douro, adequa-se melhor o termo “paisagens vinhateiras históricas” dada a sua forte presença, testemunhando um momento do passado, associado a processos considerados históricos para a viticultura, mas cuja manutenção é ainda activa.

50  ELIAS PASTOR, 2011: 145

Fig. 11 – Socalcos pré-filoxera. Quinta do Síbio (Alijó) © Museu do Douro

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entro das formas históricas podemos ainda distinguir dois tipos de armação, os socalcos pré-filoxera e pós-filoxera, cuja utilização está marcada pela devastação provocada pela filoxera na região, na segunda metade do século XIX. Estes sistemas têm em comum o uso da pedra saída do terreno de cultivo, quer para erguer os muros de sustentação, quer para a construção de abrigos, tanques e outras estruturas de apoio. A pedra torna-se a «linguagem complementar do vinhedo»51, cuja gramática se foi aperfeiçoando ao longo do tempo nas diferentes construções vernaculares agrícolas já referenciadas. Assim, até meados do século XIX, antes do aparecimento da filoxera, o solo era sustido por muros baixos de pedra-seca, por norma de construção tosca, formando terraços planos e estreitos, cujo desenho se-

guia as curvas de nível. O solo disponível era limitado, comportando uma a duas fiadas de vinha, verificando-se por vezes o uso dos próprios muros para plantio da vinha com a abertura de “pilheiros”. Em alguns casos este sistema permitia a ocupação do solo com hortícolas ou cereais, maximizando assim o espaço arável.

51  ELIAS PASTOR, 2011: 127

Fig. 12 – Mortório. Quinta de D. Matilde (Peso da Régua) © Museu do Douro

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nquadram-se neste tipo pré-filoxera a maioria dos “mortórios” vinhas mortas cujo abandono se associa à falta de meios dos seus proprietários para as replantar depois da destruição da filoxera. Alguns foram apro-

veitados para outras culturas, como a oliveira, e outros foram recolonizados com vegetação arbórea e arbustiva autóctone. Sendo facilmente identificados pelas marcas dos muros, por vezes o forte crescimento da vegetação pode camuflar os vestígios do cultivo da vinha, sendo estas áreas confundidas com matas.

Fig. 13 – Vinha pós-filoxera. Quinta de Valcovo (Vila Real) © Museu do Douro

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m meados da segunda metade do século XIX, foi adoptado um novo modo de armar o terreno, o sistema pós-filoxera, como forma de combate à filoxera, que impôs o uso de porta-enxertos de videira americana, a única resistente ao insecto. Por esta planta necessitar de mais solo, efectuam-se surribas mais fundas, cuja terra exige muros mais sólidos, com paredes mais largas e altas, formando terraços amplos e ligeiramente inclinados, que comportam um maior número de fiadas de vinha. O traçado das encostas passa a ser rectilí-

neo e compartimentado. Este sistema manteve-se até às décadas de 1960/70 e entrou em declínio pela falta de mão-de-obra e custo de construção. O aumento do tamanho dos muros permitiu o desenvolvimento das arquitecturas de água, que se tornam mais complexas, e dos elementos de circulação, que, acompanhando as paredes, ganham monumentalidade e se impõem na paisagem. Juntamente com este sistema, outras inovações alteraram a leitura da paisagem, nomeadamente o plantio da vinha em bardos, em vez da condução individual e desordenada das videiras. É a própria arquitectura da videira que se altera.

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A partir dos anos 1970 começam as primeiras experiências com novas formas de armação do terreno, resultantes da mecanização do trabalho. Estas formas contemporâneas surgem em parte devido à crescente falta de mão-de-obra, mas também graças ao avanço tecnológico, que permitiu não só a utilização de meios

mecânicos na construção da paisagem como a mecanização de várias operações culturais, como a aplicação de fitossanitários, as mobilizações do terreno ou o transporte de uvas na vindima52. 52  MAGALHÃES, 2011: 65

Fig. 14 – Vinha em patamares. Quinta da Soalheira (S. João da Pesqueira) © Museu do Douro

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entro destas novas técnicas de armação distinguem-se os patamares e a vinha ao alto, implementadas de forma sistemática na região a partir dos anos 1980. No primeiro sistema a videira é plantada em plataformas horizontais e estreitas, traçadas segundo as curvas de nível, comportando em média uma a três fiadas de vinha, cujo resultado é um desenho ondulante semelhante aos socalcos pré-filoxera. Estes terraços são sustentados por taludes de terra, cuja exposição à erosão constitui um inconveniente.

Fig. 15 – Vinha ao alto. Quinta do Bonfim (Alijó) © Museu do Douro

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o sistema da vinha ao alto as videiras são plantadas seguindo a linha de maior declive do terreno, armação que altera profundamente a leitura da paisagem, até então unicamente horizontal. Permitindo um maior aproveitamento do terreno e maior eficácia da mecanização das operações culturais, esta armação, quando correctamente instalada, apresenta menor risco de erosão que os patamares. Estes novos métodos acarretaram não só alguns problemas de conservação dos sistemas tradicionais, mas também de salvaguarda das próprias encostas, mais sujeitas aos fenómenos erosivos. Implementados durante séculos, fruto do saber acumulado de gerações, os sistemas de armação com recurso a muros de pedra criaram uma paisagem equilibrada, em que o Homem se soube adaptar às exigências da Natureza. Intervenções agressivas, sem respeito pelas linhas de água, nem pela inclinação do terreno, revelaram-se, por vezes, desastrosas em termos ambientais, para o que também contribui certamente o desaparecimento de zonas arborizadas no cimo dos montes ou nas bordaduras dos caminhos, quando não dos próprios caminhos. Os sucessivos deslizamentos de terras não significam apenas a perda da plantação e do que nela se investiu; a este valor acresce a destruição do património público, como os caminhos e as estradas, e do património paisagístico. Esta situação levou a que se procurasse aperfeiçoar os novos métodos de sistematização

Fig. 16 – Quinta da Soalheira, foto Casa Alvão (c. 1940) © IVDP

na procura de uma maior harmonia com a Natureza. Paralelamente, a crescente valorização da paisagem tradicional conduziu a uma relação de compromisso entre as diferentes formas de armação, permitindo a manutenção da polimorfia da paisagem. A este facto não é alheia a classificação como Património Mundial, que contribuiu para um aumento da sensibilização e protecção. No caso das vinhas em patamares, se as primeiras instalações apresentavam taludes com uma dimensão elevada, as plantações actuais utilizam taludes mais baixos, optimizando assim o aproveitamento do terreno e diminuindo os riscos de desgaste, havendo paralelamente uma maior integração paisagística. Passou igualmente a ser frequente instalar a vinha em micropatamares, sistematização que permite a mecanização evitando a destruição dos antigos socalcos. Refira-se que esta opção de compromisso pode ser um tanto enviesada, no que se refere às políticas de conservação patrimonial, uma vez que qualquer intervenção implica uma alteração na leitura da paisagem – essa é uma condição inerente a um património vivo. Aquilo a que se assiste frequentemente é à manutenção dos muros por si só, destruindo-se sistemas de condução de águas, alterando-se ou mesmo eliminando formas de circulação. Por outro lado, as intervenções nos muros nem sempre respeitam a sua estrutura original, utilizando-se técnicas e materiais que não respeitam a estrutura original. Os muros são “objectificados”, destruindo-se a sua ligação a um sistema vivo e activo de produção.

Fig. 17 – Quinta da Soalheira, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira

Evolução da paisagem da Quinta da Soalheira, situada no vale do rio Torto, em que a armação de socalcos pré-filoxera e zonas de mata deu lugar a áreas de patamares, desaparecendo as zonas de vegetação arbórea.

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Fig. 18 – Quinta Nova do Rio Torto, foto Casa Alvão (c. 1940) © IVDP

Fig. 19 – Quinta Nova do Rio Torto, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira

Evolução da paisagem da Quinta Nova do Rio Torto, situada no vale do rio Torto, em que a armação de socalcos pós-filoxera foi parcialmente substituída por micropatamares e patamares. Além das alterações visíveis no volume dos edifícios da quinta, note-se o desaparecimento dos caminhos murados, mortórios e áreas de olival.

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questão reside no modo como o bem “paisagem” é percepcionado, pois tal condiciona a forma como se age sobre o mesmo. Grande parte da política de gestão tem-se centrado na manutenção dos muros, esquecendo-se, por vezes, que fazem parte de um conjunto mais alargado e que o seu entendimento necessita desse contexto significante. Exemplo disso são as quintas, onde todo o património vernacular que a

compõe está intimamente ligado, onde arquitecturas produtivas e de habitação criam paisagem. No caso do espaço agricultado, quando se altera uma forma histórica de sistematização do terreno nem sempre se olha para os elementos circundantes, e que marcam o espaço, como as estruturas de circulação, os tanques para caldas, os telheiros ou as formas antigas de plantio, isto já para não falar nas questões do património genético vitícola ou nos já referidos elementos de património vernacular que se disseminam pelo espaço agrícola.

Fig. 20 – Tanque para recolha de águas e preparação de caldas. Quinta da Corredoura (Peso da Régua) © Museu do Douro

Fig. 21 – Sistema de condução de vinha em pilheiros. Quinta do Valado de Cima (Peso da Régua) © Museu do Douro

Fig. 22 – Sistema de suporte para vinha em pilheiros (Mesão Frio) © Museu do Douro

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o ser fruto do trabalho, de uma actividade específica, a paisagem duriense define-se a partir dos elementos que estruturam esse contexto. A paisagem cultural é pois uma obra combinada da Natureza e do Homem, resultando quer dos componentes de ordem natural, como o solo, relevo ou vegetação, quer dos factores humanos como as actividades económicas ou as relações sociais, que modificam e alteram o ambiente53. Ao mesmo tempo, a paisagem é um fenómeno 53  GARGUREVICH GONZÁLEZ, 2013: 39

complexo, cuja percepção varia de acordo com quem a vê e com a vive. É uma abstracção que depende do olhar, mas «cujo carácter resulta da acção e interacção de factores naturais e/ou humanos», como definido na Convenção Europeia da Paisagem (EUROPE, 2000: 5). Mais do que a imagem que retemos, a percepção visual, a paisagem contém a identidade da região através de formas de ocupação do solo, da arquitectura, das redes viárias, das devoções, em suma, a vida e os costumes das gentes que habitam o território. A “patrimonialização” da paisagem, isto é, a sua valorização cultural e transformação em património,

Fig. 23 – Quintas de S. Martinho e Banco, foto Casa Alvão (c. 1940) © IVDP

Evolução da paisagem das Quintas de S. Martinho e Banco, situadas em Soutelo do Douro, em que além das mudanças provocadas pela alteração do rio Douro, se assinalam as alterações provocadas pelos avanços e recuos dos cultivos e a transformação das arquitecturas de habitação e produção.

Fig. 24 – Quintas de S. Martinho e Banco, foto Egídio Santos (2014) © Município de S. João da Pesqueira

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insere-se numa necessidade da sociedade contemporânea de preservar o passado em face do progresso acelerado e dos ímpetos consumistas que a caracterizam. No caso do Douro, a valorização centra-se especialmente nos elementos produzidos pelo plantio da vinha, mas cuja existência está associada um universo patrimonial mais vasto, também ele transformador da paisagem. Sem o (re)conhecimento deste suporte as formas de armação do terreno correm o risco de serem elementos quase isolados, quando na verdade se inserem numa realidade mais complexa, da qual as quintas são um excelente repositório. Estas unidades de exploração agrária são o elemento mais dinâmico da paisagem cultural do Douro, alterando as suas estruturas em função dos ciclos produtivos e das lógicas de rendimento. O (re)conhecimento desta realidade é um ponto de partida para a valorização integrada do património paisagístico, evitando a perda de importantes valores patrimoniais da história regional duriense. Porque associada a épocas de trabalho duro e mal recompensado, a importância desta paisagem nem sempre é reconhecida pelos seus construtores. Para a generalidade dos durienses a modernidade é sinónimo de melhoria de vida e de colheitas mais compensadoras. Se a sensibilização da população é um processo demorado, os grandes viticultores e empresas têm já consciência do valor deste património e da necessidade de o conservar. Visto como um recurso, a imagem da quinta serve para promover os produtos aí preparados, aliando modernidade e tradição.

BIBLIOGRAFIA AGUIAR, Fernando Bianchi de (coord.) (2000) Candidatura do Alto Douro Vinhateiro a Património Mundial. Porto: FRAH. ELIAS PASTOR, Luís Vicente (2011) - El paisaje del Viñedo: Una mirada desde la antropología. Madrid: Eumedia / Gobierno de España, Ministerio del Ambiente Y Medio Rural Y Marino. ISBN 978-84-936032-4-3. EUROPE, Council of (2000) - European Landscape Convention. Florence: Council of Europe. FAUVRELLE, Natália (2001) - Quintas do Douro. As arquitecturas do vinho do Porto: Cadernos da Revista «Douro – Estudos & Documentos». Porto: GEHVID/Câmara Municipal de S. João da Pesqueira. GARGUREVICH GONZÁLEZ, Emma (2013) Proceso de catalogación de los paisajes culturales en Perú. In HERNÉNDEZ-RAMIREZ, J.; GARCÍA VARGAS, E.- Compartiendo el Patrimonio: Paisajes culturales y modelos de gestión en Andalucía y Piura. Sevilla: Secretariado de publicaciones de la Universidad de Sevilla. p. 39-48. MAGALHÃES, Nuno (2011) - A viticultura na Região do Douro - dos primórdios às grandes mudanças no virar do século. In MAGALHÃES, Nuno (coord) - Francisco Girão: um inovador da vitivinicultura do Norte de Portugal. [Porto]: Fundação Francisco Girão. Vol. II, p. 42-79.

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Quinta do Paço do Monsul um património Singular texto: Carlota Cabral, Mestre pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa ([email protected])

Nota biográfica: Carlota Vasconcelos Porto Cabral Nascida a 9 de Março de 1986, na cidade do Porto. Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre em Património Histórico pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a tese de mestrado “Quinta do Paço do Monsuluma proposta de classificação” com a média final de 15 valores. De Abril a Setembro de 2011 estagiou na Câmara Municipal de Peso da Régua, no Sector de Cultura e Turismo. De setembro de 2011 a dezembro de 2013 exerceu as funções de coordenadora do Centro Local de Aprendizagem de Peso da Régua, da Universidade Aberta.

Resumo As Quintas Vinhateiras são um importante património, constituindo um insubstituível repositório das vivências e do saber fazer duriense. Neste artigo apresenta-se um caso exemplar: a Quinta do Paço do Monsul, situada na freguesia de Cambres, no concelho de Lamego, que reúne um assinalável conjunto de valores históricos, culturais, arquitetónicos e paisagísticos. Analisa-se ainda a contribuição para a preservação deste importante património da sua eventual classificação como imóvel de interesse público.

Abstract The Quintas are an important heritage, an irreplaceable repository of the experience and know-how of Douro. This paper addresses a unique example: the Quinta do Paço do Monsul, located in Cambres, Lamego, which encompasses a remarkable set of historical, cultural, architectural and landscape heritage. The possible contribution for the preservation of this important heritage through its eventual classification as an imóvel de interesse público (public interest building) is analysed.

Palavras-chave: Património, Alto vinhateiro, Classificação, Quintas durienses

Keywords: Heritage, Alto Douro vinhateiro, Classification, Quintas of Douro

Douro

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1. INTRODUÇÃO

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s “quintas” são um importante património imóvel, espelho das vicissitudes da evolução do Douro, constituindo um insubstituível repositório das vivências e do saber fazer duriense. São testemunhos históricos e culturais da construção de uma paisagem, onde se alia ao património material um inestimável repositório do saber e dos costumes associados à cultura da vinha e do vinho. É este o caso da quinta do Paço do Monsul, situada na freguesia de Cambres, no concelho de Lamego. Através da pesquisa realizada sobre os fundos documentais existentes na propriedade, bem como sobre a bibliografia disponível, obtiveramse os dados que permitem considerar este conjunto como um exemplo muito interessante e significativo de uma unidade de exploração e produção agrícola que carateriza um espaço indissociável do território e paisagem duriense Património da Humanidade: a quinta vinhateira. Adicionalmente, tendo em conta o carácter histórico da Quinta, a sua evolução e importância ao longo dos séculos, a sua relação com a zona onde se insere, o património construído e o bom estado de conservação atual, discute-se a vantagem de propor a sua classificação como imóvel de interesse público. A classificação é encarada como fator positivo para a sua manutenção e conservação, sem adulterações significativas, garantindo às gerações vindouras o conhecimento de um dos elementos fundamentais da construção da paisagem do Douro vinhateiro.

2. A QUINTA DO PAÇO DO MONSUL 2.1 Antecedentes históricos Quinta do Paço do Monsul situa-se no Alto Douro, na margem esquerda do rio Douro, precisamente na sub-região mais ocidental, o Baixo Corgo, na freguesia de Cambres, lugar de Rio Bom, conselho da Lamego. Assenta numa elevação de terreno, com o seu perímetro marcado por ciprestes, traçando um recorte nítido no panorama geral, de onde se destaca. O primeiro proprietário da Quinta do Monsul foi Pedro Viegas, que a vendeu a D. Teresa Afonso, em 116354. Por sua vez, esta doou-a ao mosteiro cisterciense de Santa Maria de Salzedas, do qual foi fundadora55. Como método de exploração, os monges cistercienses recorriam aos aforamentos, sistema que mediante o pagamento de rendas, entregavam as terras a explorar a pessoas individualizadas ou a um coletivo de pessoas56. Essa situação ocorreu na Quinta do Paço do Monsul em 1331, data em que é emprazada ao conde de Penela. Este ato é assinalado num documento referindo-se a Granja do Moçullo (FAUVRELLE, N., 2001, p.135), e nele se fazendo alusão ao Paço e à Torre. Em 1469, a Quinta é novamente emprazada, desta vez a Gonçalo Afonso Coutinho e a sua mulher, Beatriz Dias. Nesse emprazamento fazem-se já referências à existência de lagares57. Outro prazo feito a Paulo Rodrigues, em 1541, contém uma breve exposição da Quinta e refere-se à Caza do Paço e a dittas moradas que forão emprazadas a Gonçallo Affonso58. No prazo datado de 12 de Abril de 1578, a Quinta é descrita de forma mais pormenorizada. O prazo é igualmente efetuado pelo Mosteiro de Santa Maria de Salzedas a D. Anna Rodrigues e, a partir deste

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54  No documento consta a data de 1201. Porém, o autor deste livro apresenta-nos a explicação: “ […] quem foram os seus primeiros pessoidores desde a era de Cezar 1201 que vem a ser anno de Christo de 1163…”. História das propriedades da Caza do Mosnul: Índice destas Memórias anno de 1862. fl.1 AHQPM, Museu do Douro. 55  FAUVRELLE, N., 2001, p.135 56  RODRÌGUEZ, J. I. T.,1999, p.157 57  […] que por diante pague o Foro dellas herdades Vinhas Souttoss, e huma parte Olivaes, e Lagares e Pumares, mais a Vinha que trazia Joao Gonçalves, e Soutto com seu Bacello, assim como parte a Vinha de Antonio Fernandes com o lagar de Gonçallo Lopes e com o Cabbido e com Gonçallo Affonso, e mais o Lagar da Molher do dito Antonio Fernandes […].Cit. por FAUVRELLE, N. (2001), p.142. 58  FAUVRELLE, N., 2001, p. 136

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documento, percebe-se a clara diferença existente entre os edifícios da Quinta e dão-se pormenores sobre as suas dimensões: haveria uma casa sobrada, outra casa serviria de cozinha, outra casa sobrada a que chamavam Torre e outra maior a que chamavam Paço. Descrevem-se igualmente os lagares, o que seriam os armazéns e “a cozinha de fora”, edifícios contíguos uns aos outros59. Mais tarde, em 1599, Gaspar de Carvalho de Lucena, genro da Ana Rodrigues, e sua mulher, Leonor Gouveia Leitão, instituem no Monsul uma capela de invocação a Santo António. Esta capela será mencionada no prazo de 1691, feito a D. Antónia Salema60. Outros contratos de emprazamento que pertencem ao Arquivo Histórico da Quinta do Paço do Monsul revelam a tentativa de manter a Quinta na mesma família ao longo dos tempos, neste caso a família Guedes de Vasconcelos. A 20 de Junho 1888, a Quinta do Paço do Monsul foi vendida por Afonso Guedes de Carvalho, descendente dos referidos Guedes de Vasconcelos, a Artur Mendes de Magalhães Ramalho, ficando durante nove anos fora da família Guedes. Em 1897, volta a ser recuperada por Afonso do Vale Coelho Pereira Cabral61 e sua mulher Inês Guedes de Carvalho62, que realizaram, então, obras de alguma envergadura nas infraestruturas da propriedade. Note-se que a Quinta mantém atualmente praticamente as mesmas estruturas e o aspeto que lhe 59 […] Emprazarão humas cazas que estão na Quinta do Moçullo. Primeiramente huma caza sobrada que tem em comprimento seis varas e de largo quatro; Outra caza que serve de Cozinha a qual he terreira que tem sette varas de comprido e quatro varas de largo; Outra caza sobrada que chamão Torre que tem sette varas de comprido e sinco de largo. Uma outra caza que chamão Paço que tem sette varas de comprido e de largo sinco. Outra caza terreira com hum pardieiro que tem tudo de comprido treze varas de largo quatro. Outras cazas sobradas com suas lojas que tem de comprimdo nove varas e de largo seis varas. Huma caza que tem dous lagares que tem de comprido sinco varas e meia e de largo sette. Hum pardieiro pegado a esta caza que tem sette varas de comprido e oito de largo. Mais outra caza derrobada que tem seis varas de comprido três de largo, partem estas cazas, digo outra cozinha sobradada que tem sinco varas craveiras em comprido e três e meia de largo, partem estas cazas com Anna Gonçalves moradora na mesma Quinta e com Pantalião Francisco morador em Sande, tem estas cazas huma serventia para hum terreiro que esta adiante dos portaes das dittas cazas… Cit. por FAUVRELLE, N. (2001), pp. 136-137. 60 “Ittem o Casco da Quinta que emche em si dezacette Olliveiras e arvores do Espinho e Pumar e huma Horta, e huma Capêlla […]” Cit. por FAUVRELLE, N.(2001), p. 153. 61  Homem com grande ligação ao Douro, proprietário da Quinta do Cachão e filho de Constantino António do Vale Pereira Cabral, também ele detentor de importantes quintas, como sejam a do Seixo em Valença do Douro, do Cachão em Vale da Figueira e de Trevões em Sarzedinho. 62  Sobrinha de Afonso Guedes de Carvalho. CABRAL, A.V.C.P. – Livro de vários apontamentos começado em 20 de Fevereiro de 1899, AHQPM.

foi dado no final de século XIX por esses proprietários. 2.1 Breve descrição da Quinta a breve descrição da Quinta que é efetuada em seguida dá-se maior ênfase à casa do proprietário, dada a sua dimensão, à capela, pela sua importância e à parte agrícola e de recreio, por constituírem espaços que valorizam grandemente o edificado. Baseando-nos nos prazos acima mencionados, depreendemos que as construções que atualmente compõem a Quinta seriam, na sua maioria, as mesmas que aí estão referidas, já que a sua disposição e utilização se mantêm no presente. No sopé de uma encosta, na Estrada Nacional 1069 em direção a Rio Bom, situa-se a entrada da quinta que se faz por um caminho, até há poucos anos de terra batida, hoje empedrado, que vai dar a uma exótica alameda de grandes palmeiras, plantadas nos primeiros anos do século XX. Como é habitual, a casa do proprietário fica situada numa zona mais elevada, marcando o estatuto e a função social dos seus donos. É composta por rés-dochão – incluindo uma pequena adega e armazém – sobrado e piso superior, constituindo estes últimos os espaços habitacionais. O sobrado é o piso “nobre”, onde se encontram as dependências de maior importância, como a sala da entrada onde se recebem as visitas, a sala de jantar, o escritório, os melhores quartos de dormir e a cozinha. À casa, de traça simples, junta-se um elemento de algum prestígio, a escadaria de pedra, que termina num balcão de acesso à entrada principal. A casa foi objeto de vários e consecutivos acrescentos, com alas que datam do século XVI e outras já do século XIX63. Ao longo dos anos, a evolução foi decorrendo de acordo com os recursos financeiros dos proprietários, sendo que a mais recente – a construção do terceiro piso (acrescentado entre o final de século XIX e o início do século XX) se deveu às necessidades de alojamento da família (Afonso Pereira Cabral e Inês Guedes de Carvalho tiveram 14 filhos). Quanto à Torre referida nos prazos acima transcritos, muito provavelmente constituiria a parte norte da casa, a chamada torre medieval64.

N

63  FAUVRELLE, N., 2001, p.71 64  FAUVRELLE, N., 2001, p.140. O Dr. António Vasco Rebelo Valente (genro de Afonso Pereira Cabral e Inês Guedes de Carvalho) executou, em 1927, numa parede interior da casa uma pintura mural reconstituindo a Caza do Paço e Torre do Moçulo efetuada com base nas descrições contidas nos referidos prazos. Essa pintura mural mantém-se atualmente em razoáveis condições de conservação.

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A fachada da casa ergue-se de frente para o pátio da Quinta. O pátio é um elemento comum nas quintas do Douro sendo que, neste caso, todas as estruturas de apoio agrícola, lagares, adegas, assim como a casa dos caseiros e a Capela estão voltadas para ele. Desta forma, torna-se um elemento agregador das várias construções, permitindo uma maior unidade e, ao mesmo tempo, isolando-as do exterior através de portões e portinholas de ferro. No pátio, em lugar central, encontra-se um grande tanque com a data de 1469. A casa dos caseiros, com uma estrutura idêntica à casa principal, mas mais modesta em termos de espaço, situa-se afastada da casa dos senhores. É este o primeiro edifício com que se depara ao entrar no pátio, do lado direito. Tem dois pisos e o acesso ao primeiro andar faz-se por uma escada exterior. Entre a casa do proprietário e a dos caseiros – as construções de maior dimensão – rodeando e fechando o pátio, existem outras importantes estruturas destinadas à atividade agrícola. São os armazéns, as adegas e os lagares, que funcionaram regularmente até meados do século XX, constituindo equipamentos essenciais para todo o processo de preparação de vinho e o azeite, que era também produzido na Quinta até 1940. Elemento de grande importância nas quintas durienses é a cozinha. Na Quinta do Paço do Monsul existem duas cozinhas, estando uma delas localizada na casa principal e a outra num edifício distinto, junto dos lagares e adegas. Esta cozinha, que mantém a tradicional lareira, elemento agregador de convívio, é utilizada pelos caseiros e trabalhadores da propriedade e é chamada a “cozinha de fora”. Muito provavelmente é a mesma que vem mencionada no prazo anteriormente referido de Abril de 1578 a D. Anna Rodrigues. Salvo algumas modificações que se tornaram obrigatórias, como é o caso de alguns equipamentos e das canalizações de água e gás, a cozinha da casa preserva toda a sua antiga disposição. Também as cores foram mantidas – o amarelo ocre nas paredes e o azul na madeira das portas e armários – o que contribui para o ambiente tradicional, que ainda hoje nela se respira. Tal como a cozinha, outros espaços na casa do proprietário têm interesse e merecem a nossa atenção. Entrando pela porta principal, deparamo-nos com uma ampla sala de receção, com um interessante teto em masseira e um rústico travejamento em madeira.

Passando por este aposento, pode entrar-se quer na sala de estar, com tetos em caixotões octogonais, quer no escritório, onde está guardada grande parte da biblioteca da Quinta. Neste escritório, que beneficia de uma atmosfera muito particular, já que é mantido praticamente com a mesma decoração, arrumação e equipamentos com que Afonso Cabral o deixou na data do seu falecimento em 1946, existe uma escrivaninha do século XIX e um cofre dos princípios do século XX65. Note-se que a maior parte do mobiliário existente na Quinta foi adquirido em fins do século XIX, mantendo-se atualmente praticamente na mesma disposição. De entre os edifícios que compõem a Quinta do Paço do Monsul, destaca-se, pelo seu particular interesse, a Capela, datada de 159966. Fica situado à esquerda de quem entra no pátio da Quinta e no lado oposto à casa principal, num local afastado, mais adaptado às suas funções religiosas: em frente das Casas da mesma em hum logar solitário próprio para a meditação e oração67. Esta capela tinha o privilégio de possuir o Santíssimo Sacramento68, como se pode ler nas memórias de Afonso Cabral: Concluídas estas obras, estabeleceu-se novamente a capellania n’este santuário, que desde estes annos se achava interrompida com sensível prejuízo para a visinha povoação de Rio Bom, a qual pela distância da sede da freguesia se achava muito desprovida de recursos espirituais. Todo o povo de Rio Bom frequentou sempre a Capela do Monsul nos dias santificados (…)69. Na própria Capela, e reafirmando este aspeto, podemos ler numa das suas inscrições o seguinte: Os administradores desta Capella tem permissão de aqui poderem ter sempre o santíssimo sacramento, e a despeza da sua lâmpada é a custo do grande patrimonio que esta mesma Capella lhe fizerão em 1679. A capela foi objeto de algumas obras de conservação 65  Cofre de 1911 da fábrica João Thomaz Cardoso de Villa Nova de Gaya. 66  Em huma inscripçao que esta levantada á direita do arco da capella dis seg: Esta Capella foi Edificada por Gaspar de Carvalho de Lucena Fidalgo da Caza de Sua Magestade filho de Luis de Carvalho Souza Guedes Fidalgo Cavalleiro de El Rei e de sua Molher D. Anna Carreiro no anno de 1599.” História das propriedades da Caza do Monsul: Índice destas Memórias anno de 1862. AHQPM, fl. 101. 67  História das propriedades da Caza do Monsul, 1862. AHQPM, fl. 101. 66. 70.

68  CABRAL, A.V.P.C. – Livro de vários apontamentos, AHQPM, p. 69  CABRAL, A.V.P.C. - Livro de vários apontamentos, AHQPM, p.

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e restauro, sendo as mais importantes efetuadas por ocasião do seu retorno para a família de Afonso Cabral, em 189770. Registe-se que estando aberta a toda a população, a capela de Santo António tem tido um papel importante no reforço da função social e agregadora da Quinta71, neste caso no plano religioso. No que se refere à parte agrícola e desde que há memória, a Quinta do Paço do Monsul tem mantido como função primordial a produção vinícola, particularmente a produção de vinhos generosos. Dos seus 22 hectares, cerca de metade são ocupados por vinha. Note-se que no princípio do século XX os seus vinhos já obtinham 12 a 13 graus de álcool e chegava a produzir vinhos com 15 graus 72. No entanto, a Quinta possui também pomares, horta, olival e mata, elementos hoje pouco frequentes nas Quintas vinhateiras. Ao longo dos tempos, por todo o Alto Douro esses plantios têm vindo a ser abandonados ou modificados a favor do vinhedo. No Monsul, ao contrário do que ocorreu na maior parte do território duriense, estes espaços foram mantidos e conservados. Nas traseiras da casa, ocupando patamares sucessivos ao longo da encosta que lhe está adjacente, estende-se o pomar, com o seu grande laranjal, limoeiros e árvores de frutos variados, às quais se acrescentam as nogueiras, árvore bem característica da região do Alto Douro vinhateiro. Durante muitos anos, este espaço acumulou a função de lazer e passeio, normalmente prestada pelo jardim73. Este terreno, em declive, tem na sua base a horta. É de salientar o complexo e extenso sistema de irrigação que a serve. Iniciando-se na parte superior do pomar no local onde existe uma mina, a água é canalizada através de regos em granito e decantada com recurso a curiosas pequenas bacias retangulares, também talhadas em granito, espaçadas regularmente em intervalos de cerca de 12 metros. A esta rede de canais, 70 “A primeira obra que tratei de fazer ao tomar posse deste casal foi a reforma da Capela a qual se achava em estado de abandono, desde de que a casa deixara de pertencer à família…Esta capela de modesta architectura como todas as d’aquella epocha na província tem o cunho característico do santuário d’aquele tempo, acentuado no campanário encimado pela cruz de ferro e cata-vento, a porta em arco, as ameias laterais ou “grandezas”, o interior baixo e sem coro, os azulejos, qb” CABRAL, A.V.P.C – Livro de vários apontamentos. p. 70. 71  Exemplo disso é a Missa Pontifical celebrada no dia 12 de Outubro de 1913, pelo então Arcebispo Bispo da Guarda, em que, pela ocasião, foram crismadas duzentas pessoas da freguesia. Cfr CABRAL, A.V.P.C, Memórias de família, p.136. 72  BRITO, F. A., 1916, p.12 73  FAUVRELLE, N., 2001, p. 84

que no seu conjunto tem mais de 400 metros, estão associados alguns tanques que servem toda a zona do jardim, pomar e horta. Há também minas e tanques na zona da mata. É esta mesma rede que alimenta de água o já referido tanque do pátio da entrada. Aliás, a Quinta beneficia de um abundante número de nascentes e fontes, facto nada comum na região do Douro, de clima seco e solos xistosos, pobres. Exemplificativo da fertilidade e capacidade produtiva da Quinta é o comentário efetuado por Manuel Monteiro, historiador de arte e etnógrafo, que nos inícios do século XX, descreveu a Quinta do Paço do Monsul como um mostruário experimental, um resumo prático da capacidade produtora do Douro74. Esta característica parece acompanhar a Quinta em toda a sua história. No lado poente da Quinta do Paço do Monsul, em terreno de certa elevação, encontra-se a mata, elemento hoje em dia pouco comum nas quintas do Douro. Como se viu, esta situação ocorreu sobretudo devido à desbravação que foi efetuada em grande escala a partir do século XVIII para dar lugar às vinhas e quase à monocultura vinícola. A mata é composta por diversas espécies arbóreas de tipo mediterrâneo, predominando os cedros, os pinheiros, mansos e bravos, os medronheiros e os castanheiros. Note-se que na Quinta existem mais árvores do tipo mediterrâneo (oliveiras e azinheiras, por exemplo), em conjunto com outras de cariz exótico, tais como o castanheiroda-índia, a palmeira, o eucalipto e a olaia. Toda a mata, assim como toda a propriedade, são recortadas por caminhos, todos com um nome. Um marco de pedra à entrada de cada “rua”, ou junto a um largo ou uma fonte, tem inscrito o nome de um familiar – a mulher, filhas e filhos, noras e genros de Afonso Cabral. Foi uma maneira do proprietário prestar homenagem aos seus mais próximos, tendo escolhido o olival para evocar, coletivamente, os netos e dedicando uma azinhaga aos bisnetos. Na verdade, ninguém foi esquecido e raras inscrições dizem respeito a não familiares. É exceção a “rua” dedicada ao santo de especial devoção dos proprietários, a “rua” de Santo António, e uma outra que perpetua a data do casamento de Afonso Cabral com Inês Guedes Carvalho em 1881, a “rua” 25 de Abril75. 74  MONTEIRO, M., 1998, p. 136 75  Há um terceiro e último caso, o Largo da Ínsua, que exprime a forte ligação à famosa Casa com o mesmo nome, situada em Penalva do Castelo, Mangualde, pertencentes a parentes próximos de Afonso Cabral.

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Desta forma, a mata ilustra exemplarmente a cultura e o pensamento romântico do proprietário, marcado pelos ideais românticos dos jardins ingleses do século XIX. De facto, juntamente com as palmeiras que ladeiam a alameda principal da Quinta, a propriedade possui os elementos fundamentais e característicos das modas que influenciaram o ordenamento de espaços recreativos da época. Para a construção destes espaços recorreu-se à plantação de espécies arbóreas e arbustivas exóticas, nomeadamente, o castanheiroda-índia e a olaia (ARAÙJO, I., 1979, pp. 375-387). Ao longo dos séculos XIX e XX, a mata destinavase ao passeio e recreio, tendo mesmo existido, à sua entrada, um campo de ténis e um largo arranjado com uma mesa e bancos de xisto, para pic-nic. Também o “caramanchão” - isto é, um recanto com mesa e bancos coberto por ripas revestidas de trepadeira, onde se tomava o chá, muito ao gosto inglês, hoje em desuso, era um lugar reservado para convívio nas tardes de canícula. Atualmente, alguns destes lugares de lazer desapareceram e parte do respetivo terreno foi utilizado para o cultivo de oliveiras e laranjeiras (este é o caso do campo de ténis). No entanto, a mata mantém-se intacta e permanece como local de passeio e convívio, mantendo-se também as fontes76 e os tanques espalhados por toda a horta, pomar e mata. Presentemente a Quinta pertence aos herdeiros de Afonso Cabral que mantêm a administração da casa e das atividades agrícolas. No entanto, e segundo o costume de há muitos anos77, a Quinta continua a manter caseiros, que aí habitam, e que ao longo do ano se responsabilizam pelos trabalhos agrícolas. A propriedade mantém-se indivisível e possui correntemente cerca de 40 proprietários que a utilizam de acordo com um peculiar sistema de rotatividade, usufruindo da casa principal, que possui atualmente condições razoáveis de conforto. É importante sublinhar que Quinta do Paço do Monsul não pode ser apreciada apenas por um ou outro dos seus edifícios, por um dos seus aspetos, por uma só parte, separadamente. A Quinta é indissociável da sua história, a casa é inseparável do pomar, o pomar da mata, a mata da vinha e assim por diante. 76 

Ornamentadas com gárgulas e carrancas.

77  Note-se que A Separata da revista “ A Vinha Portuguesa”, de 1916, faz referência ao caseiro Manuel Pascoal, que dirigia os trabalhos no Paço do Monsul, ao serviço de Afonso do Vale Coelho Pereira Cabral.

3. A CLASSIFICAÇÃO DA QUINTA

A

Quinta do Paço do Monsul situase numa zona classificada como Património Mundial da Humanidade, podendo suscitar o argumento de que a paisagem onde se insere é, por isso, objeto de grande valorização, levantando-se a dúvida se, neste caso, seria ou não vantajosa a sua classificação. Por diferentes motivos, aquele território vai sofrendo pequenas e mesmo grandes alterações, desde as de natureza estrutural às de carácter estético. As quintas vinhateiras não escapam a esta tendência, correndo o risco de perder a sua importância e identidade próprias, de ficarem expostas à desvalorização do seu património construído e mesmo à sua deterioração progressiva. Sendo a “quinta” um elemento central e representativo da estrutura daquele território, testemunho do desenvolvimento agrícola e técnico da região78, justifica-se que, pelo menos algumas das mais representativas, recebam uma classificação independente. Além da consequente proteção e valorização, este estatuto permitiria uma divulgação mais abrangente do interesse cultural e social destas quintas. No entanto, são em número muito reduzido as quintas vinhateiras classificadas ou em vias de classificação na região do Alto Douro Vinhateiro. No Baixo Corgo, onde se situa a Quinta, apenas existem neste momento quintas ou casas classificadas como imóvel de interesse municipal. Este facto reforça o interesse de existirem propriedades representativas daquele território valorizadas através da classificação de imóvel de interesse público. As exigências e pressões de rentabilidade económica que, no período corrente, se fazem sentir sobre os proprietários destas quintas, constituem um risco adicional para a salvaguarda do património. Na verdade, para além da eventual ignorância dos proprietários sobre o valor patrimonial dos seus bens ou da melhor forma de efetuar a respetiva conservação e manutenção, a corrente renovação dos métodos vitícolas e enológicos têm, infelizmente, conduzido à descaracterização de edifícios, estruturas e terrenos de quintas durienses, alterando radicalmente as técnicas de plantação e modificando a paisagem. 78  FAUVRELLE, N., 2001, p. 208

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Ao longo dos séculos e tomada no seu conjunto, a quinta do Paço do Monsul (com uma área total de 22 hectares e, desses, apenas cerca de metade plantados com vinha), conseguiu manter uma identidade própria, quase inalterada. Esta identidade está obviamente ameaçada pela necessidade de sustentabilidade económica. Para ilustrar o risco que a situação representa para a salvaguarda do património basta referir a corrente adesão ao turismo rural ou ao enoturismo e a renovação extensiva dos métodos vitícolas e enológicos. Neste cenário, a classificação como imóvel de interesse público permitiria uma garantia adicional de que a eventual reforma dos edificados poderia ser efetuada sem danificar o valor histórico, patrimonial, arquitetónico e paisagístico das quintas. No caso da Quinta do Paço do Monsul este aspeto é particularmente pertinente pois nela ainda se podem apreciar o “espírito” e os ideais arquitetónicos e paisagísticos do século XIX português, já que não sofreu remodelações significativas desde essa época. Por outro lado, considerando os avultados custos financeiros que acarreta a manutenção destas propriedades, a classificação permitiria usufruir dos correspondentes benefícios fiscais. Adicionalmente, e segundo a Lei do Património Cultural Português, o Estado promove apoio financeiro aos proprietários de bens classificados ou inventariados, concedendo-lhes condições especiais de crédito para que estes possam realizar obras de proteção e conservação dos imóveis79. A classificação seria ainda um obstáculo à tentação de se introduzirem alterações profundas, quer no património construído, quer nas práticas de cultivo80, quer na sua funcionalidade81, que acabariam por o adulterar e ofender o seu contexto e a sua conceção inicial. A Quinta do Paço do Monsul não será a única propriedade na sua região a merecer um destaque especial. Mas é, seguramente, uma das muito poucas que reúne, numa só unidade, um assinalável conjunto de valores históricos, culturais, arquitetónicos e paisagísticos que faz todo o sentido preservar. Na nossa perspetiva, pela sua longa história, pelo raro 08).

79  Artigo 99º do Decreto-Lei nº 107/01 D.R. I Série-A 209 (01-09-

80  Desde o início do século XX, vinhas da Quinta mantêm-se plantadas de acordo com as práticas da época, incompatíveis com as atuais exigências de mecanização. 81  Por exemplo, transformar a Quinta para um hotel ou turismo rural.

conjunto de valências que possui e porque continua a ser, no meio em que se insere, um testemunho vivo de múltiplas relações culturais de vasta memória que são importantes para o presente e para o futuro, merece obter a classificação de imóvel de interesse público.

4. BIBLIOGRAFIA Fontes Manuscritas AHQPM - Arquivo Histórico da Quinta do Paço do Monsul: História das propriedades da Caza do Monsul, 1862, Museu do Douro. CABRAL, Afonso do Vale Coelho Pereira – Livro de vários apontamentos, começado a 20 de Fevereiro de 1899, Arquivo Histórico da Quinta do Paço do Monsul. CABRAL, Afonso do Vale Coelho Pereira – Memórias de Família. Porto, 1892-1945. Referências Bibliográficas BRITO, F. d’ Almeida e (1916) – A Quinta do Paço do Monsul no Alto Douro. Revista agrícola “A Vinha Portuguesa”. Porto, Novembro. FAUVRELLE, Natália (2001) – Quintas do Douro. As arquitecturas do Vinho do Porto. Porto: GEHVID Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto. ARAÚJO, Ilídio (1979) – Jardins, parques e quintas de recreio no aro do Porto. Revista de História. Vol. II. Porto, pp. 375-387 MONTEIRO, Manuel (1998) – O Douro e as Principaes Quintas, Navegação, Culturas, Paisagens e Costumes. Edições Livro Branco, Lda. RODRÍGUEZ, José Ignacio de la Torre (coord.) (1999) – Cister no Vale do Douro. Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto. Edições Afrontamento, Lda.

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Santos da casa: Capelas, devoção e poderes a sul do Douro no memorialismo paroquial de 1758. texto: Nuno Resende, DCTP – Faculdade de Letras da U. Porto ([email protected])

Nota bio-curricular: Nuno Miguel de Resende Jorge Mendes (Nuno Resende) Nuno Resende nasceu em Cinfães, a 29-8-1978. É doutor em História da Arte Portuguesa (2012) e mestre em Estudos Locais (especialização em construção de Memórias Históricas) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2005) tendo concluído a licenciatura em História (variante científica) pela Universidade do Minho no ano de 2001. Foi investigador do Museu Nacional Soares dos Reis (2003-2004) onde participou na elaboração de várias exposições temporárias. Em 2006 foi convidado pela Diocese de Lamego para coordenar a 2ª fase do Inventário do património religioso e cultural nos arciprestados de Lamego e Tarouca tendo então comissariado duas exposições sob o tema do património religioso no vale do Douro («A Montante do Tempo», 2006 e «A Palavra e o Espírito», 2007). Foi, ainda, coordenador editorial e científico de diversas publicações editadas pela Diocese de Lamego, nomeadamente os 2 volumes do catálogo resultante do projecto de inventariação: «O Compasso da Terra», em que participaram 24 investigadores nas áreas da História e História de Arte de diversas universidades nacionais. Foi bolseiro FCT tendo apresentado, em Setembro de 2011, a sua tese de doutoramento em História da Arte Portuguesa (bolseiro FCT) que versava a temática da hagiotopografia no território de Montemuro entre os séculos XVI e XVIII. Foi investigador-bolseiro ao serviço da Universidade do Porto/VALSOUSA, onde efectuou trabalho de investigação e concebeu material propedêutico no âmbito do projecto Rota do Românico. Exerce actualmente o cargo de professor auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Património. É membro do Secretariado Diocesano dos Bens Culturais da Diocese de Lamego e integra, ainda, o conjunto de investigadores do CITCEM – Centro de Estudos de População e Sociedade. Entre os vários trabalhos publicados contam-se artigos e obras nas áreas dos estudos de população, sociedade e família, fotografia e retrato histórico, arte religiosa, biografia e micro-história, entre outros temas, num período que baliza entre a Idade Moderna e a contemporaneidade. Contacto institucional: [email protected]; contacto pessoal: [email protected]

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Resumo: Esta comunicação pretende abordar algumas questões ainda emergentes, quer no âmbito da historiografia, quer no contexto da historiografia da arte sobre as capelas - templos de pequena ou média dimensão isolados, adossados a templos maiores, incorporados ou vinculados a habitações senhoriais. Em primeiro lugar: de que forma arte e o património religiosos se impuseram no território, fora das igrejas e a cargo de particulares? Como se articulavam, no território e no contexto hierárquico e legalista português de setecentos as capelas, os seus instituidores e (ou) administradores e os poderes locais e regionais? A região de Montemuro a que nos reportamos, considerada nas suas paróquias e divisões menores – no caso o distrito eclesiástico do Douro - apresenta na geografia e na documentação memorialista de 1758 que se lhe refere (a nossa fonte principal de análise) aspectos que permitem, se não responder, pelo menos aflorar alguns aspectos relacionados com estas problemáticas. Procuraremos assim dar expressão visual ao fenómeno de construção do património religioso por particulares e a escolha das devoções - contextualizando a sua fundação e gestão num período pós-Tridentino, quando a Igreja adoptou novas medidas de controlo sobre legados, óbitos e fundações pias - mundo jurídico em que se enquadram aquelas estruturas. Palavras-chave: Capela, casa, hagiotopografia, memorialismo, paróquia.

devoção,

Abstract With this article we pretend to focus on some emerging issues within the historiography and historiography of art about chapels – catholic temples of small or medium size, isolated or linked to manor houses. How was religious art brought outside churches and other public religious buildings by individuals? How was articulated within the territory and within the hierarchy of the Catholic Church the construction and management of chapels by laic founders within a local and regional context? The region to which we refer – Montemuro - , considered in its parishes and smaller divisions - in this case the ecclesiastical district of Douro - presents in its geography aspects that allow, if not to answer, at least touch on some aspects of that issues. As so we will try to answer those questions and others about these religious heritage buildings, addressing private devotions and the motives related to their choice - contextualizing founding and management of chapels in post-Tridentine period, when the Church adopted new control measures on legacies and pious foundations. For that we use a specific historic source called Memórias Paroquiais, dating from 1758, that document and characterize through a series of questions the heritage within parishes. Keywords: Chapel, manor house, nobility, hagiotopograhy, historical memory, parish.

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INTRODUÇÃO

O

nosso projecto de doutoramento levou-nos a procurar elementos para a compreensão sobre a fundação, implantação e desenvolvimento de templos católicos comunitários, vulgarmente designados por capelas ou ermidas82. Estruturas de dimensões menores (por comparação com a igreja matriz) edificadas em contexto urbano ou isolado serviam as populações, distantes da matriz, nos ofícios religiosos ou para-religiosos estimulando – nomeadamente através da escolha de uma entidade patronal – o fortalecimento de laços vicinais e marcando a paisagem enquanto eixos de atracção social. Embora centrássemos a nossa atenção no período moderno (sécs. XVI-XVIII), depressa constatámos que aquele fenómeno e o seu desenvolvimento em determinadas geografias repetia um modelo iniciado na Idade Média: a autonomização de comunidades mais afastadas da igreja matriz. Para maior comodidade no acesso aos ofícios (ou até dando expressão a desejos colectivos) as comunidades alcançavam, através da construção de uma ermida, depois elevada a curato, a qualidade de paróquia. Este processo, designado por A. Almeida Fernandes como das igrejas filiais, ocorreu ao longo da Idade Média assente num esquema aparentemente simples: a partir de um templo principal criavam-se desdobramentos regionais, concêntricos, de igrejas menores que recebiam oragos iguais aos templos matriciais ou cultos induzidos pelos indivíduos à frente das instituições ligadas aos templos principais83. Tal processo de filiação foi estudado no aro de Lamego pelo referido historiador, mas o fenómeno não se esgotou nos limites da Idade Média, como podemos aferir pelo nosso estudo. De facto a complexidade deste fenómeno, entre a escolha do orago até à 82 

RESENDE, 2012a.

83  FERNANDES, 1963. Acrescentámos alguns dados referents ao estudo deste processo em estudos locais: RESENDE, Nuno (2010a) – «Lamego e a sua catedral no Códice 390 da colecção António Capucho (1679-1712): espaços e dinâmicas segundo um livro de despesas do Cabido lamecense». In BRAGA, Alexandra; SARAIVA, Anísio - Espaço, Poder e Memória. A Catedral de Lamego. Lisboa: CEHR. E ainda em: RESENDE, Nuno - O concelho de Magueija. Lamego: União das Freguesias de Bigorne, Magueija e Pretarouca, 2014. 978-989-20-5006-5

fundação e por vezes à extinção das ermidas ou daí à transformação em curato e igreja não permitia cingíssemos a nossa atenção num edifício cronologicamente limitado a um breve período e pudemos acompanhar a evolução estrutural e jurídica destes templos num tempo dilatado, extrapolando assim para o período moderno, o que parecia ter ocorrido apenas ao longo da Idade Média e que A. Almeida Fernandes explica numa base puramente documental. Recorrendo à colação de dados estatísticos, à observação directa e à análise documental constituímos uma base de dados composta por 206 edifícios distribuídos geograficamente pelo território designado por maciço de Montemuro, conjunto montanhoso na margem sul do Douro, entre os rios Paiva e Balsemão. A escolha do território fundamentou-se na homogeneidade geográfica cujos limites naturais serviam de fronteira a várias unidades administrativas e eclesiásticas, entre paróquias, municípios, coutos, honras e os distritos eclesiásticos – elementos importantes para compreendermos a administração temporal e religiosa da Diocese de Lamego no período moderno84. Ao longo dos dois séculos a topografia religiosa sofreu alterações profundas no maciço de Montemuro. Acompanhando o sentido ascendente da humanização – dos vales aos planaltos – as ermidas foram sendo edificadas no espaço comunal das aldeias, cumprindo a sua função de casa de oração e acolhimento espiritual, mas também marco visual na paisagem e eixo de novos percursos que o aumento demográfico determinava, criando ou fortalecendo comunidades distantes da velha igreja matriz e estabelecendo novos locais de culto relacionados com as necessidades colectivas das populações. O estudo da implantação destes edifícios e a relação da entidade com o território e a comunidade veneradora, designado como hierotopografia ou hagiotopografia85, permitiu-nos aproximar da razão ou razões inerentes a tais fundações: a protecção do espaço agrícola, a salvaguarda do património humano e a intervenção no território do ponto de vista urbanístico ou social, através da criação de santuários e centros de romagem – pólos de atracção religiosa e comercial. A geografia de Montemuro permitiu-nos, outrossim, avaliar de vários níveis ou tipologias de implantação, não apenas dentro da esfera das categorias de urbano, periférico ou isolado, mas procurando esta84 

Cf. Capítulo II, em RESENDE, 2012a.

85 

Sobre estas definições ver Ibid: 208 ss.

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belecer relações entre os cultos, a orografia, a exploração dos recursos naturais e a percepção do Homem sobre a paisagem. Nesse sentido foi necessário determinar com o rigor possível dentro da complexidade do tema exposto o limite do nosso objecto de estudo, nomeadamente através da utilização de uma designação lhe conferisse um âmbito de modo algum redutor no espaço ou no tempo. As denominações genéricas que, de resto, já utilizámos – ermida ou capela – constituem-se como a forma mais comum para designar o templo de culto católico, de pequenas dimensões, aberto à devoção pública, frequentemente associado ao mundo rural. Assim o plasmou a historiografia local que através dos seus cultores nem sempre se mostrou interessada na boa aplicação terminológica, ignorando a raiz vocabular ou a polissemia das palavras. Uma busca pela dicionarística portuguesa permitiu confirmar uma utilização recente e mais abrangente dos termos, mas a sua origem e aplicação ao longo da Idade Média e da época Moderna parecia menos polissémica: ermida aludindo a qualquer templo público, erguido em espaço urbano ou isolado e capela no sentido de espaço interior associado a património particular86. Conquanto nos interessassem as ermidas e a sua posição em contextos devocionais colectivos e como marcos-eixos na paisagem e no território, apenas fizemos uma breve incursão pelo universo das capelas87. Dos dados recolhidos nas fontes disponíveis elaborámos algumas comparações entre ermidas e capelas, nomeadamente quanto à distribuição dos oragos e cultos – que expressam efectivamente a distância entre o colectivo e o privado (ver ponto 4 deste trabalho)88. Mas as problemáticas associadas às capelas e ao seu universo não nos suscitaram questões imediatas. De resto, as capelas - amiúde associadas a uma estrutura maior, habitacional ou religiosa -, distanciam-se da ermida exactamente por essa dependência ou vínculo a património individual ou linhagístico que desde logo justificaria a sua construção e o local de implantação. À partida o posicionamento das capelas no território devia submeter-se aos desejos e estratégias dos indivíduos ou das instituições que, através de vontades particulares, indicavam o local de edificação e explicavam 86  Cf. capítulo I, ibid. 87  Cf. mapa 21, p. 235, ibid. Reproduzido neste ensaio. 88  Cf. Quadro 4, hagiologias patronais nas ermidas de Montemuro, ibid.

muitas vezes as razões subjacentes a tal escolha. Assim ficaram de fora do nosso estudo mais de uma centena e meia de edifícios (153) que não couberam na designação de ermida e cuja amostragem utilizaremos agora para aferir da extensão, importância e função deste tipo de património na construção da paisagem e urbanismo na sociedade a sul do Douro, nos séculos XVI a XVIII. Para tal utilizámos como fonte primária e principal o memorialismo de 175889, aceitando as limitações desta fonte - fundamentalmente quantitativa mas com possibilidades descritivas que é necessário explorar não obstante o condicionalismo ditado pela grelha do inquérito e as lacunas culturais dos redactores que responderam. As memórias paroquiais integram-se na categoria documental de inquéritos epistolográficos que marcaram o estudo académico e o conhecimento do território nos séculos XVII-XVIII. Apesar da sua riqueza contabilística e descritiva a ausência de estudos comparativos, a análise vocabular e do seu potencial qualitativo tem sido arredado dos estudos elaborados sobre esta fonte90.

89  As vulgarmente designadas Memórias Paroquias inscrevem-se num projecto academista iniciado pelo padre Luís Cardoso, da Congregação do Oratório que entre 1747-1751 iniciou a publicação de um Dicionário Geográfico, interrompido pela catástrofe de 1755. Três anos depois em 1758, a partir da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, e pela mão de Sebastião José de Carvalho e Melo foi posto a circular pelas dioceses portuguesas um inquérito que procurava, através das paróquias, conhecer o país nos seus eixos Terra, da Serra e Rio – três pontos ao longo dos quais se organiza o questionário. Para o nosso estudo utilizamos as questões número 13 do ponto I («Se tem algumas ermidas e de que santos e se estão dentro, ou fora do lugar a que pertencem»), 9 do ponto II («Se há na serra alguns mosteiros, igrejas de romagem ou imagens milagrosas»). As memórias estão disponíveis em PORTUGAL. Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo - TTOnline [em linha]. Lisboa: IAN/TT, 2005- . [consult. 29 Dez. 2006]. Memórias Paroquias. Disponível em http://ttonline.iantt.pt. Optámos por indicar ao longo do texto apenas as citações directas da fonte, remetendo para a consulta directa na plataforma IAN/TT as paróquias referidas no quadro I em anexo. 90  Sobre esta questão veja-se o que escrevemos em RESENDE, 2010: 14-17.

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II. AS CAPELAS: ESPAÇO E PODER(ES)

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mbora no caso das ermidas tivéssemos centrado a nossa atenção no próprio edifício, na sua implantação territorial e no cruzamento de dados estatísticos com a documentação que nos foi possível levantar, o universo das capelas possibilita o acesso a um conjunto mais expressivo de fontes históricas. A documentação produzida a este respeito reflecte o cuidado posto pela Igreja no controlo e fiscalização quer deste tipo de fundações/construções, quer na vigilância dos espaços, dos seus proprietários e nos rendimentos afectos ao pecúlio religioso administrado. Desde o início que a Igreja tentou refrear o acesso de leigos ao património eclesiástico. Na passagem do mundo romano ao cristianismo, eram os fiéis que custeavam a edificação de templos particulares (de resto costume de herança clássica) que resultaram em espaços comunitários - alguns deles catalisadores da população rural dispersa. Nasceram assim basílicas e outras estruturas de culto que acabariam por definir a genealogia de algumas igrejas paroquiais. Inalcançável pelo braço da Igreja de Roma - porque em formação e portanto pouco vigilante e incapaz de punir com celeridade - muitos daqueles templos tornaram-se proveitosa fonte de rendimento para leigos91. O próprio direito do padroado, instituído sobre aquele preceito, permitiu que ao longo da Idade Média famílias e linhagens «comessem» (a expressão é da época) nos bens de igrejas e mosteiros, onde dominavam como senhores de quase pleno direito92. 91  Viterbo discorre (Elucidário, entrada «Igreja») abundantemente sobre estas e outras questões, que demonstram a preocupação da Igreja em conter os abusos de leigos quanto à construção e administração de edifícios religiosos, cf. VITERBO, 1798: 32 ss (vol. II). 92  A este respeito cabe referir a primeira obra que no caso historiográfico português se debruçou sobre estas temáticas: Oliveira, Miguel - As paróquias rurais portuguesas. Lisboa: [União Gráfica], 1950. Outrossim a obra de Pierre David é fundamental para compreender, na passagem da Antiguidade Clássica para a Idade Média e no período da Reconquista o processo de formação de paróquias, cf. David, Pierre - Études sur la Galice et le Portugal du VIe au XIe siècle. [Coimbra]: Institut Français au Portugal, 1947. Mais recentemente e para o período paleocristão salientamos os estudos de Maciel, M. Justino - Antiguidade tardia e paleocristianismo em Portugal. Lisboa: [edição do autor], 1996, 972-96934-0-4. Estudos pontuais têm surgido, normalmente associados à arqueologia e que permitem acrescentar alguns dados à problemática do nascimento de templos cristãos e o seu dimensionamento ou a sua implantação em função de estruturas anteriores – tema complexo e ainda desconhecido que tem dado origem a teorias pouco sustentadas sobre a persistência de cultos, sincretismo e continuidades cultuais, cf., por exemplo, Lima, António Manuel Carvalho - Os mosaicos da igreja de Santa Maria do Freixo e a ecclesia de Tongobriga. Marco de Canaveses: DRCN/Estação Arqueológica do Freixo, 2012.

Mas se papas, bispos e sacerdotes tentaram combater este domínio laico sobre os bens eclesiásticos, a necessidade de assegurar o rendimento necessário para a fábrica e dotação de um número crescente de edifícios (construções em parte motivadas pelo aumento demográfico) determinou que não houvesse uma cisão completa entre padroeiros, hierarquias e estrutura eclesiástica. O crescente medo de uma morte impreparada e do próprio esquecimento pós-morte determinou que, por volta dos séculos XIII-XIV a fundação de capelas (e a própria definição) se adequasse ao quadro político, religioso e jurídico da época – de que a planimetria eclesial gótica é particularmente reveladora. De facto, às igrejas românicas de planta simples onde o espaço acusa um poder homogéneo e centralizado, sucederam-se as complexas construções góticas, marcadas pela justaposição de espaços menores adossados à nave: espaços particulares que senhores, leigos ou eclesiásticos, patrocinavam para sua memória e dos seus. Não obstante este modelo os senhores leigos não deixaram de, nos seus domínios, quererem aceder directamente ao espaço sagrado, movendo para isso esforços políticos e económicos para o fazer. Desde oratórios integrados na estrutura habitacional a edifícios isolados mas enquadrados em contexto fundiário, ainda durante a Idade Média alta e pequena nobreza usaram os seus recursos para aproximar o divino ao seu mundo quotidiano e doméstico. A mudança de paradigmas familiares, a volubilidade das relações sociais determinadas pela proximidade da morte e, naturalmente razões de teor económico, tiveram influência na conquista do património religioso pelos leigos, como se prova pela crescente instituição de vínculos – morgadios e capelas – que canalizaram para muitos espaços de culto dotes e legados aplicados não apenas em ofícios religiosos perpétuos, outrossim na construção e gestão daqueles espaços93. Estas dotações sobre as quais não existem estudos estatísticos parecem ter aumentado ao longo dos séculos XV e XVI, de tal forma que no decurso da época moderna constituem uma preocupação para alguns tratadistas, como Manuel Severim de Faria que, na sua obra Notícias de Portugal (publicado em 1655), disser93  Sobre esta problemática, do ponto de vista jurídico, salientámos para o caso português os estudos de: ROSA, Maria de Lurdes Pereira – O morgadio em Portugal: sécs. XIC-XV. Lisboa: Editorial estampa, 1995 e Id. - «As almas herdeiras». Fundação de capelas fúnebres e afirmação da alma como sujeito de direito (Portugal, 1400-1521). Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2011, 978-972-27-1938-4.

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ta sobre os morgadios e a sua importância na república94. A Igreja saída de Trento (concílio 1545-1563) preocupou-se em legislar devidamente sobre a fundação de capelas e outros edifícios salientando, na Sessão XIV, capitulo XII do referido concílio, que: «Ninguem, de qualquer Dignidade Ecclesiastica, ou Secular que seja, possa, nem deva adquirir, ou obter direito de Padroado, por qualquer razão que seja, senão fundando, erigindo de novo alguma Igreja, Beneficio, ou Capella; ou estando já erigida, mas sem dote sufficiente, dos seus proprios bens patrimoniaes a dotar competentemente. Mas em caso de Fundação, e Dotação, a Instituição será reservada ao Bispo, e não a outro»95. Centralizando na figura do prelado a autorização sobre a fundação de «igrejas, benefícios e capelas», o Concílio pretendia cercear as fundações particulares limitando o seu número e colocando-as sob a vigilância eclesiástica. De resto, à autorização da criação de capelas ou oratórios nas casas nobres, devia implementar-se um verdadeiro plano burocrático para garantir a boa contabilidade do espaço de culto, devendo o administrador recorrer a várias tipologias de livros de registo. A legislação tridentina ecoou no conjunto de normativas diocesanas portuguesas, como no caso de Lamego a que se reporta o nosso estudo. Este bispado, muito embora veicule já nas Constituições de 1563 um conjunto expressivo de legislação sobre os edifícios de culto96 apenas no sínodo de 1682 definiu plenamente a reforma católica de Trento. Aqui se determina que: Conforme a Direito, todas as ofertas que se põem em cada uma das Igrejas Paroquiais, ou Ermidas e Oratórios que estiverem em seu limite e freguesia, pertencem aos párocos, a cada um na sua. […] E portanto mandamos, sob pena de excomunhão maior ipso facto, que nenhuma outra pessoa secular ou Eclesiástica usurpe as ditas oblações ou ofertas como direito seu, nem se intrometerá por si, ou por outrem, as arrecadar para si, ou para outra pessoa, por o dito título. E quanto aos leigos, lhe não aproveitará prescrição e posse,

ainda que seja muito antiga, por quanto são incapazes desse direito […] 97. À data da produção das memórias (1758), vigorava ainda este sistema legislativo, sustentado em visitações cíclicas que pugnavam pelo cumprimento dos cânones – muito embora estivéssemos já perto das intervenções pombalinas para refreamento das instituições vinculares que terão impacto na administração de locais de culto associados a tais fundações98.

94  Cf. FARIA, 2003, Discurso Primeiro, §8, p. 34 (desta edição). 95  IGREJA CATOLICA. Concílio de Trento [15451563] - O sacrosanto, e ecumenico Concilio de Trento, 1781, Sessão XIV, capitulo XII, p. 391 96  Aqui definidos em três tipologias: igrejas, ermidas e oratórios – sendo que esta última designação pode ter o duplo sentido de capela ou igreja monástica, cf. VITERBO, 1798: 31 (vol. II).

97  LAMEGO, DIOCESE DE - Constituiçoens synodaes, 1683, Título VI, cap. 3, p. 147. No capítulo 4 refere-se ainda «Que as ofertas se não arrendem a leigos, nem eles possam tirar do altar». 98 

Ver RESENDE, 2012: 49 (vol. I).

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III. OS INDIVÍDUOS E AS INSTITUIÇÕES: DEVOÇÃO E (OU) ESTRATÉGIA?

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evemos, antes de mais, distinguir instituidores e administradores. Por instituidor entende-se o indivíduo que funda a capela ou a vincula a determinado património (dotação) necessário ao sustento do espaço religioso. Por vezes este acto coincide com a fundação de um vínculo associando à capela um nome e (ou) uma linhagem. O administrador, normalmente descendente ou parente do instituidor é aquele a quem cabe o encargo de gerir o património herdado, fazendo cumprir óbitos e legados, providenciando a fábrica do edifício e procedendo à tomada de contas a prestar ante visitadores eclesiásticos e outras entidades. Existem poucas referências a instituidores nas memórias de 1758 – de certa forma um indicador cronológico da fundação das capelas. Colhemos apenas três notas sobre edifícios concluídos, pouco antes ou à data da redacção da memória: a capela episcopal de São Miguel, no paço de Lamego; a capela dedicada a Virgem da Conceição em Picão (f. Oliveira do Douro) e a de São José, no lugar da Porta (F. São Cristóvão de Nogueira) que o reitor diz achar-se «finda mas não em termos de Se celebrar, por não ter ahinda alcançado Licença he ordinario»99. Dos padroeiros ou administradores das 153 capelas registadas em Montemuro em 1758 vinte e um eram eclesiásticos, setenta e cinco leigos, três instituições religiosas, três instituições laicas e cinquenta e três cuja qualidade não é especificada. É expressiva a percentagem de administradores leigos (48 por cento) que nos remete para um mundo laico e senhoril, embora não exclusivamente masculino. De facto dentre o conjunto dos setenta e cinco padroeiros, dez eram do sexo feminino. No rol de senhoras contava-se uma religiosa de São Bento que administrava a capela dedicada à Virgem da Graça no lugar do Picão e um conjunto de irmãs que tinham a seu cargo a capela de São Bento no lugar de Louredo da freguesia de São Cristóvão de Nogueira (ver quadro em anexo). Os clérigos desempenhariam, contudo, um papel nuclear, quer na fundação, dotação e administração 99  GOUVEIA, José da Cunha e - São Cristóvão de Nogueira [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: .

destas capelas, quer na participação nos ofícios litúrgicos ali celebrados, função que exerciam na qualidade de capelães100. Se é certo que, como no caso do Padre Manuel Teixeira Cardoso (n. 1687), de Oliveira do Douro, a capela da casa onde habitava serviu para ilustrar a memória e o nome da sua família através da instituição de um vínculo em 1740, noutras situações os sacerdotes aparecem referidos como funcionários (capelães) ao serviço de certo senhor101. Embora desconheçamos a identificação de quase metade do número de administradores, a fatia de quarenta e oito por cento dos padroeiros permite-nos uma incursão no mundo dos apelidos nobiliárquicos portugueses. Estão aqui representados indivíduos das famílias dos Pereiras (oito), dos Fonsecas (cinco), dos Melos (quatro), dos Vasconcelos (quatro), dos Carvalhos (três), dos Pintos (três), dos Coutinhos (dois) e dos Barros (dois) entre outros (ver quadro I em anexo). São, contudo, parcas as descrições dos memorialistas quanto à origem e estatuto social dos administradores, assim como à natureza do património assinalado. Se no caso das ermidas existe com alguma frequência uma alusão à sua implantação ou localização na geografia local e regional, apenas de forma esporádica o relator nos oferece um breve relance sobre a posição da capela no território ou a descrição da sua estrutura. Todavia a memória não esquece os ilustres da terra que muitas vezes integravam as principais famílias locais proprietárias de grande parte das casas e capelas que lhe eram contíguas ou lhe estavam vinculadas. Homens das governanças, clérigos e devotas senhoras incluíam-se como instituidores, administradores e benfeitores do património eclesiástico das freguesias, associando à obra o perfil piedoso e caritativo que lhes impunha o estatuto e a sociedade. Efectivamente a algumas destas capelas associavam-se estruturas e espaços de auxílio a quem buscava lenitivos, como no caso das Caldas de Aregos que, embora não fosse uma capela de família, era de administração particular e tinha associada uma albergaria e barca para ajuda a viandantes, administrada por leigos. Sobre a implantação das capelas no território colhemos no entanto algumas referências que convém elencar, mormente pelas expressões utilizadas pelos 100  Como especifica Bluteau, capelão era «o sacredotte assalariado que tem obrigação de dizer missa em oratório ou igreja», cf. BLUTEAU, 1712-1728: 122 (vol. II). 101 

RESENDE, 2012b: 119.

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memorialistas para situar os edifícios segundo o seu conhecimento e percepção visual sobre o território que paroquiavam. Em Ferreiros de Tendais o abade indica-nos localização de algumas das capelas no território paroquial: a de São Roque em Covelas estava «fora do lugar» e a de São Francisco, na mesma povoação, «dentro do lugar». No lugar de Ferreiros, sede da freguesia, encontravam-se as de Santo António, «ao pé» e a da Senhora da Assunção «dentro» do lugar 102. Na vizinha freguesia de Oliveira do Douro em Boassas erguia-se a capela da Senhora do Amparo, «no meyo do Povo», a de Passô, dedicada a São Francisco, «alguma couza fora da povoação»103. E em Fornelos a capela de São Sebastião na quinta das Carvalhas estava «fora do lugar de Villa Nova»104 (ver quadro 1 em anexo). Não sabemos se por tratar-se do senso comum, se por descuido dos redactores são parcas as referências às casas senhoriais onde algumas das capelas se localizariam. Em S. Cristóvão o abade é particularmente completo na indicação de habitações às quais estavam associadas quer a família dos administradores, quer as suas capelas, aludindo a quintas: a da Grova, a da Granja, a da Raposeira e a do Bacelo, ligadas respectivamente às devoções de São Libório, São Miguel Arcanjo, Virgem da Conceição e São Bento105. Em Piães o abade é particularmente exaustivo na indicação de quintas, referindo as de Sequeiros, da Ribeira, da Póvoa, de Antemil (onde existiam duas capelas) e de Souto Juste quase todas à «beyra douro»106. O memorialista de Espadanedo generaliza afirmando que «em todas ellas [capelas ou ermidas] se diz missa a do povo está em hum monte as outras estão nas quintas dos sobreditos donos»107. Por outro lado, o pároco de San102  ANTUNES, Manuel - Ferreiros de Tendais [Memória Paroquial]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: . 103  TEIXEIRA, Baltazar Manuel de Carvalho Pinto - Oliveira do Douro [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: . 104  RANGEL, Manuel José Carneiro - Fornelos [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: . 105  GOUVEIA, José da Cunha e - São Cristóvão de Nogueira [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: . 106  SILVA, Manuel Ferreira da - Santiago de Piães [Memória Paroquial de]. Ibid.IANT/TT. Disponível em WWW: . 107  CARVALHO, Manuel Salter Rios de - Espadanedo [Memória Paroquial de]. Ibid.IAN/TT. Disponível em WWW: .

ta Maria de Nespereira alude a «casas», uma de Ana Monteira e outra de Gonçalo Vaz Leitão, às quais pertenciam duas capelas dedicadas a Santo António – sem contudo percebamos o local de implantação das mesmas, se contíguas às habitações ou apenas dentro da propriedade108. Outrossim em Resende refere-se um «casa particular» e as quintas da Crujeiras, de Safões, do Paço, de Vila Pouca, de Terra Nova, de Rendulfe, e de Semelião, todas com a sua capela109. No conjunto das memórias analisadas as mais completas quanto à localização e descrição das capelas são as que dizem respeito às freguesias da sé de Lamego e de Almacave110. Ambos os memorialistas têm o cuidado de indicar no urbanismo o posicionamento daquelas estruturas, aludindo a capelas adossadas a igrejas (como a do Espírito Santo em Almacave) ou interiores, como nos exemplos do Hospital, do Paço Episcopal e da casa de Almedina. Surge pertinente a informação sobre a capela desta casa, dedicada à Virgem da Conceição, dentro da habitação, mas «com porta para a Rua» - sobretudo porque através da legislação da época sabemos ser esta uma das condições que se impunha para distinguir a capela ou oratório da ermida111. Sobre a qualidade e naturalidade dos administradores resgatámos também algumas notas que na documentação que ajudam a traçar o perfil de homens e mulheres a quem cabia zelar pelo património das capelas. O pároco de Ester alude ao proprietário da capela de Ester de Baixo, dizendo-o «sacerdotte de virtude, e exemplo» e descreve a situação do edifício que não sendo cabeça de vínculo «que este o tem na freguesia de Parada de Ester», era «grandeza da sua quinta e Religioso Lustre da sua honorifica casa»112. Tais encómios são reveladores da importância destes edifícios 108  Podendo ser entendida, neste contexto, a expressão casa, como património linhagístico ou familiar que extravasava os limites do edifício habitacional. 109  PINTO, Luís de Siqueira - Resende [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: . 110  TAVEIRO, José de Sousa Maria Evangelista - Almacave [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: http://digitarq.dgarq. gov.pt/viewer?id=4240473 e VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: . 111  A propósito desta questão ver o que escrevemos em RESENDE, 2012a: 68 ss. 112  COSTA, Bernardo Ferreira da - Ester [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: . O abade não refere o orago da capela.

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como espaços de promoção individual e linhagística, geralmente associados ao nome, à família e ao solar do administrador. Na vizinha freguesia do Pinheiro uma tradição local revelava em 1758 outra função para aquela tipologia de espaços religiosos. No lugar da Desfeita a capela dedicada à Virgem da Piedade «instituída e fabricada por tradição antiga por hum homem que foj ao Brazil» tinha associada uma albergaria tendo sido dotada pelo instituidor com vários legados destinados aos passageiros e pobres que deviam ser agraciados com esmolas pela Santa Cruz de Maio e no Dia da exaltação de Setembro113. A alusão à qualidade do instituidor – brasileiro de torna viagem – parece querer associar uma ideia subjacente às obras públicas destes beneméritos: providenciar, no regresso à pátria, recursos e meios para sustento dos mais necessitados. No entanto, e como frisa o memorialista, não se tratava de um burguês como os de oitocentos sobejamente glosados pelos romances da época, outrossim um irmão do «Secretario do Palacio Real»114. Às portas de Lamego um cónego capitular mandara erigir uma capela, não com intuitos caritativos, mas como forma de expurgar o mal que ali se manifestaria: «consta que naquele sitio sucediam muitas mortes, muytas disgrassas, e nella se cometiam muito pecados»115. Assim, sobre uma notável laje mandou o eclesiástico Miguel Freire erguer uma capela como presença sagrada e espiritual de um perigoso lugar de passagem, marginal à urbe lamecense. Não se enquadrando no plano caritativo das capelas da Desfeita ou de Caldas de Aregos, não deixa de constituir uma intervenção particular no urbanismo e na paisagem como expressão de auxílio colectivo – se quisermos uma forma de auxílio espiritual. Na região de Cinfães eram vários os capitães e sargentos-mores administradores de capelas e muitos os que, em 1758 e a partir de outras paragens, procediam à gestão deste património. No património religioso particular daquela freguesia intervinham nobres naturais ou moradores em Resende, na Vila de Viana, no Couto de Ancede ou da cidade do Porto – sinal expressivo de uma sociedade de várias casas que se articula113  FERRÃO, Manuel Correia - Pinheiro [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: . O pároco desconhece o nome do instituidor, mas indica o do administrador àquela data: Tomé Cardoso, da Desfeita. 114  Cf. Ibid. 115  VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Ibid.

va, entre negócios e casamentos, por outras partes do reino, nomeadamente pelo norte litoral116. Outrossim em Oliveira do Douro, São Cristóvão de Nogueira, Escamarão, Souselo, Penajóia, Freigil também se referem outras proveniências, grande parte delas distribuídas ao longo do vale duriense, por lugares ou termos como Benviver, Mesão Frio e Lamego. O mapa 1 é importante testemunho gráfico da relação das capelas com o Douro, por onde no século XVIII se movimentariam interesses familiares, repartidos entre negócios «do sangue», do vinho e de outras indústrias117.

116  Cf. RESENDE, 2012b, onde apresentamos alguns casos de famílias que se movimentam ao longo do vale, articulando vários negócios. 117  Por negócios do sangue queremos dizer as relações sociais, afinitivas e consanguíneas que alavancariam o mercado matrimonial na região duriense. Das relações sociais, familiares e naturalmente económicas ao longo do hinterland duriense destacamos a investigação sobre o patriciado urbano do Porto que catalisava este movimento: BRITO, Pedro - Patriciado urbano quinhentista. Porto: Arquivo Histórico/Câmara Municipal do Porto, 1997.

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Mapa 1 – Capelas em Montemuro: distribuição geográfica. Extraído de RESENDE, 2012a.

Associadas a instituições religiosas existiam capelas junto a recolhimentos, como no caso de Fonseca na freguesia de Fontoura (hoje do concelho de Resende) onde as «recolhidas [eram] senhoras e padroeiras do mesmo recolhimento»118 e em implantação urbana ou isolada, como em Lamego e Cambres, locais onde os cistercienses detinham administração sobre as capelas da Virgem da Graça (no Arco da Porta do Sol) e de São Bernardo em Cambres119. Embora uma parte dos memorialistas não identifique o(s) instituidor(es) ou administrador(es) das capelas, algumas das suas notas permitem compreender a natureza jurídica deste tipo de património. Salien-

támos o caso da capela de Santo Amaro, no lugar das Caldas de Aregos onde afluíam romeiros em busca de alívio para as suas maleitas, não obstante ser, em 1758, um edifício em ruínas da administração do Conde de S. Miguel que, segundo o memorialista, não a queria reedificar120. Noutro exemplo, diverso do anterior, ao povo de Porcas retirou o padre José de Azevedo, para si, a administração da capela de São Domingos que então dotara e venerava121. Embora escassos estes exemplos juntam-se aos inúmeros casos registados na

118  AZEVEDO, José - São João de Fontoura [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Disponível em WWW: .

120  «[…] nesta já não existe a imagem do mesmo santo nem nela se diz já missa por estar a maior parte dela caída por terra, sem que o Ex.mo Conde de S. Miguel a queira reedificar sendo senhor dela como Comendador da Comenda de S. Miguel de Anreade da Ordem de Cristo não obstante ser a dita imagem antigamente tão milagrosa e tão venerada pelos fiéis ainda de partes bem longínquas, que se diz saíam na sua dita Ermida sa pernas e braços de … insígnias dos prodígios que o Santo obrava, às cargas por não caberem dentro dela»- cf. Anreade [Memória Paroquial de]. Ibid.

119  ARAÚJO, João Veloso de - Cambres [Memória Paroquial de]. Ibid. Disponível em WWW: .

121  Estava «pegada ao lugar de Porcas» […] «que agora dotou e venera o padre José de Azevedo que de primeiro, nos princípios era do povo», AZEVEDO, José Mendes - Barrô [Memória Paroquial de]. Ibid.

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documentação da época moderna, nomeadamente em visitações que apontam o complexo panorama de jurisdições e vicissitudes legalistas a que estavam sujeitas as capelas122.

122  Apontamos dois exemplos deste tipo de fonte para o caso de Lamego; os livros de visitação dos distritos eclesiásticos e os registos de instituições fundacionais ou vinculares. Na primeira categoria destacamos o códice Douro Capellas e Confrarias, datado de 1725 e hoje desaparecido dos fundos do Arquivo Diocesano. Consultámo-lo para a região de Cinfães em finais da década de 1990 e vários autores o citam em monografias regionais, tendo sido documento privilegiado para o estudo da fundação e administração de capelas e ermidas existentes no primeiro quartel do século XVIII no distrito do Douro (correspondente sensivelmente aos actuais concelhos de Cinfães, Resende e Lamego). Regista-se ainda o livro das Instituições de capelas para o distrito da Serra, cf. ADL [Arquivo Diocesano de Lamego], [Fundo Geral], Instituisoens […].

IV. O PATRIMÓNIO: ALGUNS CASOS

M

enos comuns na documentação memorialística, mais focada nas coisas da terra e aos espaços eminentemente «públicos», aparecem pela mão de alguns párocos informações respeitantes à estrutura das capelas, ao seu recheio e até a alguns aspectos do património a uso cultual ou litúrgico. Outrossim, surgem por vezes referências à administração do espaço, nomeadamente na questão de dotação e vínculos associados, e até a difíceis situações de carácter jurisdicional, como as que atrás referimos. Entre o conjunto de memórias paroquiais destacam-se as das freguesias da sé de Lamego e São Cristóvão de Nogueira que merecem, pelas informações disponibilizadas uma atenção e uma análise mais cuidada. Em São Cristóvão de Nogueira, paróquia situada junto ao Douro o reitor é particularmente minucioso na descrição do património das capelas, referindo o número de altares ( por retábulos) e de imagens neles expostas à veneração. O reitor da sé concede uma atenção particular ao património religioso da sua freguesia, procurando, pela descrição dos edifícios, do seu recheio e pela natureza dos seus administradores, acentuar o poder e a majestade da cidade. Assinala, embora em termos latos, características e dimensões dos edifícios, o número de retábulos e algumas das imagens expostas – fazendo inclusa menção a materiais, tipologias e técnicas de produção. São particularmente expressivas as suas descrições da capela do Hospital e as do Paço Episcopal, hoje inexistentes ou alteradas na sua estrutura setecentista, tal qual as descreve em 1758 o reitor Diogo António Vieira. Sobre a capela do Hospital escreve: Nos lados desta Salla da parte da mam Esquerda, fica huma Cappella que toma o mesmo ambito com seo altar , e Retabolo dourado, e nelle a Imagem de Nossa Senhora Pranhe (advogada das mulheres pejadas) tem tem por Lados em nichos dourados as Imagens de Nossa Senhora, e Sam Pedro de vulto estofadas: he meya azolejada, e o tecto apaynelado, e Ricamente dourado, com duas grandes janellas de Vidraças que Caem sobre o rio Coura; desta Capella vay o Santissimo aos Enfermos do Hospital, e nella se espoem os defuntos do mesmo, que vão para a Sepultura […]123 123  VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Ibid.

72

Acerca do paço episcopal de Lamego refere: […] tem formozas Sallas, e bons commodos, e hua Cappella intreor aonde os Prelados ouvem, e dizem missa com hum magestozo paynel do Nascimento de Cristo Senhor Nosso, e largas molduras de tella, primorozamente douradas124. Referia-se o reitor à capela titulada da Natividade, uma das duas existentes no paço. E quanto à de São Miguel, acrescenta: Tem outra Capella admiravel e publica: para esta se entra pelo primeyro Salláo; tem esta seo Retabulo maravilhozamente dourado, e pintado fingindo pedra; e no meyo um paynel, em que se vé ricamente pintada a Imagem do glorioso Arcanjo Sáo Miguel (nesta está huma cadeyra episcopal debayzo de hum docel). Tem trez frestas de vidraças, e sua sacristia; cuja capella mandou fazer este Excellentissimo Prelado o Senhor Dom Frey Feliciano de Nossa Senhora, para effeyto de nella dar ordens […]125. Ao longo da cidade e seu termo levantavam-se várias casas nobres a cujas capelas e senhores o memorialista alude, fazendo questão de salientar os ricos ornamentos, alfaias, relíquias126 e imagens – algumas delas de «muyta devoção» como a de Cristo crucificado que existia numa casa da rua dos Fornos, instituída por Martinho Álvaro Pinto da Fonseca e em 1758 administrada por D. Maria Inácia Pinto de Vilhena127. São também pertinentes as descrições sobre a decoração artística dos espaços religiosos como no caso da capela de São João Baptista, na rua Direita, administrada por António de Araújo Freire de Sousa Borges da Veiga. Segundo a leitura do reitor da Sé, possuía um «noblissimo retabulo, dourado, e pintado fingindo pedra»128.

IV. O SANTORAL FAMILIAR: SANTOS DAS CASAS.

R

esta-nos fazer uma incursão pelo património devocional destas capelas. Em que se distingue do património espiritual das ermidas, à partida determinado por necessidades colectivas? Poderá a distribuição das devoções particulares fornecer-nos elementos para uma divisão social das devoções? Vejamos os seguintes gráficos:

Gráfico 1. Fonte: Memórias, 1758.

124  Ibid. 125  Ibid. 126  Sobre relíquias na posse de particulares há a destacar, no território da diocese de Lamego, a alusão ao corpo de São Plácido, «que mandou vir de Roma o Exc.mº Snr. D. Manoel de Vasconcellos Pereira, Bispo de Lamego; mas chegando de Roma depois de sua morte, o recebeu seu sobrinho Caetano Alexandre, filho da irmã do dito Snr. Bispo, e do Snr. Capitão –mor de Trancoso, assistente n’esta villa de Moimenta [da Beira], aonde casou, e o guarda com toda a decência no oratório doméstico, aonde tem sido visitado dos povos com fama de milagres, e se lhe anda preparando uma capella magnifica», cf. AZEVEDO, 1877: 153 127  A imagem tinha o título de Senhor dos Aflitos e dez palmos de estatura. A capela tinha anexa uma sacristia e «ricos ornamentos», cf. VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Paroquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Ibid.. 128  «No meyo da baquetta está dentro de hum Sacrario hua especial, e grande Reliquia do Santo lenho, que antigamente tinha sido da Caza dos Duques de Bragança», cf. VIEIRA, Diogo António - Sé [Memória Pa-

Gráfico 2. Fonte: Memórias, 1758.

roquial de]. Lisboa: IAN/TT, 1758. Ibid.

73

Embora a distribuição percentual das tipologias de invocações se aproxime entre capelas e ermidas, uma primeira análise notamos a primazia às devoções masculinas entre os cultos mais disseminados na região. Efectivamente quer nas titulaturas das ermidas, quer na das capelas a escolha de santos como patronos oscila entre, respectivamente os 43 e 48 por cento. Todavia é claro o peso do marianismo, expresso em fatias de 40 (capelas) e 26 (ermidas) por cento. E se somadas as percentagens entre santas e as invocações marianas quase em ambos os casos se atingem valores que ombreiam com os das titulaturas hagiológicas masculinas. Ainda mais aproximadas em percentagem são as invocações cristológicas (5/6 por cento), sendo residuais as invocações aos anjos (estando Miguel à cabeça) e ao Divino Espírito Santo, quer no caso das ermidas, quer no das capelas. Este panorama parece revelar uma consistência territorial ao nível das escolhas de oragos titulares entre comunidades e indivíduos ou famílias. Talvez as mesmas necessidades, decorrentes da geografia, da capacidade de gerir recursos para subsistência ou de enfrentar os mesmos medos colectivos conduzisse a escolhas semelhantes, fosse no plano espiritual individual, ou num plano comunitário. Todavia uma aproximação às devoções, aos vocativos cristológicos e marianos permite-nos observar uma dissonância entre oragos de capelas e patronos comunais. Tendo em conta as frequências de títulos que registámos para as ermidas de Montemuro, os oragos das capelas desta região divergem claramente sobretudo no que respeita aos Santos e Santas mais venerados: Tabela 1 - Principais patronos hagiológicos de ermidas e capelas. Montemuro, 1758. Fonte: Memórias, 1758.

Ermidas São Sebastião (25) São Pedro (13)

Santa Luzia (8) Santa Bárbara (7)

Santo António (10)

Santa Catarina (3)

São Lourenço (6)

Santa Ana (2)

Capelas Santo António (21) São João Baptista (10) São Francisco (7) São José (6)

Santa Ana (3) Santa Bárbara (2) Santa Eufémia (1) Santa Maria Madalena (1)

Revela-se aqui uma contenda entre Sebastião, o Mártir por excelência, preferido pelas comunidades e Santo António, escolhido para culto maior nas capelas. O primeiro, já tivemos oportunidade para o referir, aparece na topografia religiosa junto às entradas e saídas das povoações, junto a lugares de trânsito ou pelo menos à vista destes129. Cabia-lhe defender as populações das pestes que viajavam pelos caminhos. Santo António não deixa de assumir-se como terceira devoção entre os oragos escolhidos para as ermidas, assumindo aqui um papel que consideramos de protector dos recursos, nomeadamente da pecuária (numa região marcada pela transumância). Mas a escolha para titular das capelas deste franciscano revela, talvez, uma curiosa associação com o mundo linhagístico130, não apenas por se tratar, na linguagem comum de um santo casamenteiro, mas pela própria ligação do taumaturgo à nobreza portuguesa. Não devemos também excluir a simbologia nacionalista que lhe foi imputada depois de 1640, juntamente com a devoção à Imaculada Conceição. É, aliás, no que respeita a invocações marianas e cristológicas marianas que parece verificar-se uma maior constância entre as devoções de ermidas e capelas: Tabela 2 – Principais patronos cristológicos e marianos de ermidas e capelas. Montemuro, 1758. Fonte: Memórias, 1758.

Ermidas Senhor Jesus (2)

Senhor Jesus (2)

Ascensão do Senhor (1)

Ascensão do Senhor (1)

Menino Jesus (1) Senhor da Agonia (1) Santo Cristo (1)

Menino Jesus (1) Senhor da Agonia (1) Santo Cristo (1)

Capelas Virgem da Conceição (14) Virgem do Amparo (4) Virgem (3) Virgem da Graça (3) Virgem da Guia (3)

Virgem da Conceição (14) Virgem do Amparo (4) Virgem da Assunção (3) Virgem do Desterro (3) Virgem da Graça (3)

Mas estes quadros - que apenas apresentam o conjunto dos cinco títulos mais devocionados entre capelas e ermidas em Montemuro - , podem iludir-nos. Efectivamente cremos que, ao contrário das Santas e Santos cultuados, é nos vocativos mais extravagantes 129 

RESENDE, 2012a: 229, 242

130  O autor da Historia Eclesiastica da Cidade e Bispado de Lamego recorda o parentesco dos Bulhões com a família do taumaturgo, cf. AZEVEDO, 1877: 288.

74

e menos vezes escolhidos que podemos ter uma ideia mais completa da «função» dos patronos particulares. Detenhamo-nos na análise dos vocativos marianos das capelas em Montemuro: Tabela 3 – Invocações marianas de capelas em Montemuro, 1758. Fonte: Memórias paroquiais, 1758.

Virgem de/da/do Ajuda (1) Amparo (4)

Conceição (14) Desterro (3)

Aravera (1)

Graça (3)

Assunção (3)

Guia (3)

Oliveira (1) Piedade (3) Pilar (2)

Boa Hora (2)

Lapa (1)

Pranto (1)

Boa Morte (1)

Luz (3)

Prazeres (2) Preces (2)

Boa Nova (1)

Nazaré (1)

Remédios (2) Repouso (1) Ribeira (1) Rosário (1) Virtudes (1)

Bom Sucesso (1) Sem referências (3)

Excluindo as devoções de carácter regional ou mesmo internacional (ligadas a afamados santuários católicos), como a Virgem da Lapa e a Virgem dos Remédios, a Virgem do Pilar e a Virgem da Oliveira, a devoção nacionalista à Virgem da Conceição e o culto ao Rosário de difusão mendicante, um conjunto muito significativo de vocativos apela para momentos particulares da vida dos indivíduos e das casas nobres, como o nascimento (Boa Hora, Bom Sucesso, Boa Nova, Ajuda e Guia), o casamento e a família (Desterro, Nazaré) e a morte (Boa Morte, Pranto, Preces). Tal como as comunidades da época moderna substituíram muitos dos seus santuários hagioterapêuticos colectivos (dedicados a obscuros mártires) por invocações marianas, também as famílias procuraram para as suas capelas títulos protectores para os momentos mais cruciais do seu percurso genético e social. O papel de Mãe e guia acalentado por uma Igreja reformada contribuiu para esta disseminação de cultos e até, (um estudo na longa duração com certeza o permitiria observar), a feminização da espiritualidade colectiva e individual desde a Idade Média. Sobre a aproximação das casas e famílias a estas invocações, a fonte que tomamos como elemento principal de análise é omissa. Porém, tendo em consideração a titulatura hagiológica masculina e feminina - São Francisco (de Assis), «São» Gonçalo, Santo Inácio, São

Bento, São Bernardo e São Domingos, Santa Quitéria e Santa Rosa de Lima, entre outros – este tipo de invocações poderá indicar o contacto com ordens religiosas quer através da missionação, quer através dos laços familiares e sociais das casas cujos proprietários ora dependiam, como foreiros dos mosteiros, ora lhes entregavam os filhos e filhas para carreira eclesiástica e para assegurar nas igrejas monásticas o seu panteão familiar.

75

CONCLUSÃO Embora limitados pela grelha esquemática do questionário e pela diversidade das respostas - condicionadas pela bagagem cultural dos inquiridos - o memorialismo de 1758 permite uma articulação regional para perspectivas de comparação e análise abrangente de várias temáticas. No presente trabalho colhemos algumas notas sobre a capela enquanto espaço devocional particular e estabelecemos, dentro de uma linguagem estatística, a procura de padrões que nos possam ajudar a colmatar o silêncio da fonte sobre escolhas, percursos e razões inerentes à edificação e gestão de tais estruturas. Neste sentido não obtivemos respostas directas para questões que ainda nos assomam sobre a tipologia, dimensão e posição daquelas estruturas ou até sobre a sua articulação com o urbanismo. Cingindo-se a respostas concretas sobre a existência, ou não, de capelas e ermidas, os memorialistas apenas remetem para indicações que resumem a factualidade destes edifícios. Ainda assim, o cruzamento de vários elementos de teor contabilístico (nome, número e identificação do administrador da capela) permitiu-nos uma incursão sobre a origem, identificação (ainda que parcelar) da origem e estatuto social dos administradores; um co-

nhecimento sobre a implantação das capelas no território em estudo (Montemuro) e até uma aproximação ao património arquitectónico e artístico de alguns dos espaços. Mas neste conjunto de 153 capelas surge um factor importante que tivemos em conta e que a fonte regista com rigor: a devoção. Através da contabilização das invocações e a sua categorização, posteriormente comparada com os oragos comunitários, foi possível estabelecer escalas de escolhas individuais ou familiares que manifestam o dos senhores das casas em colocar-se ante a protecção de uma entidade com características próprias e favoráveis a certos momentos da sua vida ou do seu percurso social. Outrossim, conhecer este tipo de património do ponto de vista territorial e devocional contribui, cremos, para o conhecimento menos superficial das motivações inerentes à fundação, incremento e até desaparecimento destes edifícios, compreendidos num contexto familiar e economicamente diverso dos espaços religiosos públicos. De resto, a escolha da devoção e do local são fundamentais para se compreender a construção e a articulação do edifício no urbanismo, ou as estratégias dos seus mentores - se perspectivarmos estes espaços não apenas como simples locais de culto mas também formas de expressão e promoção familiar e linhagística.

76

ANEXO Quadro 1 – Resultado do levantamento sobre capelas, administração e devoções em Montemuro Distrito

Paróquia

Termo do lugar

Orago

Cidade

Almacave

Igreja

Divino Espírito Santo

Cidade

Almacave

Fafel

Santo António

Implantação periférica isolada

Padroeiro: instituidor/administrador Pedro Cardoso Coutinho Arcediago do Côa

Cidade

Almacave

Foz de Baixo

São João Baptista

[sem dados]

António Guedes de Magalhães Osório

Cidade

Almacave

Almedina

Virgem da Conceição

[sem dados]

José Pacheco de Mendonça

Douro

Alvarenga

Vila

São Francisco

Douro

Alvarenga

Miudal

São João Baptista

Douro

Alvarenga

Várzeas

São José

Douro

Alvarenga

Miudal

Virgem da Conceição

Douro

Alvarenga

Vila

Virgem do Desterro

urbana

Caetano Luís de Barros

periférica

Pedro Mendes Tristão

urbana

Padre José de Morais

urbana periférica

Bernardo Freire de Andrade António Caetano de Montenegro

Douro

Anreade

Palma

Santa Ana

[sem dados]

Alexandre Pinto Pereira, sargento-mor

Douro

Anreade

Caldas

Santo Amaro

[sem dados]

Comenda de São Miguel

Douro

Anreade

São Pedro

Douro

Anreade

Fornelos

Virgem da Luz

Douro

Anreade

Outeiro-Adega

Virgem do Bom Sucesso

isolada isolada

Beneficiado Família da casa de Fornelos

[sem dados]

António Teixeira Padre António José

Douro

Anreade

Granja

Virgem dos Remédios

[sem dados]

Serra

Arneirós

Arneirós

Santo António

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Arneirós

Arneirós

Virgem da Conceição

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Arneirós

Arneirós

Virgem da Oliveira

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Arneirós

Arneirós

Virgem do Pilar

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Baltar de Cabril

Dornelas

São Macário

urbana

[Eclesiástico]

Douro

Baltar de Cabril

Avitoreira

Virgem da Piedade

urbana

[Eclesiástico]

Douro

Barrô

Porcas

Santa Bárbara

[sem dados]

Francisco Monteiro Montenegro

Douro

Barrô

Vilar de Suso

Santo António

[sem dados]

João Mourão de Carvalho

Douro

Barrô

Quinta do Torrão

Santo António

[sem dados]

Miguel António

Douro

Barrô

Vilar

São João Baptista

[sem dados]

Jorge Pereira de Albuquerque António Correia

Douro

Barrô

Quinta da Torre

São Pelágio

[sem dados]

Douro

Barrô

Torre/Pousadouro

São Pelágio

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Barrô

Vila Verde

Virgem da Boa Nova

[sem dados]

Constantino Gomes de Azevedo

Douro

Barrô

Quinta de Pardelhas

Virgem da Conceição

[sem dados]

Domingos de Azevedo

Douro

Barrô

Quinta da Granja

Virgem da Guia

[sem dados]

Padre Estêvão Gomes

Douro

Barrô

Vila Verde

Virgem da Nazaré

[sem dados]

Mosteiro de Salzedas

Douro

Barrô

Ribeira

Virgem do Amparo

[sem dados]

Padre Cónego José Cardoso

Serra

Cambres

Barosa

Santa Ana

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Portelo

Santa Cruz

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Quintião

Santo António

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Mosteiró

Santo António

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Azenha

Santo António

[sem dados]

Serra

Cambres

Quinta dos Religiosos de Salzedas

São Bernardo

[sem dados]

[não identificado/a] Mosteiro de Salzedas

Serra

Cambres

Lamelas/Portela/Pomarelhe

São Caetano

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Felgueiras

São Domingos

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Rio Bom

São João Baptista

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Mosteiró

São João Baptista

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Rio Bom

São José

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Bouçós

São Pedro

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Mosteiró

Virgem da Assunção

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Selada

Virgem da Boa Nova

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Portelo

Virgem da Conceição

[sem dados]

[não identificado/a]

77

Serra

Cambres

Quinta

Virgem da Ribeira

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Bugalheira

Virgem das Preces

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Mourela

Virgem das Preces

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Bugalheira

Virgem do Desterro

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Estrada

Virgem do Pilar

[sem dados]

[não identificado/a]

Serra

Cambres

Monsul

Virgem do Repouso

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Cinfães

Quinta da Quintã

Menino Jesus

Douro

Cinfães

Ruivas

Santa Quitéria

Douro

Cinfães

Cinfães

Santo António

isolada [sem dados] urbana

Manuel Mendes de Vasconcelos Manuel Pinto Bravo José Perestrelo de Melo

Douro

Cinfães

Açoreira

Santo António

[sem dados]

Padre António Caldeira de Barros

Douro

Cinfães

Teixeirô

Santo António

[sem dados]

Francisco de Lacerda Pereira

[sem dados]

Douro

Cinfães

Vila Pouca

São Francisco

Douro

Cinfães

Pias

São Gonçalo

urbana

Padre Bernardo Cardoso Amaral Padre Manuel Pereira

Douro

Cinfães

Fontaínhas

São João Evangelista

isolada

Bartolomeu Dias de Figueiredo

Douro

Cinfães

Quinta de Tintureiros

Senhor Jesus

isolada

João da Cunha Soutomaior

Douro

Cinfães

Souto do Rio

Virgem da Conceição

[sem dados]

Padre Tomás Cardoso de Vasconcelos

Douro

Cinfães

Quinta da Ribeira

Virgem da Conceição

[sem dados]

Francisco de Lacerda Pereira

Douro

Cinfães

Ventuzela

Virgem da Conceição

[sem dados]

Luís Soares de Avelar

Douro

Cinfães

Cidadelhe

Virgem da Guia

[sem dados]

João da Silva

Douro

Cinfães

Tubirais

Virgem da Luz

[sem dados]

Francisco de Lacerda Pereira

Douro

Cinfães

Sequeiro Longo

Virgem do Desterro

[sem dados]

Marcelina de Noronha e Mouta

Douro

Cinfães

Quinta do Pedregal

Virgem do Rosário

[sem dados]

Luís Osório Pereira

Douro

Cinfães

Cinfães

Virgem dos Prazeres

urbana

Domingos Vieira de Melo

Douro

Ermida do Douro

Picão

Virgem da Conceição

isolada

Padre Manuel Teixeira

Douro

Escamarão

Vila Meã

Douro

Espadanedo

Douro

Espadanedo

Douro

Ester

Ester de Baixo

São João Baptista

[sem dados]

Joana Antunes de Guimarães

Virgem da Conceição

[sem dados]

António de Sousa e Vasconcelos

Virgem da Graça

[sem dados]

[sem referência]

urbana

António Peixoto Padre Manuel Mota da Fonseca

Douro

Felgueiras

Ferrós

São José

[sem dados]

Douro

Ferreiros de Tendais

Crasto de Cio

Santa Bárbara

[sem dados]

D. Catarina [não identificado/a]

Douro

Ferreiros de Tendais

Covelas

Santo António

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Ferreiros de Tendais

Chã

Santo António

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Ferreiros de Tendais

Ferreiros

Santo António

periférica

[não identificado/a]

Douro

Ferreiros de Tendais

Ribeira

Santo Inácio

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Ferreiros de Tendais

Covelas

São Francisco

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Ferreiros de Tendais

Covelas

São Roque

Douro

Ferreiros de Tendais

Verdozedo

Virgem da Ajuda

Douro

Ferreiros de Tendais

Ferreiros

Virgem da Assunção

Douro

Ferreiros de Tendais

Chã

Virgem dos Prazeres

periférica

[não identificado/a]

[sem dados]

[não identificado/a]

urbana [sem dados]

Douro

Fornelos

Quinta das Carvalhas

São Sebastião

[sem dados]

Douro

Freigil

Vigião

Divino Espírito Santo

[sem dados]

Douro

Freigil

Caldas

Santa Maria Madalena

[sem dados]

Douro

Freigil

Vigião

Santo António

[sem dados] [sem dados]

Douro

Freigil

Vinhais

Virgem do Amparo

Douro

Oliveira do Douro

Passô

São Francisco

Douro

Oliveira do Douro

Quinta dos Gravatos

Virgem da Luz

Douro

Oliveira do Douro

Boassas

Virgem do Amparo

Douro

Oliveira do Douro

Quinta de Passô

Virgem dos Remédios

periférica [sem dados] urbana [sem dados]

Não localizada Não localizada [não identificado/a] António Pereira Pinto [não identificado/a] José de Melo Lourenço Ramalho Botelho Manuel Pereira José Campelo António do Amaral Semblano Afonso Botelho Pinto

Douro

Parada de Ester

Vila

São Francisco

isolada

Padre Manuel Mota da Fonseca

Serra

Penajóia

Molães

Sagrada Família

urbana

Bernardo José Cerqueira de Queirós

Serra

Penajóia

Quinta do Pombal

Santo António

isolada

José Correia da Fonseca

78

Serra

Penajóia

Torre

Santo António

urbana

Clara Maria, viúva

Serra

Penajóia

Pousada

Santo António

urbana

Bernardo José Cerqueira de Queirós

Serra

Penajóia

Fornos

Santo António

urbana

António Cardoso da Fonseca

Serra

Penajóia

Estremadouro

São Francisco

urbana

Padre Álvaro Leite Pereira

Serra

Penajóia

Quinta das Adegas

São João Baptista

isolada

Domingos Francisco Chaves

Serra

Penajóia

Portela

São José

urbana

José Carneiro Tavares

Serra

Penajóia

Quinta de Penim

Virgem da Aravera

isolada

Carlos António

Serra

Penajóia

Corvaceira

Virgem da Lapa

urbana

Domingos Rodrigues

Douro

Picão

Picão

Virgem da Graça

urbana

Religiosa de São Bento

Douro

Pinheiro

Desfeita

Virgem da Piedade

Serra

Samodães

Igreja

Virgem da Assunção

[sem dados] isolada

Tomé Cardoso Pedro Cardoso Coutinho

Serra

Sande

Santo André

[sem dados]

José Pacheco de Mendonça

Serra

Sande

Virgem da Guia

[sem dados]

José Gomes

Serra

Sande

Virgem da Piedade

[sem dados]

António Gomes Ramalho

Douro

Santa Marinha de Nespereira

Paradela

Santo António

[sem dados]

Ana Monteira

Douro

Santa Marinha de Nespereira

Ervilhais (lugar grande)

Santo António

periférica

Douro

Santo Erício de Nespereira

Figueiredo

São Francisco

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Santo Erício de Nespereira

Granja

São Vicente

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Santo Erício de Nespereira

Pindelo

Virgem da Conceição

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Louredo

São Bento

[sem dados]

Doroteia e irmãs

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Porta

São José

[sem dados]

José António de Oliveira

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Quinta da Grova

São Libório

periférica

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Quinta da Granja

São Miguel

isolada

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Valbom

Senhor Jesus

[sem dados]

Manuel de Lacerda e Vasconcelos

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Outeiro

Virgem

[sem dados]

Úrsula Maria

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Mourilhe

Virgem da Boa Hora

[sem dados]

José Libório de Melo

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Vila Nova

Virgem da Conceição

[sem dados]

António Pinto da Fonseca

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Quinta da Raposeira

Virgem da Conceição

[sem dados]

António Azevedo Leitão

Douro

São Cristóvão de Nogueira

Temporão

Virgem do Pranto

[sem dados]

Inocêncio Cardoso

Gonçalo Vaz Leitão

Padre Tomás António de Noronha Inácio Correia de Sousa

Douro

São Tiago de Piães

Cosconhe

Ascensão do Senhor

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Tiago de Piães

Quinta de Antemil

Divino Espírito Santo

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Tiago de Piães

Concela

Santa Ana

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Tiago de Piães

Quinta de Souto Juste

Santa Rosa de Lima

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Tiago de Piães

Quinta de Sequeiros

São Gonçalo

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Tiago de Piães

Quinta da Póvoa

São Gonçalo

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Tiago de Piães

Quinta da Ribeira

São José

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

São Tiago de Piães

Quinta de Antemil

Virgem da Conceição

[sem dados]

[não identificado/a]

Cidade



Rua Direita

São João Baptista

[sem dados]

António de Araújo Freire de Sousa Borges da Veiga

Cidade



Rua do Castelo

Virgem da Boa Morte

[sem dados]

Sebastiana Teresa

Cidade



Arco da Porta do Sol

Virgem da Graça

[sem dados]

Mosteiro de Salzedas

Cidade



Lages

Virgem das Virtudes

[sem dados]

Morgado de Balsemão

79

Cidade



Rua dos Fornos

Virgem do Amparo

[sem dados]

Maria Inácia Pinto de Vilhena

Cidade



Hospital

[sem referência]

[sem dados]

Hospital

Cidade



Paço episcopal

[sem referência]

[sem dados]

Bispo

Cidade



Paço episcopal

[sem referência]

[sem dados]

Bispo

Vilela

Douro

Souselo

Douro

Souselo

Douro

Tarouquela

Igreja

Santo Cristo

[sem dados]

António Vieira Pinto

São Sebastião

[sem dados]

Padre Manuel de Sousa Lima

São João Baptista

isolada

Patrício Manuel Coelho Peixoto

Douro

Tendais

Granja

São Pedro

[sem dados]

Douro

Tendais

Vila de Muros

Senhor da Agonia

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Tendais

Meridãos

Virgem

[sem dados]

[não identificado/a]

Douro

Tendais

Vila de Muros

Virgem

[sem dados]

Douro

Travanca do Douro

Quinta de Miragaia

Santa Eufémia

[sem dados]

Comendador da Ermida

[não identificado/a] Lourenço José Carneiro Rangel

Douro

Travanca do Douro

Quinta de Loureiro

Santo António

[sem dados]

António de Castro Soutomaior

Douro

Travanca do Douro

Quinta

São João Baptista

[sem dados]

Francisco António Camelo Falcão Pereira da Silva

80

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Da intervenção arqueológica ao Museu de Sítio: a experiência da Quinta da Ervamoira texto: J. A. Gonçalves Guimarães Arqueólogo; coordenador do Gabinete de História, Arqueologia e Património (ASCR-CQ); ( [email protected].)

Nota biográfica: Joaquim António Gonçalves Guimarães Nasceu em Mafamude, Vila Nova de Gaia em 1951. Atualmente é secretário da associação cultural Amigos do Solar Condes de Resende e mesário-mor da sua Confraria Queirosiana, diretor do Gabinete de História, Arqueologia e Património e membro da Academia Eça de Queirós. É também membro fundador do Instituto Português de Sinologia, investigador convidado do Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto da Associação Portuguesa de História da Vinha e do Vinho (APHVIN/GEHVID), confrade das Confrarias do Vinho do Porto e do Rabelo, sócio de honra da Sociedade Eça de Queiroz do Recife (Brasil) e membro de outras instituições culturais e científicas. Recebeu as Medalhas de Mérito Cultural e Científico do Município de Gaia e da Junta de Freguesia de Santa Marinha. Desde 1983 é técnico superior da Câmara Municipal de Gaia com a categoria de arqueólogo assessor principal e desde 1987 director do Solar Condes de Resende, a casa queirosiana gaiense, Licenciado em História, mestre em Arqueologia, curso de doutoramento pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1991 ingressou com Assistente no corpo docente da Universidade Portucalense Infante D. Henrique, onde lecionou, em período pós laboral até 2004, no Curso de Ciências Históricas e outros, desde 1994 como Professor Auxiliar convidado; desde então tem igualmente lecionado neste e noutros estabelecimentos de ensino e organizado cursos livres do Solar Condes de Resende onde têm colaborado alguns dos maiores especialistas portugueses nas áreas da Arqueologia, História, Literatura, Arte e Património. Tem igualmente dirigido levantamentos de Património, orientado seminários nesta área e do Turismo Cultural, dirigido a montagem de exposições e de núcleos museológicos e a realização de congressos e outras manifestações culturais. Concebeu e dirigiu a montagem do programa do Museu de Sítio de Ervamoira no Vale do Côa inaugurado em 1997. Participou na fundação de publicações periódicas, tendo colaboração dispersa por vários títulos da imprensa universitária e também da imprensa local, regional

83

e nacional. Em 1983 obteve o cartão de equiparado a jornalista do Sindicato dos Jornalistas, actualmente Carteira Profissional de Jornalista (TE-638). Presentemente é director-adjunto da Revista de Portugal, IIIª série, e do Boletim Cultural Amigos de Gaia, e responsável pela página “Eça & Outras” publicada ao dia 25 de cada mês, desde 25 de Novembro de 2004 e presentemente editada em eca-e-outras.blogspot.com, e no jornal As Artes entre as Letras. Publicou mais de duzentos trabalhos de investigação, entre eles os livros: Um português em Londres – cartas de J. M. Virginiano, correspondente dos Ferreiras da Régua no período pós-napoleónico (edição bilingue, português e inglês). Vila Nova de Gaia: Casa Ferreira, 1988; Sessenta séculos sobre rodas. Vila Nova de Gaia: Fundação Salvador Caetano, 1996; Memória histórica dos antigos comerciantes e industriais de Vila Nova de Gaia: ACIGAIA, 1997; Serra do Pilar Património Cultural da Humanidade. Vila Nova de Gaia: Fundação Salvador Caetano, 1999; Prontuário Histórico do Vinho do Porto (com Susana Guimarães), Vila Nova de Gaia: Gabinete de História e Arqueologia, 2001; São Salvador do Mundo santuário duriense. São João da Pesqueira: Município e Edições Gailivro, 2007; Marquês de Soveral Homem do Douro e do Mundo (edição bilingue, português e inglês). São João da Pesqueira: Município e Edições Gailivro, 2008; Republicanos, monárquicos e outros. As vereações gaienses durante a 1.ª República (1910-1926). Vila Nova de Gaia: Confraria Queirosiana; Adriano Ramos Pinto Vinhos e Arte (com Graça Nicolau de Almeida).Vila Nova de Gaia, Adriano Ramos Pinto, 2013. [email protected] ; 2014.09.03

Resumo Em 1974 a Casa Ramos Pinto adquiriu a Quinta de Santa Maria situada na margem esquerda do Rio Côa, atravessada pelo caminho que, a vau, ligava as Chãs a Castelo Melhor. Rebatizada em 1983 como Quinta da Ervamoira, das culturas de sequeiro e alguma horticultura passou a ser uma quinta de vinha plantada segundo inovadores métodos que se refletiram na qualidade dos seus vinhos. Em 1984, quando se pensava aumentar a área do plantio, apareceu um sarcófago em pedra que desencadeou a intervenção arqueológica no verão, entre 1985 e 2004 e, a partir de 1996 e até àquele último ano, uma semana de estudos interdisciplinares na primavera. Entretanto ocorre na sua periferia a descoberta da Arte Rupestre do Côa e desencadeia-se o processo do seu estudo, valorização e classificação, o qual chamou a atenção internacional para o Património da região. Daquela atividade arqueológica e patrimonial ficaram o Museu de Sítio de Ervamoira e dezenas de trabalhos publicados sobre esta outra arqueologia do Vale do Côa.

Abstract In 1974 Casa Ramos Pinto bought Quinta de Santa Maria, placed in the left bank of Côa river, crossed by the path which, by wading, connected Chãs to Castelo Melhor. Renamed in 1983 as Quinta da Ervamoira, cereal cultures and some horticulture were replaced by vineyards planted according to innovative methods reflecting in the quality of its wines. In 1984, when the planting area was about to grow, a stone sarcophagus appeared, leading to archaeological intervention in Summer between 1985 and 2004 and, since 1996 until that same last year, a week of interdisciplinary studies in Spring. Meanwhile, on its periphery, Côa Valley Rock Art was discovered and its study and classification started catching international attention to the heritage of the region. That archaeological and patrimonial activity resulted in the Museu de Sítio de Ervamoira and many studies published about this and other archaeology of the Côa Valley.

Palavras-chave: Côa; Ervamoira; Antiguidade Tardia; Museu.

Key-words: Côa; Ervamoira; Late Antiquity; Museum.

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1. LOCALIZAÇÃO E HISTÓRIA DO SÍTIO

A

Quinta da Ervamoira, antes de 1983 designada como Quinta de Santa Maria, fica localizada na margem direita do Rio Côa, com terrenos que se distribuem pelas freguesias de Chãs e de Muxagata, concelho de Vila Nova de Foz Côa131. O seu suporte geomorfológico são as formações do complexo xisto-grauváquico (RIBEIRO, 2001). As restantes características físicas, climáticas, paisagísticas, etnográficas e administrativas estão já bem descritas em diversa bibliografia do vale e da região, razão pela qual nos dispensamos de as repetir aqui, sendo interessante confrontar os relatos existentes das diversas épocas para se verificar como, mesmo em região tão remota, e que permaneceu relativamente isolada e afastada dos grandes centros urbanos até a chegada do comboio ao Pocinho em 1887, as atividades primordiais da caça, pastorícia, agricultura, moagem, produção de cerâmica, navegação, almocrevaria e exploração de pedreiras e minas, se foram modificando ao longo dos tempos, sobretudo depois da 2.ª Grande Guerra, acabando por se extinguirem algumas delas e outras estão em vias de acelerado desaparecimento em virtude da omnipresença recente da economia do vinho e do turismo132.

131  Sobre a sua localização e limites ver TRABULO, 2000 e idem, 2008, pagela que teve a gentileza de me enviar a 28.04.2008; sobre a evolução administrativa da região ver COIXÃO & TRABULO, 1995. 132  Ver os textos dos anos 30 do século passado publicados em MARQUES, 1995; sobre a atividade olárica ver PINTO, 1998, e idem 2000; sobre a atividade moageira ver TRABULO, 1992: 203-206, GUIMARÃES, 2000 a e TRABULO, 2000: 79 e seg.s; sobre a rentabilização dos recursos da região, nomeadamente os culturais, ainda que parcelar e sob discussão, ver ROSAS, 2006; sobre as condições climáticas e de Património Natural ver, entre outros, alguns textos publicados em LIMA, 1998, e TOMÉ & CATRY, 2008.

FIG. 1 – A Quinta da Ervamoira no Parque Arqueológico do Vale do Côa.

Antes da nossa intervenção arqueológica nesta quinta a sua história era vaga, para não dizer ignorada e reduzida a escritos eclesiásticos que pouco mais referiam que a sua capela, datados de 1733, 1758 e finais do século XVIII133. Abandonada esta, a sua imagem de roca de Nossa Senhora foi levada para a igreja das Chãs, onde ainda hoje de encontra (TRABULO, 1992: 126 e 163; GUIMARÃES, 1997: 26/27; TRABULO, 2000: 94). Da sua antiga implantação ficou um terreiro socalcado, com vestígios das suas paredes e, no lado oposto, a norte, as de um telheiro para abrigo dos animais dos romeiros, área que escavamos com 133  ANTT, Tombo da Comenda de St.ª Maria de Longroiva, Meda e Muxagata, de 1773; ANTT, Memórias Paroquiais, 1758; História Eclesiástica da Cidade e Bispado de Lamego, de D. Joaquim de Azevedo, 1877; excertos transcritos em TRABULO, 2000: 51/52; 53/54 e 55; e GUIMARÂES, 2003: 73.

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resultados já parcialmente publicados (GUIMARÃES, 2010: 162-174). Subsistindo alguma memória oral recente pelo facto de se encontrar arrendada há várias gerações à família Sobral das Chãs, sendo propriedade de uma outra família de Valongo dos Azeites, São João da Pesqueira, foi a sua compra pela Casa Ramos Pinto em 1974 que lhe mudou o rumo produtivo dos cereais e hortícolas de subsistência para a grande produção vinícola, passando a ser uma das propriedades de referência do Douro Superior e de toda a região demarcada para a produção de vinho de mesa e do Porto134. O antigo rendeiro foi mantido como feitor, tendo alertado os novos proprietários para a existência na quinta de vestígios «dos antigos» que importava respeitar aquando da surriba dos terrenos para as novas plantações, o que veio a acontecer135. A história recente da propriedade está contada numa obra entretanto publicada em que somos um dos autores (ALMEIDA & GUIMARÃES, 2013: 284-295). A quinta tem uma casa antiga, construída no estilo da região, com paredes de xisto rematadas por cunhais e padieiras de granito, a qual poderá ter sido refeita e alargada ao longo dos tempos com silharia proveniente de outras construções nas redondezas, desde materiais romanos até cantarias de uma ponte localizada para montante perto da quinta e há muito tempo derruída. No lado sul, separada da casa principal, fica a casa do forno, com o dito no interior, tendo sido também utilizados na sua construção antigos silhares e cantarias de granito. Como entretanto foi construída uma outra casa recente na quinta ainda nos anos oitenta, aquela foi ficando abandonada e destituída de funções, pelo que em 1996 foi decidido transformá-la em Museu de Sítio (GUIMARÃES, 1998a: 149-185 e idem, 1998b: 205-208).

134  Sobre

as potencialidades vinícolas da região ver, entre outros, ALMEIDA, 1990: 17-30 e CARVALHO, 2005.

135  Deixo aqui as minhas homenagens, e as de toda a equipa, a esse homem probo e infatigável, o Senhor José do Nascimento Sobral, feitor de Ervamoira, que por entre os infinitos afazeres da quinta, sempre acompanhou os trabalhos arqueológicos e outros, proporcionando-nos as melhores condições de alojamento, alimentação, transportes e conhecimento da região.

2. A ARQUEOLOGIA NA REGIÃO ANTES DA CRIAÇÃO DO PARQUE ARQUEOLÓGICO DO VALE DO CÔA (PAVC)

P

or volta de 1939 o médico e autarca fozcoense, Dr. José Silvério de Andrade, que habitualmente «calcorreava os sítios isolados do Vale do Côa», terá reparado que as suas rochas apresentavam gravuras que terá divulgado em meios restritos, sem qualquer resultado para o seu estudo (BAPTISTA, 1999: 42 Nota 3). A sua existência, ainda que precariamente conhecida, e a ocorrência de outros objetos avulsos que iam aparecendo, levaram o arqueólogo e professor Adriano Vasco Rodrigues, profundo conhecedor da região de onde é natural, a equacionar, logo nos anos cinquenta do século passado, o enorme potencial arqueológico pré-histórico do vale do Côa, aspeto para o qual foi chamando a atenção em vários trabalhos que foi publicando136. Entretanto em 1960, D. Domingos de Pinho Brandão, que se dedicava ao estudo da epigrafia romana, às vezes em colaboração com o referido arqueólogo no que diz respeito a esta região, publica a ara dedicada a Júpiter da igreja de Vila Nova de Foz Côa (BRANDÃO, 1960: 66-70), iniciandose aqui os estudos de arqueologia romana por parte destes dois investigadores, o segundo dos quais tem vindo a publicar também as suas antigas recolhas de instrumentos e vestígios pré-históricos da região (RODRIGUES, 2003: 159-167; idem, 2005:179-184). Em 1977, Nelson Campos Rebanda, ainda estudante, toma conhecimento da existência, na margem direita do Rio Douro, do grupo de gravuras do cavalo do Mazouco, que haveria de revisitar e anotar já como aluno da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) em 1981, dando de tal conhecimento aos seus professores que de imediato ali se deslocam e publicam os primeiros artigos sobre o achado (REBANDA, 1998: 145-147; JORGE; JORGE; ALMEIDA, SANCHES & SOEIRO, 1981 e idem, 1982; JORGE; JORGE; SANCHES & RIBEIRO, 1982). Estava iniciado o estudo da Arte Paleolítica na região que haveria de conhecer dias deslumbrantes. 136  Cf. RODRIGUES, 1976: 6; RODRIGUES, 1983: 21 e seg.s; para os trabalhos deste autor e os de outros arqueólogos citados neste trabalho, ver a sua relação em OLIVEIRA 1984, e idem 1985.

86

Em meados de 1982, uma equipa da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho desloca-se para a região para realizar «os trabalhos de prospecção das zonas que em breve seriam submersas pelas águas da albufeira da barragem do Pocinho» e descobre «um primeiro grupo de 5 rochas insculturadas na margem esquerda do rio Douro, no sítio do Vale da Casa (freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa)», depois estudadas e publicadas por António Martinho Baptista (BAPTISTA, 1983: 57-69), tendo então este arqueólogo concluído que este sítio «teve pelo menos duas fases distintas de ocupação», preconizando estes primeiros achados o que na década de noventa haveria de ser detetado ao longo do Vale do Côa. Mas a prospeção não teve então imediata continuidade. Ainda em 1980, em Freixo de Numão, é fundada, por António do Nascimento Sá Coixão, professor e arqueólogo, e alguns mais, a Associação Cultural, Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão (ACDR), que tinha em vista, entre outros propósitos, a elaboração da Carta Arqueológica do concelho, que virá a realizar. O referido arqueólogo inicia escavações naquela localidade em 1982, e depois noutras estações romanas da região, as quais tiveram continuidade até aos dias de hoje, estando algumas delas já musealizadas (COIXÃO, 2013). Do outro lado do rio Douro, em Moncorvo, em 1983, também fundado por alunos da FLUP, tinha nascido o Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo (PARM), que oficializou a sua existência em 1986, o qual faria diversas intervenções na área também até à atualidade, estando na origem da criação do Museu do Ferro (CAMPOS, 2013). Em novembro de 1984, o autor deste texto, como membro do Gabinete de História e Arqueologia de Vila Nova de Gaia (GHAVNG), fundado em 1982, a pedido de José Ramos-Pinto Rosas, administrador da Casa Ramos Pinto, com o administrador Ricardo Nicolau de Almeida e a arqueóloga Maria da Graça Peixoto, visitou na Quinta da Ervamoira o local onde o feitor tinha alertado para a existência de uma «caixa de pedra dos antigos» que importava avaliar. No ano seguinte, logo na primavera, iniciamos o seu estudo, o que daria origem no verão seguinte, à descoberta da estação arqueológica aí existente, cujos primeiros resultados foram apresentados numa sessão do 1.º Congresso Internacional sobre o Rio Douro realizada na Universidade de Vila Real a 29 de abril de 1986. Desde 1985 decorreu naquela quinta uma campanha

anual no verão até 2004, complementada desde 1997, com as Semanas de Estudos Especializados realizadas nas férias da primavera, também organizadas pelo GHAVNG com a colaboração da Universidade Portucalense Infante D. Henrique (UPT), onde exercíamos a docência, em horário pós-laboral desde 1991, e do Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP); (GUIMARÃES & PEIXOTO, 1988; idem, idem, 1994: 235-262; GUIMARÃES, 2004: 141-151)137.

FIG. 2 – Início da intervenção arqueológica em Ervamoira, abril de 1985; fotografia de J. A. G. G..

Entretanto Sá Coixão prosseguia o seu trabalho nas estações arqueológicas que ia descobrindo em volta de Freixo de Numão, enquanto completava o levantamento da Carta Arqueológica do Concelho de Vila Nova de Foz Côa, com alargamento aos vizinhos concelhos da Meda e de S. João da Pesqueira, o qual lhe vinha revelando novos sítios da Pré-história Recente que importava estudar. Consciente de que não o podia, nem devia, fazer sozinho, em 1989 convida a deslocarem-se ao concelho os professores da FLUP, Susana Oliveira Jorge e Vítor Oliveira Jorge, a quem entrega nesse ano o estudo do chamado Castelo Velho, a que se seguiria o de Castanheiro do Vento, a partir de 1998, ao segundo daqueles professores. O primeiro local, depois de intervencionado, foi musealizado e aberto ao público em 2005; o segundo, tendo 137  De

que é diretor o Prof. Doutor Talhadas dos Santos, que dirigiu várias destas semanas entusiasmando os seus alunos no estudo da fauna, da flora e da ecologia do Vale do Côa.

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começado a ser intervencionado em 2003, continuou a ser estudado até à atualidade. Entretanto, compilando todas as informações orais, recolha de materiais, conhecimento pessoal dos sítios, resultados das prospeções e escavações, Sá Coixão apresenta naquela Faculdade a sua dissertação de mestrado sobre “A ocupação humana na Pré-história Recente na Região de Entre Côa e Távora”, publicada em 1999 (COIXÃO, 1999 a; JORGE; CARDOSO; PEREIRA & COIXÂO; JORGE, 2013: 143-158). Com a nossa intervenção em Ervamoira a decorrer, íamos percebendo que o sítio tinha ocupação tardoromana e vestígios da Antiguidade Tardia, mas também medievais, pelo que passamos a redobrar a atenção para os dados sobre a ocupação medieva da região, nomeadamente algumas referências sobre a história dos castelos138, enquanto decorriam já algumas intervenções arqueológicas para esta época no adro da igreja de Freixo de Numão (1985-1986), na igreja e necrópole medieval do Prazo (1995-1996), e em outras necrópoles e templos medievais da região (COIXÃO, 1999b). Pelo menos desde 1993 que Michael Mathias, arqueólogo da Universidade da Beira Interior, se vinha também interessando pelo povoamento medieval da região de Riba Côa, tendo em 1997 iniciado o levantamento do Castelo Melhor, e realizado aí sondagens arqueológicas, que se prolongaram até 2000 (MATHIAS, 1995 p. 495-501; idem 2000: 35-46).

FIG. 3 – Quinta da Ervamoira: estação romana e medieval (A); área da antiga capela (B): casada quinta (C); fotografia de J: A. G. G.. 138  Em outubro de 1987 apresentamos no IV Congresso sobre Monumentos Militares Portugueses, que decorreu em Santarém, uma comunicação sobre castelologia medieval da Terra de Numão (GUIMARÃES, 1987), mas as atas não foram publicadas, pelo que tencionamos publicar esse trabalho, devidamente atualizado, noutra publicação. Entretanto, ver BARROCA, 1991: 88- 136.

A partir de 1993 torna-se pública a decisão de avançar com a construção da barragem do Côa, a qual, se fosse feita, ia alterar completamente o clima da região e submergir grande parte do Património Natural, Vitivinícola e Arqueológico do Vale numa extensa área, tendo-se iniciado os trabalhos para a sua construção. Anteriormente tinha havido um levantamento do Património Arqueológico do Vale para o Estudo do Impacto Ambiental, com a identificação de sítios com arte rupestre pré-histórica e outros vestígios de outras épocas, o suficiente para indiciar que deveria ser feito um levantamento muito mais exaustivo da área a submergir. Em consequência, a 22 de março de 1993 é formalizado um protocolo entre o Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (IPPAR) e a Electricidade de Portugal (EDP), o qual institui uma equipa para tal liderada pelo arqueólogo Nelson Campos Rebanda que, à medida que os seus trabalhos vão revelando mais e mais gravuras, rapidamente descobre «que este conjunto de arte rupestre paleolítica é, de momento, o maior que se conhece ao ar livre na Europa Ocidental, o que rompe com a ideia de uma arte essencialmente cavernícola» (REBANDA, 1995: 15). Entretanto vai apresentando o resultado do seu levantamento e da, até aí, insuspeitada riqueza cultural das gravuras à sua tutela do IPPAR, que, quer a nível nacional, quer regional, era então dirigida por arquitetos sem qualquer sensibilidade e currículo para entenderem a importância destes achados, não só por parte de quem então dirigia o IPPAR-Norte, como também dos engenheiros da EDP, que davam a construção da barragem como facto consumado e os resultados complementares do levantamento um mero pro forma “para memória futura”139. Proporão depois o corte das pedras com gravuras e a sua arrecadação no Museu a construir. Perante esse panorama, o referido arqueólogo consegue que seja aprovada a ida ao Côa de vários arqueólogos especialistas em arte rupestre9, os quais não só confirmam a importância mundial dos achados, como de imediato apelam à suspensão dos trabalhos da barragem que os ia submergir. O processo, a partir daí, passa para a opinião pública através dos media, tendo sido em 1994 e 1995, um caso singular de debate generalizado na sociedade portuguesa sobre 139  Foram convidados a ir ao Côa reavaliar o interesse das gravuras, por proposta de Nelson Rebanda, ainda em novembro de 1994, entre outros, os arqueólogos Mário Varela Gomes, António Martinho Baptista e a geóloga Mila Abreu, ficando os dois primeiros encarregados de a partir daí passarem a orientar os levantamentos artísticas das gravuras; cf. BAPTISTA, 1999: 9 e 43 Nota 4.

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a importância do Património Cultural e a valorização de um sítio com enorme carga cultural face aos interesses da política do betão, da metalomecânica e da energia dita limpa, que na realidade suja e mata, biologicamente falando, a área das albufeiras e altera o clima da região circundante, tendo-se já então vindo a questionar a sua rentabilidade económica face à produção de energia em Portugal e na Europa140. A 17 de janeiro de 1996 o governo decidiu suspender os trabalhos da construção da barragem, mas já antes a classe profissional dos arqueólogos se preparava para apresentar planos alternativos. Assim, logo no primeiro semestre de 1995 a Pro APA – Associação Profissional de Arqueólogos, apresenta a sua proposta “Parque Arqueológico do Côa. Ideias e Propostas para um projeto” (LIMA; CORREIA & SILVA 1995, também publicada em JORGE 1995: 225-258), a qual contemplava não apenas o Património Pré-histórico, mas também todo o restante de todas as outras épocas, como evidência a considerar e valorizar na área do parque, através de centros de acolhimento, articulados com o Museu/ Núcleo Central, política essa que não foi seguida após a inauguração do PAVC a 10 de agosto de 1996 e da sua inclusão na lei orgânica do entretanto criado Instituto Português de Arqueologia (IPA) a 14 de maio de 1997, da declaração de Património Cultural da Humanidade a 5 de dezembro de 1998, nem da inauguração do Museu Arqueológico do Côa a 30 de julho de 2010, pois todo o trabalho desenvolvido pela sua institucionalização foi sempre voltado para o Paleolítico e para a Pré-história, com algumas manifestações muito pontuais sobre outros aspetos da arqueologia de outras épocas na região, nas quais o PACV fatalmente tropeça, porque estão lá141. Face a este panorama, quer os projetos de Sá Coixão, 140   Ver vários depoimentos, de profissionais de diversas áreas, em JORGE, 1995 (Dossier Côa editado pela SPAE), todos eles aqui a favor da suspensão da barragem. A favor da sua construção foram também publicados diversos textos, quer pela EDP, quer por outras entidades, nomeadamente a Universidade do Porto, que no seu Boletim n.º 25, ano V, 1995, publica um artigo de um professor de Engenharia a favor da construção da barragem. 141  O PAVC tentou, pelo menos em alguns momentos, reunir toda a informação arqueológica e histórica sobre o Vale do Côa: veja-me, por exemplo, LIMA, 1998; mas quer o programa do Museu do Côa quer as ações concretas no terreno, estiveram sempre maioritariamente voltadas para o Paleolítico e a Pré-História, o mesmo acontecendo noutras intervenções realizadas na região fora do programa do PAVC, em que a lição pré-histórica foi hipervalorizada em desfavor da evidente arqueologia de outras épocas. Tal limitação tem passado para as universidades e institutos estatais, nomeadamente a UTAD e o Instituto Politécnico de Tomar, conforme se pode ver em RODRIGUES & SANTOS, 2011.

em volta de Freixo de Numão, mas também noutros sítios do território, quer o projeto de Ervamoira, continuaram pois a ser desenvolvidos pelos respetivos titulares, tentando adaptar-se às novas circunstâncias, mas pouco beneficiando delas, a não ser, talvez, mais alguma visibilidade142. Foi assim que também logo em 1995, afastado que estava o espectro da barragem, quando interrogado pela administração da Casa Ramos Pinto sobre que destino dar ao trabalho em volta das ruínas arqueológicas, já então com uma década, propusemos e começamos de imediato a desenvolver um projeto para a transformação da velha casa da quinta num Museu de Sítio que mostrasse o espólio daquela granja agrícola no contexto da arqueologia da região, com um programa de interpretação desde a geologia, passando pela flora e fauna, e as diversas épocas históricas até à contemporaneidade, que desse apoio institucional à prossecução dos trabalhos de estudo dos materiais e outros saídos do labor científico desenvolvido ao longo destes anos (GUIMARÃES, 1997; idem 1998a; idem 1998b; idem 1999; idem 2000 b; idem 2000 c; idem 2003; idem 2010). Na área que então a quinta abrangia, embora tivesse aparecido alguma cerâmica pré-romana descontextualizada no entulhamento das ruínas, não tinham então sido descobertas quaisquer gravuras ou outros vestígios pré-históricos143, a não ser na vizinha Ribeira de Piscos, a norte e na Quinta da Barca, a sul, fora portanto da sua área.

142  Conforme consta dos respetivos relatórios sobre a nossa intervenção em Ervamoira, para além do apoio logístico da Casa Ramos Pinto às escavações, estas tiveram também algum apoio financeiro para materiais, equipamentos e pagamento a arqueólogos de campo, por parte dos serviços, com sucessivos nomes, do Ministério da Cultura que tutelavam a atividade arqueológica. 143  Em 2000 foram feitas nas Olgas de Ervamoira, em patamares de acumulação de sedimentos do Côa, várias e profundas sondagens pelos arqueólogos do PAVC, que se revelaram interessantes para o estudo da geologia e geomorfologia ribeirinhas e datação destes depósitos fluviais, que noutros locais do vale têm apresentado vestígios da ocupação humana, mas que aqui foram uma total frustração, pois os vestígios encontrados foram poucos e frustes; cf. AUBRY; DIMMUCCIO; SAMPAIO & SANTOS, 2010:133-143.

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FIG. 4

Considerando que até aí, a equipa, na sua maior parte constituída por alunos de Arqueologia da FLUP e pelos nossos alunos de Ciências Históricas – Ramo Património da UPT, além de um geólogo e outros, se tinha quase exclusivamente debruçado sobre as escavações e que importava alargar-lhe os horizontes interdisciplinares, na primavera de 1997 iniciamos as Semanas de Estudos Especializados

(SEE); (GUIMARÃES; 2004 a), com equipas alargadas à participação de geólogos, biológicos e patrimoniólogos e, pontualmente, engenheiros topógrafos, uma paleopatologista para os restos humanos esqueletizados (MENDONÇA; AFONSO & GUIMARÃES, 1999), um pintor, e alguns outros estudantes de outras áreas. Estas semanas produziram bibliografia sobre trabalhos específicos, quer sobre a

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quinta, quer sobre a região, dos quais salientamos, os sobre a olaria tradicional (PINTO, 1998, e idem 2000), entomologia144, para além, naturalmente, dos estudos sobre os vestígios e materiais exumados na estação145. Enquanto concebíamos o programa da criação do Museu de Sítio de Ervamoira (MSE), em harmonioso diálogo com o Arq.to Arnaldo Pimentel Barbosa, autor do projeto de adaptação da velha casa, a sua primeira versão foi apresentada pela administração ao então primeiro-ministro, Eng.º António Guterres, em visita à quinta a 12 de outubro de 1996, e depois aos chefes de estado, Dr. Jorge Sampaio, presidente da República Portuguesa e D. Juan Carlos I, rei de Espanha, e também ao presidente da UNESCO, Federico Mayor, que os acompanhou na visita ao Côa a 7 de julho de 1997. Tivemos depois apenas um ano, em parttime, fora do nosso trabalho com diretor do Solar Condes de Resende e para além do tempo dedicado à docência em horário pós-laboral, para concebermos e concretizarmos o discurso expositivo do Museu, o qual foi montado em tempo recorde, com a colaboração de alguns elementos da equipa de Ervamoira e de alguns funcionários do Solar Condes de Resende a título pessoal, que trabalhando dia e noite aos fins de semana, ao lado do pessoal da construção civil, o tiveram pronto para a inauguração a 1 de novembro de 1997 pelo ministro da Cultura, Professor Doutor Manuel Maria Carrilho. Tínhamos já então também sugerido a musealização das ruínas arqueológicas, então em fase final de intervenção na área descoberta, criando um circuito de visita à quinta, por via fluvial ou terrestre, complementado com a visita ao Museu de Sítio e articulado com as visitas aos núcleos de gravuras organizadas pelo PAVC (GUIMARÃES, 2003), o que não viria a acontecer, até porque, entretanto, a Casa Ramos Pinto tinha sido adquirida por uma empresa vinícola francesa, a Casa Roederer, que embora continuasse a apoiar o projeto do Museu de Sítio, não tinha exatamente o mesmo background cultural da empresa portuguesa que entretanto adquirira. Em França, por exemplo, sendo uma empresa centenária, nem sequer tinha arquivo histórico, por contraste com a empresa portuguesa, uma das poucas que têm o arquivo em fase de organização, denominado Arquivo 144  CF. GROSSO-SILVA, 2003: 6-25, onde este entomólogo apresenta diversas espécies de insetos referenciados em Ervamoira e no Vale do Côa, tendo ainda outra bibliografia sobre espécies endémicas na região publicada no Boletim da Sociedade Entomologica Aragonesa, Saragoça. 145  Uma bibliografia sobre os trabalhos nesta estação, embora incompleta, pode ser vista em ALMEIDA & GUIMARÃES, 2013: 355-358.

Histórico Adriano Ramos Pinto (AHARP). Para nós a estação arqueológica da Quinta da Ervamoira, e os trabalhos a que ia dando origem, só faziam sentido se articulados com o conhecimento da região e a sua complementaridade em franca colaboração com todos os seus agentes culturais e, em primeiro lugar, com os arqueólogos por motivos óbvios. Os trabalhos interdisciplinares que ali promovemos foram sempre disponibilizados a todos os que os procuraram. Creio que também por todos estes motivos, foi classificada como monumento nacional, com os restantes sítios arqueológicos já então conhecidos no Vale do Côa, através de despacho do Ministro da Cultura de 13 de agosto de 1996.

FIG. 5 – Apresentação do projeto do Museu de Sítio de Ervamoira ao Presidente da República Portuguesa e ao Rei de Espanha no Vale do Côa a 6 de junho de 1997; fotografia do AHARP.

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3. APÓS A CRIAÇÃO DO PAVC

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institucionalização do PAVC, com todas as contradições que possa ter tido, foi um momento alto da Arqueologia portuguesa. Mas não precisava de ter cometido as injustiças que cometeu contra alguns daqueles que contribuíram para o desenrolar do processo, enquanto que alguns outros com responsabilidades na área da Cultura, que até alinharam com os seus detratores, passaram incólumes a uma situação de esquecimento confortável. Ao longo destes anos é indubitável que a instituição produziu um muito bom trabalho no que diz respeito à Arte Rupestre do Côa, da Pré-história nacional, peninsular e mundial, nos aspetos da prospeção, interpretação e musealização, que já serviram de paradigma para outras manifestações noutras latitudes. (RODRIGUES; LIMA & SANTOS 2011, artigos de vários autores). Mas a restante arqueologia, da proto-história à industrial, foi deixada a outras entidades, como foi o caso de Ervamoira, até porque é propriedade de uma entidade privada, não tendo os nossos trabalhos recebido qualquer apoio do programa PROCÔA, entretanto implementado, nem sequer para publicar os textos entretanto produzidos, que têm vindo a ser disponibilizados em várias revistas nacionais e estrangeiras, mas dispersos.

FIG. 6 – Inauguração do Museu de Sítio de Ervamoira pelo Ministro da Cultura a 1 de novembro de 1997; fotografia do AHARP.

Antes e após a inauguração do MSE, e enquanto as escavações e as SEE prosseguiam para lhe aumentar os conteúdos, tivemos o grato prazer de acompanhar a visita ao local de diversas personalidades do mundo académico que deixaram expresso no Livro de Honra da quinta palavras de apreço e incentivo. Logo a 22 de abril de 1955 tivemos a visita de estudo pelos professores e alunos de geologia da FCUP conjunta com os de Património da UPT, que visitaram, entre castelos, pedreiras e o Museu do Ferro de Moncorvo, as ruínas de Ervamoira e as gravuras da Ribeira dos Piscos guiados por Nelson Rebanda, a que se seguiu o último grande almoço na casa velha da quinta antes da sua remodelação. Já depois da abertura do Museu ao público aí recebemos o Professor Henry Cleere do ICOMOS, trazido pela Universidade Portucalense a 20 de novembro de 1998, de que recordamos o seu entusiasmo com as gravuras que viu então pela primeira vez in situ, mas também pelo conteúdo e funcionamento do Museu de Ervamoira e pelos vinhos que a quinta produz, aos quais teceu encomiásticos louvores. Também aí decorreu o almoço e uma das sessões do Encontro Anual de Paleopatologia Ibérica, com alguns dos maiores especialistas ibéricos na matéria trazidos pela Professora Doutora Maria Cristina de Mendonça a ver a mandíbula humana a 29 de maio de 2000 e no dia seguinte o Museu da Casa Grande de Freixo de Numão, que apresenta nas suas coleções alguns esqueletos (COIXÃO, 1999 b). A 16 de novembro de 2001 foi a vez dos professores Gaspar Martins Pereira, da FLUP, e François Guichard e Philippe Roudié de Bordéus, tendo-me este último pedido autorização para copiar a ideia deste Museu de Sítio para instalar um semelhante numa quinta daquela região vinícola francesa. E a estas prestigiosas visitas outras se seguiram, também de escritores, políticos, artistas, jornalistas e público anónimo, pois o Museu encontra-se sempre disponível para acolher visitas de grupos, com marcação prévia devido à necessidade de assegurar o transporte e as refeições, se for o caso. Por sua vez a ACDR de Freixo de Numão, também numa postura de boa colaboração com o PAVC desde a sua criação, continuou a desenvolver os seus trabalhos, vindo a equipa de Sá Coixão em 2003 a descobrir a notável vila romana de Vale do Mouro, Coriscada, Meda, desde aí intervencionada com notável proveito para a arqueologia nacional, estando já em parte musealizada, numa política de valorização de vários

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núcleos espalhados pela região, como complemento, ainda que não institucional, do Museu do Côa e do PAVC, pois são geridos e rentabilizados por outras entidades (COIXÃO & NALDINHO 2011: 479-506). Por sua vez, no que diz respeito a grandes encontros profissionais sobre a região, o 1.º Congresso Internacional sobre o Rio Douro, com a presença de estudos sobre arqueologia, foi realizado em 1986 pelo Gabinete de História e Arqueologia de Vila Nova de Gaia, que em 1996 realizou o segundo, em colaboração com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Aí virá também a decorrer o 3º Congresso de Arqueologia Peninsular, em setembro de 1999, organizado pela Associação para o Desenvolvimento da Cooperação em Arqueologia Peninsular (ADECAP). A própria ACDR, em colaboração com diversas entidades da região, realizou já desde 2004 cinco Congressos de Arqueologia, com diferentes amplitudes e incidências. Todos estes aspetos, e muitos outros, a que devemos juntar as realizações do PARM, transformaram Vila Nova de Foz Côa num local obrigatório da arqueologia nacional, ao lado de Braga, Coimbra, Lisboa, Mértola e Silves, pelo menos. A Arqueologia, aliada à Vitivinicultura, à Olivicultura, à Gastronomia e ao Turismo, contribuiu assim para o progresso e o desenvolvimento da região, o que infelizmente ainda não aconteceu com outros setores, que só lentamente irão despertando, como é o caso da agricultura de outras produções que já foram tradicionais, como a amêndoa, os figos, o sumagre ou os melões, que hoje quase aqui não existem ou são residuais em termos de produção. Mas há quem não goste de Arqueologia ou não entenda a sua função cultural e social. Isso ficou bem patente na discussão sobre o interesse mundial das gravuras do Côa que se desenvolveu ao longo de 1994 e 1995; isso tem vindo a ficar evidente em algumas declarações de alguns políticos, jornalistas e outros opinion makers, mal informados, mal instruídos ou ao serviço de outros interesses. Este já longo arrazoado, apesar do que foi dito, breve e lacunar, mais não se destina senão a ser uma possível moldura para enquadramento dos trabalhos de Ervamoira, e dos outros sítios arqueológicos por nós estudados ou escavados na região146. 146  Sobre os nossos trabalhos noutras estações arqueológicas do Vale do Douro, veja-se GUIMARÃES, 2006 a; idem 2006 b; idem 2007; idem 2008 a; idem 2008 b, idem 2009; idem 2013; SILVA & GUIMARÃES, 2013; e GUIMARÃES, 2014.

4. A ESTAÇÃO ARQUEOLÓGICA DE ERVAMOIRA

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pós as campanhas realizadas entre 1984 e 2004, e as Semanas de Estudos Especializados entre 1996 e 2004, pelas quais passaram 174 pessoas diferentes, entre as quais o diretor da escavação 20 anos e alguns outros membros da equipa pelo menos 10, ora seguidos, ora interpolados, e que, em alguns casos, terão decidido o seu futuro profissional ainda enquanto estudantes, importa agora aqui escrever, em resumo, o que ficou desse labor. Para além da experiência pessoal de muitos, antes e depois da descoberta das gravuras, ficaram, antes de mais, a bibliografia publicada e o Museu de Sítio, onde se exibe o principal espólio da estação num discurso claro para seu entendimento e a sua relação com a região e outros locais mais distantes, cuja exposição, após o primeiro programa de 1997, foi por nós refeita e ampliada em 2004. No terreno ficaram as ruínas romanas e medievais, que propusemos consolidar e musealizar, mas que, até hoje, tal não foi possível (GUIMARÃES, 2003).

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FIG. 7 – A estação arqueológica ainda em fase de intervenção, 1996; fotografia de Paulo Magalhães.

A primeira área a ser intervencionada foi o local no alto da colina da estação onde apareceu o sarcófago de pedra, partido e deslocado, mas que, curiosamente, tinha sido colocado sobre uma sepultura aberta e talhada no xisto, com rebaixamento lateral em toda a bordadura e que em tempos esteve coberta por placas de xisto, que o peso do sarcófago partiu, mas que não tinha qualquer espólio. Seria uma zona de necrópole para os poucos habitantes do local (GUIMARÃES & PEIXOTO, 1988; GUIMARÃES, 2000 b). Note-se que, à época do início da intervenção, era a única escavação romana no Vale do Baixo Côa e não havia então paralelos diretos para a região, o que felizmente hoje não acontece (PERESTRELO, 2003; COSME, 2013). Pelo facto de esta estação apresentar, logo no início dos trabalhos, abundantes fragmentos de sigillata, vidros e elementos arquitetónicos clássicos talhados em aplito, chegamos a pensar tratar-se de uma villa, mas com o desenrolar da escavação verificamos que o conjunto edificado romano, composto essencialmente por três edifícios justapostos, ocupava apenas uma área de cerca de 2000 m2, o primeiro medindo 18,8x7 metros, orientado no sentido NO/

SE, e que designamos como taberna por apresentar no interior, e sob a queda da cobertura de tegulae, muitos fragmentos de louça de copa e de cozinha; o segundo, um grande edifício com alguma evidência de ter tido algumas divisões internas, com 31x15,3 metros, orientado no sentido SO/NE, infelizmente muito destruído em algumas pates pela lavra do sítio durante anos ou décadas, tinha no interior algum material cerâmico de armazenagem. Finalmente um terceiro edifício, alinhado com o primeiro, mas ligeiramente mais largo, com 15,2x9,7 metros, orientado no sentido NO/SE e que interpretamos como sendo uma basílica paleocristã pelos seguintes motivos: no interior não tinha louça de cozinha, copa ou armazenamento, mas apenas tegulae; uma delas tinha um chrismon cruzado gravado na pasta; havia no interior um pequeno muro de um dos lados, junto à cabeceira, perpendicular à parede exterior, que interpretamos como a base do iconostasis; a outra parte, que seria obviamente simétrica, estava destruída pelo arado; apareceu aqui uma moeda de Teodósio, o que nos remete para o final do século IV ou mesmo já século V. Apareceu também aqui uma mandíbula humana, o

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que nos levou a associar a estas ruínas o sarcófago de granito deslocado que está na origem da descoberta desta estação, o qual conteria os restos mortais de que a peça faria parte e seria talvez coberto pela tegulae com o chrismon gravado, e outras decoradas com meandros e círculos que aqui apareceram, pois no telhado não fariam muito sentido, pois não se veria aquele símbolo e a decoração. Por outro lado, o saimel de dupla curvatura e as aduelas de granito de arcos ultrapassados que fomos encontrando um pouco por toda a área, desde a casa do forno, onde algumas ainda estão embutidas na frontaria do dito, até aos muros de Ervamoira B, não seriam daqui, da monumentalização deste suposto iconostasis? Mas, nesse caso, o edifício teria de ser mais tardio, já do século V ou VI, sendo estes arcos ultrapassados bem precoces na região e no tempo (GUIMARÂES, 2000 b). Também pensamos a sua reconstituição no Museu, mas para tal também ainda não houve oportunidade. Não temos certezas para a datação romana do telheiro de fundição encontrado a SO das estruturas anteriores, embora o mesmo apresentasse vestígios de um formo de fundição arcaico (GUIMARÃES & BAPTISTA, 2004). Uma das peças fundidas que apareceram num outro local da estação, sem sinal de desgaste de uso, foi um espigão de cinturão visigótico em forma de “violino”, além de outras peças, o que prova que aqui se fundiu bronze. Este tipo de fuzilhões aparecem em outras estações do período visigótico, como é o caso da necrópole de El Pelicano na meseta (VIGIL-ESCALERA, 20011:53) Por sua vez, no telheiro da ferraria a nascente deste outro, adossado ao grande edifício romano, mas com cerâmica medieval, foi encontrado um cubo de pedra com buraco cónico para encaixe do cepo da bigorna e nas suas faces laterais rebaixos para o encaixe de rodas de carroças. Pode ser uma peça romana reaproveitada ou uma ferramenta que foi copiada durante séculos. Daí o também acharmos que aqui funcionou uma mutatio, talvez ao longo de todas as épocas de ocupação, onde sempre foi preciso fundir metais e rebitar arcos de rodas de carroça. A metalurgia de Ervamoira já foi objeto de publicação em dois estudos (GUIMARÃES; BAPTISTA, 2004; idem; idem, 2006). Um segundo, ou terceiro, momento de ocupação do lugar, que ignorou pelo menos em parte algumas estruturas do primeiro, o que mostra algum distanciamento no tempo, está documentado pela existência de dois outros edifícios, um muito

completo, com planta quadrangular com quase 10 metros de comprimento, construído sobre o edifício romano que designamos como taberna, mas que, pelo desalinhamento das paredes de ambos, ignorou completamente a sua pré-existência. Com a porta voltada a SSE, tem no interior no canto oposto um murete em quarto de círculo que pode ter tido várias funções. Em frente à porta foi encontrada uma estrutura de moagem constituída por um murete em angulo reto que protegia do vento uma mó manuária de que estava presente a parte dormente, a qual teria a ver com a primeira e não a segunda construção. Em diversos locais da estação apareceram mós ou fragmentos, uns certamente para moerem grãos de cereal, mas outras, devido à textura grosseira do granito em que foram talhadas, seriam antes para moer minerais para fundição. Ao contrário dos edifícios romanos, que tinham cobertura de tegulae, estes outros teriam cobertura de colmo. Sobre o canto SO do grande edifício romano, foram também encontrados os restos de uma construção semelhante, que parece ter aqui aproveitado parte do alicerce e das paredes do edifício anterior. Relacionados com uma grande lareira próxima, tal como o anterior, será um edifício do século XIII, do período em que o Côa era fronteira. A NE de todos estes edifícios e a uma cota mais baixa, escavamos um outro edifício de dois compartimentos, bem construído com grandes silhares de xisto e que em tempos foi coberto por grandes placas do mesmo material que entretanto tinham derruído, voltado ao Côa e de onde se controlava o seu curso, quer para jusante, quer para montante. Face ao pouco espólio recolhido, que pode ser posterior à sua construção, pois pode ter sido utilizado durante muito tempo por pastores ou os moleiros que tinham os moinhos do outro lado do rio (GUIMARÃES, 2000 a), não conseguimos datá-lo com precisão. Pensamos tratarse de uma construção já da Época Moderna. Outra área entretanto intervencionada, que designamos por Ervamoira B, foi o local de implantação da antiga capela, uma vasta plataforma socalcada, talhada no xisto, perto da nascente de água e inserida numa área de socalcos antigos, com alguns silhares de granito reaproveitados, nomeadamente aduelas dos arcos de que já falámos, proporcionava o cultivo de horta e pomar. O patamar da capela, orientado no sentido norte/sul, voltado a nascente, apresenta-nos na extremidade norte dois muros justapostos que

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terão feito parte de um telheiro aberto para recolha de animais. Na sua periferia nascente existiu um denso núcleo de negrilhos anões, mas com vestígios de outros de maior porte, talvez o que restava a justificar a denominação setecentista de Nossa Senhora dos Carvalhais. Na extremidade sul da plataforma, restava parte de uma parede da capela e restos das restantes, muito derruídas.

FIG. 8 – Vista exterior do Museu de Sítio de Ervamoira em 1997; fotografia de J. A. G. G..

FIG. 9 – Escavações em Ervamoira B, 2002; fotografia de J. A. G. G..

Quanto à cronologia da ocupação da quinta cremos que ela pode ser dada, em boa parte conjugada com outros elementos, pelos numismas encontrados. Se é certo que aqui apareceu cerâmica pré-histórica descontextualizada, um machado neolítico, e um ou outro vestígio que nos apontam para tempos pré-romanos, o facto de aqui aparecer um bronze de Cláudio, ele é consentâneo com outros achados na região, e com outros vestígios, nomeadamente cerâmica, desta própria estação. Estaríamos pois num seu primeiro momento de ocupação, no século I d. C.; seguem-se duas moedas do século III e cinco do século IV, devendo estas corresponder ao período áureo de ocupação do sítio, que se terá prolongado para os séculos V e VI, a avaliar por outros vestígios de que já falámos. Uma peça cerâmica decorada do século IX ou X, com decoração de inspiração magrebina, corresponderá a uma ocupação esporádica do sítio, pois que não deixou muitos mais vestígios, os quais voltam a acentuar-se, como dissemos em termos de estruturas, mas também em cerâmica e metalurgia, no século XIII, avalizados por um dinheiro de Afonso III. Depois deste último o testemunho numismático desaparece e só volta no final do século XIX, quer em Ervamoira B, quer na área de implantação da Casa da Quinta, prosseguindo já pelo século XX com alguns exemplares (GUIMARÃES & GUIMARÃES, 2005).

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O espólio mais estudado e divulgado desta estação, se bem que longe de o estar na totalidade, é o cerâmico, o qual engloba materiais de construção, tegulae e tijolos, cerâmica de fundição, tubeira, cerâmica de cozinha e copa e cerâmica de armazenagem. No primeiro caso, logo nos primeiros anos, tentamos um estudo comparativo entre as tegulae desta estação e outras que entretanto íamos visitando na margem sul do Rio Douro (GUIMARÃES, 1993). De um modo geral, a cerâmica desta estação exposta no Museu encontrase já estudada e publicada, quer no que diz respeito à cerâmica de cozinha e copa romanas, quer aos grandes vasos de armazenagem medievais e também alguma cerâmica de cozinha e copa medievais (GUIMARÃES, 1999; idem, 2000 c). Falta-nos, contudo, comparar as cerâmicas e outras evidências arqueológicas desta estação com as de algumas outras recentemente escavadas na meseta

hispânica onde aparecem, para a mesma época, peças muito idênticas, para percebermos melhor a circulação de pessoas e bens na Hispânia visigótica dos séculos V e VI que aqui chegaram e permaneceram (CATALÁN; FUENTES & SASTRE, 2014). Publicamos entretanto o estudo das cerâmicas vidradas de Ervamoira B, porque elas vieram avivar a questão do vidrado, uma velha discussão relacionada com a cerâmica tradicional da região. Eram todas importadas da região litoral, de Barcelos, e posteriores à chegada do comboio ao Pocinho (GUIMARÃES, 2010). Neste universo ceramológico estão por estudar as cerâmicas pré-romanas, as sigillata147, e a cerâmica da Alta Idade Média, de Ervamoira A (estação arqueológica romana e medieval), bem assim como a cerâmica tradicional da região e as faianças de Ervamoira B (área da capela).

FIG. 10 – Tratamento informático do espólio de Ervamoira, 2002: fotografia de J. A. G. G..

147  As sigillata desta estação foram já desenhadas por Susana Guimarães e encontram-se presentemente a serem estudadas pela nossa colega Prof. Teresa Pires de Carvalho.

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5. CONCLUSÃO

A

ntes de terminar, permitam-me aqui uma saudosa evocação: no já distante dia 31 de julho de 1996, estando em Ervamoira, recebi um telefonema de Nelson Rebanda a informar-me do falecimento de Carlos Alberto Ferreira de Almeida148, em férias lá longe. O silêncio, a inutilidade das palavras gelaram o fio do telefone e ficamos ambos suspensos daquela infausta notícia. Tinha acabado dois anos antes o meu mestrado que aquele professor orientara e já tínhamos conversado sobre a minha proposta de tese de doutoramento sobre a Antiguidade Tardia no Vale do Douro, que eu muito desejava que igualmente viesse a orientar, e a que ele anuiu com aquela dose necessária de entusiasmo que punha em todos os projetos que abraçava. Com aquela notícia este projeto morreu ali, não porque deixasse de me interessar, não porque não houvesse outros orientadores capazes, mas porque há no mundo do saber cumplicidades difíceis de substituir e esta era uma delas. Mudei de rumo no que diz respeito à época e tema, mas o Douro e o seu Vale permanecerão para sempre no centro da minha investigação. A procura do entendimento sobre a Alta Idade Média na região tenho-a continuado para meu contentamento, mas também em memória daquele Professor que permanece querido na lembrança dos seus discípulos, entre os quais eu me assumo. A estação de Ervamoira, que me prometera que haveria de visitar quando voltasse, foi uma das primeiras granjas agrícolas a ser completamente estudada na região e a única até à data que tem um museu monográfico. Depois do final dos trabalhos aí desenvolvidos até 2004, continuou não só o interesse pela romanização do Vale do Côa e regiões adjacentes, como mesmo pelo estudo de outras granjas na região, procurando os diversos autores investigar se elas caberiam numa grelha de povoamento importado, tendo presente a estandardização da matriz romana, ou se, pelo contrário, as especialidades da região – mineração, agricultura, criação de gado – poderiam ter-lhe dado um fácies regional próprio, assunto que permanece na ordem do dia até que a investigação 148  Carlos Alberto Ferreira de Almeida, professor catedrático da FLUP, faleceu na Venezuela, onde se encontrava de férias com a esposa e filho, após os ter salvado das ondas do mar, a 27 de julho de1996. Jaz sepultado em jazigo próprio no cemitério paroquial de Santa Marinha, Vila Nova de Gaia.

sobre a presença romana aqui avance para a produção de uma grande síntese, para a qual Ervamoira terá dado o seu contributo.

FIG. 11 – Sala da Arqueologia do Museu de Sítio de Ervamoira; fotografia do AHARP:

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Painel 2

Quintas do Douro: Património vitinícola, enoturismo e desenvolvimento regional Nuno Magalhães

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O papel e importância das “QUINTAS” na investigação e desenvolvimento da vitinicultura durience texto: Nuno Magalhães, UTAD ([email protected])

Nota biográfica: Nuno Pizarro de Campos Magalhães Licenciado em Engenharia Agronómica pelo Instituto Superior de Agronomia (Universidade Técnica de Lisboa), iniciou a sua carreira profissional na Divisão de Viticultura da Estação Agrária do Porto, onde trabalhou durante 3 anos. Em 1977 ingressou no Instituto Politécnico de Vila Real (IPVR), como assistente convidado para a área de Viticultura. Desde essa data até 2006 foi responsável no IPVR e depois na Universidade de Trás-os- Montes e Alto Douro (UTAD), pelas disciplinas de Viticultura dos cursos de Licenciatura em Engenharia Agrícola, em Enologia e em Ciência Alimentar. Em 1990 obteve o grau de Doutor em Engenharia Agrícola, tendo tomado posse como Professor Associado em 1991. De 1999 a 2002 foi coordenador do Curso de Enologia da UTAD. Desde 2000 que integra a Comissão Organizadora do “International Master of Science VINTAGE – VITIVINICULTURA”, tendo participado na docência, e na Comissão Pedagógica deste Mestrado e posteriormente quando o mesmo passou a Erasmus/Mundus em 2006, até à data. Foi coordenador de diversos projectos de investigação incluindo uma das acções no âmbito do PDRITM, e tem publicados cerca de 100 trabalhos técnicocientíficos e de investigação. Em 2008 publicou o “Tratado de Viticultura – A videira, a vinha, o terroir” (Ed. Chaves Ferreira), que obteve em 2010 o prémio da melhor obra do ano sobre viticultura, atribuído pelo Office Internacional de la Vigne et du Vin (OIV). Em Maio de 2010 recebeu do Senhor Presidente da Republica a Comenda de Ordem de Mérito Agrícola. Em 2013 recebeu o prémio OIV na categoria “Monografias e estudos especializados” pela obra “Francisco Girão – An innovator in vitiviniculture in North of Portugal – Vol I / Vol II”, de que foi coordenador e co-autor. Encontra-se actualmente na qualidade de Professor Emérito da UTAD, continuando a colaborar com a Universidade, nomeadamente no âmbito daquele Mestrado, do qual é Coordenador em representação da mesma, assim como na

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PORVID (Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira) como membro da Assembleia Geral. Para além da actividade de docência e de investigação na Universidade, desde 1980 até á data, tem prestado serviços de consultoria vitícola a diversas empresas com vinhas nas regiões do Douro, Vinhos Verdes, Bairrada, Dão, Alentejo, Ribatejo e Algarve, mantendo actualmente consultoria à CARM, Casa de Mateus, Lavradores de Feitoria, Noval e Romaneira, na Região do Douro, Quinta do Romeu em Trás-os-Montes, Casa de Vila Verde, na Região dos Vinhos Verdes, Quinta da Murta, em Bucelas, Herdade do Vau no Alentejo, num projecto no Namibe (Sul de Angola) e noutro em Beijing.

Resumo Esta apresentação subdivide-se em quatro partes: breve abordagem sobre as Quintas do Douro e sua viticultura desde o início da nacionalidade até meados do século XIX; a crise vitícola da 2ª metade do século XIX, aspectos da sua resolução e alterações na viticultura; as técnicas vitícolas até à década de 70 do século XX; posterior papel dos Organismos e Empresas na inovação e experimentação nas Quintas face aos novos sistemas de cultivo, incluindo as formas de armação do terreno, a mecanização, as técnicas de condução da vinha, a adaptação das castas e sua selecção varietal e clonal

Abstract This presentation is divided into four parts: a brief overview on the Douro Quintas and its viticulture since the beginning of nationality until the mid-nineteenth century; the wine crisis in the 2nd half of the 19th century, aspects of its resolution and changes that occurred in viticulture; winegrowing techniques until the 70s of the 20th century; the subsequent role of Organizations and Companies on innovation and experimentation in the Quintas in the presence of new farming systems, including the construction of terraces, mechanization, training of the vine, the adaptation of variety and its varietal and clonal selection.

Palavras-chave: Douro; Quintas; sistemas de condução; experimentação vitícola

Keywords: Douro; Quintas; training systems; viticultural experimentation.

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1 - NOTAS PRELIMINARES

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ese embora o facto da cultura da vinha ter tido, desde o início da Nacionalidade, certa importância no sistema agrícola da Região do Douro, tinha maior expressão na zona da Beira Douro correspondente parcialmente à agora designada por Baixo Corgo. Já nessa época surgem Quintas de grande dimensão, pertencentes às Ordens Religiosas, tais como a da Folgosa, hoje Quinta dos Frades, do Paço do Monsul, do Mosteirô, e mais tarde da Vacaria (Martins Pereira, G 1998). Ruy Fernandes (1531) refere também a existência de Quintas na zona de Lamego. Contudo, só a partir de finais do século XVII e durante o século XVIII a viticultura toma um desenvolvimento geográfico muito significativo pela criação e comercialização do Vinho do Porto e pela Demarcação da Região do Douro (RDD). Será por essa altura que as Quintas tomam particular relevância em número de explorações e importância na produção e imagem do Vinho do Porto, cuja dimensão implica a permanência de caseiros, de feitores e nalguns casos dos próprios proprietários, que orientam trabalhadores permanentes, ou sazonais quando o volume de trabalhos implica a sua contratação (“rogas”) em particular para a realização das podas e para as vindimas. Até meados do século XIX não se dispõe de documentação suficiente para que se possa assegurar que tenham ocorrido alterações significativas nas técnicas vitícolas. É possível que Quintas de origem antiga tais como a de Ventozelo, das Carvalhas e em particular a de Roriz (Martins Pereira, 2011), embora praticando uma viticultura tradicional e rotineira, tenham trazido inovação, nomeadamente a nível de encepamentos de maior qualidade. Também na Quinta do Vesúvio (ou das Figueiras), o sogro de D. Antónia Adelaide Ferreira a qual viria a ser proprietária de mais de 25 Quintas afamadas, procedeu em 1823 a grandes plantações (Barreto A., 2014), que provavelmente terão sido objecto de algumas inovações de carácter técnico, embora tal aspecto não esteja devidamente documentado. De resto, a forma de implantação da vinha de acordo com a sistematização do terreno e surribas, os granjeios anuais, as formas de condução da videira ter-se-ão mantido mais ou menos inalteráveis, estabelecendo um equilíbrio entre as condições naturais, as videiras e o viticultor. Apenas é de supor, tal como já referido, que os encepamentos tenham vindo a ser enriquecidos

ou modificados, traduzidos pelo elevadíssimo número de castas autóctones ou nascidas por cruzamentos naturais (caso da Touriga Franca, resultante de hibridação espontânea entre Touriga Nacional e Mourisco), e de outras introduzidas. Mais de uma centena de castas figura nos vinhedos Durienses, cuja adaptação de cada está associada à diversidade de mesoclimas, fruto de uma orografia diversificada pela altitude, exposições e declives. Para além das Quintas, umas de exploração absentista, outras de gestão presencial dos seus proprietários, uma miríade de pequenas explorações (hoje em dia ainda superiores a 90% do total) constituíam o tecido fundiário para a produção de Vinho do Porto. O restante vinho não tinha relevância no mercado externo, restringindo-se globalmente para consumo interno na região e também para as tabernas do Porto vendido como “vinho de ramo”.

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2 – A VITICULTURA DURANTE A CRISE DA 2ª METADE DO SÉCULO XIX

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partir de meados do século XIX até seu final surge grave crise no Douro pela contaminação sequencial dos vinhedos, pelo oídio (1851), pela filoxera, insecto introduzido acidentalmente a partir do continente Americano e detectado pela 1ª vez na Quinta dos Montes da freguesia de Gouvinhas em 1863 (Martins Pereira, G., 2011), e do míldio em 1893. Quer a filoxera quer aquelas doenças, a acrescentar a antracnose, de menor impacto, elas também oriundas da América, tiveram um efeito destruidor da maioria dos vinhedos, cujos efeitos de natureza económica e social, e sua resolução, se prolongaram até finais daquele século. Para debelar a crise, foram constituídas comissões de trabalho a par de iniciativas individuais, para investigar soluções eficazes no controlo daqueles agentes perniciosos para a vitivinicultura da Região. Relativamente ao oídio e ao míldio passou a ser prática corrente nos granjeios da vinha, para o seu controlo, respectivamente o enxofre em pó e soluções cúpricas sob a forma da designada “calda bordalesa”. Já relativamente ao combate à filoxera, a sua solução foi mais complexa, pois tratando-se de uma praga que se instala nomeadamente no solo, destrói rapidamente as raízes da videira, conduzindo à sua morte e consequente abandono das vinhas, de que são testemunho hoje em dia alguns milhares de hectares de antigos vinhedos, agora ocupados pela flora arbóreo-arbustiva e herbácea característica dos matagais Durienses, assertivamente designados de “mortórios”. Para esse efeito foi criada a “Comissão anti-filoxera”, que realizou numerosas experiências pela aplicação de sulfureto de carbono ao solo, tendo sido a primeira no ano de 1876 na Quinta de Chanceleiros, em Covas do Douro, propriedade do Visconde de Chanceleiros (Martins Pereira G., 1998). A resolução do problema filoxera não foi contudo obtido por esta via, mas sim pela plantação de porta-enxertos oriundos de espécies do género Vitis, espontâneas em diversas partes do continente Americano, e consequentemente resistentes àquela praga, sobre os quais era (e ainda é) enxertado um garfo de uma casta europeia para a futura vinha. Neste contexto são de realçar as primeiras experiências de plantação de “bacelo” americano, na Quinta da Boavista em 1888, e a concretização da eficácia da enxertia de varieda-

des europeias (castas) sobre o dito bacelo, da qual foi pioneiro Joaquim Pinheiro de Azevedo Leite, de Provezende, que as concretizou, em 1876, na Quinta de Vale de Figueira, perto do Pinhão (Martins Pereira, G., 1998). Também outras personalidades da época, geralmente proprietárias de Quintas no Douro, conhecedoras da viticultura e particularmente sensibilizadas para estes problemas, tiveram, através da escrita, papel não negligenciável na contribuição para o combate à crise que assolava a Região, sendo de referir, entre outros, Pinto de Menezes e Marques de Carvalho (no Boletim da Direcção Geral da Agricultura), Cincinato da Costa (Portugal Vitícola), Visconde de Villa Maior (Manual de Viticultura Prática). É de referir também o nome de Quintas emblemáticas, embora de antiguidade distinta, que se debateram com a crise, e que de certo modo contribuíram para que ela fosse ultrapassada, até porque resistiram até então. A título de exemplo: Paços do Monsul, Quinta dos Frades, Quinta da Romaneira, Quinta do Retiro, Quinta do Convento de S. Pedro das Águias, Quinta de Santa Eufémia, Quinta da Casa Amarela, Quinta da Pacheca, Quinta da Eira Velha, Quinta de S. Luiz, Quinta de Roriz, Quinta do Seixo, Quinta das Carvalhas, Quinta do Sairrão, Quinta do Caêdo, Quinta da Foz, Quinta do Fojo, Quinta de Santa Bárbara,… Também é oportuno referir que, na mesma época, D. Antónia Adelaide Ferreira (a Ferreirinha, como ficou conhecida) herdou e sobretudo adquiriu numerosas Quintas, totalizando cerca de uma trintena, das quais são de citar entre outras pela sua maior relevância, a dos Montes e do Rodo, adquiridas pelo seu avô José Bernardo Ferreira, as de Travassos, dos Aciprestes, do Vesúvio, da Boavista, da Granja, do Porto, de Vilamaior, das Nogueiras, do Vallado, do Vale do Meão, esta última a ser desbravada e por si construída (Barreto A., 2014). Em qualquer delas, não é de supor que tenha sido efectuada investigação vitícola no sentido actual do termo, mas por outro lado é seguramente admissível que aperfeiçoamentos técnicos (na aplicação de produtos fitossanitários, na construção de muros e de terraços, no controlo da erosão hídrica), tenham sido implementados.

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3 – PERÍODO PÓS-FILOXÉRICO ATÉ À DÉCADA DE 70 DO SÉCULO XX

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urante este período, ao nível do papel das Quintas na inovação e contribuição para a produtividade vitivinícola da RDD são de referir os seguintes aspectos de maior relevância: - Numa parte delas, a gestão é assumida directamente pelos proprietários, que nelas habitam em permanência; - Outras estão entregues, no dia-a-dia, a administradores, caseiros e feitores, com visitas periódicas dos seus proprietários, em particular no tempo de vindimas, já que habitam na cidade; - As empresas exportadoras de Vinho do Porto, sediadas em Gaia, possuem Quintas em geral de pequena dimensão e sem objectivos directos de produção, com a finalidade fundamental de servirem de apoio aos seus responsáveis durante o período das vindimas, para o controlo quer da entrega de uvas dos Lavradores, e respectiva vinificação na adega da Quinta, quer para a compra de vinhos elaborados em adegas daqueles. Quanto à viticultura, processam-se alterações ao nível da implantação das vinhas, subsequentes à crise que assolou a Região e à redução de mão-de-obra, pelo que deixou de ser possível reconstruir os geios pré-filoxéricos. A implantação da vinha passa então a ser executada em plataformas com alguma inclinação (designadas por “geias” segundo a terminologia regional), comportando um número variável de linhas (ou bardos), entre cerca de 10 a 20, consoante a inclinação da encosta. Relativamente às formas de condução da vinha e das videiras, em alternativa às formas livres em vara e talão apoiadas por tutores de madeira, são introduzidos esteios de xisto que suportam 2 ou 3 fiadas de arames para condução das varas de poda e da vegetação. Em continuação das técnicas introduzidas em consequência da crise dos finais do século precedente, a enxertia sobre bacelo e os tratamentos contra o oídio e míldio, passam a ser práticas obrigatórias (Magalhães N., 2011). A paisagem Duriense sofre assim transformações, nas quais estão obviamente a das Quintas, estas provavelmente com maior impacto, não só devido à sua dimensão mas também pela necessidade de superior rigor e capacidade económica e técnica (esta mesmo quando confiada aos caseiros, feitores e

também aos próprios proprietários). Mas, já neste período se desenvolvem acções de experimentação (ensaios, estudos e reflexões) especificamente a cargo do Centro de Estudo Vitivinícolas do Douro (CEVD) no qual um dos seus Directores, Eng. Gastão Taborda teve um papel muito importante na experimentação vitícola e enológica, e da Casa do Douro através do exaustivo trabalho de Cadastro das parcelas de vinha e da implementação do Método de Pontuação concebido pelo Eng. Moreira da Fonseca nos finais da década de 40, ainda hoje utilizado na classificação das diferentes categorias das parcelas para produção de Vinho do Porto. Dos estudos vitícolas desenvolvidos pelo CEVD, destacam-se: os das relações entre diferentes castas e porta-enxertos, cujos campos de ensaio se instalaram em Quintas, a maioria privadas, nas sub-regiões do Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior; estudos sobre fertilizantes químicos de síntese; estudos sobre o controlo de infestantes através de diferentes tipos de herbicidas; microvinificações das principais castas representativas da RDD. Já no início dos anos 70, com a criação da “Brigada de Mecanização e Reconversão do Douro” é dado início aos primeiros estudos da mecanização de vinhas implantadas segundo patamares com taludes em terra, pela utilização de tractores “pernaltas” - “enjambeurs”. Tais ensaios foram conduzidos sob orientação dos Serviços Oficiais, nas Quintas de Varjelas (Taylor’s), Quinta da Roeda (Croft) e Quinta da Varanda (anexa à da Pacheca), no Baixo Corgo.

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4 – A NOVA VITIVINICULTURA NASCIDA NA DÉCADA DE 1970

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odificações profundas na viticultura e na paisagem Duriense registam-se a partir desta época, em constante evolução, fruto das necessidades de adaptação a novos sistemas de cultivo da vinha e exigências dos diferentes mercados, quer para o Vinho do Porto, quer para os DOC Douro que vêm a surgir a partir da década de 80, com crescente implantação e qualidade. A causa primeira do nascimento de uma nova viticultura assentou no facto da escassez crescente de mão-de-obra e sua remuneração, implicando a necessidade de mecanizar as diversas operações culturais. Assim, após os ensaios logrados com os tractores “pernaltas”, que pela sua estrutura não se consideraram adaptáveis à orografia da região, iniciou-se a armação da encosta segundo patamares de dois bardos e talude em terra, permitindo a circulação e trabalho de tractores vinhateiros na entrelinha das fiadas de videiras, as quais conduzidas agora segundo formas de condução em Cordão Royat (muito distintas das conduções tradicionais), com parede vegetativa mais alta e com significativa redução da densidade de plantação. Nestas novas plantações, contrariamente ao tradicional, as castas foram dispostas em talhões independentes. Embora já no início do século XX, alguns produtores tivessem adoptado por esta solução em situações muito pontuais, no período a que agora nos referimos foi pioneiro Mr. Smith, proprietário da empresa Cockburn, nas novas plantações da Quinta do Ataide sita no vale da Vilariça (Barreto A., 2014). Esta redução do número de castas deveu-se a estudos enológicos de castas anteriormente feitos pelo CEVD (Eng. Gastão Taborda) em colaboração com o Instituto do Vinho do Porto, e sobretudo pelos conduzidos por José António Rosas e João Nicolau de Almeida, nas Quintas da empresa Ramos Pinto, situadas no Douro Superior (Ervamoira), no Cima Corgo (Bom Retiro) e Baixo Corgo (Quinta de Murças da Sociedade Pinto de Azevedo). Outra forma de sistematização do terreno, embora na altura de muito reduzida expressão, consistiu em dispor as linhas de videiras segundo o maior declive “vinha ao alto”. A instalação de vinhas segundo esta solução decorreu, em meados da década de 70 na Quinta de Ervamoira da empresa Ramos Pinto, e entre 1979 e 1981/2 nas Quintas de Murças, do Bom Retiro, do Sei-

xo, do Crasto e posteriormente noutras Quintas particulares e de empresas exportadoras. A implementação das vinhas mecanizadas foi apoiada financeiramente através do Plano para o Desenvolvimento Regional de Trás-os-Montes e Alto Douro (PDRITM). Refira-se também o facto, da enorme importância para o desenvolvimento da viticultura duriense, de a esmagadora maioria das empresas exportadoras de Vinho do Porto passarem a adquirir Quintas no Douro, geralmente de grande dimensão, para um melhor controlo de parte da matéria-prima para produção de vinhos de alta qualidade. Tal implicou a contratação de técnicos de viticultura e de jovens enólogos (grande parte deles formados pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), pois que novas técnicas tiveram de ser adaptadas a uma outra viticultura, bem distinta da tradicional. A especificidade da viticultura de montanha, associada à mecanização, à adaptação das castas a múltiplas situações edafo-climáticas da região e ao stress hídrico e térmico, às formas de condução da videira e a novas técnicas em geral, levaram à criação da Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID), fundada em 1982 sob a Administradores de empresas de Vinho do Porto (José Rosas, Jorge Ferreira, José Gaspar e António Filipe). Inclui actualmente 180 associados, efectivos, colectivos, individuais e honorários, pertencendo aos primeiros as empresas, Adriano Ramos Pinto, Real Companhia Velha, Churchil Grahm, Nieport Vinhos S.A., Quinta do Noval-Vinhos S.A., Rosés S.A., Sogevinus Fine Wines S.A., Sogrape Vinhos S.A.,W & J Grahm Ca., Sociedade Vinícola Terras de Valdigem S.A e Symington Family. A equipa técnica da ADVID é composta por um(a) director geral, um técnico administrativo, um responsável pela comunicação e divulgação e cinco licenciados responsáveis pela investigação/experimentação vitivinícola, actuando quer em estudos e ensaios de Quintas dos associados, quer em laboratório. Referem-se as seguintes linhas de trabalho que entretanto a ADVID vem desenvolvendo, muitas delas através de projectos em colaboração com Universidades e outros Organismos nacionais e estrangeiros: 1. Alterações Climáticas - Impacto das Alterações Climáticas na Vitivinicultura da Região Demarcada do Douro; - Modelização da Evolução da Qualidade do Vinho da RDD; - Estratégias, de curto prazo, para mitigação das al-

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terações climáticas na viticultura (ClimVineSafe); - Gestão do stress hídrico e térmico da videira; - Projecto Euporias. 2. Biodiversidade Funcional em Viticultura - EcoVitis – Maximização dos serviços do ecossistema, através da monitorização da presença de infra-estruturas ecológicas na população de insectos e aranhas, e de parasitóides da traça-da-uva; prospecção de parasitóides da traça-da-uva, de cochonillas e eventuais inimigos do vector da Flavescência Dourada; implementação da confusão sexual; avaliação da presença de outras traças da uva; identificação de fungos e nematodes entomopatogénicos; identificação da flora, das aves, dos morcegos e das libélulas; - Biodivine – Demonstração da Biodiversidade Funcional em paisagens vitícolas, através de acções de monitorização da flora, da avifauna, dos mamíferos e da actividade dos invertebrados em solos com e sem enrelvamento. E ainda através da implementação de acções de conservação como, enrelvamento, instalação de sebes, promoção da biodiversidade nos muros, confusão sexual e reorganização das cabeceiras. 3. Racionalização da Vinha de Encosta - Cartografia dos movimentos de vertente; - GreenVitis; - Laboratório de produtos e serviços, com a constituição de 6 Focus Group: Pulverização; Máquinas adaptadas a trabalhar em patamares estreitos e pendentes elevados; Limpeza de taludes; Sensorização e instrumentação; Tratamento e valorização de resíduos; Eco-eficiência. tas

4. Preservação da Variabilidade Genética das Cas-

- Prospecção e recolha de material vegetativo na RDD e Trás-os-Montes; - Acompanhamento dos campos de selecção clonal. 5. Produção Sustentada em Viticultura - Controlo da traça da uva pelo método da confusão sexual; - Avaliação do comportamento de castas e porta-enxertos; - Prospecção do insecto vector da Flavescência Dourada (Scaphoideus Titanus Ball); - Colaboração com a BIOCANT no projecto INOV WINE 2 (doenças do lenho e oídio);

lo;

- Monitorização da evolução do Aranhiço Amare-

- Avaliação da eficácia de tratamentos no combate ao oídio da videira em fases precoces do ciclo vegetativo da videira; - Contributo para a caracterização das populações do oídio da videira em diferentes castas de Vitis vinífera em Portugal; - Previsão do potencial de colheita - Método Polínico; - Monitorização das resistências de infestantes aos herbicidas A experimentação vitivinícola é assegurada através de ensaios e outros estudos em Quintas, quer de associados efectivos quer de outros individuais ou colectivos, sendo de referir pela sua importância, as Quintas dos Aciprestes, da Granja, das Carvalhas e do Cidrô, da Real Companhia Velha, as Quintas do Ataíde, da Sra. da Ribeira, do Bonfim, do Vesúvio e da Cavadinha da Symington Familly, as Quintas de Sta. Bárbara/Caedo e de Vale de Cavalos/Numão da Sociedade Vitícola Terras de Valdigem, as Quintas do Grifo, do Enxudo, da Canameira e do Pêgo, da Rozés, as Quintas do Seixo, da Granja/Almendra, do Cavernelho e da Leda, da Sogrape, as Quintas do Bom Retiro e de Ervamoira, da Ramos Pinto, as Quintas do Bairro, de S. Luiz e do Arnozelo, da Sogevinus, a Quinta do Noval, a Quinta do Vallado, a Quinta de Nápoles, da Nieport, e ainda as Quintas de outros associados não efectivos, a de D. Matilde, a de Castelo Melhor, da Duorum, a Quinta Nova de N. Sra. do Carmo, a do Vale do Meão, a dos Avidagos, a da Casa Amarela, a do Vale de Dona Maria, a de Vale Flôr, a do Tedo, da Quinta Velha das Apegadas e a do Crasto (ADVID, 2013). A experimentação nas Quintas do Douro, não se restringe ao papel e acções da ADVID. Desde a criação do CEVD, este Organismo muito contribuiu, conforme já referido, para o desenvolvimento da viticultura Duriense, através de ensaios, de estudos ampelográficos na Quinta de S. Bárbara, da mecanização da vinha de encosta, e outros. Hoje em dia são de referir e salientar as investigações no campo da fitossanidade, no Serviço de Avisos, que implicou a instalação de uma rede de estações meteorológicas em diversas Quintas privadas, e colaborações com outros Organismos oficiais e privados. A Universidade do Porto, em interligação com o CEVD, ISA e a empresa Taylor’s Yetman and Fladegate, promoveu vários estudos sobre formas de instalação da vinha, condução e intervenções em

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verde, nas Quintas de S. António e do Panascal, pertencentes àquela empresa. Aliás, são de salientar numerosos estudos sobre viticultura de precisão em vinhas de encosta, desta empresa, também noutras suas propriedades sob a responsabilidade de David Guimaraens e de António José Magalhães, que muito contribuíram para a resolução de formas correctas de instalação e condução de vinhas e do controlo da erosão na RDD. Também a UTAD beneficiou da disponibilidade de muitas Quintas, para instalação de campos experimentais e de ensaios de índole diversa. São de referir nomeadamente os referentes ao estudo do comportamento de castas em diversas condições ecológicas, em particular da Touriga Nacional, com observações, determinações e colheitas de bagos em muitas Quintas ao longo da Região; ensaios de rega (Quintas de S. Luiz e Vale do Meão; ensaios sobre o comportamento ecofisiológico de castas (Quintas de Sta. Bárbara do CEVD, da Leda e do Seixo, da Ferreira/Sogrape e S. Luiz da Soogevinus); estudos sobre condução e sobre vingamento/desavinho, que muito contribuíram para a recuperação da casta Touriga Nacional (Quintas do Seixo e da Roeda); selecção clonal de castas de videira. Os trabalhos relativos a esta última acção foram iniciados em 1979 entre a UTAD e o ISA, com a colaboração da Casa do Douro, e um pouco mais tarde com a participação do CEVD e da ADVID. Numa primeira fase foram efectuadas prospecções nas vinhas um pouco por toda a Região do Douro, em várias dezenas de parcelas de vinhas velhas, algumas incluídas em Quintas (Côtto da Montez Champalimaud, Sta. Maria em Sta. Marta de Penaguião, Seixo, Foz, Ventozelo e Noval na zona do Pinhão, Lodeiro em S. João da Pesqueira, Batoca em Barca d’Alva). Na sequência desta 1ªfase de selecção foram instalados diversos campos de experimentação clonal de várias castas importantes cultivadas na RDD (Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca, Tinto Cão, Tinta Francisca, Bastardo, Cerceal do Douro, Moscatel Galego, Malvasia Fina, Gouveio, Viosinho e Rabigato) pela disponibilidade de várias Quintas (do Ataíde da Cockburn, da Leda e do Seixo da Ferreira/Sogrape, Granja da Real Companhia Velha, de Murças da Sociedade Pinto de Azevedo, de N. Sra de Lourdes da UTAD, em Vila Real, de Matamaceda em S.J. da Pesqueira, e de Valmôr). Após tratamento de dados vitícolas e de análise de mosto dos clones destas castas, foram eleitos os considerados melhores, para efeito da sua posterior homologação e instalação de parcelas de multiplicação a disponibili-

zar à viticultura e à actividade viveirista. Mais uma vez, empresas exportadoras de Vinho do Porto e Quintas particulares, puseram à disposição parcelas das suas propriedades para instalação dos referidos campos de multiplicação de materiais clonais estando de momento em produção cerca de 60 distribuídas por 20 Quintas ao longo da RDD. Em conclusão, tem sido de extraordinária importância o papel das Quintas do Douro, ao longo da história, e com maior expressão durante o último período iniciado na década de 1970, até à data, cuja ausência do seu contributo na experimentação e desenvolvimento da vitivinicultura Duriense, não teria sido possível desenvolvê-la, modernizá-la e alcançar os resultados até então obtidos, e que se prevê venham a ser enriquecidos no futuro, através da continuação de colaboração entre organismos públicos e privados e das empresas vitivinícolas do sector. BIBLIOGRAFIA: - ADVID (2013) – Relatório de actividades de 2013. [Disponível em http//www.advid.pt]. - BARRETO, António (2014) – Douro, Gente e Vinho. Relógio de Água Editores. - MAGALHÃES, Nuno (2011) – A viticultura na Região do Douro – dos primórdios às grandes mudanças no virar do século. In “Francisco Girão – um inovador da vitivinicultura no norte de Portugal”, pp. 42-79. - MARTINS PEREIRA, Gaspar (1998) – Enciclopédia dos Vinhos de Portugal. O Vinho do Porto – Vinhos do Douro. Ed. Chaves Ferreira, pp 38-77. - MARTINS PEREIRA, Gaspar (2011) – Quinta de Roriz. História de uma Quinta no coração do Douro. Ed. Afrontamento.

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Painel 3

Quintas do Douro: dos arquivos à História Paula Montes Real Pedro Peixoto Otília Lage

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Arquivos de quintas do Douro: os casos de Santa Júlia e da Pacheca texto: Paula Montes Real CITCEM

Nota biográfica: Paula Montes Leal É licenciada em História, variante Arte pela FLUP, pós-graduada em Ciências Documentais – Arquivo pela FLUP, e mestre em Ciências da Informação e da Documentação – Área de Arquivos pela Universidade de Évora. Integrou o grupo de trabalho formado para a instalação do Museu do Douro, tendo participado no «Projecto de Inventariação do Arquivo Histórico do Instituto do Vinho do Porto». Ainda neste âmbito, coordenou o «Projecto de Inventariação do Arquivo da Casa do Douro», ocupando o cargo de coordenadora do Centro de Informação do Museu do Douro. Foi docente no Curso de Especialização em Ciências Documentais – Arquivos da Universidade Portucalense e responsável técnica pelo Arquivo Histórico Casa Ferreirinha. Actualmente, coordena projectos de organização de arquivos nas empresas Symington e Unicer. Foi investigadora do GEHVID – Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto. É investigadora do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», na linha de Memória, Património e Construção de Identidades. Resumo Ao apresentarmos este trabalho, focámo-nos, essencialmente, em três questões: a importância dos arquivos privados, em geral, para o avanço do conhecimento histórico, económico e social; a relevância dos arquivos pessoais/familiares, em particular, no âmbito desse extenso património documental que se encontra disperso por numerosos arquivos públicos e privados, nomeadamente de diversas famílias do Douro, ligadas à produção ou ao comércio de vinhos; e, finalmente,

Abstract In presenting this paper, we focused primarily on three issues: in general, the significance of private archives to the advance of historical, economic and social knowledge; more specifically, in the relevance of personal/family archives, within the massive documental heritage that is dispersed in countless archives, both public and private, namely in the archives of several families from Douro that are linked to the production and commerce of wines; and finally the presentation of the cases

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na apresentação dos casos das quintas da Pacheca e de Santa Júlia de Loureiro, exemplos da boa prática de colaboração entre famílias e investigadores. Mais do que dar conta do espólio documental destas duas quintas, a nossa intenção é a de chamar a atenção para os esforços individuais a que se tem assistido para a preservação e divulgação deste tipo de arquivos, de incontornável importância para a história do sector do vinho do Porto e para a história da própria região. Palavras-chave: Arquivos Privados; Arquivos Pessoais e Familiares; Vinho do Porto; Douro.

of Quinta da Pacheca and Quinta de Santa Julia Loureiro, both examples of best practices of collaboration between families and researchers. More important than describing the documental heritage of these two quintas, our aim is to draw attention to the individual endeavours that have been made to preserve and disseminate this information that is of essence for the history of Port wine and the history of the Douro region itself. Keywords: Private Archives; Personal and Family Archives; Port wine; Douro.

IMPORTÂNCIA DOS ARQUIVOS PRIVADOS

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s arquivos privados comportam uma parte relevante da memória humana. Ao longo da História, se, por um lado, o desenvolvimento social resultou de uma inter-relação entre autoridades públicas e partes privadas, por outro, nem sempre a realidade retratada nos documentos públicos espelha a verdade dos factos. Além disto, «muitos dos arquivos privados contêm documentação de natureza pública, em consequência de funções ocupadas pelos seus produtores que quiseram conservar perto de si os seus documentos oficiais […]. Os documentos privados são, portanto, o complemento necessário dos arquivos públicos, dado que permitem muitas vezes rectificar uma visão do passado que, sem eles, seria excessivamente administrativa»149. Sem os arquivos privados, as fontes da história comum estão incompletas; por isso, a investigação científica (histórica ou outra) só tem a ganhar, desenvolvendo-se e adquirindo novos contornos, perante a possibilidade de acesso à informação contida neste tipo de arquivos. A hipótese que nos é dada, através da documentação privada, de ter acesso ao domínio da vida das famílias e dos indivíduos – de outra forma invisível – permite-nos apreciar não só as relações que se desenvolvem internamente mas também a dinâmica das relações com a sociedade, em geral. E a grande variedade documental existente nos arquivos pessoais e familiares, ao ser cruzada com as fontes do domínio público, complementa e enriquece a percepção do funcionamento de uma sociedade.

Sendo incontestável que, ao entrarmos no campo das biografias e das histórias de família, avançamos para uma nova dimensão do estudo das sociedades, verificamos, também, que, se considerarmos a história dos indivíduos ou das famílias, esta nos abre os horizontes para outros contextos (económicos e políticos, mas também das mentalidades, da demografia, da genealogia, da história local...) e, sobretudo, para novos campos da história, como a história da vida privada, a história das mulheres, a história da criança, etc. É nos arquivos pessoais e familiares que frequentemente podemos encontrar a explicação para comportamentos públicos – sociais ou políticos – doutra forma incompreensíveis. E essa informação pode estar contida em documentos tão insuspeitos como um diário pessoal, uma carta trocada entre amigos, um registo de receitas e despesas de uma casa ou as memórias genealógicas de uma família150. É de enfatizar a importante contribuição que os arquivos privados – pessoais, familiares, empresariais, religiosos – «podem trazer, com a possibilidade que abrem de aprofundamento e renovação de aspectos e temas pouco explorados...»151 e com a «pluralização» da memória: em vez de contarmos com uma só memória – a oficial, «unipolar e de pensamento único»152 –, os documentos privados dão-nos acesso a uma pluralidade de memórias.

149  HILDESHEIMER, 1990.

150 

MACEDO, 1996:101-110.

151 

LAGE, 1996:45-96.

152 

HILDESHEIMER, 1990.

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ARQUIVOS PESSOAIS E FAMILIARES NO SECTOR DO VINHO DO PORTO

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vinho do Porto representou, durante mais de trezentos anos, um dos mais importantes, senão o mais importante, produto da economia portuguesa. Com uma forte e precoce vocação mercantil, dominou, ao longo dos séculos XVIII e XIX, as exportações de origem nacional e determinou políticas específicas de defesa e controlo da marca. Da produção ao comércio, passando pelas actividades de transporte, envelhecimento e lotações, ou ainda pela acção das entidades reguladoras e pelas diversas formas de controlo e fiscalidade, os vinhos generosos produzidos na região vinhateira do Douro e exportados pelo Porto foram objecto de uma vastíssima documentação. Mais ainda se considerarmos a documentação anterior ao aparecimento da denominação «Porto» e à difusão de tecnologias específicas de produção vitivinícola, entre finais do século XVII e inícios do século XVIII153. Esse extenso património documental encontra-se disperso por numerosos arquivos públicos e privados. Incluídos nos últimos encontram-se os arquivos pessoais ou familiares, nomeadamente de diversas famílias do Douro, ligadas à produção ou ao comércio de vinhos. Muitas casas e quintas do Douro possuem importantes conjuntos documentais, com maior ou menor organização, que têm vindo a ser utilizados por diversos investigadores, contribuindo para o desenvolvimento dos estudos históricos sobre a região, as quintas e as famílias. Refiram-se, por exemplo, os arquivos familiares existentes nas quintas do Paço de Mônsul154, de Roriz155 ou no Casal de Paradelinha, onde se encontra o arquivo da família de Torcato de Magalhães156. Em certos casos, com o apoio de técnicos de arquivos públicos, têm sido tratados e organizados. Foi o que aconteceu com o Arquivo do Paço de Cidadelhe,

organizado pelo Arquivo Distrital de Vila Real157. Técnicos deste arquivo organizaram e inventariaram, também, o arquivo da Casa da Calçada, de Provesende158. Outro caso importante, mais recente, é o da Casa de Mateus, actualmente Fundação Casa de Mateus, cujo arquivo, além de tratado e organizado foi microfilmado e digitalizado (documentação desde 1577159, relativa às 13 gerações familiares que ocuparam a casa)160. Noutras ocasiões, foram investigadores, a título pessoal ou inseridos em unidades de investigação que levaram a cabo esta tarefa. Foi esse o caso das quintas da Pacheca e de Santa Júlia de Loureiro, exemplos da boa prática de colaboração entre famílias e investigadores.

153  PEREIRA & LEAL, 2006: 69-76. 154 

Conf. FERREIRA, 2001.

155  PEREIRA, 2011. O arquivo da Quinta de Roriz, em particular, tem a vantagem de reunir documentação relativa à gestão da propriedade (diários da quinta, contas dos caseiros e administradores da quinta, correspondência, etc.), documentação das famílias proprietárias da quinta (em especial, Köpke e van Zellers, desde finais do século XVIII) assim como alguma documentação das empresas comerciais detidas por essas famílias.

157 

ARQUIVO DISTRITAL DE VILA REAL, 1996.

158 

GONÇALVES, 2005.

156  Conf. SEQUEIRA, 2006.

160 

159  Conf. . [Consulta realizada em 04.03.2011]. Ver ALBUQUERQUE, et al., 2005.

120

APRESENTAÇÃO DOS CASOS

N

este trabalho, mais do que dar conta do espólio documental destas duas quintas, a nossa intenção é a de simplesmente referir os esforços individuais a que se tem assistido para a preservação e divulgação deste tipo de arquivos, de incontornável importância para a história do sector do vinho do Porto e para a história e a cultura da própria região. Muitos dos arquivos privados são ainda completamente desconhecidos da comunidade científica. «Dispersos por inúmeras casas, quintas e solares encontram-se um sem número de documentos da maior importância, não só para os seus proprietários mas, acima de tudo, para a nossa história colectiva. Documentos que nos falam das relações que determinada família manteve com o poder real ou com os poderes locais; da acção dos seus membros enquanto figuras de interesse local ou nacional; das estratégias familiares de aquisição de património; das estratégias de ascensão e promoção social; dos percursos sócio-profissionais trilhados; enfim, das diferentes intervenções registadas em campos tão diversos, de âmbito social, político, económico e cultural. Infelizmente, a esmagadora maioria desses valiosos arquivos é inacessível aos investigadores: principalmente devido a constrangimentos, na maior parte dos casos injustificados, de ordem social, porque muitos dos seus possuidores não estão consciencializados para esta realidade ou, pura e simplesmente, por falta de informação que os sensibilize para ela»161. Mesmo quando os detentores permitem a consulta, tal tarefa pode tornar-se difícil dada a não existência de qualquer instrumento descritivo do seu conteúdo. Ultrapassada essa dificuldade, há, ainda, o problema da acessibilidade – não se pode esquecer que os documentos se encontram, muitas vezes, em residências particulares -, e da preservação (incluindo a instalação, acondicionamento e conservação) destes documentos que, em muitos casos, não por má vontade dos proprietários mas por desconhecimento, se encontram em situações de risco. Infelizmente, «é também por algumas destas razões que, tal como sucedeu com diversos arquivos de organismos oficiais, ao fim de algumas gerações, muitos deles são queimados ou vendidos a peso, porque é necessário arranjar espaço 161  Citando Amândio Barros em BARROS & LEAL, 2001.

em casa e os documentos são vistos como papel velho, inútil»162. Felizmente, não foi este o caso da Quinta de Santa Júlia de Loureiro (situada na freguesia de Loureiro, concelho do Peso da Régua), nem da Quinta da Pacheca (situada na freguesia de Cambres, concelho de Lamego) – unidas por laços familiares – onde não só a herança documental foi preservada como foi colocada à disposição da comunidade científica. Valendo-nos do estudo de Natália Fauvrelle163, podemos dizer que a primeira referência que se conhece à Quinta de Santa Júlia de Loureiro – então conhecida como Quinta de S. Gião – data de 1682, ano em que a Comenda de Moura Morta a empraza a Matias Correia Coelho, casado com Maria de Mesquita Pereira164. No século XVII, a propriedade passa para as mãos da família Mesquita e Vasconcelos, através do casamento da filha dos emprazadores – Luísa Pereira Coelho de Cerqueira Mansilha – com José Inácio Pimentel de Mesquita e Vasconcelos, capitão-mor da vila de Gouveia. O último descendente será José Pimentel Freire Machado de Mesquita e Vasconcelos, 1º visconde de Gouveia, que morre sem descendência directa, sendo a sua sucessão assegurada por um acordo pré-nupcial que unia duas famílias. Assim, a 1ª viscondessa – Ana Emília Oliveira Maia – doa os seus bens a sua sobrinha, Júlia Petronilha Pereira Leitão Carvalho, doando o visconde o título e bens de Gouveia a seu sobrinho, José Freire de Serpa Pimentel. O 1º e o 2º visconde de Gouveia vão ter um papel preponderante na história da quinta, empreendendo uma série de obras que alteram profundamente a propriedade, não só pelo seu alargamento como pela transformação da casa agrícola original na casa que hoje conhecemos165. Em 1996, ainda antes de iniciarmos a pós-graduação em Ciências Documentais, mas no âmbito das investigações do GEHVID166, trabalhámos com a então estudante de mestrado em História da Arte, Natália Fauvrelle, sobre o arquivo da Quinta de Santa Júlia de Loureiro167, na posse da família Costa Seixas. 162 

Idem.

163 

Para mais sobre esta quinta ver FERREIRA, 2001.

164 

AHQSJL, cx. 7.

165 

AHQSJL, cx. 38, doc. 15.

166  GEHVID – Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto, unidade de investigação da FCT que funcionou na Faculdade de Letras da Universidade do Porto entre 1994 e 2009. 167  O arquivo da Quinta de Santa Júlia é composto por 40 unidades de instalação, com as datas extremas de 1596-1959. É formado, essencial-

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Como dissemos então, os nossos objectivos pessoais eram diferentes: uma procurava fazer um levantamento dos arquivos privados no Douro, enquanto outra investigava as quintas da região, sob o ponto de vista do património arquitectónico. Por vários motivos, a que não era estranho o facto de se tratar da nossa primeira intervenção sobre um arquivo, mas também pelo peso que sentimos por termos à nossa responsabilidade documentos que não nos pertenciam, a nossa intervenção foi muito cuidadosa e não invasiva. Assim – e para nosso descanso - , uma vez que a maior parte da documentação deste acervo tinha já uma organização própria (provavelmente dada pelo 2º Visconde de Gouveia, José Freire de Serpa Pimentel), usámos essa organização inclusivamente para classificar os documentos avulsos. A nossa intervenção física sobre os documentos limitou-se, desta forma, à sua limpeza e acondicionamento em material adequado para conservação. Não obstante, levámos a cabo o recenseamento que resultou na publicação de um pequeno instrumento de descrição168 e na disponibilização da base de dados realizada tanto aos proprietários como ao Arquivo Distrital de Vila Real (neste caso, com ordem para a sua inclusão nos instrumentos de pesquisa que são disponibilizados ao público pelo ADVR). Quanto à Quinta da Pacheca169, o primeiro nome que se conhece relacionado com esta propriedade, é o de Bastião Pereira, de Pomarelhe, que empraza ao mosteiro de S. João de Tarouca, em Maio de 1551, a «vinha da Peradanta»170, abaixo de Tourais. A denominação «Pacheca» será referida unicamente a partir do século XVIII, provavelmente ligada à figura de Mariana Pacheco Pereira171. O casco da Quinta era prazo do mosteiro de Santa Maria de Salzedas172, tendo senmente, por documentação económica — documentos de aquisição, prazos, contabilidade —, alguma documentação familiar e um pequeno grupo de documentos valiosos para a História da Arte. A documentação abrange os séculos XVI a XX e, na sua maioria, diz respeito às famílias Mesquita de Vasconcelos e Serpa Pimentel. 168  FAUVRELLE & LEAL, 1997: 377-385. 169  Também segundo Natália Fauvrelle (conf. FERREIRA, 2001). 170  AHQP, Fundo Pachecos Pereira, doc. n.º 1. 171  Existe, no arquivo da Quinta, um documento datado de 1750 que refere a propriedade pertencente «à Comenda de S. Martinho de Cambres junto à quinta de Tourais, chamada da Pacheca» (AHQP, Fundo Pachecos Pereira, doc. n.º 22). 172  O primeiro prazo conhecido data de 1659, tendo sido dado a José Pereira Pacheco, filho de Manuel Pereira Pacheco e Joana Pacheco (AHQP, Fundo Pachecos Pereira, doc. n.º 11). Note-se a importância deste documento, uma vez que o arquivo do Mosteiro de Salzedas desapareceu num incêndio.

do sido alargado ao longo do século XIX por sucessivas compras de prazos e propriedades dispersas pelas imediações de Tourais. A Quinta foi incluída logo nas primeiras demarcações, sendo considerada apta para produzir vinhos de feitoria destinados à exportação para Inglaterra. Posteriormente, viu a sua situação degradar-se fruto das sucessivas pragas do século XIX, tendo sido vendida em Setembro de 1903 a José Freire de Serpa Leitão Pimentel e a António Machado Mendia. Os novos donos investiram na recuperação das vinhas, das áreas construídas e no alargamento da propriedade173. Embora tendo sofrido diversas alterações ao longo do século XX, a casa de habitação tem origem no século XVIIII, seguindo um padrão tradicional de organização que foi mantido nos séculos seguintes. Ainda no âmbito das investigações do GEHVID, trabalhámos com o então estudante de Doutoramento em História, Amândio Barros, sobre o arquivo da Quinta da Pacheca174, da família Serpa Pimentel. Neste caso, foi estudada unicamente uma parte da documentação. No geral, os documentos foram limpos e acondicionados em material estável, tendo os pergaminhos avulsos sido alvo de restauro (no essencial, limpeza e planificação). Da documentação tratada, foi realizado o recenseamento, com uma descrição simples, em base de dados, que, embora não tendo sido publicado, foi disponibilizado à família. Desses documentos, foi dado particular realce ao estudo dos cerca de 110 pergaminhos existentes, a maioria produzida no século XV, uma parte na primeira metade do século XVI e três deles, provenientes da chancelaria pontifícia, no século XVII. Como referiu Amândio Barros, «estes números, por si só, bastam para demonstrar a riqueza e a importância deste arquivo. Muitos oficiais não se podem gabar de possuir espólio tão rico»175. O trabalho começou pela leitura e publicação176 dos pergaminhos avulsos que, contudo, não dizem respeito à Quinta da Pacheca, tratando-se, antes, «de documentação relativa a outras terras a que os diferentes 173 

AHQP, Fundo Pachecos Pereira, doc. n.º 39 a 43.

174  O arquivo tem documentação a partir do século XV, em papel e pergaminho, essencialmente relativa às famílias Pacheco Pereira, Serpa Pimentel, Mendia e Pereira Leitão. Desta, foram tratados os pergaminhos que se incluem no núcleo pertencente à família Pereira Leitão, assim como um pequeno grupo de documentos em suporte papel, pertencente ao núcleo Pacheco Pereira. 175 

Citando Amândio Barros em BARROS & LEAL, 2001.

176  Os pergaminhos avulsos (39) foram transcritos e publicados em ordem cronológica (datas limites de 1430-1557), com estudo introdutório de Amândio Barros (BARROS & LEAL, 2001) e índices de pesquisa onomásticos e toponímicos.

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ramos e gerações da família se encontraram ligados ao longo dos tempos». O estudo destes documentos permitiu «conhecer muitos dos passos da evolução patrimonial, das estratégias de aquisição de terras e das formas de acumulação de propriedade por parte dessa mesma família desde os tempos medievos»177. Numa segunda fase, foram estudados os pergaminhos que se encontram encadernados entre outra documentação manuscrita, contendo treslados dos séculos XVII e XVIII de diplomas cronologicamente mais antigos, entre os quais algumas cópias dos restantes pergaminhos178. Deste arquivo muito há ainda para conhecer como mostrou, recentemente, Amândio de Barros com a publicação da obra «Cartas da Índia», sobre a figura de Jorge de Amaral e Vasconcelos, Ouvidor Geral do Crime do Estado da Índia nos conturbados anos de 1650 a 1656 (no pós-Restauração, numa época de reconstituição dos quadros administrativos mas ainda de guerra na fronteira), falecido (assassinado?) na Índia em 1656179. Um excelente exemplo para regressarmos ao ponto de partida sobre a importância dos arquivos privados, em geral, para o avanço do conhecimento histórico, económico e social e sobre a relevância dos arquivos pessoais/familiares, em particular, dispersos por numerosos arquivos públicos e privados, nomeadamente de diversas famílias do Douro, e que constituem um património único e insubstituível.

177  Segundo Amândio Barros na obra citada. 178  Foram lidos 41 documentos (datas limites entre 14301562), que se encontram inclusos nas unidades de instalação «Livro de Compras I», «Livro de Compras III», «Livro de Sentenças I», «Livro Inventários Cartas de Partilhas I», «Testamentos», «Doações e dotes», «Miscelânea Insignificante», «Papéis vários», Serviços e Mercês» (Projecto de Investigação SAPIENS POCTI/HAR/47219/2002 «Os Pergaminhos da Quinta da Pacheca». Investigador responsável: Prof. Doutor José Marques; investigadores Amândio Barros, Paula Montes Leal), trabalho publicado em relatório final para a FCT, datado de 2005 (transcrição e catálogo dos documentos, e índices de pesquisa onomásticos e toponímicos). 179  Ver o estudo e a transcrição das cartas em BARROS, 2011. Com base em documentos pertencentes ao núcleo dos Pereira Leitão.

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Quintas do Douro: História, Património e Desenvolvimento texto: Pedro Abreu Peixoto Arquivo Municipal de Vila Real Diretor [email protected]

Nota biográfica: Pedro Abreu Peixoto É licenciado em História pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa e pósgraduado em Ciências Documentais pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Desde 1988 que, no âmbito do Instituto Português de Arquivos, desenvolve estudos na área dos Arquivos de Família, tendo publicado várias monografias, instrumentos de descrição e artigos sobre a matéria. Em 2004 assume a direcção do Arquivo Municipal de Vila Real, tendo implementado o sistema de gestão arquivístico actual, o qual, através de regulamento próprio, leva às primeiras actividades de selecção, avaliação e eliminação documental. No âmbito do Arquivo Municipal, tem dado particular importância à actividade da difusão da informação no quadro da transparência da administração pública e da sua proficiência, bem como às parcerias entre o público e o privado no que respeita aos arquivos privados. É investigador na área da selecção e avaliação documental e da história administrativa e política portuguesa do século XIX.

Resumo A salvaguarda dos arquivos das Quintas do Douro passa pelo reconhecimento da primazia do valor da informação através do seu cruzamento com outras fontes documentais, públicas e privadas, e pelo desenvolvimento de parcerias entre os proprietários dos fundos documentais e dos Arquivos Municipais, enquanto arquivos de proximidade e como forma de aceder a cuidados técnicos especializados.

Abstract The preservation of the archives of Quintas do Douro (Douro farms) implies acknowledging the primacy of the value of information through its junction with other documentary sources, public and private, and the development of partnerships between the owners of the documentation and Municipal Archives, while institutions of proximity and as a means of access to qualified care.

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A

s sociedades organizadas têm a necessidade de conservar a sua memória histórica. Uma memória cujo melhor garante é o arquivo, depositário de prova das atividades desenvolvidas pelo ser humano. O património documental é um dos mais importantes de toda a sociedade. O seu valor atinge todo o potencial através de programas de organização e difusão dos fundos documentais, aproximando a comunidade dos arquivos. Tal torna-se possível organizando atividades de conteúdo cultural, que levam conhecimento à sociedade, permitindo-lhe valorizar o seu passado, despertando uma atitude de reflexão crítica, perante as realidades passadas e presentes da comunidade. A experiência em países com grande tradição arquivística, sobre a ativa função cultural dos arquivos, remonta a algumas décadas atrás. Superado o debate sobre a oportunidade de incluir no trabalho arquivístico a faceta da difusão cultural e aceite esta como de uma importância similar aos trabalhos descritivos ou de conservação dos fundos documentais, encontros teóricos e práticas arquivísticas neste sentido sucedem-se a nível internacional desde os anos cinquenta, momento a partir do qual o Conselho Internacional de Arquivos começa a tomar posições claras neste campo. Juntam-se uma série de atividades e publicações em países como a França, Itália, Grã-Bretanha e nos antigos países socialistas, que permitirão avançar e refletir sobre as ações postas em marcha, procurando fórmulas mais de acordo com as novas teorias sobre a ação cultural nos arquivos. Veremos surgir junto das instituições de arquivo, também em Portugal, serviços com denominações variadas como de “educação”, de “extensão”, de “ação cultural” ou outras, que pretendem ir para além da missão base atribuída aos arquivos. Estes serviços, - por vezes apenas simples ações conforme a dimensão das instituições -, são a concretização da inclusão da faceta da difusão cultural, enquanto fazendo parte da missão dos arquivos, junto da comunidade onde se inserem. Esta dinâmica de ação e difusão cultural esteve desde o início presente nos Arquivos Municipais. Os arquivos dos municípios conheceram um desenvolvimento muito diferenciado ao longo do tempo, sofrendo um impulso decisivo na última

década, através da implementação do PARAM nos seus diversos eixos de apoio. Este programa de apoio aos arquivos municipais dotará o país de uma rede de arquivos que, para além da sua modernidade em infraestruturas e equipamentos, revelar-se-á de enorme importância em termos da sua proximidade aos cidadãos. Ao exigir a dotação dos serviços de arquivo de profissionais da área, o programa de apoio concorre para que, pouco a pouco, as atividades dos arquivos municipais passem a ser vistas numa perspetiva integradora. Se, por um lado, a sua principal missão é a gestão da informação documental do município, na qual assume uma ação técnica e administrativa, compete-lhe igualmente atuar enquanto agente cultural. No papel de agente cultural, a ação do arquivo promove uma atividade que, de acordo com as estratégias do município, procura proporcionar aos cidadãos melhores conhecimentos para se situarem de forma consciente no contexto social que lhes é próprio, com o intuito de contribuir para a sua evolução. A ação cultural dos arquivos municipais deve, assim, transmitir o valor do património documental comum, como parte fundamental da herança cultural do município, e converter-se num centro de ação cultural, que possa oferecer aos cidadãos elementos úteis para a valorização e análise da sociedade atual e das suas possibilidades futuras. Os projetos de salvaguarda do património documental produzido no espaço privado devem incluir-se nesta vertente de ação cultural, estrategicamente assumida no decorrer da missão dos arquivos municipais enquanto arquivos de proximidade. Partindo das premissas de apoio à salvaguarda, mas também à divulgação do património documental produzido no espaço privado - onde se inserem os arquivos das Quintas do Douro - e no apoio à investigação e divulgação da história local, continuamos a conviver com um grande número de fundos e coleções privadas que, por razões de vária índole, se encontram inacessíveis e/ou em risco. Considerando a existência de diálogo entre o interesse público e o interesse dos proprietários destes fundos documentais, os arquivos municipais deverão desenvolver projetos cujas premissas se baseiem na importância vital da informação e da sua comunicação, libertando-se da parte patrimonial e dos aportes mais

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ou menos subjetivos que transportam, reservando aos proprietários o direito a ficar com a documentação, sendo que os mesmos devem assegurar as condições físicas para a sua salvaguarda. Num encontro de interesse público/privado, os arquivos municipais deverão disponibilizar o tratamento técnico dos fundos documentais, enquanto os proprietários asseguram a disponibilização integral da informação e a possibilidade de comunicação da mesma. Com o desenvolvimento de projetos com estas premissas, os proprietários de fundos documentais privados asseguram a valorização da informação e, em parceria com os arquivos municipais, desenvolvem uma estratégia de salvaguarda e divulgação do património documental, apoiando igualmente a investigação e a história local, bem como preparam as fontes primárias para a escrita da história das instituições.

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Dos Arquivos Particulares, património a preservar, à História da Quinta da Alegria (Carrazeda de Ansiães, 1800 - 2014) Maria Otilia Pereira Lage Investigadora do CITCEM – FLUP [email protected]

Nota biográfica: Maria Otilia Pereira Lage Maria Otilia Pereira Lage é Licenciada em História (U. Porto, 1976), Mestre em História das Populações (1995) e Doutora em História Moderna e Contemporânea de Portugal (U.Minho, 2001), onde foi investigadora e docente, tem pós doutoramento, pelo Centro de Estudos Sociais (Univ. de Coimbra, 2009). É Pós Graduada em Biblioteconomia, Arquivística e Documentação (1979) pela Universidade de Coimbra e Especializada em Administração Escolar (IPPInstituto Politécnico do Porto,1992). Docente, bibliotecária e documentalista, foi membro da Direcção da BAD Norte de 1995 a 1998 e, entre 1995 e 2009, chefe de divisão e directora de serviços de documentação e publicações no IPP e coordenadora da Rede de Bibliotecas IPP. Docente do Curso de Gestão de Património da Escola Superior de Educação do Porto em 1995-1998, foi autora, coordenadora e docente do Curso de Tecnologias de Documentação e Informação da ESEIG e membro dos Conselhos Pedagógico e Científico, de 2001 a 2003. Coordenou e participou em projectos nacionais, europeus e internacionais nas áreas de documentação e informação científica e técnica, telemática e bibliotecas digitais e virtuais, sendo desde 2001, orientadora e arguente de teses de doutoramento e de mestrado em Demografia Histórica, História das Populações e Educação e Bibliotecas. É autora de livros, artigos em revistas nacionais e internacionais, conferências e comunicações a encontros, seminários e congressos nacionais e internacionais, nas áreas de Estudos Sociais e Históricos, Ciências da Educação, Ciência da Documentação e Informação.

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Foi investigadora e membro da direcção e comissão científica do NEPS (Núcleo de Estudos de População e Sociedade) da U. Minho de 1995 a 2008 e é Investigadora do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória), Faculdade de Letras da U. Porto, Foi coordenadora e docente do mestrado em Educação e Bibliotecas da Univ. Lusófona do Porto (2009-2012) e Coordenadora do Centro de Língua e Cultura Chinesa do IPP e dos seus Cursos de Mandarim, de 2001 a 2009, sendo Presidente do Centro de Estudos Chineses do IPP. Membro de várias associações nacionais e estrangeiras das áreas de sua especialidade, é referenciada na “Bibliografia do Distrito de Bragança – Série Escritores Jornalistas Artistas” de Hirondino Fernandes, Vol. IV (2012).

Resumo A presente intervenção tem por objectivos reflectir sobre os arquivos privados e novas práticas historiográficas, em função do interesse deste património arquivístico regional para o estudo das quintas durienses e fazer uma primeira abordagem à história da Quinta da Alegria, produtora de Vinho do Porto, fundada em 1800, na freguesia de Linhares do concelho de Carrazeda de Ansiães, cuja propriedade sempre se manteve nas mãos de uma mesma família da elite local. Faz-se uma primeira aproximação inédita, no quadro conceptual e metodológico da micro-história, com recurso a fontes directas, a esta antiga quinta, próxima do histórico Cachão da Valeira e das gravuras rupestres pré-históricas do Cachão da Rapa, património arqueológico nacional, junto ao apeadeiro da Alegria da linha do Douro. Palavras-chave: Quinta da Alegria; Douro Superior; Arquivos Privados; Carrazeda de Ansiães

Abstract This intervention aims to reflect on the interest of private archives and new historiographical practices by reference to the importance of this kind of regional papers for research and analysis of Douro estates and make a first approach to the history of Quinta da Alegria, founded in 1800, in the parish of Linhares of Carrazeda Ansiães and whose property has always remained in the hands of the same family. Located on the right bank of the Douro, on the border of the Upper Douro and Douro Superior and the counties of Carrazeda and S. João da Pesqueira, this former farmhouse is near the historic Cachão Valeira and the dam of the same name, as well as the famous rock carvings the prehistoric Rapa Cachão the national archaeological heritage, situated along the way station of Alegria of line Douro, near the Foz Tua station. This is a first approach to this unprecedented farm which follows on from our previous articles on other Douro Thursday of the county, under an extended case study on Carrazeda Ansiães, as a producer of Port wine and develops an aspect of this work on conceptual and methodological framework of micro-history, using direct sources, setting up its development from the search of your private files. Key words: Private archives; Quinta da Alegria; Quintas do Douro (Douro Farms)

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INTRODUÇÃO

E

nsaia-se uma breve reflexão sobre os arquivos privados das quintas durienses e, prosseguindo a aproximação que temos vindo a fazer a algumas quintas durienses emblemáticas do concelho de Carrazeda de Ansiães180, faz-se uma primeira abordagem histórica à Quinta da Alegria de Cima, unidade produtiva rural propriedade desde o inicio do século XIX da antiga família Mariz, elite de proprietários locais, no concelho. Foi possível iniciar este trabalho monográfico, graças à abertura intelectual e disponibilidade do seu actual proprietário, o Eng. Alexandre Mariz, quadro do Grupo Simyngton e responsável técnico superior de algumas das suas mais importantes quintas do Douro neste concelho (Quintas dos Canais, do Tua, da Chousa...) e em Vila Flor. Para além da reduzida bibliografia sobre esta vertente da história do concelho, os arquivos, fontes directas e informações locais/regionais disponíveis, no caso de Carrazeda de Ansiães, registam uma grande carência e enorme dispersão, risco de conservação, deficiente organização e inacessibilidade. Daí que se trate previamente o tópico dos arquivos privados e sua relação com novas práticas historiográficas, em particular sobre as quintas durienses. Estas, complexas unidades agrícolas de importante dinâmica local e vocação comercial de escala nacional e internacional, enformam decisivamente a história milenar do Douro cujo conhecimento mais denso e profundo ganhará com o contributo de estudos monográficos de quintas durienses da periferia e zona de fronteira, como Carrazeda. Configura-se o estudo da Quinta da Alegria, à luz dos melhores trabalhos sobre as quintas do Douro181, que entendemos como constructo transdisciplinar, microcosmos de valor patrimonial e sócio-cultural, a observar numa perspectiva interescalar e na longa diacronia, sem perder de vista a hipótese de eventuais afinidades com as unidades agrícolas monásticas medievais e, mais remotamente, com os casais rurais romanos. Recorrendo à ainda reduzida bibliografia específica disponível, desenvolve-se o estudo desta quinta, na 180  Ver bibliografia final. 181  PEREIRA, Gaspar Martins - Roriz; história de uma quinta no coração do Douro Porto: Edições Afrontamento, 2011. Prefácio de António Barreto e textos introdutórios de Paul Symington e João Van Zeller, co-editores.

continuidade do que já se esboçou para a Quinta dos Canais, a maior e uma das mais importantes quintas do Douro deste concelho, em dois eixos: sua posição e papel à escala local e, adensando a abordagem, sua representatividade numa escala mais ampla, enquanto fenómeno económico, social e cultural de produção vitivinícola em meio rural na fronteira do Douro Superior. 1. ARQUIVOS PARTICULARES DAS QUINTAS DURIENSES E MICRO-HISTÓRIA

A

importância dos arquivos particulares das quintas durienses e a especial relevância dos arquivos pessoais dos seus proprietários, tornam essa massa documental incontornável para o conhecimento da história intensiva destas unidades económicas originalmente de matriz familiar e seus respectivos impactos locais e regionais. Pela história das quintas do Douro e dos seus arquivos privados passa uma parte fundamental da história da vinha, do Vinho do Porto e da Região do Douro Vinhateiro, Património Mundial. Por aí poderá passar também uma renovação das práticas historiográficas e uma revivificação da história económica, social, cultural e rural ao nível local, da região duriense e do comércio globalizado do Vinho do Porto. É inegável o seu contributo para novas pistas de investigação, para além do esclarecimento de temas tradicionais: “produção e comércio vitivinícola, geografia dos vinhedos, técnicas e tecnologias de fabrico, evolução dos processos produtivos, racionalização do trabalho, questões de propriedade, gestão e administração destas unidades económicas, etc.”182 Por sua vez, o estado e importância do património documental das quintas durienses, é assim resumido, nesta revisão da literatura de Gaspar Martins Pereira fez (2002): “Disperso, na sua maior parte vedado aos investigadores, desorganizado e, em certos casos, em risco, a importância desse património justifica medidas urgentes de preservação e valorização, quer através do seu tratamento especializado, quer através do seu estudo. Deve, no entanto, sempre que possível, promover-se a sua conservação nas casas ou quintas que os 182  PEREIRA, Gaspar Martins – Quintas do Douro - Arquivos e Investigação Histórica. Régua, 2002. “ População e sociedade”, Porto, CEPESE, n.º 10, 2003, p.139-143.

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produziram, já que a sua descontextualização poderá representar perdas de significado e de função.”183 Convém não ignorar a bibliografia especializada entretanto produzida sobre a preservação e organização técnica arquivística, em desenvolvimento desde 2001/2002, com o novo estatuto académico da Ciência da Informação, trabalhos arquivísticos e historiográficos sobre alguns arquivos de quintas históricas durienses184, para além da atenção dada, por exemplo, pelo Grupo Symington185, à conservação e organização técnica de arquivos de quintas do Douro, diluídos embora nos arquivos de grandes empresas. Deve ainda referir-se, no caso de Carrazeda, o bom estado de conservação do arquivo privado da família Mariz da Quinta da Alegria, e a manifestação da sua disponibilidade de acesso, por parte do seu actual proprietário. Mas o conhecimento, localização, análise da produção administrativa e do teor informativo, organização técnico-arquivística e acesso dos historiadores aos arquivos privados da maior parte das quintas durienses do concelho de Carrazeda186, continuam a revelar-se, na generalidade, um obstáculo intransponível. Para isso concorrem, entre outros factores, as dificuldades de acesso aos arquivos privados, dada a sua natureza de propriedade particular, em que as frequentes mudanças de propriedade das próprias quintas, originadas em heranças, casamentos, compras e vendas, acarretam, frequentemente, impossibilidades reais de sua guarda e transmissão orgânica. A salvaguarda destes fundos de importância histórica requer para além de estratégias oficiais de sensibilização dos respectivos proprietários, mudanças efectivas das políticas nacionais de preservação deste património arquivístico e ainda mudanças da legislação nacional arquivística187 183  PEREIRA, Gaspar Martins (2002), ob cit.

que pouco ou nada dispõe sobre a declaração de utilidade social e pública dos arquivos privados, ou sobre a salvaguarda/ingresso destes acervos em arquivos públicos, para sua protecção como património arquivístico e cultural de interesse público para a memória da região e valor de investigação histórica. Genericamente considerados, os arquivos particulares podem ser técnicos, privados e comerciais (Prado, 1968:154) mas também familiares, empresariais e mistos. Constituem em regra miscelâneas de uma diversidade de documentos que fazem parte do trajecto de vida das unidades produtoras e das entidades e pessoas a elas ligadas. Estão em regra organizados segundo critérios individuais e encontram-se em estado “in-orgânico” de arquivo privado, por vezes esquecidos em locais pouco apropriados à sua conservação, sendo mesmo difícil localizá-los, aos seus possuidores actuais. É toda uma história internalista que por eles perpassa. Tendendo a registar aspectos relativos à história das famílias proprietárias dominantes, as memórias aí depositadas revelam experiências e vivências de pessoas destacadas e/ou comuns. Pendem em geral, para a intimidade, pois não foram chamados no momento da sua elaboração a atingir um nível de oficialidade ou de notoriedade que caracteriza outros tipos de arquivos. Não é fácil, assim, para o historiador da história vivida, romper os múltiplos segredos da privacidade (Vincent, 1992: 157). No caso concreto das quintas durienses, firmas e famílias proprietárias, as memórias, identidade e cultura que os seus arquivos permitem revelar, podem transformar a sua história em potencialidade estratégica competitiva face a concorrentes no mercado, como aliás, a história das empresas feita com base nos seus arquivos tem evidenciado. 188

184  Ob cit. Ver também a recente produção no domínio arquivístico publicada no âmbito da BAD e no contexto de licenciaturas, mestrados e doutoramentos de algumas universidades e politécnicos nacionais com formação superior e pós-graduada em ciências da informação e documentação. 185  Realce, neste âmbito, para o trabalho arquivístico desenvolvido por Paula Montes e Marlene Cruz, arquivistas e investigadoras do CITCEM. 186  Não dispõe ainda o concelho de Carrazeda de Arquivo Municipal próprio e a documentação referente à sua história e ao antigo concelho de Ansiães que ele vem substituir na primeira metade do século XVIII, encontra-se genericamente mal acautelada em termos de preservação e organização, para além de muito dispersa e pouco acessível em vários arquivos distritais designadamente de Bragança, Braga e Vila Real, Museu do Abade de Baçal, em Bragança, AN/TT, Biblioteca Nacional, arquivos pessoais e mesmo nas mãos de vários particulares. 187  Pesem embora, as amplas atribuições na preservação, organização e

acesso público a todo o património arquivístico nacional, consignadas ao AN/TT na Portaria n.º 192/2012 de 19 de Junho, e Despacho n.º 9339/2012 de 11 de Julho, e as competências formais dos arquivos distritais, de incorporação, preservação, inventariação, catalogação e difusão do património documental de cada Distrito, conforme Despacho n.º 18 834/2007, de 22 de Junho. 188  Mendes, José Amado – “Arquivos empresariais: História, memória e Cultura de Empresa.” Revista Portuguesa de História, t. xxxv (2001-2002), p. 379-388. Ressalve-se a propósito, que a preocupação com a protecção dos arquivos privados relativos às empresas foi já alvo de publicação de legislação especifica - ver Decreto-Lei nº 429/77, de 15 de Outubro.

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2. A QUINTA DA ALEGRIA EM LINHARES, CARRAZEDA DE ANSIÃES

Fig. 1 – Vista panorâmica da Quinta da Alegria (foto do proprietário da quinta)

Fig. 2 – Vista aérea da Quinta da Alegria (foto do proprietário da quinta)

Fig. 3 – Mapa do País Vinhateiro e património arqueológico (foto do proprietário da Quinta.)

2.1 Localização espácio-temporal e origens da Quinta da Alegria de Cima

Salvador do Mundo; d´aquem dá-se um imprevisto des-

A Quinta da Alegria de Cima surge-nos como uma espécie de pequeno oásis na região de Carrazeda onde é referência de uma propriedade bem cultivada, cuidada e rentável, nas mãos de abastados proprietários locais da família Mariz, há mais de 200 anos. A sua localização espacio-temporal, assim como as suas origens encontram-se já documentadas, sumariamente, em alguma bibliografia.

lapide comemmorativa do rompimento dos rochedos do

“O vértice reintrante do angulo que o Douro aqui forma e onde está o ponto do Cachão approxima-se: d’além a verticalidade irregular e sinistra prolonga-se e sobe indefinidamente para os ápices em que se encarrapita S.

vio na linha de projecção e os penhascos tisnados e pardos aparecem… Numa fraga da esquerda já se apercebe a Cachão no último quartel do século XVIII que interceptavam a navegabilidade do rio. Descreve-se uma curva e o leito alarga, amplifica-se, desafoga-se mais, além de que, na reintrancia, volta a apparecer a côr sorridente das cepas pertencentes à quinta da Alegria que possue também terrenos de sementeira e horta e dá o nome ao apeadeiro do caminho de ferro”189

Esta a localização da Quinta da Alegria nos alvores da 1ª República. No Estado Novo, início dos anos 189  MONTEIRO, Manuel – O Douro: principais quintas, navegação, culturas, paisagens e costumes. Fac –Simile da Edição de 1911 Emilio Biel & Cª Editores. Edições Livro Branco, Ldª, 1998, p. 24-25.

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1940, uma exaustiva relação das Quintas do Douro 190 que identifica e descreve, abreviadamente, em Carrazeda de Ansiães, 29 quintas, algumas propriedade das Firmas Cockburn & Smithes e Silva & Cosens, referencia assim, na freguesia de Linhares, concelho de Carrazeda a Quinta da Alegria de Cima: “Proprietário: Sr Alexandre Augusto Mariz. Foi fundada em 1800 pelo sr. Luíz António Sampaio; em 1869 pertencia ao sr. Joao Baptista de Morais e a sua produção em vinho era de 30 pipas”

Na mesma freguesia e concelho é assim também referida a Quinta da Alegria de Baixo: “Proprietário: Sr. Dr. Álvaro Ferreira Pontes, residente em Val-

digem. ´E servida por caminho de acesso à estação de Alegria, a mais próxima. A sua produção é de 15 pipas de vinho (tinto) e 10 pipas de azeite, cereais e frutas diversas. Tem azenha, alambique para destilação de bagaço e armazém com vasilhame na capacidade de 120 pipas. Esta quinta foi fundada em 1800 pelo Sr. Luiz António Sampaio e em 1869 era propriedade da filha do fundador, Srª D. Flora de Sampaio e Melo, casada com o Sr. A. J. Ferreira Pontes. A sua produção nessa data era de 50 pipas de vinho.”

Estamos assim originariamente em presença de uma única e mesma quinta, a Quinta da Alegria, fundada em 1800 por Luiz António Sampaio, devendo-se a sua divisão a casamentos e heranças e as designações complementares “de cima” e “de baixo”, à localização geográfica na encosta que desce do planalto de Carrazeda de Ansiães, para a margem direita do rio Douro. A Quinta da Alegria de Cima é actualmente propriedade do Eng. Alexandre Mariz e sempre se manteve nas mãos da sua família, pelo lado paterno, a família Mariz.191 Recebeu-a por herança de seu pai, António Augusto Fernandes Mariz que, por sua vez, a herdara já também do pai, Alexandre Augusto Mariz, proprietário da Quinta Alegria de Cima, nos anos 1940 e filho de João António Sampaio Mariz descendente do fundador da Quinta da Alegria no início do séc. XIX. Aliás, ainda nos nossos dias a actual Quinta da Alegria de Baixo é propriedade de descendentes do Dr. Morais Fernandes antigo médico, natural de Linhares, fundador do Colégio em Carrazeda, na década de 1960, e

190  CORDEIRO, J. Alcino - Quintas do Douro. Régua, 1941, p.3 191  Esta família com ligações ao ramo Mariz da freguesia do Amedo e á família Sampaio da freguesia da Fontelonga do mesmo concelho, tem as suas origens na casa-mãe na freguesia de Água Revés, concelho de Valpaços, distrito de Vila Real, hoje designada por Casa de Mariz e Sarmento, restaurada e classificada, em 2012, como património de interesse publico, pela Direcção Geral do Património Cultural, sendo propriedade da família Taveira de São Payo ou São Payo Alcoforado, grandes proprietários da região que se uniram por matrimónio aos Mariz Sarmento Pimentel por volta de 1720.

Fig. 4– Quinta da Alegria de Cima - casa e cardanhos remodelados (Foto do proprietário da Quinta)

que era ainda primo da família Mariz192. Actualmente, descendentes dos Morais Fernandes, pela linha materna, encontram-se ligados à família Costa que em S. João da Pesqueira, vila fronteiriça a Carrazeda de Ansiães, se mantém na produção de vinho, não tendo já no entanto, hoje, nada a ver com a família do presente proprietário da Quinta da Alegria de Cima que, modernizada, se encontra em plena actividade, enquanto que a quinta da Alegria de Baixo, está agora desactivada e em ruínas. A Quinta da Alegria de Cima entrou directamente na posse da família Mariz através do casamento do avô, Alexandre Augusto Mariz com Adelaide Fernandes da família Morais Fernandes, de Linhares, cuja principal propriedade era a Quinta da Alegria, atravessada pela linha do Douro, junto ao apeadeiro homónimo. 2.2 Caracterização evolutiva da Quinta da Alegria de Cima Esta quinta, que sofreu ao longo dos tempos e na sequência de uma sucessão de casamentos, partilhas, compras e vendas, divisões e transformações, era inicialmente uma única e grande propriedade, com mais de 80 ha, confinando com um caminho que ligava a terrenos da família Morais Fernandes de que descendia a avó, por linha paterna, do actual proprietário. Teve como protagonista emblemático e tutelar, Alexandre Augusto Mariz (1896-1978), avô por ascendência paterna do Eng. Alexandre Mariz, e principal responsável pelos destinos e aumento do património da casa agrícola da família, desde jovem, produtor 192 

Informação do Engenheiro Alexandre Mariz.

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excepcionalmente empreendedor e inovador, republicano convicto e amigo de longa data do sr. Smith da Cockburn (ver fig. 6). Na verdade, e ainda quanto à história da Quinta da Alegria de Cima, com traços idênticos aos de outras quintas durienses e elites locais, conforme nos conta o neto, seu actual proprietário,193 esse seu avô:

da filoxera …que também atacou a Quinta da Alegria que apesar de atingida e dizimada se manteve…é que a recuperação precisava de dinheiro e o dinheiro tinha de vir de algum lado…veio dos têxteis dos condes de Vizela os mais antigos donos de Serralves… a quinta dos Malvedos foi comprada pelos indivíduos da Vista Alegre… a elite do Porto…os comerciantes do principio do século vêm para o Douro… fazia parte do status ter uma quinta no Douro…

“ficou órfão de pais, aos 16 anos, deixou de estudar e começou

…mas voltando ao meu avô …ele já tinha electricidade em casa

a tomar conta das propriedades, ajudado pelo tio que era o dono da

há mais de 100 anos, produzida por um aerodínamo que mandou

casa grande de Marzagão, junto à igreja, no centro da aldeia [vizi-

vir directamente da América …lia muito e estava sempre bem infor-

nha de Linhares] que foi o que deu a casa de meus pais em Linhares,

mado… também mandava vir directamente do estrangeiro as má-

onde eu ainda vivo…todos os anos ia comprando propriedades e fez

quinas de que precisava para a casa agrícola que já era grande …

o património da casa agrícola grande . A Quinta da Alegria vem

era um agricultor já muito moderno, empreendedor e inventivo …

do lado da minha avó Adelaide Fernandes e por casamento passou

sempre trabalhou bastante mas também se resguardava…todos os

para a família Mariz. Lembro-me de que o meu avô me contava que

anos ia para as termas para Vidago. …o Sr. Smith gostava muito

havia no meio das duas partes da quinta da Alegria terrenos dos

de conversar com ele e ficava admirado do que ele fazia e sabia…

Fernandes, em que havia um senhor, irmão da minha avó que gasta-

era um visionário… excepcional… uma pessoa muito engraçada e

va tudo quanto tinha e então os terrenos foram a praça pública e ele

extraordinária…

pediu então ao meu avô para comprar todos os terrenos…aquilo foi muito dividido porque eram famílias extensas… pelo contrário, quer o meu pai quer o meu avô foram filhos únicos…a família era mais restrita, ao contrário do lado materno que era mais extensa … a minha mãe era da família Sampaio … eu até costumo dizer que sou Sampaio ao quadrado, pois a família do meu avô paterno também era Sampaio … o pai do meu avô era João António Sampaio Mariz …mas dos Sampaios da Fontelonga…sim do Dr. Cabral, médico…. [a antiga família Sampaio e Melo] … o Victor Aguilar ainda começou por comprar parte desses terrenos …o Dr. Morais [da família Morais Fernandes] era casado com uma irmã desse Victor Aguilar cuja família esteve muito tempo em África ou no Brasil…muitas das quintas no Douro foram compradas por gente que ganhou dinheiro nas roças de cacau e café de S. Tomé, dinheiros vindos do Brasil … o que explica esses chalés que aparecem no Douro … dinheiro das minas…por exemplo, a mulher do Eng. Ramiro Sobral da Quinta dos Canais era inglesa e o pai dela dono das minas de Penedono donde veio o dinheiro para os Canais…porque o engenheiro Ramiro Sobral natural de Arranhados era de família muito pobre e foi criado por uma senhora que tomou conta dele na Senhora da Ribeira [lugar de Carrazeda de Ansiães, junto ao rio Douro, com grande concentração de quintas] …sim a antiga Quinta do Mariz, com capela, integrada na Quinta dos Canais foi vendida por um Mariz mas do ramo do Amedo, já em ruínas e comprada por outro Mariz que a recuperou e depois a vendeu ao dono da quinta dos Canais…eles como nós somos originários da casa mãe em Água Revés, cuja casa e capela foram recentemente restauradas pela família… ...o que aconteceu no Douro depois de 1870 com as falências 193  Entrevista que me foi concedida em Carrazeda de Ansiães, dia 17 de Maio de 2014 pelo Eng. Alexandre Mariz, natural e residente em Linhares, casado e com a idade de 60 anos.

A acção deste seu ascendente, cuja biografia importará fazer, é seguida como exemplo pelo Eng. Alexandre Mariz, herdeiro directo e dono de toda a casa agrícola da família, agora com uma área de 99 ha, a qual seu avô impulsionara, decisivamente, seu pai manteve e ele tem vindo a aumentar e enriquecer o património, restaurando antigos edifícios, replantando nova vinha e modernizando instalações e equipamentos, sempre investindo capitais próprios. A Quinta da Alegria de Cima que desde sempre teve, para além de sementeiras e horta, plantio de vinha, cedo começou a produzir vinho generoso da melhor qualidade, tem uma produção actual de 120 pipas (vinho tinto, generoso e de mesa). A produção de Vinho do Porto é de 100 pipas, todo para exportação, e é hoje exclusivamente vendido à Symington Family States, como antes o fora à firma Silva & Cosens, de inicio, e depois, durante 73 anos consecutivos, à Cockburn & Smith. O vinho é, e sempre foi, todo feito na quinta, desde os tempos do avô, em lagares tradicionais mantidos e recuperados, sendo actualmente a pisa já feita com robô. Com uma área de per si, inferior à da Quinta da Alegria de Baixo, (que rondará os 40/50ha), tem hoje uma área de 20 ha registados (terrenos de vinha, área de caça, culturas e propriedades anexas) e 15 ha de vinha cujas castas seleccionadas são: Touriga Nacional de que o avô era fã e que passou de 72% para 63%, Touriga Francesa, Tinta Roriz e Bastardo. A sua evolução tem sido constante, sem rupturas,

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nem crises, desde finais do séc. XIX. Parte das vinhas plantadas na quinta com o antigo proprietário Alexandre Augusto Mariz, e seu filho, foram já mecanizadas pelo actual dono da quinta. No que se refere aos vinhos de mesa, a Quinta da Alegria de Cima tem hoje duas marcas registadas e afirmadas no mercado nacional: o “Inquieto” (vinho tinto) e o “Tranquilo” (vinho, branco, feito com uvas da produção mais próxima do planalto). O pessoal da quinta é actualmente de quatro trabalhadores permanentes, mas ocupa, na época das vindimas, mais dez trabalhadores sazonais. Dispõe de lagares tradicionais, de pedra de granito mas já modernizados e informatizados, com pisa mecânica, adega com a capacidade de seis tonéis antigos, recuperados, e cubas inox, lagar de azeite antigo em recuperação, casas de habitação, cozinha, cardanhos e cavalariças antigas já remodelados. O sentido de toda esta evolução assente em constantes investimentos e numa forte dinâmica de modernidade aliada à preservação actualizada da tradi-

ção ancorada em memórias e saberes ancestrais, que se mantém desde os tempos do grande agricultor e empreendedor de craveira invulgar, avô do presente proprietário, é uma marca de forte identidade familiar, local e mesmo regional, denotando grande consistência o que permite que esta unidade económica se configure como um case study.

Fig. 5- Alexandre Augusto Mariz (esquerda), J.H.Smithes (centro) e António Pizarro (direita), 1963, ano vintage. (Foto, proprietário da Quinta)

Fig. 6- Escultura de S. Vicente colocada na Quinta da Alegria em 2004, ano de vintage (foto do proprietário da quinta)

A estreita relação estabelecida desde longa data entre o conceituado produtor da elite local e o representante de uma das mais antigas firmas exportadoras de Vinho do Porto194 assente no respeito mútuo e consideração recíproca está representada na fotografia, cujo 194  J. H. Smithes (1910-1999), personagem marcante no comércio do Vinho do Porto, era uma lenda entre os vinhateiros do Alto Douro e nos gabinetes de provas em V.N. de Gaia, e está ligado ao sucesso das marcas Cockburn, na vertente da produção e provas. Entrou para a firma Cockburn em Londres em 1930, foi sócio da Companhia do Porto, a partir de 1938, e quando deflagrou a II Guerra Mundial, regressou a Inglaterra e alistou-se na RAF (Força Aérea Real). Regressou a Portugal em 1946, tendo-se tornado um dos melhores provadores do Porto. Com o seu pai, Archie e sócios Reggi Cobb e Félix Vigne criaram o “Estilo Cockburn” de Vinho do Porto que permitiu à firma dominar o mercado inglês.

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simbolismo, é também visível na data comemorativa da mesma. A mesma filosofia de construção identitária assente na qualidade da produção, na manutenção de um património familiar e antigas alianças e no desenvolvimento modernizado da Quinta, é também seguida pelo Eng. Alexandre Mariz que preserva activas ligações entre a produção local e o comércio globalizado do Vinho do Porto, para além de manter e reinventar práticas simbólicas de uma secular identidade vitivinícola, local e regional. Nesse plano simbólico, surge-nos na Quinta da Alegria de Cima, a escultura de S. Vicente (missal na mão direita e cacho de uvas na esquerda),195 padroeiro dos viticultores e vinicultores, peça artística mandada construir e colocar na Quinta pelo seu actual proprietário, em 2004, ano vintage, declarado como de superior qualidade. Poder-se-á dizer que tal decisão representa e simboliza, ainda, em si própria, a actual linha estratégica de desenvolvimento da Quinta pautada pela procura de uma simbiose entre tradição e modernidade. Mas esta orientação estratégica de desenvolvimento integrado que o actual proprietário da quinta continua a prosseguir, manifesta-se também a outros níveis, mais pragmáticos, desde a aplicação de novas técnicas de cultivo da vinha, à introdução de modernas tecnologias de produção e fabrico do vinho. 195  Cristão mártir do império romano, no inicio do séc. IV, seu nome é invocado há séculos, estando também ligado aos vários trabalhos da vinha e do vinho, ao longo do ano, segundo as variações nos hemisférios norte e sul. O seu culto encontra-se associado à igreja St. Germain-des-Prés em Paris.

Fig 7 – Qª da Alegria - Lagar com sistema informatizado e pisa mecânica (foto do proprietário da Quinta)

2.3 Significado da quinta no contexto do concelho e da Região do Douro A Quinta da Alegria, uma das quintas históricas do Douro Superior é, por algumas das suas características

Fig 8 – Qª da Alegria - Lagares tradicionais recuperados e modernizados (foto do proprietário da quinta)

já introduzidas, uma das mais singulares na zona da ribeira de Carrazeda e hoje ainda uma das quintas do concelho, mais modernizadas, cuja produção vinícola de elevada qualidade, leva a que se diga localmente que o seu vinho fino, todo para exportação, é de consumo habitual na casa real inglesa. Marca registada da Quinta os tintos “Inquieto”, são apreciados na restauração de qualidade, garrafeiras de topo e lojas gourmet. A sua promoção publicitária combina elegante marketing, e informação rigorosa e técnica, apelativas da tradição histórica. Todo o processo de produção, bem organizado continua a ser feito integralmente na Quinta, sendo a sua gestão, administração e comercialização, asseguradas pela empresa “Douro Prime, Ldª”, constituída em 2008, por quatro sócios, ex-funcionários da Cockburn &Smith: Miguel Côrte-Real (produção e comercialização), Manuel Matos de Carvalho (director de enologia), Alexandra Martins (área financeira) e Alexandre Mariz, (área da produção), que trabalham em equipa multidisciplinar. Os principais produtos vinícolas da empresa são feitos com uvas da Quinta da Alegria de Cima e de outros fornecedores seleccionados na sub-região do Douro Superior, e lançados no mercado nacional com implantação nos mercados internacionais. A sede da empresa, criativa e de conhecimento inten-

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sivo, é no Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto (UPTEC), onde beneficia das sinergias de inovação empresarial. CONCLUSÃO A história da Quinta da Alegria de Cima, propriedade longeva da família Mariz, é referência no concelho de Carrazeda, pela sua continuada solidez económica e superior qualidade de produção de vinho generoso comercializado ao longo dos tempos por algumas das mais históricas firmas de exportação inglesas de Vinho do Porto. Caracteriza-se pela equilibrada articulação entre tradição e inovação, notável estabilidade, estratégias de gestão e desenvolvimento autónomo, práticas e técnicas modernas de vitivinicultura, no que concerne aos últimos 100 anos. A reprodução familiar de sua posse durante dois séculos, nas mãos da mesma família, é fruto da capacidade para acompanhar continuadamente as mudanças, contra uma geral tendência para a frequente transferência de propriedade verificada no território duriense, associada a compras e vendas em épocas de crise seguidas de novos investimentos. O seu actual proprietário, importante quadro técnico de históricas firmas de produção e exportação de Vinho do Porto, e produtor empreendedor com vasto conhecimento da Região Vinhateira Duriense, à qual se mantém ligado, por relações de trabalho e de vida, é parceiro fundamental no processo de investigação histórica que se prossegue.

BIBLIOGRAFIA: CORDEIRO, J. Alcino (1941) - Quintas do Douro. Régua: Edição de autor. LAGE, Maria Otília Pereira (2011) – Construção de materiais de memórias na Região Demarcada do Douro: Narrativas orais de antigos trabalhadores da Quinta dos Canais. «CEM, Cultura, Espaço &Memória: Revista do CITCEM», nº 2, p. 51-74. LAGE, Maria Otília Pereira (2012-2013) – Carrazeda de Ansiães como produtor de Vinho do Porto: Memórias e identidades conjunturais em espaço de fronteira. Um estudo de caso alargado na Região Demarcada do Douro (I República). «Brigantia: Revista de Cultura» (separata), vol. XXXII. Bragança, p. 291 -315. LAGE, Maria Otília Pereira (2013) – Os ‘Canais’ e outras quintas em Carrazeda de Ansiães da Cockburn Texto de intervenção na Oficina de Investigação Científica CITCEM - «Da produção à marca: um case study no Vinho do Porto (Cockburn)». MENDES, José Amado (2001-2002) –Arquivos empresariais: História, memória e Cultura de Empresa. «Revista Portuguesa de História», T. XXXV (20012002), p. 379-388. MONTEIRO, Manuel (1998) – O Douro: principais quintas, navegação, culturas, paisagens e costumes. Fac –Simile da Edição de 1911 Emílio Biel & Cª Editores. Ed. Livro Branco. PEREIRA, Gaspar Martins (2011) – Roriz: história de uma quinta no coração do Douro. Porto: Edições Afrontamento. PEREIRA, Gaspar Martins (2003) – Quintas do Douro - Arquivos e Investigação Histórica. Régua, «População e sociedade», Porto: CEPESE, n.º 10, p. 139143. Fontes Entrevista a Eng. Alexandre Mariz, proprietário da Quinta da Alegria. Carrazeda de Ansiães, Maio 2014. Fotografias de arquivo particular da família Mariz.

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Painel 4

Arqueologia das Quintas do Douro Pedro Pereira

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A importância da Arqueologia para a história da vinha e do vinho na região do Douro Pedro Pereira Investigador do CITCEM – FLUP

Nota biográfica: Pedro Pereira Licenciado em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e realizou um Master em Histoire, Archeologie et Langues Anciennes na Maison de l’Orient et de la Mediterranée, em Lyon, sobre a Economia e Produção de vinho romano na bacia do Douro e um Doutoramento em Histoire, Archeologie et Langues Anciennes na Université Lumière-Lyon II, com o título “Economie et production du vin dans la Lusitanie dans l’Antiquité Tardive”. Investigador do UMR 5138 Archéologie et Archeonometrie (CNRS) e do CITCEM-FLUP (FCT). Trabalha enquanto arqueólogo independente e, actualmente, co-director de três projectos de investigação arqueológica na região do Douro.

Resumo O impacto da Arqueologia na história do vinho no Douro apenas é possível aferir compreendendo a História da Arqueologia em Portugal e em Espanha, como ela se desenvolve nestes países e, em concreto, na região. Leite de Vasconcellos, Rocha Peixoto, Carlos Teixeira, Ricardo Severo ou Fernando de Russel Cortez, entre tantos outros, nenhum deles arqueólogo de formação per se, iniciarão a investigação arqueológica na região, através de estudos etnográficos e escavações que hoje consideramos serem o nascimento da Arqueologia na região.

Abstract Archaeology’s impact on the Douro wine history can only be understood through the History of Archaeology, in Portugal and in Spain, how it develops as a science in these countries and, specifically, in this region. Leite de Vasconcellos, Rocha Peixoto, Carlos Teixeira, Ricardo Severo or Fernando de Russel Cortez, among many others, none of them archaeologists per se, have begun their research in the region, through ethnographic studies and excavations. We consider today that these mark the birth of the Douro’s archaeology.

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Desde cedo que a historiografia tradicional, muitas vezes partindo de lendas locais, idealismos políticos ou puro “bairrismo” associa a vitivinicultura a tempos imemoriais na região duriense. Os primeiros a dar os passos numa “recolecção” de elementos antigos e “curiosidades” não são historiadores ou arqueólogos, mas simplesmente pessoas interessadas em saber algo mais sobre a história da sua região e que lançarão as fundações para a História do Vinho no Douro. Palavras chave: História do Vinho; Douro;

Since early on, traditional historiography has associated the birth of viticulture in the Douro to the very early stages of human evolution, may this be through local legends, political ideology or simply parochialism. Nevertheless, the first people responsible for the first steps on the formation of Douro’s history were not historians or archaeologists. They were simply curious about the Douro’s history and, through recollecting ancient remains and curiosities, they would unwillingly launch the foundations for the Douro’s wine history. Keywords: Wine history; Douro

OS PRIMEIROS ARQUEÓLOGOS NO NORTE E NO DOURO

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Arqueologia em Portugal tem vindo a ser alvo de análise historiográfica nas últimas décadas por vários investigadores196. Todavia, a maioria dos trabalhos de síntese centram-se nos arqueólogos “do Sul”, dos trabalhos em torno de Lisboa ou no Alentejo. No Norte do país, com a excepção de alguns artigos dispersos, deve ainda ser feito um trabalho de análise profunda sobre como se forma e evolui a Arqueologia enquanto ciência social e humana. No âmbito de trabalhos académicos que temos vindo a desenvolver nos últimos anos e sobre os quais tivemos também que debruçar sobre a história da investigação arqueológica, deparamo-nos com a pouca informação sobre o desenvolvimento da arqueologia no Norte, sobretudo no que concerne o Vale do Douro. A História da Arqueologia no Norte de Portugal encontra as suas fontes no trabalho de André de Resende, considerado como o pai da Arqueologia Portuguesa, que no século XVII trabalha sobre os vestígios antigos de Braga. Todavia, será sobretudo com a disseminação de associações arqueológicas na segunda metade do século XIX, concomitantemente com a ascenção de ideologias nacionalistas, que o Norte começará 196  Podemos aqui citar os trabalhos de Francisco de Sande Lemos (2001) ou Carlos Fabião (2011).

a ser alvo de estudos arqueológicos mais aprofundados. É neste contexto que se iniciam os trabalhos, por exemplo, de Martins Sarmento na zona de Guimarães. Porém, quando referimos especificamente os primeiros estudos da Arqueologia no Douro, poderíamos citar inúmeros nomes mas alguns adquirem especial relevo. Leite de Vasconcellos, médico e arqueólogo, que publica pela primeira vez uma referência à Quinta da Ribeira em 1900, Henrique Botelho, que desenvolve um trabalho extenso sobre a história e arqueologia da região em torno de Vila Real, focando-se sobretudo na zona de Alijó ou ainda Ricardo Severo. Este último, engenheiro de formação, inicia-se muito cedo na Arqueologia. A sua primeira publicação, aos 17 anos, sobre as ruínas da Cividade de Bagunte, é disso mesmo exemplo. Fundador da Sociedade Carlos Ribeiro, viria a ser um escritor profuso sobre as mais variadas cronologias e temas dentro da Arqueologia. Quando em 1898 funda a revista Portugália marca definitivamente o panorama arqueológico do Norte de Portugal. Será nesta revista que serão publicados os achados da Quinta da Ribeira, em Tralhariz, em 1903. Infelizmente, a publicação termina em 1908, devido à falta de financiamento. Divergências políticas fazem com que Severo parta para o Brasil ainda nesse ano, ficando nesse país até à data da sua morte na década de 1940.

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Fig. 1 - Sessão inaugural da IX Sessão do Congresso Internacional de Antropologia e de Arqueologia Pré-Históricas, na sala da biblioteca da Real Academia das Ciências de Lisboa, em 20 de Setembro de 1880, perante D. Fernando e D. Luís (in "Occidente", 15 de Outubro de 1880).

Um arqueólogo que aparenta fazer a ponte entre as investigações iniciadas por Leite de Vasconcellos e Severo é Fernando de Russel Cortez. Embora topógrafo de formação, Cortez terá um papel preponderante na investigação arqueológica no Norte de Portugal na sua época, sobretudo na região do Douro. A partir de uma bolsa concedida pelo IVP em 1946, este arqueólogo inicia uma série de prospecções na região duriense, como provam os relatórios enviados ao director da instituição197. Em 1947, inicia a escavação do Alto da Fonte do Milho. Embora este sítio já tivesse sido visitado anteriormente e, inclusivé, publicado198, será Cortez que encontrará a estrutura que mais nos interessa aqui: o primeiro lagar romano integralmente escavado em Portugal. O Alto da Fonte do Milho será posteriormente referenciado e várias vezes discutido na bibliografia científica199, embora nunca tenha sido alvo de um processo de re-escavação ou de estudo concreto dos materiais daí provenientes. Estes estudos elaboram, muitas vezes, observações menos positivas, tanto ao nível do processo de escavação do sítio tal como das interpretações de Cortez. Em 2010, iniciaram-se trabalhos de re-escavação, promovidos pela Direcção Regional da Cultura Norte, que acabaram por comprovar uma série das interpretações de Cortez, tais como a designação de castellum, uma vez que o arqueólogo suspeitava estar perante um sistema defensivo, ou ainda as datações realizadas na época, que atribuía uma datação variável entre os séculos III e IV da nossa Era. Efectivamente, foram detectadas estruturas defensivas no perímetro exterior do sítio. Da mesma forma, a interpretação actual é que estaremos perante um sítio que foi construído durante a Proto-História e que foi extensivamente re-ocupado e reformatado no patamar mais alto durante a Romanização, área onde os trabalhos de Cortez se concentraram.

197 

CORTEZ, 1947.

198 

TEIXEIRA, 1939.

199 

ALARCÃO, 1988; ALMEIDA, 2006.

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O ESQUECIMENTO E O RE-APARECIMENTO DA ARQUEOLOGIA NO DOURO

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ntre a década de 1950 e meados da década de 1970 aparenta dar-se um vazio na investigação no Douro. As intervenções arqueológicas rareiam e as publicações acabam por se centrar em análises e re-análises do que já antes se havia feito. A realidade é que nos trinta anos que se seguiram às intervenções de Russel Cortez no Alto da Fonte do Milho, poucos avanços se sentiram na investigação arqueológica do vinho no Douro. Um factor, que a nosso ver, é fulcral para este vazio na investigação aparenta ser a nova ordem política vigente em Portugal. O mesmo que observamos com os estados dictatoriais europeus de meados do século XX, desde as expedições à América do Sul pela Ahnenerbe nazi até ao trabalho da SNEA franquista em Manzanares é lisível nos documentos da época em Portugal. O estado, centralizador e repressivo, tem neste momento um objectivo claro na construção do discurso científico:

Fig. 2 Escavação da Fonte do Milho (in Cortez, 1947). Mais tarde, a estrutura será identificada como a cella vinaria.

enaltecer a Nação e a identidade nacional. A atribuição da coordenação e direcção da tutela ao director do Museu Nacional de Arqueologia, em 1932 (decreto-lei 21117 de 18/IV/1932), contribui para um estrangulamento da investigação a nível nacional e um fecho da Arqueologia portuguesa sobre si mesma. Da mesma

Fig. 3 - 1º Congresso de Arqueologia do Norte de Portugal (espólio da família Cortez, c. 1940).

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forma, a suspensão da maior publicação nacional da especialidade, O Arqueólogo Português, entre os anos 20 e 50, a sua re-abertura e crescente centralização em torno de Lisboa, aumenta a insularidade da investigação no Norte, sobretudo aquela realizada no Vale do Douro. A revista Trabalhos de Antropologia e Etnologia da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, associada ao Instituto de Antropologia Dr. Mendes Corrêa, corta com o isolamento da investigação arqueológica do Norte de Portugal a partir dos anos 60, mas sobretudo nos anos 70 e 80 do século passado. A título de exemplo, o director desta publicação, Joaquim Santos Júnior200, faz uma série de paralelos entre o culto do vinho na época e desde as publicações do Abade de Baçal, ao culto do vinho romano, uma perspectiva inovadora que apenas será repertoriada décadas mais tarde201. Nas décadas de 1980 e 1990, o aparecimento esporádico de associações culturais na região duriense, como a Associação Cultural do Douro, pelas mãos do padre Parente, renova algum interesse na Arqueologia da região, iniciando processos de escavação e localização de sítios, embora, na maioria dos casos, sem grande rigor científico. Serão projectos como o da Associação Cultural Desportiva e Recriativa de Freixo de Numão, pelas mãos de António de Sá Coixão ou o Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo, pelas mãos de um pequeno grupo de estudantes de História, variante Arqueologia da Universidade do Porto, que vingam até aos nossos dias, que conseguiram contribuír largamente para o nosso conhecimento arqueológico do Douro na atualidade. Nestas duas décadas, também as Universidades desempenham um papel fulcral, sobretudo sobre a investigação sobre a Arqueologia do Vinho. O projecto “Lagares escavados na rocha”, as escavações na Quinta de Ervamoira ou em São João da Pesqueira, da Universidade Portucalense ou o Grupo de Estudos sobre a História da Vinha e do Vinho do Vale do Douro da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, fundado em 1994, que promoveu dezenas de intervenções arqueológicas pelo Vale do Douro e Trás-os-Montes, desenvolvendo projectos que deram azo a centenas de publicações sobre a Arqueologia do e no Douro e mais especificamente sobre a Arqueologia do Vinho na Região. 200  SANTOS-JÚNIOR, 1964. 201  CASQUERO, 2004; PEREIRA, 2008; PEREIRA, 2014a.

A Arqueologia empresarial, fruto em larga medida do processo de construção e abandono do projecto de construção da barragem de Foz Côa, em meados da década de 1990, tem também fornecido novos elementos para a história do Douro, tanto em Portugal como em Espanha. Todavia, a falta de publicação de muitos destes resultados e os constragimentos económicos e temporais a que muitas vezes os arqueólogos responsáveis estão sujeitos, levam a que os frutos deste trabalho acabem por ser conhecidos apenas dentro da comunidade científica, quando o são.

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A ARQUEOLOGIA DO VINHO NO DOURO NOS NOSSOS DIAS

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ctualmente, a investigação sobre a Arqueologia e História do Vinho no Douro tem vindo a desenvolver-se moderadamente. Infelizmente, continua-se a citar trabalhos com componentes empíricas raras ou nulas, sendo percepção generalizada de que o vinho do Douro tem ligações aos romanos, mas faltando, em grande medida, trabalhos de escavação e, sobretudo, trabalhos de análise, associando-se a outras áreas como a antracologia, química e engenharia, e sobretudo, de síntese. O trabalho desenvolvido em Píntia, na Necrópole de Las Ruedas, é exemplo disto. Fruto de um projecto da Universidad de Valladolid, o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pela equipa liderada por Carlos Sanz é notável, sobretudo para a compreensão de como é que as comunidades indígenas da proto-história consumiam o vinho quando este era uma novidade no Vale do Douro. No decurso de uma escavação sem precedentes na zona, foram detectadas quasi 10.000 sepulturas, sendo que Sanz afirma estarmos perante uma área continuadamente utilizada para enterramentos em inceneração durante mais de quinze gerações202. Nesta escavação foram detectadas peças de cozinha, de imitação, normalmente associadas ao banquete grego, mais especificamente ao consumo de vinho, como as oikonoe ou as kernos. Em Portugal, o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido nas áreas da Mêda e Foz Côa pela ACDR-FN tem vindo a demonstrar dados muito interessantes para a compreensão de como evolui a organização social e humana no período romano. Neste trabalho tem-se analisado de sobremaneira a componente económica do estabelecimento romano, inclusivamente a história e evolução da viticultura no Sul do Douro. Escavações de sítios como o Prazo, Rumansil II, Vale do Mouro, Área Urbana de Freixo de Numão ou a Colodreira tem aumentado o conhecimento sobre as tecnologias de produção, transporte e armazenamento de vinho durante o Império no Vale do Douro de forma excepcional. A forte ligação desta associação à população local tem permitido ainda uma divulgação sem paralelos da cultura do vinho, desde a romanização até 202  GÁNAN, 2010.

aos nossos dias na região. Todavia, a história económica do vinho não tem sido esquecida, com vários trabalhos realizados, sobretudo na perspectiva da Arqueologia de salvamento ou empresarial na zona do Porto, por exemplo. Podemos citar aqui o trabalho realizado na Casa do Infante, que tem vindo a dar contributos preciosos para a economia, do vinho e não só, desde a época medieval. Na perspectiva mercantil do período romano, novos projectos tem vindo à tona, como o do projecto de Castr’Uima (2010-2014) em Crestuma, Vila Nova de Gaia. Neste contexto, foi descoberta uma estrutura de embarcadouro tardo-antigo no qual foram descobertas ânforas vinárias tardias, de importação de vários pontos do Império no Vale do Douro. A par e passo com a evolução dos projectos de investigação, também a Arqueologia Empresarial inicia a aumentar o volume e qualidade das suas publicações. Deste facto é fruto as inumeras apresentações resultantes do empreendimento hidro-eléctricos do Baixo Sabor, do Vale do Tua, dos acompanhamentos da ampliação da A4 e da construção do IC5, entre tantos outros. A legislação torna-se aqui incontornável como protecção do património cultural e também do próprio trabalho dos arqueólogos. Após várias reformulações a legislação actualmente em vigor é de 2001, a Lei de 107/2001 de 8 de Setembro, que “estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural”, estando o património arqueológico considerado nos artigos 74 a 79, que considera que todos os “bens provenientes da realização de trabalhos arqueológicos constituem património nacional” (Art. 74, nº 3) e que “aos bens arqueológicos será desde logo aplicável, nos termos da lei, o princípio da conservação pelo registo científico” (Art. 75, nº 1). Encontra-se igualmente consagrado que “os promotores das obras ficam obrigados a suportar, por meio das entidades competentes, os custos das operações de arqueologia preventiva e de salvamento tornadas necessárias pela realização dos seus projectos” (Art. 79, nº 3). Infelizmente, muitos dos trabalhos realizados no âmbito da arqueologia empresarial acabam por ser muito dispares, sendo que a larga maioria dos trabalhos são extremamente circunscritos, com identificações sumárias e sem publicação, científica ou, simplesmente, de divulgação. Assim, as visões de conjunto e os estudos de território saídos de trabalhos arqueológicos de salvamento acabam por ser muito diminutos,

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Fig. 4 - Localização das explorações agrícolas romanas com produção de vinho na Região Demarcada do Douro (a partir de mapa criado por M. Nogueira, 2007).

com uma grande quantidade de informação em bruto que sai do campo e acaba por não ser alvo de estudos aprofundados. A evolução da Arqueologia do Vinho no Douro das últimas décadas tem-se regido por uma aproximação à etnografia e à história local, intrinsecas para a compreensão de como é que a viticultura surge e evolui. O exemplo de trabalhos como “As arquitecturas do Douro”203, que estuda as estruturas de vinificação e armazenamento existentes e permanentes no Vale do Douro desde a época romana204. Efectivamente, escavações recentes, como é o caso de Vale do Mouro ou Prazo, revelam que a probabilidade de se terem utilizado estruturas muito similares já no período romano é extremamente alta205, em contraste para com a perspectiva tradicional da utilização exclusiva de dolia para o armazenamento de vinho no Douro romano206. Nos nossos dias, um dos problemas mais comuns para a compreensão de como é que a viticultura evolui 203  FAUVRELLE, 2005. 204  PEREIRA, 2007. 205  PEREIRA, 2014b. 206  FABIÃO, 2011.

e floresce no Vale do Douro prende-se com a agricultura intensiva de vinha no Vale, desde o século XVIII, com as demarcações pombalinas. Embora esse período marque um interesse exponenciado no cultivo da vinha, serão destruídos inúmeros sítios arqueológicos com os arroteamentos e construção de socalcos no Vale, conservando-se apenas alguns sítios em zonas mais remotas ou de maior dificuldade de acesso, como sucede com o Alto da Fonte do Milho. Noutros casos, como sucede com a Quinta de Nossa Senhora da Ribeira, em Tralhariz ou com a Quinta do Noval, em Alijó, a conservação parcial de sítios de exploração agrícola de períodos mais recuados deveu-se a meros acasos, mas cuja existência nos tem vindo a auxiliar a compreender como e quando é que o vinho surge no Vale do Douro. A escavação de explorações agrícolas de época romana nas últimas décadas tem-nos proporcionado uma melhor compreensão sobre como é que o vinho era produzido, armazenado e dado indicações de como ele seria plantado e comercializado. O caso da escavação do sítio do Prazo, em Freixo de Numão, que tem sido prolífica em dados para a compreensão de como se estruturava a ocupação humana

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na região do Douro, é exemplo disto mesmo. O estabelecimento de exploração rural que existia neste sítio na época romana é o segundo com produção de vinho descoberto na região e o primeiro com uma estrutura de produção típica: cella vinaria rectangular com, na extremidade Norte, uma estrutura de prensagem e uma bateria de tanques. Infelizmente, a re-ocupação e reformulação do sítio durante a época medieval destruíu uma grande parte dos vestígios que formavam parte das estruturas ligadas à produção de vinho. Intimamente ligado ao Prazo encontramos Rumansil I. Com uma cronologia útil entre os séculos III e Vº d.C., esta exploração agrícola poderá ser uma anexo do Prazo. Todas as estruturas deste sítio são dedicadas à produção e transformação de vinha. Outro caso de uma exploração agrícola de época romana vocacionada para o vinho, Vale do Mouro, foi alvo de um primeiro processo de escavação entre 2003 e 2011. Um dos principais frutos deste estudo foi a descoberta de uma villa romana de peristilo numa zona do Império onde se pensava não existir este tipo de estrutura. Para além disso, a escavação permitiu descobrir uma cella vinaria extremamente completa e com uma re-ocupação muito limitada. Assim, foi possível realizar um estudo sintomático da produção de vinho durante os séculos IIº e IIIº d.C. As diversas escavações realizadas na zona têem vindo a detectar uma realidade similar, embora com as suas sinergias e especifidades locais, ao que sucede no resto do Mediterrâneo. Um ponto interessante é a aparente combinação de elementos de várias culturas nos processos de transformação das uvas, como é o caso do Alto da Fonte do Milho, onde a estrutura de lagar é algo anómala relativamente aos preceitos arquitectónicos das escolas clássicas207, possívelmente devido à geologia local, compreendendo sobretudo xisto na sua construção. Da mesma forma, podemos citar o caso de Rumansil I, onde uma bateria de tanques aparentemente teria utilidades para tipos de colheitas diferentes. Vale do Mouro é outro caso à parte. Com uma estrutura de cella vinaria algo similar à do Prazo, este sítio tem paralelos mais evidentes para com Torre de Palma ou Pardigon III, onde se a cave de vinho se desenvolvia em dois andares, um utilizado para a produção em massa enquanto que outro seria utiliza207  VITRUVIUS, VI, 6.

do para a conservação de vinhos velhos. Nesta villa encontramos mesmo um tipo de estrutura que, até ao momento, aparenta não ter paralelo no território peninsular: uma sala de provas, onde os visitantes e eventuais compradores seriam convidados a provar as produções locais. As recentes escavações no Vale do Sabor teem permitido aumentar o conhecimento sobre o período de transição entre o período romano e o período medieval. Escavações de sítios como Crestelos ou Cemitério dos Mouros tem fornecido dados importantes para entender como é que a actividade agrícola e vinicola continua a expandir-se no Vale do Douro. Os dados disponibilizados por testamentos é também essencia, pelo menos para compreender como é que se espalhou o fenómeno da viticultura no Douro, embora esta informação esteja ainda, na sua maioria, em bruto: se no século II d.C. as populações locais têm um contacto algo restricto com o vinho, este produto generaliza-se a um ponto em que é de facto corrente a transmissão de propriedades com vinha é comum apenas cinco séculos mais tarde. Todavia, será sobretudo a partir do século XIV que possuímos uma grande quantidade de informações escritas sobre a viticultura no Douro. Actualmente, há ainda muito trabalho a desenvolver. É premente uma revisão integral e concertada de escavações e estudos realizados no Vale do Douro, conciliando a perspectiva da etnografia, sistemas de informação geográficos e ciências como a química, para se ter uma perspectiva clara de como é que evoluiu a história do vinho e da vinha nesta região. Infelizmente, a inexistência de projectos de investigação de amplitude verdadeiramente regional, questão já visivel desde o período de F.R. Cortez208 e muitas vezes ligada a questões de bairrismo ou idealismos políticos fazem com que esta seja uma questão de difícil resolução.

208  Este investigador tenta, na década de 1960, criar um primeiro “Museu do Douro”, baseado na Casa do Douro. Infelizmente, apenas 50 anos mais tarde é que este projecto será levado avante.

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Fig. 5 - Plano da escavação de Vale do Mouro, 2013 (Damien Tourgon)

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