Atas das 4ªs Conferências do Museu de Lamego/CITCEM

May 26, 2017 | Autor: Museu de Lamego | Categoria: Douro, Museus, Imigração
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Descrição do Produto

Atas das 4 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM 2016 15 de julho as

VINDOS DE LONGE

ESTRANGEIROS NO DOURO

Geraldo Coelho Dias

Conferências 2016

CITCEM

CENTRO DE INVESTIGAÇÃO TRANSDISCIPLINAR

15 de julho

ATAS das 4as

CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO /CITCEM – 2016 VINDOS DE LONGE. ESTRANGEIROS NO DOURO Disponível online em www.museudelamego.pt

ABREVIATURAS CI&DETS – Centro de Estudos em Educação, Tecnologias e Saúde CEGOT – Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da FLUP CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória MON - CNRS – Centre National de la Recherche Sciéntifique, Lyon DL – Diocese de Lamego

DRCN – Direção Regional de Cultura do Norte ESTGL – Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego – Instituto Politécnico de Viseu FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto FLUP-CEGOT - Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da Faculdade de Letras da Universidade do Porto IPP – Instituto Politécnico do Porto ML – Museu de Lamego

ORGANIZAÇÃO ML-DRCN / CITCEM- FLUP

AUTORES Amândio Barros (CITCEM; IPP) Didiana Fernandes (ESTGL; CI&DETS) Fátima Matos (FLUP/CEGOT) Gaspar Martins Pereira (CITCEM) Maria do Carmo Serén (CITCEM) Mário Jorge Barroca (CITCEM) Pedro Pereira (CITCEM/MOM-CNRS)

CONCEÇÃO E COMPOSIÇÃO GRÁFICA Pe. Hermínio Lopes (DL)

IMAGEM DE CAPA "Rio Douro"; Cónego José Correia de Noronha; 2ª metade de século XX © Museu de Lamego - Direção Regional de Cultura do Norte

Conferências 2016

CITCEM 15 de julho

CENTRO DE INVESTIGAÇÃO TRANSDISCIPLINAR

EDIÇÃO Museu de Lamego - Direção Regional de Cultura do Norte

DATA DE EDIÇÃO Dezembro de 2016

e-ISBN 978-989-99516-2-4

O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica são da responsabilidade dos autores.

APOIOS Liga dos Amigos do Museu de Lamego Diocese de Lamego Município de Lamego Hotel Lamego SoltaGiga Casa de Santo António, Britiande ESTGL - Escola Superior de Tecnologia e Gestão, Lamego

Índice «VINDOS DE LONGE: ESTRANGEIROS NO DOURO» CONFERÊNCIA DE ABERTURA Maria do Carmo Serén (CITCEM) De Forrester a Biel, de Mark Klett a Dussaud: a construção de modelos do olhar fotográfico no Douro......... 09

PAINEL 1 DOURO, UM CORREDOR DE POVOS E CULTURAS Pedro Pereira (CITCEM/MOM-CNRS) Estrangeiros no Vale do Douro – os romanos na transduriana provincia............................................. 25 Mário Barroca (CITCEM/FLUP) Muçulmanos e cristãos no Douro português (séc. VIII a XI)........................................................... 33 Amândio Barros (CITCEM; IPP) Estrangeiros no Douro nos finais da Idade Média e princípios da Época Moderna (notas de investigação).................................................................................................... 49

PAINEL 2 ESTRANGEIROS NO DOURO VINHATEIRO Fátima Matos (Departamento de Geografia da FLUP/CEGOT) Um inglês no Douro dos anos trinta: John Gibbons..................................................................... 65 Didiana Fernandes (ESTGL, CI&DETS) O Douro Vinhateiro nos guias de viagem estrangeiros dos séculos XIX e XX (1845-1974)........................ 75 Gaspar Martins Pereira (FLUP/CITCEM) Trabalhadores galegos no Douro vinhateiro............................................................................. 81

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Conferência de abertura DE FORRESTER A BIEL, DE MARK KLETT A DUSSAUD: a construção de modelos do olhar fotográfico no Douro. Maria do Carmo Serén

Nota biográfica: Maria do Carmo Serén nasceu no Porto. É historiadora e crítica de arte e fotografia, integrando com frequência cursos, colóquios ou encontros, tendo publicado textos, nomeadamente sobre análise fotográfica, em revistas, antologias, ou dicionários de especialidade, no país, em Espanha, França, Grã-Bretanha, Brasil e Estados Unidos. Tem ainda publicado para diversas instituições e editoras obras de análise de fotografia, pintura e história. Publicou, entre outros, a biografia “Uma espada de brilhantes para o General Silveira” (Governo Distrital de Vila Real/CITCEM, 2009), participou no Catálogo “O Porto e as Invasões Francesas”, dir. Manuel Real (CMP) e, incluída na colecção de Arte Portuguesa, “A Fotografia em Portugal” (n.º 17, Fubu Ed,). Teve, ainda, participação nas entradas para a publicação da Colecção de Arte BES e no “Espólio Fotográfico Português”, dir. Fernando de Sousa (Cepese). Entre diversas publicações para as comemorações do Centenário da República, participou, em 2010, no álbum “Resistência, da Alternativa Republicana à Luta contra a Ditadura, 18911974” (Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República). Foi directora da revista “Ersatz” do CPF e, enquanto Direcção-Geral (1997-2007), coordenadora de Informação e Formação deste organismo. É investigadora do centro de investigação CITCEM.

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De Forrester a Biel; de Mark Klett a Dussaud: a construção de modelos fotográficos no Douro Maria do Carmo Serén Investigadora do CITCEM, FLUP

Resumo: Entre os muitos fotógrafos estrangeiros que teriam percorrido o Douro, amadores ou profissionais em missão fotográfica ou trabalho pessoal destacam-se aqui aqueles fotógrafos que teriam influenciado o modo como olhamos o Douro. Entre as imagens de amadores notáveis como J. Forrester e as de Emil Biel é a este último que se devem os modelos temáticos fundamentais para representar o Douro: o vinhateiro e o dos caminhos-de-ferro. Até os anos 80 do século XX é este modelo, mantido pelo aprendiz de Biel, Alvão, que domina o nosso olhar. A abertura do 25 de Abril, trouxe novos padrões de pendor ecológico ou comunitário, que alteram o olhar já patente nas iniciativas do Museu do Douro: uma específica escola de Land Art, de comunidades e sentimentos num ressurgimento criativo.

Abstract: Among the many foreign photographers who have crossed the Douro, amateurs or professionals, either in photographic missions or personal works, we highlight here those who have influenced the way we look at this region. Among the notable amateur images such as those of J. Forrester or Emil Biel, the latter should be the key to the thematic models that would represent the Douro: the vineyard and the railways. Until the 80s of the twentieth century this is the model, maintained by Biel’s apprentice, Alvão, which dominates our attention. The freedom brought by the April 25 revolution, brought new ecological and community standards that already changed the look presented in the Douro Museum initiatives: a specific school of Land Art, of communities and feelings in a creative resurgence.

Palavras-chave: Modelos fotográficos do século XIX ao XXI; Fotógrafos estrangeiros no Douro; Encomendas temáticas e projetos pessoais; evolução do olhar sobre o Douro.

Keywords: Photographic models, XIX-XXI cent.; Foreign photographers at Douro; Thematic commissions and personal projects; Evolution of the look over the Douro.

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AMADORES E PROFISSIONAIS JAMES FORRESTER

É

bem provável que, viagem após viagem, foto a foto, mostrada a grupos distintos, publicadas na imprensa, enviada para as feiras internacionais como espelho da velha cultura vinícola, construída nos socalcos que começavam a rarear na Europa e no mundo, é bem provável sim, que esta região tenha sido também construída pelos fotógrafos. E é provável que, James Forrester, ao percorrer o rio ainda sem barragens, turbulento e indominável, na sua tarefa enorme e pessoal de desenhar a sua bacia hidrográfica, aos captar as suas imagens fotográficas, com a fleuma que então era necessária, se tenha sentido o demiurgo de uma região que lhe lembraria a sua. Joseph James Forrester nascera em Hull, Grã-Bretanha, quando os ingleses, com Wellesley de novo no comando, mantinham Lisboa ocupada (que era o seu grande objetivo nas ajudas a Portugal) e, se isso passava por expulsar do Norte o general Soult antes que ele decidisse descer à capital com os seus homens, mergulhando numa incómoda insurreição popular e das Juntas que nada lhes dizia, teriam de o fazer. A Guerra Peninsular, de resto bem decisiva na queda de um Napoleão regressado da mortandade da Rússia, estendeu-se nos anos que iam cobrindo a primeira infância de Forrester. Por um ou outro motivo Portugal era mais falado do que antes, mesmo quando a Convenção de Sintra se tornou pública. Forrester vivia então no pequeno porto fluvial de Hull, onde o pequeno rio que lhe deu nome, se unia com o selvagem rio Humber, que descia das montanhas e que, a partir de Hull ainda desceria 35 quilómetros até o mar. A cidade do Porto e o Douro, igualmente selvagem quando das cheias, era um prolongamento, mais grandioso, das suas origens. Inserido na sociedade portuense, bom desenhador e aguarelista, era ainda bom gravador e litógrafo, e assim, a planta corográfica do Douro era não apenas um trabalho científico como um exemplar estético que foi medalhado na Exposição Industrial de 1861 na Bolsa.

Fig. 1 – Foto de James Forrester, Auto-retrato, 1856, pasta J. Forrest. Col. Camila Castelo Branco in BARRETO, António (2014) - Douro – Rio, Gente e Vinho. Lisboa: Relógio d’Água.

A Fotografia era inevitável. São das mais antigas que se conhecem para o Douro (1856) por onde, inevitavelmente teriam passado em viagem outros fotógrafos. Em 1861, data em que a sua vida se torna mítica ao morrer na turbulência do Cachão da Valeira, afogado no rio que, julgaria, ter trazido para a civilização. Estes camponeses do Alto Douro são documentos antropológicos; neles vemos camponeses, um grupo de 3, um homem e duas mulheres num intervalo de trabalho; a refeição, numa mesa com toalha, são camponeses remediados. O autorretrato é perfeito, adequado na sua função de fotógrafo amador. Já a paisagem do Douro, uma paisagem mais do que uma informação, é muito bela, a composição enquadrada como uma pintura, o apontamento social dos dois tipos de barca para atravessar o rio, um acréscimo de entendimento. Não há o rio de socalcos, a imagem não é plenamente identificadora.

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Fig. 2 – Foto de James Forrester, 1856, Grupo de camponeses à mesa, pasta J Forrest , col. Camila Castelo Branco in BARRETO, António (2014) Douro – Rio, Gente e Vinho. Lisboa: Relógio d’Água.

Provavelmente Forrester tirou imensas imagens, que desconhecemos. Pelo que ficou, não criou um modelo do Douro, apenas imagens soltas de caráter diverso. Não construiu a cidade do Porto, ribeirinha e porto comercial, como F. Flowers. Forrester, amador fotográfico, tinha um olhar pictórico, que tanto de vê no seu autorretrato como na imagem da refeição da família camponesa, onde objetos alegóricos são dispostos para compor o motivo. Será Emílio Biel (Karl Emil Biel, nascido na Baviera em 1838), que vai instituir o grande modelo fotográfico do Alto Douro. Ele entendeu que o Alto Douro é

uma paisagem construída pelo homem, é esse Douro que organiza, é esse Douro que irá perdurar e desdobrar-se em imagens semelhantes, nomeadamente em Domingos Alvão, seu aprendiz e seu operador fotográfico. Com Alvão e depois de Alvão a ideia de Biel está presente e é o Douro. O Douro, com imagens suas e de Alvão ilustram os camarotes dos caminhos-de-ferro e até ao último quartel do século XX e as suas réplicas adaptadas a um humanismo de Alvão, mostram-se em todas as embaixadas e consulados de Portugal pelo mundo fora.

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EMÍLIO BIEL Emílio Biel chegou a Lisboa com 19 anos para aproveitar da proteção que a colónia alemã, nomeadamente a relacionada com a Baviera, poderia alcançar com a presença em Lisboa do rei D. Fernando de Saxe-Coburgo Gotta, segundo marido de D. Maria II. O rei (ao contrário do seu primo da Grã-Bretanha, consorte da rainha Vitória, o príncipe Alberto, D. Fernando ganhara o título de rei), que provara não ser um chefe do exército português satisfatório, dedicava-se à proteção das artes, chamando artistas para as suas enormes construções, como o palácio de Sintra, ou as obras permanentes no palácio real, na Ajuda. Como ceramista já viera trabalhar para si W. Cifka, que se tornou o fotógrafo privado da Casa Real. De resto é certo que a primeira missão Daguerre ao Brasil, teria vindo a Lisboa e produzido imagens fotográficas para D. Maria II e D. Fernando, ao que parece falhadas. Mas Biel veio apenas com comissões comerciais, de botões e artigos de metal, como colchetes. Três anos depois, Biel segue para o Porto, onde terá fundado a sua própria fábrica de botões de metal. Com o tempo insere-se completamente na vida portuense, auscultando as suas necessidades e os seus interesses. Afável, divertido e com tendência e estofo para um self-made-man, acompanha as iniciativas criadas pela revolução industrial que também na Alemanha se tornava decisiva. Biel sabia distinguir o progresso da novidade. Irá adquirir um telefone público, um automóvel, um fonógrafo de Edison e irá apostar na eletricidade. Importador de dínamos e lâmpadas alemãs, criará uma fábrica em Vila Real para montagem de iluminação elétrica, que rapidamente faz eletrificar inúmeras fábricas do Norte e Centro e diversas estações de comboio, como a de Serpa ou Santa Apolónia. Naturalmente a sua casa de fotografia no Palácio do Bolhão terá iluminação elétrica, o que vem a alterar o horário de trabalho das casas fotográficas. A fotografia será uma das iniciativas de Emílio Biel, talvez por ligação a outra iniciativa que desenvolvia, a produção de catálogos e livros. Torna-se sócio de um conhecido fotógrafo portuense, proprietário da Casa Fritz, que desenvolvera desde cedo a produção de grandes ampliações. Dois anos depois irá comprar a Casa Fritz, mas mantém o nome como garantia de um público certo. A produção fotográfica, com um operador reconhecido F. Brutt, orienta-se para a pu-

blicação de álbuns. Biel já publicara a obra de Camões, Os Lusíadas, em diversos formatos e materiais, ilustrado com desenhos de artistas alemães; uma tiragem de luxo foi oferecida a personalidades do Porto, mas havia outras tiragens mais baratas. Tudo indica que na nova Casa Fritz / Emílio Biel, que aluga na rua do Almada, teria a secção de impressão a vapor e a encadernação. A publicação respondia a encomendas e a interesses privados seus. Fez o levantamento da introdução e desenvolvimento do caminho-de-ferro no Norte e Centro, desde os anos setenta (O Douro Ilustrado, 1876 e Caminhos de Ferro do Norte), a exposições como a Distrital de Aveiro, (1988) e, em 1902 inicia uma coleção de álbuns grandiosos, A Arte e a Natureza em Portugal, como era comum no apogeu da Fotografia, enquanto ia publicando imagens suas na portada da revista O Occidente. Biel manteve sempre a disponibilidade para arriscar em novas iniciativas. Para complemento da fábrica de botões criou uma filial em Vila Nova de Gaia da companhia britânica Coats & Clarck e, consciente da falta de transportes para Gaia, fundou com o fotógrafo Cunha Moraes uma Companhia de lançamento e exploração de um comboio urbano da Batalha às Devezas. Os jornais publicaram que Biel conduziu o carro de lançamento. A área de Biel na cidade estendia-se desde uma nova zona de habitação (fábrica e armazém na rua da Alegria, habitação, ao casar, na rua que hoje é D. João IV e, pouco depois, a casa que manda construir, após a morte da mulher, filha do cônsul alemão no Porto, uma vivenda tipo chalet na esquina da rua da Alegria com a da futura Escola Normal). Daí podia facilmente descer à Casa Fotográfica na rua do Almada, que conservou até ao fim, ou à Nova Casa Biel, no 1º andar do Palácio do Bolhão, onde tinha atelier de luxo e recebia personalidades, como o Imperador do Brasil, Pedro II. Mas Biel tinha ainda a Quinta dos Veados no Gerês. Mandara trazer da Floresta Negra veados que acabaria por lançar na Serra. Grande colecionador de borboletas, captou espécies desconhecidas no Gerês, que divulgou internacionalmente e faziam parte dos seus álbuns, que ofereceu à Universidade do Porto. Ninguém sabe hoje deles. Grande amigo do país que o recebera e que tanto lhe ficou a dever, morreu em 1915, um ano antes do país, neutro na Primeira Guerra, ter visto a colónia de Moçambique invadida pelos alemães. Na sequência das retaliações, os residentes alemães são expulsos e os seus bens expropriados pelo Estado.

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Nem as suas inúmeras chapas de vidro, negativos de uma longa vida fotográfica, escaparam, eventualmente vendidas a uma fábrica de cerâmica como era habitual, dada a pureza do vidro empregue. Ficaram as publicações e raras chapas com Alvão e outros particulares. O lançamento do caminho-de-ferro tornou-se para Biel um trabalho monumental. Acompanhava os trabalhos e os percursos com uma carruagem própria atrelada ao comboio. Aí tinha o seu laboratório e, provavelmente os equipamentos, como plataformas e guindaste para as suas imagens do alto. São invariavelmente imagens poderosas, onde as novas estações, as pontes criadas para a passagem do caminho-de-ferro, os túneis abertos na rocha, se conjugam em envolventes que realçam o poder e a mestria do empreendimento. São imagens de informação e de estética, são, portanto paisagens fotográficas. Para o Douro Ilustrado criou o imaginário do Douro: o do trabalho da vinha e do azeite: as vinhas em socalcos ladeiam o rio com os seus barcos rabelos, as pipas e os marinheiros. Os diferentes momentos do

trabalho das vinhas, a sulfatagem, o crescimento das vides, trabalho de Inverno e de Verão, terminam no transporte das uvas pelos carreiros, na lagaragem e, por fim, a chegada ao Porto dos rabelos e o transporte em carros de bois para os armazéns. Não é apenas a produção do vinho do Porto, é a paisagem a ser produzida pelo homem.

Fig. 3 e 4 – Fotos de Emílio Biel, in Caminho de Ferro do Douro, 1900-1910

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Alvão e outros fotógrafos irão reproduzir, com esta ou aquela caraterística pessoal, este modelo, até aos

anos 90 do século XX.

Fig 5. Foto de Emílio Biel, Vindima, Qtª Vilarinho de S.Romão, “ A Arte e a Natureza em Portugal”, vol. IV

Fig 6. Foto de Emilío Biel, Carregadores, Quinta das Carvalhas, Alto Douro, “A Arte e a Natureza em Portugal, vol. IV

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DO SALONISMO A NOVOS CONCEITOS E OLHARES Na Península Ibérica, vivendo longas e persistentes ditaduras, o contacto com a evolução das artes e da fotográfica não era fácil, como não era fácil introduzir livros e revistas sem passar pela censura. Assim, tanto em Portugal como em Espanha, a partir do Pictorialismo desenvolveu-se uma arte fotográfica que se adaptava aos grandes motivos e ficções do Regime. Fotografia nacionalista, seguia de perto os valores considerados nacionais, a ruralidade, a juventude ou a velhice, a mulher, amparo do lar, a paisagem natural e marítima, tudo o que evitasse falar ou mostrar o operariado, a mulher moderna, a miséria do campo e a miséria em geral. Apoiadas pelas corporações e grémios (associações de trabalho do Estado) a fotografia ganhou o nome dos salões corporativos onde se exibia. Era o Salonismo, termo que, finda a ditadura, ganhou um sentido pejorativo que nem todos os seus fotógrafos mereciam. As Associações fotográficas ensinavam técnicas e produção de composições. O Salonismo era extremamente tecnicista, preocupava-se com todo o processo de produção a que subordinava o olhar estético. A certa altura, passou a usar um pouco dos efeitos de distância e da cinematografia do Modernismo, mas aceitou melhor o Humanismo Fotográfico que, pelo seu aspeto sentimental, escapava à Censura. A atualização da fotografia resulta desta negação do Salonismo e fez-se com o aparecimento de galerias e, nomeadamente, com os Encontros de Coimbra, no início dos anos oitenta. Fotógrafos marginalizados foram mostrados pela primeira vez no país, outros regressavam com a sua aprendizagem marcada por uma fotografia do homem comum urbano, uma crítica social e uma certeza da capacidade artística da imagem fotográfica. São os Encontros de Coimbra que, depois de divulgarem a melhor fotografia portuguesa e a que se fazia no mundo, encomendam portfólios de regiões portuguesas (o Norte, o Vale do Mondego…) a conhecidos fotógrafos internacionais.

LARRY FINK Terras do Norte inaugura nos Encontros em 1995; a encomenda começara com o Centro (O Vale do Mondego). As imagens publicitadas sobre o Douro nada têm a ver com o modelo de Biel, Alvão e os seus seguidores, devidas essencialmente a dois fotógrafos americanos de grande peso no mercado da Arte: Larry Fink (1941, que estudara com Lisette Model, arrojada fotógrafa do submundo americano) fazia parte das grandes coleções dos maiores museus e universidades americanas e europeias. A sua relação com o ensino superior (onde também lecionava) deve-se ao caráter antropológico da sua fotografia, à pesquisa de gestos e costumes, de sobrevivências ou alterações. As suas imagens nas terras vinhateiras do Douro, trouxeram-nos uma realidade da vida interior expressa em gestos e olhares que hoje tendem a desaparecer na grande massa homogénea do mundo urbano. Não é a instituição ou a função que se vêm (a vindima, o transporte, a pisa…), mas o mundo de cada um nas trocas sociais, os gestos de contacto, de afeto, de compreensão - a pose inconsciente.

Fig. 7 – Foto de Larry Fink, Portugal, Vindimas,(nº 15), 1995, CPF/DGA

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MARC KLETT Marc Klett (1952), também americano, geólogo e, desde 1977, diretor do Rephotographic Survey Project (desde 1977) investiga e fotografa o Oeste Americano para estudar a forma como o homem ocupou e ocupa o território não urbano. De um modo geral é um trabalho de pesquisa que de certo modo se insere na estética e ecológica via que é a Land Art americana e europeia que fora sensibilizada pelos primeiros alertas ecológicos do início dos anos setenta. É também um modo da arte ultrapassar o Humanismo por um novo conceptualismo. Devido a esta preocupação, Mark Klett faz parte dos New Topographics. Interessa-lhe a ocupação do território e também o modo como a paisagem se transforma em imagem e a imagem em paisagem. A sobreposição de negativos de imagens anteriores e a nova imagem efetuada do mesmo lugar preciso oferecem-lhe os resultados da pesquisa: nas suas imagens há sempre a memória dessa verificação, datada e localizada. Desde 1982 começou a expor em diversas cidades americanas, mexicanas, austríacas, australianas, francesas, espanholas e portuguesas, com um sentido pedagógico, despertar e alterar a sensibilidade uma nova geração frente à paisagem danificada ou geologicamente alterada. No Douro Klett descobriu as mudanças, a migração cultural (o espanta sonhos inesperado na paisagem) e deixou imagens que se tornaram novos ícones da paisagem que não é só da vinha, mas também imensa solidão, despovoamento e um inegável respeito pelo passado mítico.

Fig. 8 – Foto de Mark Klett, 1995, Burro a pastar, C.P.F./D.G.A

Fig. 9 Foto de mark Klett, Oliveiras, C.P.F./D.G.A.

GEORGES DUSSAUD, CAFFERY E FLOR GARDUÑO Georges Dussaud, em 1980 já visitara Portugal com a sua câmara de vouyeur; regressa em 1890 dentro do Projeto Europa Rural e visita o Norte. Ao modo de Cartier-Bresson é um humanista fotográfico que procura impressões sobre o homem em contexto. A sensibilidade expressa pelas suas imagens tornaram-no um modelo a imitar por quem percorre o Douro. Também Debbie Caffery (1948), americana da Louisiana, que levantou imagens no Vale do Mondego, tem interiores da vida comum no Douro (como Larry Fink de pescadores de Matosinhos), o que faz ultrapassar a antiga pose quase institucional do ambiente familiar. Flor Garduño, mexicana, antiga assistente do famoso Manuel Alvarez Bravo que percorreu

Fig. 10 Foto de Georges Dussaud, 1986, Quinta do Porto, Pinhão, C.P.F./D.G.A.

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principalmente o Minho e Trás-os-Montes, desceu até Arcos de Valdevez e Mondim de Basto, a velha terra dos mitos e do ouro procura a sobrevivência de velhos rituais sagrados adaptados à religiosidade atual. Flor Garduño capta imagens de devoção e morte, acentuadamente femininas, sendo as mulheres velhas guardiãs dos ritos. Não se trata de procissões, mas de devoções, fundamentalmente ligada a promessas pessoais, pagas em ex-votos de cera. A partir das duas últimas décadas do século XX a influência destes fotógrafos estrangeiros rivalizou com a influência perene de Biel/Alvão. O geometrismo dos campos de oliveiras, o quotidiano para lá da vinha, ou, do ponto de vista fotográfico diverso momentos decisivos de originalidade e afeto vão surgindo num novo reportório de paisagens e motivos dos fotógrafos nacionais.

Fig. 11 Foto de Flor Garduño, 1995, A Norte, CPF/DGA

12. Foto de Flor Garduño, 1995, A Norte, CPF/DGA

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OLHANDO PARA A EXPOSIÇÃO ENTRE MARGENS Vivemos, no campo da Fotografia como noutros campos, do experimentalismo crítico do Modernismo. Negando-o no discurso, já que vivemos o relativismo contemporâneo, procuramos, com a intencionalidade do olhar e dos sentidos essa totalidade da experiência que a Filosofia desacreditou, como se o vivido fosse o definidor da verdade. O tempo do agora, naturalmente, destrói a experiência da História como Progresso. Esta renovada temporalidade do presente ecoa, bem o sabemos, o momento de destruição em que Walter Benjamin via o objeto da tradição como inautêntico. Inautêntico porque transmitido, a autenticidade vive no local da presença/existência, aí se embrenha na vida. Quando a presença falta no que aconteceu, só fica o local de luto e de ideologia. Hoje quer-se o aqui e o agora dos ecrãs da realidade multimédia. A informação instantânea, a pesquisa on-line, a imagem mais fácil que o discurso. Retribui-se essa informação com outra informação indireta sobre si mesmo. As selfies que se exigem dos políticos calorosos são o reflexo da rede omnipresente, onde ser é estar. Estar em rede implica a perda da aura, do mistério. E as citações do passado, desprovidas do contexto que as explica, das emoções que o produziram chegam-nos fragilizadas e envoltas no mistério da sua real significação, sentidas como ocultação. Vestidas do presente não perdem a estranheza. E então neste contemporâneo cognitivo que analisa e faz analisar, onde a beleza foi deliberadamente excluída para evitar a contemplação estéril e pouco eficaz, a ideia de beleza emigra para a estranheza e a exaltação dos sentidos, as emoções indeléveis no cognitivo porque se guardam como o estado do corpo na perceção, recriam um encantamento no seu sentido mais mágico, que é o da sedução e do percepto e surgem, aqui e ali, em algumas imagens fotográficas. A estranheza pode constituir-se quando se cruzam com temas antropológicos, míticos ou de sentimento religioso, pode surgir nas margens do quotidiano antes de se tornar em moda. Os fotógrafos estrangeiros que estiveram presentes na exposição Entre Margens, na segunda década do século XXI deste novo milénio não trouxeram um modelo novo (tal como os portugueses ainda o não criaram ao olhar o Douro), mas novas informações. Estão informados sobre as vertentes pós-modernas, da Land Art, dos New Topographics,

do quotidiano dos gestos, da procura da autenticidade. Estão vigilantes sobre o novo e arriscam a procura da estranheza: o inglês Childe Mathews, fugindo à celebração ritual, (o tema antropológico) da celebração da festa dos Caretos, coloca-os num quotidiano a que são alheios e pode insinuar o sentimento dessa estranheza.

Fig. 13 Foto de Chloer Dewe Mathews, Summoning the Caretos, 2013, Entre Margens, Museu do Douro

Dato Doraselio, georgiano, pesquisa a situação do emigrante das vindimas, através das suas marcas culturais.

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Fig. 14 Foto de Dato Daraselia, Saudade de Emigrante, 2013, Entre Margens, Museu do Douro

O brasileiro Gil Sibin devolve-nos, aureolados pelo mistério do isolamento e da perseverança, o culto religioso dos lugares perdidos do Douro montanhoso. A residente no Porto, a francesa Rebeca Bonjour, faz tema do exuberante culto do corpo de uma juventude cada vez menos marginal. Os montes e a geometria das vinhas, do trabalho e do esforço dissipam-se em imagens de instantes de intervalo. Aí o corpo esquece os valores do investimento de si, da competição, do impulso da rede. Nunca a sociedade foi tão disciplinar e o tempo tão sistemática representação de si. E talvez por isso mesmo, num espaço em que o tempo se perde num esgotamento do aprendido, o xisto, que criou e justificou as estrelas dos montes do Douro, seja ainda e de novo, a plataforma do descanso do guerreiro, esquecido da rede que o

Fig. 15 Foto de Gil Sibin, Oratio #3, Via Sacra, 2013, Entre Margens, Museu do Douro

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Fig. 17 Foto de Larry Fink, Portugal, Vindimas, 1995, CPF/ DGA

Fig. 16 Foto de Rebeca Bonjour, Microcosmos, 2013, Entre Margens, Museu do Douro

comanda. É, ainda, uma imagem de Larry Fink: um espaço vinhateiro de novos equipamentos e novas atitudes: a rapariga deita-se a descansar na placa de xisto: é a história do metamorfismo que faz parte da história do universo, do nosso planeta, da cultura da vinha e do nosso olhar.

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Painel 1

Douro, Um corredor de Povos e Culturas Pedro Pereira Mário Barroca Amândio Barros

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Nota biográfica: Pedro Abrunhosa Pereira, Arqueólogo e Investigador do CITCEM (FLUP/ FCT) e UMR 5138 ArAr (MOM/CNRS). Licenciado em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Mestre em Arqueologia Clássica e Doutorado em História, Línguas e Arqueologia Antigas pela Université Lumière Lyon II, em França, com a dissertação Économie et production du vin dans l’Antiquité tardive dans la Lusitaine romaine. Arqueólogo independente, colabora frequentemente com várias empresas de Arqueologia preventiva, sobretudo em fases de projecto, construção e fiscalização. É autor de dezenas de comunicações, capítulos de livros e artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras sobre ceramologia e vitivinicultura clássicas. É co-director de vários projectos de investigação no Vale do Douro, entre os quais o Estudo das Ocupações Pré e Proto-Históricas na Área do Concelho da Mêda, o Projecto de Investigação sobre a Ocupação Humana em Pegarinhos, Alijó ou o Projecto de Investigação sobre o Castro S. João das Arribas, Miranda do Douro.

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Estrangeiros no Vale do Douro Os romanos na transduriana provincia Pedro Abrunhosa Pereira Arqueólogo. Investigador do CITCEM (FCT-FLUP) e da UMR 5138 – ArAr(CNRS-MOM)

Resumo: Sempre que falamos da história do Vale do Douro, a romanização é um marco historiográfico inultrapassável. Se excluirmos as primeiras vagas de hominização e, consequente, antropificação e apropriação do território e paisagem pelo ser humano, a chegada de Roma ao Vale do Douro é, definitivamente, a primeira grande vaga de imigração para este território. São inúmeros os investigadores que se dedicaram, desde que se começou a escrever a história do Vale do Douro, ao estudo da romanização. Leite de Vasconcellos, Rocha Peixoto, Carlos Teixeira, Francisco Manuel Alves, Ricardo Severo ou Fernando de Russel Cortez, estão entre os primeiros de um vasto rol de investigadores que se dedicará ao tema do domínio romano do Douro. Será a partir dos estudos destes homens que serão feitas as primeiras elações sobre em que consistiu exactamente a presença de Roma na região e as suas heranças. Desde então, e sobretudo nas últimas décadas, o trabalho de investigação sobre a presença romana no Douro tem vindo a intensificar-se, seja devido a factores culturais ou económicos. Infelizmente, ainda hoje persistem muitas questões em aberto sobre como se processou a romanização do Douro, qual o intuito de estabelecer uma presença por Roma neste território, quais os locais centralizadores no vale, se é que existiram. A transformação da paisagem nos séculos seguintes ao domínio romano do Douro e, simplesmente, o esquecimento humano, fazem com que hoje apenas possamos deslindar algumas das respostas a estas questões através da Arqueologia. Palavras-chave: Romanização; Vale do Douro

Abstract: Every single time we write about the Douro Valley’s history, Romanization is an unsurpassable historical mark. In effect, with the exclusion of the first hominization waves and consequential anthropofication and territorial and landscape appropriation by the human being, the arrival of Rome to the Douro Valley definitely is the first major human immigration wave to this territory. There have been numerous researchers over the last century that have written on the Douro Valley’s history. Names such as Leite de Vasconcellos, Rocha Peixoto, Carlos Teixeira, Francisco Manuel Alves, Ricardo Severo and Fernando de Russel Cortez are among many others that have dedicated themselves to this research. The first hints on how the Romans arrived and lived in the Douro Valley and on their legacy. Research on roman presence in this region has augmented, for cultural or economic reasons, for the last few decades. Unfortunately, even today many questions are left unanswered on the Romanization process of the Douro Valley: why would Rome establish such a strong presence here; which were, if any, the centralizing areas in the territory? The landscape’s transformation process that followed the roman presence in the Valley, in conjunction with the oblivion that followed make archaeology as the only possible way of answering these questions.

Keywords: Romanization; Douro Valley.

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história de Roma, desde cedo, suscita a curiosidade de estudiosos, que não possuíam forçosamente algum tipo de formação em ciências sociais. Serão estes historiadores e arqueólogos amadores os pioneiros que irão começar a desvendar uma história ainda pouco conhecida, que traça os primeiros passos dos romanos no Vale do Douro, trazendo novos produtos, matérias primas e conhecimentos com que irão ajudar a moldar a génese humana deste território. O primeiro estudioso cujas notas chegaram aos nossos dias a abordar a Antiguidade no Douro aparenta partir da mão de Joaquim Leite de Vasconcellos, médico e arqueólogo, que publica pela primeira vez uma referência à Quinta da Ribeira (Tralhariz, Carrazeda de Ansiães) em 1900. No entanto, outros rapidamente lhe seguirão os passos: Henrique Botelho, clérigo da região de Alijó, publica extensivamente sobre esse território; Ricardo Severo, arquitecto e arqueólogo, que conta com a escavação do sítio da Quinta de Nossa

Senhora da Ribeira (Tralhariz, Carrazeda de Ansiães) ou do sítio da Quinta do Noval (Pinhão) como alguns dos seus trabalhos mais conhecidos; Fernando Russel Cortez, que escava o primeiro lagar vinícola clássico descoberto no Vale do Douro, no Alto da Fonte do Milho (Canelas); entre tantos outros desde então. No entanto, é importante frisarmos que, embora muito tenham sido os historiadores e arqueólogos que se debruçaram sobre o tema da romanização do Vale do Douro, ainda sabemos muito pouco sobre como se realiza o processo, entrevendo apenas alguns dados a partir da Arqueologia e paralelos com outras regiões. Todavia, devemos sempre ter presente que o processo de romanização não é unilateral. Tanto as populações indígenas adquirem elementos técnicos, culturais e sociais a partir de Roma como vice-versa. Estas adaptações técnicas são bem visíveis em muitos sítios arqueológicos estudados no Douro: Rumanil I (Murça do Douro), por exemplo, onde uma estrutura de lagar é construída directamente sobre um rochedo granítico e a partir da qual toda uma pequena exploração agrí-

Imagem 1: Quinta de Nossa Senhora da Ribeira (Cliché de Ricardo Severo (SEVERO, 1913).

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Imagem 2: Mapa com os principais grupos étnicos e linguísticos da Península Ibérica durante a romanização (a partir do mapa de Luís Fraga da Silva, Arqueotavira).

cola aparenta desenvolver-se; ou ainda Trás do Castelo (Vale de Mir), onde as estruturas de transformação de matérias-primas da exploração agrícola são construídas em patamares, adaptando-se ao terreno. Estrabão, na sua obra Geographia, descreve-nos alguns dos povos mais importantes presentes no território duriense “(…) e a Este encontramos os territórios dos Carpetanos, dos Vetões, dos Vaceus e dos Galaicos, para não referir outros que os povos mais conhecidos, uma vez que existem outros que nem merecem ser nomeados, pela sua pouca importância e obscuridade(…)”1. A motivação para este autor não nomear todos os povos que aí vivem parece-nos óbvia: nem todos os povos são discerníveis para um romano e a sua 1 

Estrabão, GEO, L. III/III/3.

miscigenação e aculturação já se teria iniciado, sendo extremamente complexo compreender quais seriam estes outros povos. No entanto, foram muito poucas as informações sobre os povos autóctones do Vale do Douro que sobreviveram até aos nossos dias, sendo estes dados provenientes sobretudo da Arqueologia. Uma vez que estes povos não possuíam uma escrita endógena, a maioria das informações contemporâneas que possuímos provêm de fontes clássicas. Nos nossos dias ainda não conhecemos todos (nem provavelmente conheceremos) os povos que viviam nas margens do Rio Douro antes da chegada e implantação da estrutura administrativa romana na região. O processo de romanização faz parte de um esque-

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ma complexo. O caso do Douro não foi diferente. No entanto, para falarmos desta questão devemos, antes de mais, tentar compreender o que significa este conceito. O conceito de romanização é utilizado normalmente com uma conotação negativa, de forma recorrente na historiografia tradicional. Esta perspectiva tem vindo a ser aceite desde há dois séculos uma vez que, durante muito tempo na Península Ibérica, foi aceite que a cultura romana se impôs a toda uma série de culturas, endógenas ou não, mas consideradas como menos evoluídas culturalmente. O conceito tradicional de romanização define então que as culturas locais adoptariam elementos culturais romanos numa perspectiva unidireccional. Ao longo dos últimos anos, a relação entre as elites romanas e os povos autóctones tem vindo a ser analisadas a partir de novas perspectivas e outros conceitos foram adoptados para tentar explicar o processo de romanização, como dominação, resistência ou negociação. Os grupos de indivíduos que actuam neste processo são vistos como entidades abertas e mutáveis, alterando-se assim a perspectiva estática da historiografia tradicional.

Esta tese é fruto da historiografia actual, demonstrando uma vontade de libertar o conceito de romanização do de colonização e de lhe fornecer uma base teórica mais adaptada ao mundo global dos nossos dias. Devemos sempre ter em conta estas duas teorias, cada uma com os seus defeitos e virtudes. Apenas assim será possível compreender, em conjunção com as informações conhecidas de cada território, como é que a romanização realmente sucedeu. A conquista e domínio do território da Península Ibérica por Roma tem o seu início no século III a.C., durante a segunda guerra púnica. Os territórios dominados por Cartago, sobretudo na actual costa catalã, foram conquistados pela República e inseridos na lógica provincial. Inicialmente, a Península é dividida em duas províncias, a Hispânia Citerior e a Hispânia Ulterior. Esta divisão continuará até meados do século I, quando são criadas as províncias da Bética, Lusitânia e da Hispânia Citerior Tarraconensis. Anteriormente a esta divisão, devemos referir dois momentos muito importantes para a região do Douro nesta fase da Antiguidade: a expedição de Decimus Junius Brutus e as Guerras Cântabras.

Imagem 3: Evolução administrativa da Península Ibérica, século IIº a.C. a IVº d.C.

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No final da segunda guerra púnica, em 197 a.C., os avanços romanos para o interior da Península Ibérica são extremamente tímidos. Este é um momento de razias e pequenos ataques coordenados pelas forças militares romanas estacionadas no território. Decimus Junius Brutus, governador da Hispania Ulterior, partirá em socorro de Marcus Lepidus, que havia atacado Pallantia sem a autorização do Senado, em 135 a.C.. Esta é a primeira incursão documentada tão a Norte, chegando e atravessando o Vale do Douro português. Será a partir desse momento que se iniciará também o conflito chamado como Guerras Cântabras ou Cantábricas, embora envolvam vários povos contra Roma. A disputa durará até 19 a.C. e, durante esta guerra, serão criados vários pactos de hospitalidade, alianças e relacionamentos económicos e militares com vários povos. É nesse âmbito também que surge o Édito de Bierzo2, documento único, que refere uma “transduriana província”, uma província para além do Douro. Esta poderá ter sido uma província artificial, criada devido a uma necessidade de atribuir nomenclaturas a territórios menos latos ou simplesmente uma conveniência militar. Após a conquista dos territórios do extremo Norte da Península Ibérica, Augusto declarará que a pax romana foi imposta nestas províncias, efectivamente dominadas por Roma.

Ao longo dos séculos seguintes, a Península Ibérica irá sofrer muitas mutações administrativas, com a criação de novas províncias, como a Galaecia. No entanto, uma das fronteiras que restará imutável será a do Vale do Douro. Este facto irá contribuir para uma certa estabilidade da estrutura administrativa em torno do rio mas também para os povos que aí sempre habitaram e para os novos colonos, ampliando e reforçando o fenómeno da romanização ou aculturação romana. O rio Douro é-nos descrito, sucintamente, por Estrabão: (…) o Douro que, vindo de longe, passa próximo de Numância e muitos outros povoados dos Celtiberos e Vaqueus, sendo navegável por grandes embarcações até 800 estádios de distância (…)3. Esta referência adquire significado quando sabemos que a distância à qual o autor clássico se refere, cerca de 148.000 m, coincide com o “Cachão da Valeira”, obstáculo à navegação destruído por ordem do Marquês de Pombal, em 1780. Não obstante a existência de uma navegação limitada, a nascente deste obstáculo seria necessária uma trasfega de eventuais produtos que subissem ou descessem o rio. No entanto, a existência de produtos de importação, tais como Terra Sigillata Hispanica, produzida na zona da actual Rioja, em sítios arqueológicos de cronologia romana estuda-

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CANTO, 2001.

Estrabão, GEO, L. III/III/5

Imagem 4: Édito de Bierzo e respectiva transcrição (CANTO, 2001). A referência à Transduriana Provincia encontra-se a vermelho.

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Imagem 5: Importações romanas descobertas nos últimos anos: fragmentos de sigillata hispanica provenientes de Vale de Mir, Alijó e da Coriscada, Mêda; fragmento vítreo com representação de um tempo, proveniente da Coriscada, Mêda.

dos no Vale do Douro, como é o caso de Trás do Castelo (Pegarinhos), Alto da Fonte do Milho (Canelas) ou Rumansil I (Murça do Douro), leva-nos a crer que existiria, pelo menos, uma navegabilidade limitada nesta zona do Douro. Entre outros casos, a existência de uma marca de oleiro, «LF», em fragmentos de dolia (ou talhas) idêntica, tal como a própria pasta utilizada para produzir as peças, no Alto da Fonte do Milho (Canelas), Rumansil I (Murça do Douro) e no Zimbro II (Murça do Douro) leva-nos a crer que este tipo de peça poderá ter sido transportada via fluvial4. 4  Tal como defendemos anteriormente, tanto em trabalhos académicos (PEREIRA, 2014) como em apresentações (PEREIRA e MORAIS, 2015).

O processo de romanização decorre de uma longa assimilação. Através da inserção de novos produtos no mercado, novas formas e pastas de cerâmicas, como as terra sigillatas, ou pastas vítreas, elementos de prestígio e utilitários e produtos alimentares, como o vinho, o azeite ou os cereais. Criam-se novos laços comerciais que fortalecerão o domínio romano do território. Inicialmente, estes novos produtos são apenas importados, mas rapidamente se imiscuem na vida quotidiana das populações endógenas; são criadas novas estruturas de transformação de matérias-primas, surgem estruturas de exploração agrícola, com inovações como celeiros quadrangulares (horrea) e lagares; a paisagem altera-se, com a utilização de novos utensílios, ferra-

Imagem 6: Mosaico do triunfo de Baco (Vale do Mouro, Coriscada) e restituição do templo do fórum de Marialva (Créditos gráficos: equipa do ESPROCOM e Pierre André).

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Imagem 7: Restituição do interior da pars urbana de uma das novas villae romanas que popularam a paisagem duriense durante o período romano, Vale do Mouro (Coriscada) (Créditos gráficos: Pierre André e Damien Tourgon).

mentas, novas colheitas e formas de as plantar e irrigar. Surgem vinhas e olivais e começa-se a produzir mel em colmeias, produto que, aparentemente, apenas era recolhido anteriormente à chegada dos romanos. São também introduzidas novas espécies de animais domesticados, como a galinha ou o suíno. São explorados recursos que, até então, eram apenas reaproveitados a uma escala reduzida, como o ouro (como em Três Minas, Vila Pouca de Aguiar) ou o ferro (na região de Moncorvo, por exemplo). A nova administração romana traz consigo novas formas de apropriação do território. A arquitectura indígena do Douro altera-se, com a introdução de novas formas de construção, novos materiais (como a argamassa de cal, como é visível no sítio de Trás do Castelo, Pegarinhos, ou a utilização de pedras exógenas à região, como se pode observar em Vale do Mouro, Coriscada), começando-se a utilizar ladrilhos, telhas e tijolos, quando anteriormente as coberturas eram realizadas em materiais perecíveis. São pavimentadas vias e surgem cidades, onde os novos edifícios demonstram o domínio técnico da nova administração. O processo de romanização assenta na assimilação cultural e religiosa: os cultos indígenas são adaptados à nova realidade religiosa (processo, aliás, comum durante a romanização de novos territórios), são erigidos templos, como em Marialva5 ou Panóias (Vale de Nogueira)6 e são vulgarizadas formas de arte com os novos motivos religiosos, como sucede com o mosaico de Baco em Vale do Mouro (Coriscada) ou as inúmeras aras com dedicações aos “Deuses Manes” (como aquela preservada na capela privada da Quinta de São Jorge, Favaios) ou a outras entidades, como a ara des5 

SÁ COIXÃO, 2009.

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SILVA, 1986.

coberta durante os trabalhos de escavação na Casa do Infante, no Porto, dedicada a Neptuno. Surgem também novos fenómenos litúrgicos, com os enterramentos e incinerações a serem adoptadas pelas populações autóctones. Será também durante o domínio romano que será introduzido no Douro o Cristianismo, como culto, até se tornar na religião oficial do Império. No século V, com a desagregação do Império Romano do Ocidente, o domínio romano sobre o território do Douro cessa. São vários os autores da época que se dedicam ao tema, embora sempre com uma perspectiva antagonista sobre os novos povos que chegam ao território. Hidácio, bispo de Chaves, é extremamente crítico à chegada destes povos, comparando o caos que os segue ao fim do mundo, enquanto que Isidoro, bispo de Sevilha, que escreve cerca de um século depois, afirma que os novos povos são como quatro pragas, “(...) sendo cumprida a predição divina que há muito tinha sido escrita pelos profetas.”7. O registo arqueológico não aparenta comprovar este clima de destruição que estes homens da Igreja defendem. No entanto, devemos ter em conta dois pontos importantes: estes homens foram educados numa perspectiva latinista, vendo Roma como o centro do mundo; são homens da Igreja cristã, ainda algo primitiva, que crêem na predição do fim do mundo, antecipado por pragas, num momento próximo. Este último ponto é bem visível nos escritos de Isidoro, que aparenta tentar explicar o porquê da ênfase pessimista adoptado por Idácio, que escreve durante o processo de desagregação administrativo romano e nos primeiros anos do domínio Suevo do Noroeste peninsular. O domínio romano efectivo do Vale do Douro durará cerca de quatro séculos e marcará para sempre esta região. A vitivinicultura, factor pelo qual é melhor 7  Sancti Isidori, Hispalensis Episcopi, Historia de Regibus Gothorum. Wandalorum et Suevorum. in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, t. LXXXIII, Paris, 1862, cols. 1076 e 1077.

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reconhecida a região no resto do mundo, é uma das heranças fulcrais que Roma deixará. Mas outras, como o desenvolvimento massivo de técnicas arquitectónicas e construtivas, da rede viária e, sobretudo, da prática agrícola, terão eco até aos nossos dias. A organização administrativa, que será posteriormente adoptada, pelo menos parcialmente, pelos Suevos, deixará a sua marca no novo mundo medieval. Devemos mesmo verificar que a emulsão religiosa nos cultos romanos e, posteriormente, na liturgia cristã, irão ajudar a moldar o esquema social e cultural dos nossos dias.

BIBLIOGRAFIA: ALARCÃO, J. de (1988) – O domínio romano em Portugal. Europa América. Mem Martins. ALMEIDA, C.A.B. (2006) – A villa do Castellum da Fonte do Milho – uma antepassada das actuais quintas do Douro. Douro, estudos e documentos, 21. GEHVID. Porto. CANTO, A. M. (2001) – Rarezas epigráficas e históricas en los nuevos éditos augusteos de El Bierzo. In El bronce de Bembibre. Un edicto del emperador Augusto. Museo de León (Actas de la Reunión sobre el Edicto de Augusto hallado en El Bierzo, Museo de León, 1011 de octubre de 2000), edd. L. Grau Lobo y J.L. Hoyas, JCL, Estudios y Catálogos 11, Valladolid, 2000. COIMBRA, F.A. (1992/93) – Ricardo Severo e o desenvolvimento da Arqueologia no Porto. Portugália, Nova Série, Vol. XIII / XIV, Faculdade de Letras, Porto. CORTEZ, F.R. (1948) – Arqueologia da região produtora do Vinho do Porto. IVDP, Caderno nº100, Porto. FERNANDES, A. A. – Paróquias Suevas e Dioceses Visigóticas. Viana do Castelo. 1968. PEREIRA (2014) - L’économie et production du vin romaine dans la Lusitanie pendant l’Antiquité Tardive. Thèse doctorale présenté dans l’Université de Lyon II, orienté par Mathieu Poux. Policopiada. (Ed. Afrontamento, no prelo) PEREIRA, P. e MORAIS, R. (2015) - Estudo formal e por cromatografía de gases de dolia romanos no actual território português. Ex Officina Hispania – Cuadernos de la SECAH, 2. Bilbao. SÁ COIXÃO, A. de (coord.) (2009) – Carta Arqueológica do Concelho de Mêda. Câmara Municipal da Mêda: Mêda. SILVA, A. C. da (1986) – A Cultura Castreja no Noroeste de Portugal. Museu Arqueológico da Citânia de Sanfins. Paços de Ferreira. Fontes clássicas: Estrabão - Strabon - Géographie (GEO). Tome II (livres III et V - Espagne-Gaule) (trad. F. Lasserre, 2003). Les Belles Lettres, Paris. Sancti Isidori, Hispalensis Episcopi, Historia de Regibus Gothorum Wandalorum et Suevorum. In J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, t. LXXXIII, Paris, 1862, cols. 1076 e 1077.

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MUÇULMANOS E CRISTÃOS NO DOURO PORTUGUÊS (SÉC. VIII-XI) Mário Jorge Barroca DCTP-FLUP / CITCEM

Resumo: Entre os séculos IX e XI o vale do Douro assumiu-se como espaço de fronteira, ora controlado por muçulmanos, ora controlado por cristãos. A situação apenas conheceria uma evolução definitiva nos meados do século XI, com as campanhas militares de Fernando Magno, que culminaram com a conquista de Coimbra (1064). Nesta conferência são abordados alguns testemunhos da presença islâmica no vale do Douro, auscultando-se fontes documentais coevas (das crónicas muçulmanas aos registos analísticos cristãos), testemunhos toponímicos e vestígios arqueológicos, numa tentativa de aproximação a tempos remotos e conturbados, normalmente silenciados na memória histórica. 

Abstract: Between the 9th and 11th centuries, the Douro valley became a frontier space, sometimes controlled by Muslims, others by Christians. The situation would only have a definitive evolution in the middle of the 11th century, with the military campaigns of Fernando Magno, which culminated with the conquest of Coimbra (1064). In this conference, some testimonies of the Islamic presence in the Douro Valley will be analyzed, whilst considering Muslim and Christian chronicles, toponymical testimonies and archaeological remains, in an attempt to approach remote and troubled times, usually silenced in collective memory.

Palavras-chave: Muçulmanos – Cristãos – Vale do Douro - Reconquista

Keywords: Muslims – Christians – Douro Valley – Reconquest

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Nota biográfica: Mário Jorge Barroca É doutorado em Arqueologia e Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Departamento de Ciências e Técnicas do Património). É investigador do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória»), unidade de I&D 4059 da FCT. Os seus interesses de investigação centram-se na área da Arqueologia Medieval, abrangendo o estudo da arquitectura militar (castelos medievais e fortificações modernas), do armamento medieval, da arquitectura senhorial (particularmente as residências senhoriais fortificadas), dos vestígios funerários e da Epigrafia Medieval portuguesa, embora também com incursões nos domínios da arquitectura religiosa (pré-românica e românica) e da iconografia. É autor de mais de 130 estudos (entre livros e artigos de especialidade), de entre os quais de salientam: Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), 4 vols., Lisboa, FCG-FCT, 2000; História da Arte em Portugal. O Gótico, Lisboa, Ed. Presença, 2002 (em colab. com Carlos Alberto Ferreira de Almeida); Nova História Militar de Portugal, vol. 1, Coord. de José Mattoso, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003 (em colab. com J. G. Monteiro e L. M. Duarte); A Condessa-Rainha Teresa, Lisboa, Círculo de Leitores, 2012 (em colab. com Luís Carlos Amaral); Dicionário de Arqueologia Portuguesa, Porto, Figueirinhas, 2012 (Coord. de Jorge de Alarcão e Mário Barroca); e Paço de Giela. História de um Monumento Arcos de Valdevez, 2015 (Coord. de José Augusto Pizarro e Mário Barroca).

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presença muçulmana nas duas margens do vale do Douro português, entre os inícios do século VIII e os meados do século XI, tem sido um tema quase esquecido na historiografia portuguesa. Os testemunhos, documentais e arqueológicos, da presença muçulmana são substancialmente mais importantes nas áreas mais meridionais do território português, sobretudo a região de Lisboa e o espaço a Sul do rio Tejo, zonas que têm conseguido cativar o interesse dos investigadores nacionais. Só muito recentemente a atenção destes começou a incidir sobre o espaço compreendido entre os rios Tejo e Douro8. E só de forma ainda mais esparsa incidiram sobre o território a Norte do Douro, onde os achados são muito escassos9. O tema está, por isso, longe de ser fácil. Mas vale a pena olhar com alguma atenção os dados que, ainda que de forma muito lacunar, nos podem ajudar a compreender a importância da presença muçulmana no vale do Douro. A chegada das forças muçulmanas ao vale do Douro, na esteira da invasão de 711, ocorreu seguramente ainda na segunda década do século VIII. Em La conquista de al-Andalus (Fath al-Andalus), regista-se que as campanhas de Tariq Ibn Ziyad atingiram, ainda em 711-712, o Noroeste da Península: De allí regresó a Toledo, para posteriormente acometer contra territorio de Yilliqiya, llegando hasta la ciudad de Astorga. Luego retorno a Toledo – esto ocorría en el año 93 [711-712] – y permaneció alli hasta la llegada de Musa b. Nusay 10. A Yilliqiya era a designação dada pelas fontes muçulmanas ao território da Galiza, tomado numa aceção lata, correspondente grosso modo ao Noroeste Peninsular, normalmente a Norte do Douro. A cidade de Astorga foi atingida em 714 e sabemos que a zona da Beira, em torno de Coimbra e de Conímbriga, já estava dominada em 716. Por isso, podemos assumir que o espaço do vale do Douro português deve ter sido alcançado pelos exércitos muçulmanos logo nessa primeira década de presença islâmica na Península, incluindo o controle de Burtukal, o pequeno burgo episcopal da foz do rio.

Durante século e meio esta zona permaneceu sob domínio muçulmano, numa primeira fase confiada sobretudo a comunidades de origem berbere. Estas viram sempre com algum desconforto a forma como se realizara a repartição dos espaços peninsulares, com os territórios economicamente mais interessantes a serem atribuídos aos árabes. As rivalidades entre as duas etnias foram-se acentuando e as fontes documentais árabes não escondem as reservas com que os berberes eram olhados pelos árabes, como se reflete no Fath al-Andalus: Los beréberes infieles son los piores infieles, pues no son gente del Libro ni están sujetos a la ley divina. Assimismo, los beréberes musulmanes son los peores musulmanes. La mayoria de ellos son una desgracia.11. Em 741 eclodiu a revolta berbere na Yilliqiya: Pero los beréberes también comenzaron a mostrarse insolentes con los árabes en al-Andalus (…). En al-Andalus se levantaron contra los árabes que vivian en Yilliqiya, Astroga y las ciudades de más llá de los desfiladeiros, los combatieron y los expulsaron, porque los beréberes eran numerosos en esos lugares y pocos los árabes.12. A centúria que medeia entre os meados do século VIII e os meados do século IX é particularmente parca em notícias documentais para o Noroeste peninsular e para o vale do Douro português. Mas há dois testemunhos para os quais gostaríamos de chamar a atenção. O primeiro diz respeito a três documentos do século X, balizados entre 944 e 990, que se reportam a uma povoação de nome Aldoar e a localizam “subtus castro Mafamudi”13, sob o “monte Mahamudi”14 ou sob o “mons Mahamut”15, sempre no “territorio portucalense”. A. de Almeida Fernandes e Carlos Alberto Ferreira de Almeida identificaram esse topónimo com Aldoar, na cidade do Porto16. Domingos A. Moreira, no seu corpus documental das freguesias da Diocese do Porto, iniciou a ficha relativa à paróquia de S. Cristóvão de Mafamude (Vila Nova de Gaia) com o diploma de 110017, evitando as referências documentais do 11  Fath al-Andalus, 2002: 44-45. 12  Fath al-Andalus, 2002: 42-43.

8  Algumas reuniões científicas recentes espelham este novo interesse. Cf. BARROCA & FERNANDES, 2005 ou DE MAN & TENTE, 2014, mas também algumas comunicações apresentadas no congresso de Aljezur – GOMES, GOMES & TENTE, 2011.

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PMH, DC 54 = LP 526, de 944.

14 

PMH, DC 156 = LP 208, de 989.

15 

PMH, DC 159 = LP 366, de 990.

9  Cf. BARROCA & SANTOS, 2006: 310-317; CARNEIRO & GOMES, 2005: 108-111, 163-164 e 191-192.

16  Cf. FERNANDES, 1962: 198; ALMEIDA, 1978: 38 (nº 96) (onde se referem apenas dois diplomas, PMH DC 156 e 159).

10  Fath al-Andalus, 2002: 16-17.

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PMH, DC 950.

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século X18. Mas, no verbete relativo a S. Martinho de Aldoar (Porto), exarou o pergaminho de 94419, não tendo portanto dúvidas em o associar à povoação da margem direita do Douro20. Posição distinta tiveram José Mattoso, Luís Krus e Amélia Aguiar Andrade, que identificaram o Castro Mafamudi com Mafamude, em Vila Nova de Gaia21, opinião também perfilhada por J. A. Gonçalves Guimarães22. Pela nossa parte, em estudo recente, optamos pela identificação com Aldoar, povoação hoje incorporada dentro do espaço urbano da cidade do Porto23. De forma muito sintética, diríamos que os autores que optaram por identificar o Castro Mafamudi do século X com Mafamude (Vila Nova de Gaia), valorizaram a existência da povoação com aquele nome em Vila Nova de Gaia e o facto de não se conhecer o topónimo Mafamude na zona de Aldoar (Porto). E que aqueles que preferiram localizar o Castro Mafamudi junto a Aldoar, na margem Norte do Douro, valorizaram a inexistência do topónimo Aldoar na zona de Vila Nova de Gaia. Pela nossa parte, aceitamos a sua localização na margem Norte do Douro tendo em atenção o facto de, no diploma de 944, se indicar o orago da igreja a que se reportava o pergaminho: “… ecclesiam vocabulo Sancti Martini Episcopi et Sancti Michaeli Archangeli in villa que vocitant Alduarii fluvio Dorio territorio portugalensis subtus Castro Mafamudi …”24. Como o orago de Aldoar (Porto) é, ainda hoje, S. Martinho, parece-nos seguro que o diploma se reportava a esse templo. Mafamude tem por orago S. Cristóvão e, nas suas imediações, mais próximas ou mais afastadas, não se conhece o topónimo (ou micro-topónimo) Aldoar. E como não conhecemos casos de povoações da margem Norte do Douro que estivessem dependentes de castelos implantados a Sul do rio, para mais separadas por uma distância considerável25, parece-nos que se deve equacionar a possibilidade de ter havido um castro assim designado na margem Norte do Douro, nas imediações de Aldoar. Atente-se que 18  MOREIRA, 1985/1986: 115. No entanto, a povoação de Mafamude (Vila Nova de Gaia) já se documenta em 922 – cf. PMH, DC 25. 19  PMH, DC 54. 20  MOREIRA, 1974: 40 (da separata). 21  MATTOSO, KRUS & ANDRADE, 1993: 79 e 84. 22  GUIMARÃES, 2014: 5-24, nota 12.

cartografias antigas da área urbana do Porto – nomeadamente a “Planta do Porto” de c. 1806-1809, reeditada pela “Lith. da Academia Real das Sciencias”26 – mostram a presença de uma elevação ao lado da Igreja de S. Martinho de Aldoar, hoje parcialmente anulada pelo desenvolvimento urbano da zona. Estaria ela relacionada com o Castro Mafamudi? Ou seria ele um pouco mais afastado? Não muito longe, em Nevogilde, existe hoje a “Rua do Castro” … A designação Castro Mahamudi radica num antropónimo de indiscutível origem muçulmana. David Lopes demonstrou, em 1902, ter derivado do nome do Profeta27. Quem era, então, este Mahamud já mencionado na toponímia do século X? Joseph Maria Piel identificou a origem do topónimo com o berbere Mahamud ibn Abd al-Djabbar que, chefiando a revolta de Mérida, em 833, contra o poder de Abd al-Rahman II, seria mais tarde derrotado pelos exércitos emirais na zona de Lisboa, tendo procurado refugio no Norte da Península28. Estes últimos acontecimentos terão ocorrido no ano de 839, quando Mahamud se viu obrigado a fugir do Garb al-Andalus para a Yilliqiya (a “Galiza”, ou seja, o Norte cristão). Afonso II, o Casto, recebeu-o e entregou-lhe um castelo que, segundo fontes documentais muçulmanas, estaria situado entre o Porto e Lamego, “na região do Douro, em direção ao Atlântico”. Portanto, na extrema dos territórios cristãos. Ibn Hayan, no al-Muqtabis II, diz que: … Mahmud marchó hacia el, hasta llegar a su capital en Gilliqiyaah, donde Alfonso le acogó, honró e regalo com largueza, instalándolo en la fortaleza que hoy lleva su nombre, en la frontera, cerca del llano que da a territorio musulmán, donde lo coloco, como protección de sus súbditos y barrera de su tierra. Allí se estableció Mahmud, e hizo medrar la zona, donde se sintieron tranquilos com respecto a él los cristianos, prosperando el entorno y haciendose fortalezas y aldeas en los alredores: así permaneció el durante unos pocos años …29. No entanto, tendo-se arrependido, Mahamud contactou de novo Abd al-Rahman II solicitando que o recebesse outra vez nas suas terras do Sul. Afonso II, o Casto, sabendo da traição, cercou-o no castelo de Mahamud, onde o caudilho muçulmano acabaria por 26  ANDRADE, 1943: 87-92. A Biblioteca Nacional de Portugal possui um exemplar disponibilizado na Biblioteca Digital – Planta do Porto [e arredores], cota CC-279-P2 (http://purl.pt/1528/3/).

23 

BARROCA, 2016 (no prelo).

27 

LOPES, 1968: 28.

24 

PMH, DC 54 = LP 526.

28 

PIEL, 1951: 283-286.

25 

Aldoar fica, em linha reta, a 7,60 km de Mafamude.

29 

IBN HAYAN, 2001: 183r e 304-305.

37

falecer, em maio de 840. Para além dos dados coligidos no estudo de Joseph Maria Piel30, a biografia de Mahamud ibn Abd al-Djabbar foi completada com novos elementos compilados por Harold Livermore31 e, mais recentemente, por J. A. Gonçalves Guimarães32. Sublinhemos, ainda, que na região do Porto e de Vila Nova de Gaia, assim como no vale do Douro, sobrevivem vários topónimos cuja raiz radica no antropónimo Mahamud: para além de Mahamut / Mafamudi (Aldoar, Porto) (topónimo hoje desaparecido) e da conhecida vila de Mafamude (Vila Nova de Gaia), que aqui tratamos, registemos Mafomedes (Stª. Marta de Penaguião) e Mafamudes (Resende), e ainda Moumis (Paús, Resende), que um diploma de 946 designava como a villa Mahmutis33. O segundo testemunho para o qual gostávamos de chamar a atenção é para o topónimo Arrábida, como se sabe um derivado de ar-râbita (oratório) ou de ar-ribât (estrutura de tipo “monástico” destinada a cavaleiros sufis que se dedicavam à oração e à jihad)34. Na Península Ibérica conhecem-se, por referência documental, vários ribâts, sobretudo concentrados na orla mediterrânica, na costa do Sharq al-Andalus. Mas, do ponto de vista dos testemunhos arqueológicos, os vestígios identificados são substancialmente mais escassos. Destacam-se duas estruturas arqueológicas sumamente importantes: o ribât de las Dunas de Guardamar (Alicante), integralmente escavado por Rafael Azuar Ruiz, com uma cronologia fundacional em torno dos finais do séc. IX e primeira metade do séc. X35; e o ribât de Arrifana, na Ponta da Atalaia (Aljezur), uma estrutura que tem vindo a ser escavada por Rosa e Mário Varela Gomes e que se encontra ligada à revolta de Ibn Qasi, pertencendo, portanto, aos meados do século XII e tendo provavelmente sido abandonada na sequência do assassinato daquele sufi em 115136. Em Portugal existem vários topónimos diretamente relacionados com ribâts como a Serra da Arrábida (junto a Palmela) e o topónimo Arrábida (no concelho de Al30 

PIEL, 1951: 283-286.

31 

LIVERMORE, 1980: 145-152.

32 

GUIMARÃES, 1989: 107-118.

33 

PMH, DC 56. Cf. LIMA, 2010-2011: 96.

34 

Sobre a arquitectura dos ribâts veja-se AZUAR RUIZ, 2004: 23-38.

35  Entre uma bibliografia mais numerosa, veja-se, por todos, AZUAR RUIZ, 2004a. 36  GOMES & GOMES, 2007.

mada). No Norte de Portugal encontramos um núcleo muito interessante de topónimos derivados destas estruturas de jihad, significativamente todos concentrados nas duas margens do Douro. O primeiro é o morro da Arrábida (no Porto), junto do qual foi construída a ponte que leva o seu nome. Em Castelo de Paiva encontramos a pequena povoação de Raiva, que em 1062 era designada Arrabia37. E, um pouco mais a montante do rio, encontramos o micro-topónimo Arribada, que era a antiga designação da atual povoação de Boassas (Cinfães), não muito longe de Porto Antigo, um dos ancestrais locais de passagem do rio Douro. Em relação ao primeiro caso, o topónimo portuense Arrábida corresponde a um destacado morro granítico que define uma pequena plataforma ovalada sobranceira ao vale do rio Douro, estando bem memorizado na toponímia urbana portuense (Rua e Travessa do Alto da Arrábida, Rua e Travessa da Arrábida, Calçada da Arrábida). A morfologia do morro e a sua implantação, permitindo um controle eficaz do curso terminal do Douro, sugerem a possibilidade de estarmos perante um ribât da primeira fase da expansão muçulmana, a exemplo de vários outros ribâts que foram criados na orla do Mediterrâneo ocidental38. Valeria bem a pena que, num momento em que se aproximam importantes obras de urbanização nessa zona, que terão consequências irremediáveis, o Gabinete de Arqueologia Urbana (GAU) da Câmara Municipal do Porto não deixasse escapar esta derradeira possibilidade de esclarecer a origem deste topónimo. Como se sabe, no terceiro quartel do século IX, aproveitando uma conjuntura política e militar favorável, as forças cristãs conseguiram voltar a controlar o espaço do vale do Douro. Esse processo apoiou-se em três momentos fulcrais. Em 868 deu-se a presúria de Portucale pelo conde Vímara Peres39, em 872 a presúria de Chaves pelo conde Odoário40 e, em 878, a presúria de Coimbra pelo conde Hermenegildo41. 37 

PMH, DC 433.

38  Sobre a criação de uma rede de ribâts nos finais do séc. IX veja-se AZUAR RUIZ, 2005: 147-159. 39  “… Era DCCCCVI prenditus est Portucale ad Vimarani Petri…” (PMH, Script., p. 20). 40  “… data est terra ad populandum illustrissimo viro domno Odoario digno bellatori, in Era DCCCCX, a principe serenissimo domno Adefonso; qui venit in civitate Flavias, secus fluvium Tamice, vicos et castella erexit, et civitatis munivit, et villas populavit …” (Doação ao Mosteiro de Celanova, de 1 de Outubro de 982). 41  “… Era DCCCCXVI prendita est Conimbria ad Ermegildo Comite…” (PMH, Script., p. 20).

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É provável que, depois da presúria do Porto (868) e antes de as forças cristãs terem assumido o controle de Coimbra (878), os exércitos muçulmanos tivessem organizado algumas expedições contra o Norte, procurando restabelecer a ordem anterior. É o que nos sugere uma breve passagem do al-Bayano al-Mugrib, de Ibn Idari, que regista que, em 877, Ibn Malik penetrou nos territórios setentrionais pela “Porta de Coimbra”, com um exército de recrutas deslocado propositadamente para o Ocidente da Península, só tendo retirado depois de ter saqueado toda a zona42. Mas a presúria de Coimbra, logo no ano seguinte, acabaria por diminuir substancialmente a pressão dos fossados muçulmanos sobre os territórios do Norte. O ritmo de progressão das forças cristãs ao longo da fachada atlântica – passando do vale do rio Minho (controlado pela presúria de Afonso Betotes, em 854) para o vale do Mondego (controlado em 878 pelo conde Hermenegildo) – contrasta fortemente com o avanço das forças cristãs na zona do vale do Douro leonês e castelhano, onde Zamora só foi controlada em 893, Simancas em 899, Toro em 900 e Burgo de Osma em 912. E mais ainda se considerarmos a zona da Catalunha e do vale do Ebro, onde a fronteira estacionou durante muitas décadas. As três presúrias realizadas em nome de Afonso III das Astúrias no extremo ocidente da Península deram origem a duas grandes unidades políticas – os condados Portucalense e Conimbricense. E, na sua esteira, outros locais passaram a ser controlados pela monarquia asturiana: Braga passaria para a sua alçada cerca de 870, Guimarães seria fundada antes de 879, Lamego e Viseu encontram-se sob domínio da coroa de Oviedo antes de 881. O controle destes lugares centrais implicava, obviamente, o controle de outros pequenos lugares dentro da sua área de influência. Na zona do vale do Douro, que aqui nos interessa especialmente, registemos a presúria da villa Sonosello (hoje Stº. André de Souselo, Cinfães), por Cartemiro e Astrilli, em 870: …in ecclesia vocabulo Sancte Eolalie Virginis fundata in villa Sonosello de presores de ipsa villa … Ego Cartemiro et Astrilli una cum filiis meis fundavi eclesiam in nostro casale proprio exepre de nostros heredes vocabulo Sancti Salvatoris Sancti Andree Apostoli Sancte Marie Virginis et Sancti Thome Apostoli Sancti Petri Apostoli et Sancte Leocadie et Sancte Christine Virginis … que 42  IBN IDARI, 1904: vol. II, 169.

habuimus de presuria que preserunt nostros priores cum cornu et cum alvende rege ...43. Como o diploma explicita, esta presúria foi feita com o corno e com o albende de Afonso III - ou seja, tocando-se o olifante, para o chamamento, e exibindo-se o estandarte do monarca –, seguindo-se um modelo típico da apropriação de espaços povoados que passaram a responder perante uma nova entidade senhorial. Como já tivemos ensejo de sublinhar em diversos estudos nossos, as presúrias dos séculos IX e X foram acompanhadas por uma reorganização do território que, para além da formação das grandes unidades políticas condais já mencionadas – os condados de Portucale e de Coimbra –, contemplou ainda a criação de civitates, territórios de dimensão variável controlados a partir de uma estrutura fortificada. Este novo modelo foi implementado em zonas consideradas estrategicamente mais sensíveis e importantes. E, neste sentido, o vale do Douro foi considerado uma zona nevrálgica. A primeira a ser criada – ou, pelo menos, a primeira de que temos conhecimento documental – é a civitas Anegia, cuja sede militar se localizava na Srª. da Cividade (Eja, Entre-os-Rios). O primeiro diploma que lhe diz respeito remonta a 875, quando a igreja de S. Martinho de Soalhães (Marco de Canavezes) foi localizada sob sua alçada44. Sete anos volvidos, a villa de Lordosa (freg. de Rans, conc. de Penafiel), presuriada pelos moçárabes Muzara e Zamora no ano de 882, foi igualmente localizada na dependência de Anégia: “... cuius baselica fumdamus in villa quod vocitant lauridosa inter ambas annes kavaluno et cebrario subtus monte petroselo territorio anegrie…”45. Entre os séculos IX e XII conhecem-se algumas dezenas de referências documentais que tornam o território de Anégia no melhor exemplo para abordar este tipo de unidades espaciais de matriz asturiana46. A montante da civitas Anegia ficava o território da civitas Aliovirio (Cidadelhe, Mesão Frio), documenta43 

PMH, DC 6, de 870.

44 

PMH, DC 8, de 875.

45 

PMH, DC 9, de 882.

46  Apesar de ser indicada como “não identificada” na mais recente edição das Crónicas Asturianas, a civitas de Anégia é hoje bem conhecida na bibliografia portuguesa. Veja-se, entre outros, AZEVEDO, 1898: 208-215; BARROS, 1954: 255-263; ALMEIDA & LOPES, 1981-1982: 131-133; BARROCA, 1990-91: 92 e ss.; LIMA, 1999: 399-413; BARROCA, 2003: 69-72; BARROCA, 2004: 181-203; SANTOS, 2005.

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da em 92247. O local teve ocupação ancestral, desde a Idade do Ferro, e aparentemente de uma forma quase contínua. Foi sede de paróquia, mencionada no Paroquial Suévico do séc. VI, e conheceu uma ceca efémera, com cunhagem aurífera durante o reinado de Suintila (621-631). Nos inícios do séc. X mantinha alguma importância, tendo sido escolhida para sede de civitas. O local teve intervenção arqueológica dirigida por Armando Coelho Ferreira da Silva, que identificou a base de uma potente torre em xisto e que sugeriu ter sido aqui o local onde se reuniu a congregatio magna que delimitou o espaço da diocese de Dume em 91148. Para além de Anegia e de Aliovirio, houve outras civitates ao longo do vale do Douro: seguramente Portucale, sede do território condal, mas também Santa Maria da Feira (estruturada no século X, antes de 972) e Lamego (já mencionada nas crónicas asturianas, redigidas por volta de 881). É no âmbito deste processo político-militar que se deve enquadrar o nosso primeiro encastelamento, com o aparecimento das primeiras referências documentais a castelos e a sua multiplicação ao longo do século X. Como também já sublinhamos noutros estudos, o primeiro encastelamento do território hoje português é essencialmente um fenómeno do chamado Douro Litoral, isto é, do espaço compreendido entre o Ave e as duas margens do Douro. Um fenómeno que espelha a consolidação de um espaço de fronteira, reestruturado com particular atenção pela coroa asturiana49. A partir da década que medeia entre 868 e 878, o vale do Douro, pelo menos no seu curso até ao Côa, ficou sob controle das forças cristãs. Nos limites orientais do território cristão, no espaço correspondente ao interflúvio entre o Távora e o Côa (portanto, no espaço a oriente do território da civitas de Lamego), floresceram dez castelos de iniciativa e de posse condal, referidos na célebre doação de D. Flamula (ou Chamôa) Rodrigues ao Mosteiro de Guimarães, datada de 96050. Mas não se pense que o afastamento, político e militar, dos muçulmanos do vale do Douro português ditou o fim dos contactos entre as duas civilizações. O

candil califal recolhido em Pedrantil, na freguesia da Croca (concelho de Penafiel), e que tipologicamente pode ser datado de c. 930, revela que os contactos se mantiveram, quanto mais não fosse por via das trocas comerciais51. O controle cristão do espaço entre o Douro e o Mondego não estava, no entanto, definitivamente assegurado. Com efeito, o Condado Conimbricense, instituído em 878, cedo começou a ser objeto de investidas muçulmanas. As fontes muçulmanas registaram algumas dessas incursões que passaram silenciadas nos anais cristãos. Em 915-916, Abd al-Rahman III atacou Coimbra52, regressando à cidade do Mondego uma década mais tarde, em 92553. Trancoso seria atacada pelo vizir Yahyà ibn Ishaq em 93654. E os documentos cristãos registaram, em 975, uma incursão muçulmana que foi responsável pela destruição da Igreja de Stº Estêvão de Moldes (Arouca)55. Mas o golpe final seria consumado com as sucessivas campanhas militares organizadas por Muhamad ibn Abi Amir, conhecido pelo cognome de al-Mansur. Depois de ter empreendido a reforma da estrutura do exército muçulmano, al-Mansur organizou uma série de expedições militares das quais, fazendo jus ao seu cognome, saiu sempre vitorioso. O elenco mais completo encontra-se no Dikr bilad al-Andalus, preciosa fonte documental que conheceu edição pela mão de Luís Molina, onde se arrolam 56 campanhas militares56. Retenhamos apenas as que interessam para o espaço hoje português. Em 981, numa campanha que se prolongou por quase um mês, entre 29 de Outubro e 22 de Novembro, al-Mansur atacou Trancoso e Viseu57. Entre 11 de Setembro e 15 de Outubro de 986 investiu contra Condeixa e Coimbra58. Na Primavera do ano seguinte, entre 4 de Março e 8 de Abril, lançou novo ataque contra Coimbra59. Finalmente, a 28 de Junho do mesmo ano atacou de novo Coimbra, tendo conseguido

47 

PMH, DC 25. Cf. LIMA, 2010-2011: 93.

48  PMH, DC 17. Cf. SILVA, 1986: 274, nota 100. Temos, no entanto, algumas dúvidas sobre esta identificação, uma vez que o diploma refere que os vários bispos e magnates que estavam presentes na congregatio se dirigiram para o terreno e percorreram os limites da diocese de Dume, o que parece sugerir que a reunião teve lugar nas proximidades de Braga. 49 

BARROCA, 2004: 181-203.

50  PMH, DC 81. Cf. BARROCA, 1990-1991: 94-98; BARROCA, 2004: 190-192; BARROCA, 2003: 95-103.

51 

BARROCA & SANTOS, 2006: 310-317.

52 

IBN HAYAN, 1981: 103.

53 

IBN HAYAN, 1981: 259.

54 

IBN HAYAN, 1981: 285.

55 

PMH, DC 746 = CMM 10, de 1091.

56  Dikr bilad al-Andalus, 1983. Apesar dos esforços para identificar, o autor deste relato continua a ser desconhecido - vd. MOLINA, 2015: 259272. 57  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 198. 58  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 199. 59  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 199.

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conquistar a urbe e pondo termo ao Condado Conimbricense60. O fim deste Condado, ao cabo de 109 anos de existência, não significou o controle militar de todo o seu espaço de influência. Com efeito, al-Mansur continuou a organizar campanhas militares incidindo sobre o Ocidente peninsular, revelando que esta zona geográfica estava longe de poder ser considerada controlada. Em Dezembro de 990 investiu contra o castelo de Montemor-o-Velho, que conseguiu conquistar a 2 de Dezembro desse ano61. Mas o domínio muçulmano em Montemor-o-Velho não se prolongou por muito tempo e no ano 1000 o caudilho muçulmano viu-se obrigado a voltar a organizar uma campanha contra esta fortificação62. É em consequência destas sucessivas razias que uma série de monges procurou refugio no Condado Portucalense. Em 22 de Fevereiro de 994, o Abade Randulfo, que viera da Terra de Stª. Maria, fugindo das incursões de al-Mansur, doou vários dos seus bens ao Mosteiro de Paço de Sousa, onde se recolhera63. Mas, de todas as campanhas de al-Mansur, as que mais nos interessam – porque afetaram diretamente o vale do Douro – são as campanhas de Aguiar e de Compostela. A Campanha de Aguiar ocorreu nos finais de 995 e o Dikr bilad al-Andalus regista-a com as seguintes palavras: “La cuadragesimosexta [campanha], la de Galicia y Aguilar, en la que conquistó la ciudad de Aguilar, matando a veinte mil cristianos y apresando cincuenta mil.”64. Os números apresentados não nos devem impressionar, porque têm de ser perspetivados no seio de um texto com fins claramente laudatórios, estando por isso visivelmente empolados. Mas a campanha do Castelo de Aguiar causou vivo impacto nas comunidades de então, a ponto de também ter sido memorizada em alguns anais cristãos. No Chronicon Conimbricense regista-se: “Era Mª. XXXIIIª IIIª [sic] sepe Almançor 60  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 199. Este feito militar foi igualmente registado nos anais cristãos, nomeadamente no Chronicon Conimbricense, no Chronicon Complutense e na Chronica Gothorum. 61  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 200. Acontecimento também referido no Chronicon Conimbricense, na Chronica Gothorum e no Chronicon Lamecense. 62  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 202. Também memorizado pelas fontes analísticas cristãs, nomeadamente no Chronicon Conimbricense e no Chronicon Complutense. Sobre o Castelo de Montemor-o-Velho e os seus vestígios mais antigos veja-se BARROCA, 2005: 111-126. 63  PMH, DC 169 = LTPS 132. 64  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 203.

castellum Aquilar quod est in ripa de sausa provincia portucalensi”65. Por seu turno, a Chronica Gothorum refere: “Era MXXXIII Almanzor cepit Castellum de Aguilar, quod est in ripa Sause in Portugalensi provincia.”66. Esta insistência dos anais cristãos, sempre tão parcimoniosos nas suas memórias, em registar os eventos em torno do Castelo de Aguiar espelha bem a relevância de que, aos olhos da época, o acontecimento se revestira. A esmagadora maioria dos autores identifica este “castelo de Aguiar” com o Castelo de Aguiar de Sousa (conc. Paredes), que controlava um dos meandros do rio Sousa e o ponto de passagem da via medieval. Mas a identificação não está isenta de dúvidas. António Lima sugeriu, recentemente, que fosse antes o Castelo de Aguiar de Montemuro67. No entanto, as referências à Galiza (no Dikr bilad al-Andalus) e, sobretudo, à província Portucalense e às margens do rio Sousa (nos dois registos analísticos cristãos) recomendam que se continue a considerar como mais plausível a localização na margem Norte do Douro68. E, essa circunstância ajuda a compreender o motivo por que as fontes islâmicas tiveram tanto empenho em exaltar o feito militar, empolando os números dos efetivos cristãos mortos ou aprisionados até valores inverosímeis, mas também o motivo por que as instituições cristãs lhe reservaram um lugar especial nas suas memórias. É que era a primeira vez que, neste extremo ocidente, os exércitos de al-Mansur tinham conseguido ultrapassar de novo a barreira do vale do Douro, demonstrando uma enorme capacidade ofensiva. Dois anos mais tarde voltariam a fazer o mesmo, e desta vez ainda com maior audácia: atacando o santuário de Santiago de Compostela, que conquistam a 10 de agosto de 997. Nas palavras do Dikr bilad al-Andalus, La cuadragesimoctava [campanha], la de Santiago, que es la ciudad de Jacob, el hijo de José el comerciante, del que dicen los cristianos que era el esposo de María; 65  Chronicon Conimbricense, versão longa – PMH, Script.: 4. 66  Chronica Gothorum – PMH, Script.: 9. 67 

Cf. LIMA, 2008: 165-174; LIMA, 2010-2011: 102.

68  Devemos ressalvar, em abono da verdade, que o conceito de Yilliqiya, a Galiza, foi utilizado por Ibn Idari, no al-Bayan al-Mugrib, como sinónimo de todo o território do Noroeste peninsular dominado por forças cristãs. Por isso ele declara, a propósito da incursão de 877, que Ibn Malik penetrou na “Galiza” pela “Porta de Coimbra”; e, ao tratar da expedição de al-Mansur, em 997, escreve que Viseu era a “capital da Galiza” (cf. IBN IDARI, 1904: vol. II, 169 e 492). Mas as referências a Portucale e ao rio Sousa não são ambíguas.

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en esa ciudad está su tumba. Arrasó la ciudad y destruió el monasterio, pero no tocó en la tumba.69. Ibn Idari, no al-Bayan al-Mugrib, redigido por volta de 1312 mas socorrendo-se de fontes mais antigas, fornece muitos e importantes pormenores70. Por ele sabemos que al-Mansur partiu de Córdova a 3 de julho de 997, à frente de um exército que se deslocou por terra, ao mesmo tempo que outros efetivos militares se organizaram em Alcácer do Sal e se deslocaram por mar até ao rio Douro. O itinerário terrestre passou por Cória e atingiu Viseu. Aqui “um grande número de condes que reconheciam a sua autoridade e que se apresentaram com os seus guerreiros” estabeleceu um acordo e integrou-se no exército de al-Mansur, poupando assim a urbe visiense à violência. A coluna militar muçulmana, engrossada com os efetivos cristãos, dirigiu-se depois para Lamego que, na ausência de acordo, foi conquistada pelas armas. Seguindo pelo vale do Douro, o exército de al-Mansur reuniu-se com os efetivos que se tinham deslocado por mar a partir de Alcácer do Sal e que tinham penetrado no Douro, passando pelo Porto e subindo o rio. As embarcações serviram para a travessia do rio e, uma vez na margem direita, os contingentes militares muçulmanos dirigiram-se para Norte, internando-se em território hoje galego a partir da zona de Valadares. Depois da destruição e do saque de Santiago de Compostela, al-Mansur empreendeu a viagem de regresso, voltando a passar por Lamego, onde se despediu dos condes cristãos que o apoiaram e repartiu com eles o saque de guerra. E, daqui, dirigiu-se de novo para Córdova. As sucessivas campanhas de al-Mansur permitiram que as forças muçulmanas recuperassem o domínio de quase todo o espaço a Sul do Douro. A campanha de 987 colocou termo ao Condado Conimbricense, a de 997 assegurou o domínio da margem esquerda do Douro. Com exceção da Terra de Santa Maria, as restantes áreas a sul do rio voltaram à posse muçulmana. A campanha de 997 permitiu o controle de Lamego, de Cárquere, de S. Martinho de Mouros. E, se tal já não tinha acontecido antes, permitiu controlar os dez castelos que em 960 D. Flamula Rodrigues entregara ao Mosteiro de Guimarães. Inaugurava-se um segundo domínio muçulmano sobre a zona da Beira, que se prolongaria até às campanhas militares de Fernando 69  Dikr bilad al-Andalus, 1983: 201-202. 70  IBN IDARI, 1904: vol. II, 491 a 495. António Borges Coelho publicou uma versão portuguesa da tradução de Edmond Fagnan – cf. COELHO,1972: 256-262.

Magno (1057-1064). Esta nova fase traduziu-se num reforço da islamização deste espaço. A onomástica dos diplomas da época espelha bem esse derradeiro esforço para integrar o espaço beirão no seio do al-Andalus. É provavelmente com esta fase que devemos associar uma série de topónimos de influência árabe que se registam no vale do Douro. Para além dos casos de Arrábida e de Mafamude, que já abordamos, encontramos muitos outros topónimos de origem muçulmana. O nosso levantamento, realizado a partir das cartas militares (1:25.000), permitiu recolher 76 de topónimos, que agrupamos em cinco conjuntos: 1 - Topónimos relacionados com antropónimos: Derivados de Mahâmud: 1 - Mafamude (Aldoar, Porto); 4 – Mafamude (V. N. Gaia); 36 - Moumis (Paús, Resende); 56 - Mafomedes (Stª. Marta de Penaguião). Derivados de al-Mansûr: 8 - Mansores (Arouca); 11 - Almançor (Castelo de Paiva); 73 - Maçores (Torre de Moncorvo). Derivado de Abû abd Allâh: 30 - Aboadela (Amarante); 31 - Aboadela (Lamego). Derivado de Marwân: 51 - Marvão (Loureiro, Peso da Régua); 70 - Quinta de Marvão (Numão). Derivado de Hazam: 39 - Fazamões (Resende). Derivado de ben Huda: 46 - Penude (Lamego). Derivado de al-Muzaffar: 57 - Almodafa (Tarouca). Derivado de Mûza: 63 - Murça (Murça); 69 - Murça (Numão). Derivado de Nu’mân: Numão (Freixo de Numão). 2- Topónimos relacionados com corónimos ou outros topónimos: Derivado de qurayxii, tribo dos Coraixitas, a que pertencia Maomé: 12 - Coreixas (Penafiel). Derivado de muwallad, muladi: 17 - Moldes (Arouca). Derivado de outros topónimos: 37 - Massorra (Resende); 40 - Córdova (Resende); 65 – Marzagão (Carrazeda de Anciães); e, não cartografados: Marrocos (Armamar); Sevilha (Tabuaço). 3 - Topónimos relacionados com estruturas construídas (religiosas, militares, etc) ou com unidades de povoamento: Derivado de ar-râbita ou ribât, convento fortificado: 2 - Arrábida (Porto); 10 - Raiva (Castelo de Paiva); 22 Arribada (Cinfães).

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Derivado de masjid, “mesquita”: 5 - Mejide (Canelas, V. N. Gaia); 18 - Mexide (Vila Boa do Bispo, Marco de Canavezes); 59 - Meixedo (Armamar). E ainda: 21 - Mesquinhata (Baião); 32 - Mesquita (Baião); 44 - Mesquitela (Lamego); 52 - Mesquinhata (Lamego); 75 - Mesquita (Freixo de Espada à Cinta, duas vezes). Derivado de al-maqabarâ, “cemitério”: 54 - Almacave (Lamego). Derivado de al-kabr, “túmulo”: 3 – Alquebre (V. N. Gaia). Derivado de al-muhalla, “acampamento”: 23 - Almofrela (Baião); 55 - Almofala (Castro Daire); 58 - Almofala (Tarouca); 74 - Almofala (F. Cast. Rodrigo). Derivado de hisn, “castelo”: 62 - Vale d’Asnas (Armamar). Derivado de al-hasârîn, “as duas cercas”: 28 - Lazarim (Baião); 47 - Lazarim (Resende). Derivado de fasîl, “muralha baixa”: 25 - Freigil (Resende). Derivado de al-kauç, “o arco”: 60 - Alcouce (Armamar). Derivado de al-kariya, “aldeia” – 41 - Alcarias (Peso da Régua); e, não cartografada: Alcaria (Tarouca). 4 - Topónimos relacionados com vegetação ou fauna: Derivado de al-hinnâ, “arbusto”: 6 - Alfena (Ermesinde). Derivado de ar-rayhanat ou ar-ryhâna, “murta”: 13 - Arrifana de Sousa (hoje Penafiel); 34 - Arrifana (Resende); 35 - Arrifana (Cárquere, Cinfães). Derivado de al-qattan, “campo de linho”, ou de al-kaddân, “tufo calcário”: 9 – Alqueidão (Paredes); 53 Alqueidão (Peso da Régua). Derivado de al-qur’a, “abóbora”: 24 - Aboboreira (Baião). Derivado de xâhim, “falcão real”: 15 - Chaim (Marco de Canavezes). Derivado de al-gurâb, “o corvo”: 48 - Angores (Lamego). 5. Outros: Derivado de de al-bi’r, “fonte”: 7 - Alvre (Paredes). De al-mârid, “rebelde”:14 - Almarde (Castelo de Paiva). De sâm ardûn, “buraco na terra”: 16 - Samardã (Penafiel). De manîf, “monte alto”: 19 - Manhufe (Amarante). De al jur’a, “coragem”: 20 - Algereu (Cinfães). De mâ-ûma, “zona alagada”: 26 - Miomães (Resende). De halîfa, “sucessor”: 27 - Faifa ou Falifa (Castro Daire). De muwalâ,

“senhor”: 29 - Molares (Baião); 45 - Molães (Resende). De Karkar: 33 - Cárquere (Cinfães). De al-awf, “o fiel”: 38 - Alufinha (Resende). De mâ al-gayz, “água da ira”: 42 - Mageija (Lamego); 43 - Magueijinha (Lamego); De malikûn, “soberanos”: 49 - Melcões (Lamego). De la’îm, “vil”: 50 - Lalim (Lamego). De galla hurr, “colheita abundante”: 61 - Galafura (Armamar). De nagaza, “semear a discórdia”: 64 - Nagozelo do Douro (S. João da Pesqueira). De zâyidî, “abundante”: 66 - Zedes (Carrazeda de Ansiães). De samura, “castanho”: 67 - Samorinha (Carrazeda de Ansiães). De muxaqât, “estopas”: 71 - Muxagata (V. N. Foz Côa). De al-mamtar, “manto”: 72 - Almendra (V. N. Foz Côa). De ma’zûqa, “terra para sementeira”: 76 - Mazouco (Freixo de Espada-à-Cinta).71

Os topónimos elencados apresentam uma distribuição cartográfica muito interessante72, revelando uma significativa concentração na zona central do curso português do Douro, correspondendo, grosso modo, à zona de Lamego, Resende e Cinfães, tocando a montante a área de Armamar e a Sul a zona de Tarouca. Uma zona que sentiu, diretamente, a ação militar de al-Mansur, se não noutras campanhas pelo menos nas de 995 e de 997. Não será, afinal, esta cartografia de topónimos um espelho do interesse que as forças muçulmanas colocaram na fronteira do vale do Douro, que dominaram de novo ao longo de toda a primeira metade do século XI? A corroborar a nova dinâmica que a ocupação islâmica do território a Leste de Montemuro conheceu na primeira metade do século XI atente-se no Castelo de S. Martinho de Mouros (Resende), onde encontramos alguns dos escassos testemunhos arqueológicos de época islâmica no vale do Douro. Com efeito, José Augusto Maia Marques publicou, em 1987, uma pequena peça em bronze, procedente do Castelo de S. Martinho de Mouros (ou, como alguns autores designam, o Castro de Mogueira), que interpretou como sendo um espigão de um capacete romano, de bronze, com paralelos próximos no Capacete II de Castelo de Neiva e no Capacete de Lanhoso73. O achado, de superfície, aparecia contextualizado por “cerâmicas indígenas” e 71  Para além das folhas da Carta Militar de Portugal à escala 1:25.000, socorremo-nos igualmente de MACHADO, 1991; ALVES, 2013; SERRA, 1967; e VIEIRA, 2005: 53-67. 72  Agradecemos ao Dr. Miguel Nogueira, da Oficina do Mapa (FLUP), o empenho colocado na realização do mapa que acompanha este texto. 73 

MARQUES, 1987: 287-289.

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os paralelos tipológicos convocados levaram aquele autor a atribuir a peça a um capacete de tipo “Montefortino B”, datando-o do período “que vai das campanhas de D. Júnio Bruto (138/136 a.C.) até ao início da dinastia dos Flávios (69 d.C.)”. O Castro de Mogueira foi referido em diversos estudos, sempre associado ao povoamento antigo, em torno de um santuário rupestre. Pela nossa parte, em vários estudos valorizamos os testemunhos relacionados com o importante castelo e com o povoado da Idade Média. Em 2009, Maria João Correia dos Santos realizou escavações arqueológicas, cujos resultados divulgou três anos mais tarde74. Segundo a autora, os trabalhos realizados revelaram “três momentos de ocupación, entre el siglo X-XI y el siglo XII, correspondientes, por tanto, unicamente a época medieval” 75. Ou seja, na zona da “acrópole” só se registam testemunhos medievais. Entre os materiais recolhidos salientemos um conjunto de pontas de seta para tiro com arco76, diversos ferros e abundante cerâmica. Entre esta, e para além de fundos em disco e de fragmentos decorados com cordões plásticos, assinala-se a presença de “algunos fragmentos con vidrado melado”, sobre os quais, infelizmente, a autora pouco adiantou, dizendo apenas serem escassos77. Pela descrição e cronologia, deverão ser fragmentos da abundante série dos vidrados melados andaluzes, sendo, portanto, um elemento precioso para o estudo da ocupação muçulmana de S. Martinho de Mouros, entre 997 e 1057. Como se sabe, nesta época o mundo cristão, do Norte, não domina a técnica do vidrado. Ora, é precisamente neste contexto que se deve reclassificar o “espigão de capacete” do Castro de Mogueira, que mais não é do que um dedal mitriforme, muçulmano, com paralelos tipológicos bem conhecidos78. O seu achado, associado às cerâmicas medievais, aos vestígios do castelo, aos abundantes testemunhos de um importante habitat rupestre e ainda a uma necrópole de sepulturas escavadas na rocha, reflete a importância da ocupação medieval deste morro sobranceiro ao rio Douro. Recordemos que os registos analísticos cristãos referem 74 

SANTOS, 2012: 455-496.

75 

SANTOS, 2012: 462.

a conquista definitiva de S. Martinho de Mouros por Fernando Magno, no âmbito da chamada Campanha das Beiras, no ano de 1057 ou 1058, algures entre a conquista de Lamego (27 ou 29 de Novembro de 1057) e a conquista de Viseu (25 de Julho de 1058), na mesma altura em que a coroa leonesa recupera os castelos de Cárquere, de Tarouca, de Travanca e de Penalva79. A conquista de S. Martinho de Mouros foi secundada pela outorga de novos foros aos seus habitantes. Lado a lado com os foros dados pelo mesmo monarca a Linhares, Ansiães, Penela da Beira, Paredes da Beira e S. João da Pesqueira, os foros de S. Martinho de Mouros são dos primeiros a registar a presença da Cavalaria Vilã. Estes foros, infelizmente desaparecidos, foram confirmados por D. Teresa, em 1 de março de 1121, onde se menciona que Fernando Magno dera “… esse castelo com este foro ao alvazil dom Sesnando …” e se referem os lavradores “… aos quaes deu elrey dom Fernando [o foro] quando sairom os mouros de Sam Martinho …”80. Com esta campanha militar, que se iniciou em 1057 e que culminou, sete anos mais tarde, na conquista definitiva de Coimbra, em 1064, terminava a presença muçulmana no vale do Douro. Mas terminavam as pretensões islâmicas sobre esta zona? Certamente que não. Ainda no século XII o bispo D. Pedro Pitões, no sermão que fez aos Cruzados que aportaram à cidade do Porto e aceitaram, depois, auxiliar D. Afonso Henriques no cerco e conquista de Lisboa, referia que uns sete anos antes – portanto por volta de 1140 – os muçulmanos tinham atacado a Sé do Porto e levado os sinos, os paramentos e os vasos sagrados81. O movimento militar encabeçado por Fernando Magno, entre 1057 e 1064, colocou termo à presença estável dos muçulmanos no vale do Douro. Nesse sentido, ele encerra uma época. Mas não conseguiu afastar de vez o espectro das incursões militares, que só o domínio do vale do Tejo, a partir de 1147, conseguiria impor de forma mais consistente.

76  Significativamente registemos a ausência de pontas de dardo, para tiro com besta, o que está de acordo com os dados conhecidos para a difusão desta arma no Ocidente. 77 

SANTOS, 2012: 468.

78  Conhecem-se dedais de tipologia idêntica em várias estações arqueológicas do Sul. Citemos apenas Mértola, uma das mais emblemáticas – cf. MACIAS 1996: 88 e Fig. 3.32.

79  Chronica Gothorum – PMH, Script.: 9-10. 80 

DMP, DR 57.

81  Conquista de Lisboa, 2001: 66-67.

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ILUSTRAÇÕES:

Fig. 1 – “Planta do Porto” de c. 1806-1809 (reeditada pela “Lith. da Academia Real das Sciencias”) assinalando-se a zona de Aldoar.

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Fig. 2 – Promontório da Arrábida, Porto (Foto M. J. Barroca).

Fig. 3 – Mapa «Topónimos de Origem/Influência Muçulmana no Vale do Douro» (Levantamento de Mário J. Barroca; Cartografia de Miguel Nogueira/Oficina do Mapa, FLUP).

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Fig. 4 – Castelo de S. Martinho de Mouros (Foto M. J. Barroca).

Fig. 5 – Dedal mitriforme do Castelo de S. Martinho de Mouros (desenho de J. A. Maia Marques, 1987).

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Estrangeiros no Douro nos finais da Idade Média e princípios da Época Moderna (Notas de investigação) Amândio J.M. Barros Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto-CITCEM-UP

Resumo: Este trabalho estuda a presença do estrangeiro no Vale do Douro e no curso terminal do Rio, junto à Foz, na Idade Média e na Época Moderna. Através da análise de testemunhos recolhidos em literatura de viagens e em documentação notarial, pretende abordar aspectos menos conhecidos desta presença e a forma como ela terá influenciado os destinos da região.

Abstract: This article intends to study the presence of the foreigner in the Douro Valley during the Middle Ages and the Early Modern Period. Through the analysis of testimonies collected in travel literature and in notarial documents, it intends to study lesser-known aspects of this presence and the way in which it have influenced the destiny of the region.

Palavras-chave: Estrangeiros, Douro, rio Douro, redes comerciais, Humanismo/Renascimento, cristãos-novos, vinho, sumagre, comércio.

Keywords: Foreigner, Douro, Douro river, commercial networks, Humanism/Renaissance, new-christians, wine, sumac, trade.

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Nota biográfica: Amândio Jorge Morais Barros nasceu no Porto. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras do Porto, onde tem feito toda a sua carreira de investigador. Especializou-se nas áreas da História Social e Económica e na História Marítima (área do seu doutoramento: Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna, Prémio Almirante Sarmento Rodrigues da Academia de Marinha e Prémio Artur de Magalhães Basto de História da Cidade do Porto). As suas publicações têm incidido nestes domínios, assim como nos da História da Cidade do Porto e Douro e História da Expansão, aos quais tem dedicado diversos trabalhos. Professor da Escola Superior de Educação do Porto é pós-doutorado pelas universidades do Porto e de Valladolid, investigador do CITCEM-UP (Centro de Investigação Transdisciplinar. Cultura, Espaço e Memória – Universidade do Porto) e membro da Academia de Marinha.

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INTRODUÇÃO

I

nvestigar a presença de estrangeiros no Douro até ao século XVII é tarefa difícil de realizar. Na Idade Média e no início da Época Moderna, a Península Ibérica não era propriamente um destino muito frequentado pelos viajantes e aqueles, poucos, que a ela chegavam – salvo pelos portos – deixavam-se ficar pelas cidades e feiras de Castela. Havia uma excepção: a dos peregrinos a Compostela, documentada desde o século XI; porém, estes raramente derivavam para os trilhos durienses preferindo viajar pelo Norte da Península, percorrendo o célebre e movimentado “caminho francês, que, depois de cruzar por Pamplona, Burgos, Castrojeriz, Sahagún e Astorga, terminava diante dos muros de Santiago de Compostela, a dois passos do finibus terrae do mundo então conhecido”82. Para quem vinha por mar, o contacto com o rio surgia naturalmente. Em meados do século XII, o relato da passagem pelo Porto dos cruzados que ‘ajudaram’ D. Afonso Henriques nas conquistas de Santarém, Lisboa, regista algumas impressões sobre o Douro e a sua foz. E assinala, pela primeira vez, o gosto das pessoas pela praia e pelo mar, antecipando em vários séculos os “postais” do quotidiano estival, quando os portuenses para ali iam “a banhos”; de resto, é essa a expressão utilizada no século XII83. A partir dessa altura, o Douro e a sua foz dominavam a vida da cidade; mas, no final da Idade Média, a crónica de viagens de um estrangeiro leva-nos até às terras da fronteira, onde o rio entra em Portugal. Foi em meados do século XV que o barão boémio Leo de Rosmital, no seu périplo pela Península, a caminho do túmulo do Apóstolo Santiago, entrou no Reino pela região a que hoje chamamos Douro Internacional e deixou-se impressionar por uma terra que ainda se encontrava, na sua maior parte, em ‘estado selvagem’. E de tal forma, que nos legou relato fantástico em que entravam descrições de arvoredos e alimárias que se conformavam muito mais aos medos e aos bestiários medievais do que à realidade, espevitando o interesse de um Camilo Castelo Branco, que não resistiu a anotar o texto com pena inspirada e irónica. Em especial quando o barão garante ter visto nos montes do Tua serpentes que perseguiam os homens e os gados voan-

do, e de ter tropeçado com escorpiões do tamanho de cães (“de médio porte como os de casa”) e lagartos tão grandes como gatos84. Estas referências medievais constituem uma espécie de ‘pré-história’ da viagem no Douro. E, salvo as curiosidades e as breves descrições das terras, no geral pouco rigorosas, quase nada nos dizem sobre a história da região, as gentes que a percorriam, os lugares de onde vinham, os motivos porque a visitavam e com que frequência o faziam. Trata-se de registos narrativos que misturam a fábula com a veracidade, tornando ainda mais complicado e difícil o estudo deste tema. As corografias ainda não estavam na moda, e portanto não podemos contar com elas85, e as restantes fontes documentais praticamente não existem, sendo muito difusas e sem margem para a elaboração de sistematizações seguras. Levam o historiador para sítios onde ele não gosta de estar: para a intuição e, por vezes, mesmo, para a especulação, atitudes que, como se sabe, convém evitar em qualquer trabalho científico. Além disso, aquilo que aqui se pretende, é, salvo uma excepção que me parece relevante, e que intitulo Os humanistas e a Foz do Douro86, principalmente estudar os estrangeiros no Alto Douro, e não no Porto e curso terminal do rio onde, por força da abertura da navegação, estes foram mais assíduos desde, pelo menos, finais da Idade Média. Mas esse desejo esbarra na pobreza dos arquivos e, como foi dito, na quase absoluta ausência de documentos. A partir do século XVI, e sempre com este objectivo em mente, começamos a pisar terrenos um pouco mais firmes; a documentação deixa de ser tão avara e começa a dar notícias, ainda que esporádicas, de gentes de fora do Reino que subiam o rio, desde o Porto, à procura das mercadorias disponibilizadas por uma economia agrícola que se revelava prometedora. Que significado teve essa presença? A longo prazo, provavelmente teve grandes consequências para a região e para o espaço portuário organizado entre a cidade e a foz, designadamente quando pensamos no estímulo à produção de vinhos para alimentar o consumo do Porto, de algumas cidades do Reino e da Europa, e, acima de tudo, para abastecer as armadas, e também o sector das tinturarias, 84  CASTELLO-BRANCO, 1867: 69-70. ‘Anedotas’ que certamente seriam apreciadas pelos seus ouvintes, pelo caminho, e no regresso à sua terra natal.

82 

GARCÍA MERCADAL, 1920: 45.

85  E não são, propriamente, testemunhos totalmente isentos, como se sabe.

83 

GARCÍA MERCADAL, 1920: 54.

86 

Ao tempo de D. Maria Pacheco e D. Miguel da Silva, 1525-1530.

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que registou um comércio a grande escala de sumagres87. Houve outras culturas que tiveram significado tanto para o abastecimento dos centros urbanos como para o comércio a partir dos portos, com um peso económico menor, é certo, mas no cômputo geral criando correntes de transporte que promoveram a articulação da região com o litoral e o interior da Península, elevando o seu valor específico88. No entanto, convém temperar o entusiasmo. Os documentos continuam a rarear e as informações que deles se colhem são demasiado dispersas e pouco sólidas. Deste modo, mais não farei aqui do que reunir algumas informações breves sobre visitantes estrangeiros no Douro e deixar uma ou outra pista de investigação que me parece pertinente, a propósito da construção do Douro no final da Idade Média e início da Época Moderna. Parece-me evidente que o contributo que estes deram à evolução do Douro, sobretudo à sua integração em mercados internacionais através dos portos e do mar, foi importante. Mas esse é um dado que por agora não pode ser cabalmente afirmado e, no fim deste texto, ficará apenas implícito. UM DOURO EM CONSTRUÇÃO O Douro medieval e moderno era bem diferente do Douro que hoje conhecemos. Não admira e não é seu exclusivo. Longe de estar organizado, o território era escassamente povoado, excepto em locais estratégicos nos quais se cruzavam poderes senhoriais, eclesiásticos, monásticos e concelhios. Ainda procuramos definir as suas centralidades e espaços mais concorridos, e com que meios se afirmaram esses mesmos espaços. O volume sobre o período medieval da História do Douro, que em breve será dado à estampa89, mostra que algumas das suas cidades e vilas teriam certa dimensão e influência regional, sobretudo como eixos de circula87  Plantas abundantes em várias zonas do Douro, usadas nos curtumes, como mordentes, para segurar tintas e vernizes. 88  Tais como os azeites e as frutas; no entanto (embora o caso dos azeites possa ser documentado em alguns períodos desta cronologia), o das frutas é mais raro. Ainda que exista. A relação com o Porto, evidentemente, era a mais forte e a de maior consequência para este processo. Mesmo relativamente aos vinhos, a grande fatia da produção, até ao final do século XVI, destinava-se ao consumo da cidade, tendo sido responsável pela criação de uma legislação que regulamentava o trânsito de vinhos e que parte deles podia, em certos casos, ser exportada. Mas o fenómeno, como largamente vem sendo demonstrado, é mais tardio e entra bem pelo século XVII. 89  Coordenação de Luís Miguel Duarte a Amândio Barros. A publicar pela editora Afrontamento em 2017.

ção entre vários pontos, como Lamego e a sua secular ligação a Viseu, ou Miranda do Douro e Vila Real de onde partiam estradas que conduziam a Chaves, Bragança e ao Porto. Lamego (e Viseu) e Miranda tinham Sé e elites locais activas. Como nos mostram os forais e os comportamentos das populações, o grande eixo de articulação e denominador comum na região era, como não poderia deixar de ser, o Rio Douro, que se fazia notar tanto como pólo económico como viário (e as duas coisas são inseparáveis); por outra parte, havia alguma facilidade de comunicações com a Galiza e Castela Velha, facto que suscitava convivência e organização de correntes económicas e sociais que a história haveria de fazer aprofundar. Perante este quadro, é possível que a terra duriense tivesse atraído, desde muito cedo, vendedores itinerantes e agentes externos que deambulavam em busca de transacções favoráveis. Não sabemos, também, em rigor, que tipo de negócios era feito. No estado actual da investigação não nos é possível conhecer a geografia económica duriense, quais os principais centros produtores ou o conjunto de culturas dominantes neste período; temos a tendência para falar de vinhos, influenciados que somos por aquilo que a terra é hoje, mas o Douro ainda estava longe de ser uma região vitivinícola e, diga-se de passagem, era muito mais do que isso. Não se entendam, no entanto, estas palavras, como caracterizando os níveis quantitativos da produção, pois, para a Idade Média, pelo menos, esse é um problema insolúvel; refiro-me, antes de mais, à diversidade e predomínio de algumas produções sobre outras. Como todas as regiões peninsulares, e outras da Europa com características climatéricas, geomorfológicas e culturais idênticas, um pouco ‘por todo o lado’ havia vinho e pão; de resto, o cultivo de cereais era prioritário. Mais uma vez os forais fazem notar esse binómio. Mas isto não significa que essas culturas fossem destinadas ao mercado; antes, interessavam ao consumo local e à subsistência das populações. Só mais tardiamente podemos falar nos primeiros passos de um sector rural assente em estímulos capitalistas; e isso, como é sabido, só aconteceu na abertura da Época Moderna e deveu-se à integração da região numa economia mais global, designação que alguns historiadores hoje gostam de utilizar; esse facto, por seu turno, determinou (agora sim) a presença de estrangeiros que tiveram forte peso, directo e indirecto na transformação da economia agrícola duriense e em

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ligação estreita com os agentes portuários, entre os quais se salientavam os homens de negócios cristãos-novos. Outra vez, este enunciado é mais fácil de descrever do que concretizar objectivamente, pelos motivos antes indicados: é difícil levar até bom porto um programa de estudos tão ambicioso pois faltam-nos informações seguras que nos permitam acompanhar e perceber todas as fases e características desta evolução. O ACOLHIMENTO AO ESTRANGEIRO Comecemos por onde deve ser. Pelo título deste artigo: estrangeiros no Douro na Idade Média e Época Moderna. O que é que se entendia por estrangeiro nestes tempos, e que acolhimento lhe dedicavam as comunidades que visitava? Recentemente estudei o estrangeiro nas sociedades portuárias atlânticas na mesma cronologia: procurando encontrá-lo nas notícias de estadias de mercadores e homens do mar europeus nos portos portugueses e nos contactos neles desenvolvidos90. Tal como no caso presente, o tema é novo, complexo e carecido de estudo aprofundado91. No convívio com o estrangeiro construiu-se uma parte da identidade dos povos, mas a forma como ele foi recebido variou conforme as circunstâncias, e dependeu de múltiplos factores. A consciência da fragilidade e necessidade de defesa das fronteiras nacionais, ou as contingências das relações internacionais, muitas vezes ainda de tipo feudal/senhorial, impuseram limitações ao contacto com o estrangeiro; mas, em geral, tiveram origem alheia às comunidades. Desde logo, às comunidades portuárias onde o problema se colocava com maior agudeza, mas também aos aglomerados do interior, onde o problema era menos agudo pois as visitas aconteciam com menor frequência. Note-se que não estou a falar propriamente de problemas políticos e militares que colocavam em alerta (e sumamente desconfiadas) as povoações do Reino. Estou a refe90  Every Good Man Deserves Favour. The Foreigner in Medieval and Early Modern Porto, no prelo; capítulo de livro internacional coordenado por Amélia Polónia e Cátia Antunes. 91  Laurence Moal é autora de um livro exemplar sobre a matéria, L’étranger en Bretagne au Moyen Age. Présence, attitudes, perceptions. Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2008; nesta obra, a autora propõe uma metodologia e modelo de análise que pode ser aplicado à investigação de outras regiões costeiras e do interior da Europa. Diga-se, no entanto, que os fundos documentais com que lidou são imensamente mais ricos e abundantes do que aqueles que nós possuímos ou não possuímos de todo.

rir-me, antes de mais, à presença de indivíduos que, pelo seu poderio económico, ameaçavam debilitar os agentes locais92. Refira-se, também, que como se tratou de processos que demoraram a ser estabelecidos e assimilados, abriram caminho a contactos moldados de acordo com a tradição e com interesses particulares, logo, de natureza variada. Deste modo, uma das teses que defendi naquele trabalho, e aqui volto a sustentar, é a de que devemos olhar atentamente para as realidades locais que indicaram caminhos e forneceram modelos de relacionamento com o exterior. Com elas, percebemos que as concepções de estrangeiro pouco se assemelhavam com as que vigoraram na Europa após do triunfo dos estados-nação, ou os projectos nacionalistas oitocentistas e seus sistemas de representação93, responsáveis pela projecção de ideologias para o passado e criando anacronismos que subsistiram até hoje. No arco temporal deste estudo, e em pleno processo de estruturação de identidades pela acumulação de práticas quotidianas colectivas94, a designação estrangeiro aplicava-se àqueles que estavam fora dos laços que caracterizavam a sociedade local, tanto designando os visitantes de um reino diferente, como os que chegavam de outras partes de Portugal como “peregrinos na sua pátria”, na expressão de Lope de Vega95. Da presença dos estrangeiros resultaram normas que visavam o bem comum, determinando a necessidade de regular a conduta dos outros em função do que era correcto e praticado pelos naturais. O que nos mostram as fontes? Que no dia-a-dia, o juízo sobre o estrangeiro oscilava entre a suspeição e a animosidade, quando ele era visto como um concorrente sério, e o favorecimento e a cooperação, quando a sua presença se adivinhasse favorável à prosperidade dos negócios e da terra. Esta ambiguidade marca outra noção delicada: a de xenofobia, perante atitudes agressivas que ocor92  Mais ainda se isso era visto desde logo. Ou se os estrangeiros nessas condições podiam ser identificados com inimigos ou rivais do Reino. Mas, neste caso, o contrário também existe, numa espécie de colaboração com o ‘inimigo’, documentada nos portos. 93  Fala-se da instauração da ordem burguesa, que reorganizou formas de pensar e explicar o mundo, num contexto económico imperialista no qual a Europa necessitou de conhecer (e, amiúde, confrontar-se) o “Outro”. Marcadas pela emergência de simbologias nacionais e a afirmação de identidades, Foucault considera que estas práticas resultaram na “formação discursiva” do estado-nação. Foucault,1988; Vargas-Hernández, 2008:3-18; PERALTA, 2008:78-80. 94 

A teoria da prática. Bourdieu, 1989:14-25.

95 

VEGA, 1604.

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riam com alguma frequência. Mais uma vez, devemos evitar anacronismos, igualmente decorrentes da ideia de nação, e da forma como ela se afirmou e protegeu, conceito e prática aos quais a esmagadora maioria das comunidades medievais e modernas estavam alheias96. Feita esta advertência, devo registar outra: que devemos interpretar de forma totalmente diferente a presença por terras durienses de um viajante como o já citado barão boémio Leo ou Leão de Rosmital, em meados do século XV, e de peregrinos anónimos que trilharam os mesmos caminhos em romagem a locais sagrados como os de Santiago ou outras ermidas de peregrinação, ou a presença de alemães e flamengos no Douro nos séculos XVI e XVII. E outra ainda. Ficaremos sem saber, até que nos surja documentação em contrário, de que forma as populações locais reagiam à presença destes homens (boémios, alemães, flamengos e, mais tarde, ingleses, e outros) que lhes pareceriam exóticos e com quem não seria fácil entenderem-se, e como reagiam à presença de outros estrangeiros ‘mais familiares’, na forma de ‘vizinhos’ galegos e castelhanos. Finalmente, e encarreirando na linha que há pouco defini, como reagiam a outros ‘estranhos’ à terra, vindos do Porto e de outras terras do Reino para aí mercadejarem ou fazerem vida. É lugar-comum dizer-se que os homens medievais e modernos se movimentavam muito, deixando as suas terras, buscando raízes, modo de vida e fortuna noutros lugares, no Reino e no estrangeiro97. Talvez se exagere e se tome a excepção, documentada, pela regra; regra que é a de gentes das aldeias que passavam, e ainda passam, anos, a vida inteira se preciso for, nos limites estreitos de uma terra, da terra onde nasceram, viveram e morreram os seus pais e antecessores98. Mas deixando esse debate para outra ocasião, e aceitando, com Iria Gonçalves e outros investigadores, que o homem medieval e moderno viajava, importa dizer que o Douro, como outras regiões percorridas por um rio navegável e estradas mais ou menos difíceis que o acompanhavam ou cruzavam, foi visitado por muita gente de fora. Por clérigos (basta pensar nos franceses beneditinos e cistercienses que fundaram mosteiros,

ou nos abades, cónegos e bispos das abadias e igrejas durienses), por artistas, por peregrinos, como se disse, e, principalmente, por mercadores. ESTRANGEIROS NO DOURO NA ÉPOCA MEDIEVAL

96  Além de Laurence Moral, citada, ver esta questão em Calabi, 1995:501/502.

Pelo atrás exposto percebe-se que não tenho grande coisa a dizer sobre o assunto em epígrafe. Recuando ao século XII, é provável que alguns monges cistercienses franceses tivessem feito uma espécie de peregrinatio hispânica medieval que os trouxe ao Douro, como Bronseval no século XVI, que visitou a “solidão e isolamento” do mosteiro de Salzedas e o “vale perigoso” do eremitério de São Pedro das Águias99. As crónicas monásticas referem com frequência o facto de terem sido monges de Claraval os autores da reforma do antigo cenóbio beneditino de São João de Vellaria, transformando-o no conhecido mosteiro de São João de Tarouca100. O Douro deveu muito aos cistercienses que o escolheram para o seu retiro do mundo. De São João de Tarouca, no século XII, a Nossa Senhora da Assunção de Tabosa, no século XVII, em plena “terra do demo”, passando pelo citado eremitério de São Pedro das Águias, pelas abadias de Salzedas e pelo mosteiro de Santa Maria de Aguiar, entre outros, recolhemos testemunhos de uma presença rica em experiências de povoamento e de aproveitamento da terra que se traduziu na introdução de recursos rurais de ponta e na organização de “uma economia de excedentes (derivada da gestão de produtos provenientes dos solos agrícolas explorados pelos irmãos conversos), o que facilitou também a expansão quantitativa das terras pertencentes aos mosteiros”101. Se houve franceses entre os monges, e é possível que sim, a relação entre eles, os irmãos portugueses e os conversos que lhes cuidavam das granjas foi determinante na transmissão de conhecimentos, principalmente da tecnologia do vinho, que o tempo se encarregaria de apurar. De resto, já no século XVI alguns vinhos produzidos em domínios monásticos de Cister no Vale do Douro alcançaram fama que ultrapassou a região, casos dos “vinhos de pé-posto” da

97  GONÇALVES, 1980: 119. Note-se que este trabalho é excelente; de resto, a Autora dedicou a este tema vários estudos de referência obrigatória.

99 

98  Basta correr algumas terras portuguesas para o percebermos. Ainda há poucos anos perguntei por uma ponte medieval a um habitante de aldeia transmontana que me informou que ela existia a poucos quilómetros de distância; no entanto, era um lugar ao qual ele não ia há vários anos.

100 

MARQUES, 1998: 317. SOUSA, 2005:101. Ver também DIAS, 1999.

101  CARVALHEIRA, 1998: 117. Ver a obra colectiva Cister no Vale do Douro (DIAS, 1999):

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granja de Mosteirô102. E outra vez Rosmital. Que viu cobras voadoras e lagartos gigantes no Tua, mas que depois de passar por Freixo de Espada-à-Cinta e Moncorvo também se maravilhou com o “vinho de uvas passas” que ali era produzido e que na Boémia se chamava “vinho grego”. Não demoraria a erguer-se o Douro dos vinhedos e dos solcalcos, essa obra tão magnífica quanto dura, que a região deve aos galegos, logo, a um grupo de estrangeiros que praticamente o não eram, pois moviam-se no Norte de Portugal, e no Douro, como se estivessem em casa. OS HUMANISTAS E A FOZ DO DOURO Desçamos por breves momentos até ao Porto e à Foz do Douro. Na segunda metade da década de 1520 formou-se aí um núcleo de humanistas que teve planos para o rio. Os historiadores da Arte conhecem-no; os restantes, nem por isso. No final de 1525 chegou ao Porto D. Diego Hurtado de Mendoza, então um jovem de vinte e poucos anos. Mendoza era um poeta, e viria a ser um diplomata, embaixador de Castela em Itália; hoje em dia atribui-se-lhe a autoria da célebre obra Lazarillo de Tormes. Não vinha só. Viajava em companhia de um prestigiado intelectual italiano, Mariangelo Accursio que fora, curiosamente, abade comendatário do mosteiro duriense de São João de Tarouca103 e continuava em Portugal a recolha de epígrafes que iniciara em Espanha104. Essa tarefa ofereceu a D. Diego uma oportunidade (e, provavelmente, um pretexto) para rever a sua irmã, D. Maria Pacheco, chamada a Valorosa, exilada em Portugal após a Revolta dos Comuneros de 102  Celebrados por Rui Fernandes, corógrafo de Lamego, também ele simbolizando a presença das poderosas redes transnacionais de cristãos-novos que dominavam o trato atlântico (e não só) no século XVI. Era irmão de António da Fonseca, banqueiro do papa, residente em Roma, de Jácome e Jerónimo da Fonseca, e de Isabel Nunes e Genebra da Fonseca, esta última casada com o mercador e matemático Bento Fernandes, do Porto, autor do Tratado de Arismética. Rui Fernandes foi o autor da célebre Descrição do Terreno ao redor de Lamego duas léguas. Ver a edição mais recente editada pelo Museu de Lamego. FERNANDES, 2012. 103  Comenda que viria a perder nas intrigas e jogos de interesse travados em Roma. Ver SILVA, 1866: 97 (carta de D. Miguel da Silva sobre a demanda de Tarouca), 383 (instruções a D. Martinho de Portugal). 104  Em Granada tivera o auxílio do jovem D. Diego Hurtado, cuja família administrava o antigo reino mouro. Sobre este assunto, e de resto, para as informações que se seguem, salvo excepções indicadas, ver DESWARTE-ROSA, 2011:17-112. Ver também o estudo da mesma autora sobre D. Miguel da Silva: DESWARTE-ROSA, 1989.

Castela105. Instalada no Porto, Maria Pacheco fez-se notar pelo pequeno séquito que a assistia, intelectuais que com ela viviam ou que a visitavam. O humanista Diego Sigeu acompanhou-a desde o início e depois prosseguiu a sua vida em Portugal106. D. Miguel da Silva, bispo de Viseu e abade comendatário de São João da Foz era visita de casa, fazendo-se acompanhar pelo activo arquitecto Francesco de Cremona, cuja obra patrocinava107. Mariangelo Accursio, um dos primeiros epigrafistas da Renascença a visitar a Península Ibérica108, fala do encontro com D. Miguel da Silva e do projecto que este prelado tinha para o rio Douro. Eis como uma tertúlia de prestigiados homens cultos (por esses anos Castiglione, que dedicaria a sua edição de 1528 do seu livro O Cortesão, ao bispo de Viseu, estava também na Península) planeia a transformação da en105  1520-1522. Envolvendo as cidades de Castela, principalmente Toledo e Valladolid, tem várias interpretações: revolta anti-senhorial, primeira revolta burguesa ou motim anti-fiscal. Opôs as cidades a Carlos I no seu regresso a Espanha (praticamente sem falar castelhano) e ao favor que concedeu aos nobres que com ele vieram; de resto, pela primeira vez surgiram nas portas das igrejas pasquins que diziam assim: “Tú, tierra de Castilla, muy desgraciada y maldita eres al sufrir que un tan noble reino como eres, sea gobernado por quienes no te tienen amor”; depois, a necessidade de cobrar impostos para financiar a eleição imperial de Carlos originaram levantamentos armados e a proposta de entrega do trono a Joana, cuja ‘loucura’ seria ‘revista’; o assunto é muito mais complexo e passou, inclusivamente, pela falta de apoio da ‘rainha’ a este movimento. Para a história que nos interessa refira-se que D. Maria Pacheco dirigiu a luta em Toledo após a execução do seu marido, Juan de Padilla, derrotado na batalha de Villalar em 1521. Perante o fracasso do movimento Maria fugiu de Toledo (1522) disfarçada de camponesa e entrou em Portugal; aqui seguiu caminho por Castelo Branco, Guarda, Viseu, Porto até Braga, onde foi recebida por D. Diogo de Sousa. Quando adoeceu veio curar-se para o Porto onde foi alojada por D. Pedro da Costa, bispo de Osma, capelão da Imperatriz, nas suas casas sobranceiras ao Douro: “Este prelado no solamente le mandó dar sus casas, que estan asentadas en lo más alto y sano de la ciudad y encima del Duero con vistas muy graciosas para el mar y la tierra”. Maria morreria no Porto em 1531. 106  A sua filha, Luísa Sigueia, ou Sigeia, em meados do século XVI, quando a família já vivia em Lisboa, foi secretária da infanta D. Maria, que tinha igualmente gente da sua casa no Porto. Educada pelo pai, Luísa era fluente em “Latin, Greek, Hebrew, Chaldean, and Arabic as well as some modern languages. In 1542, she went with her sister to Queen Catarina’s court. Here they were at the service of the king’s sister, D. Maria of Portugal. Luisa had access to the royal library and could dedicate herself to her literary pursuits. Her most famous works, produced during these years, are: Duarum Virginum Colloquium de vita aulica et privata Loysa Sigea Toletana auctore, editum Vlyssiponae, anno salutis MDLII, a bucolic dialogue filled with classical topoi, and Syntra, a poem dedicated to her patron (D. Maria). We also have some letters, including letters sent to Pope Paul III. Sigea was by far the best and most renowned female scholar of her age”; FRADE, 2016. 107  A obra de Francesco de Cremona pode ser acompanhada num excelente estudo de Susana Matos Abreu, ABREU, 2010: 557-583. 108  Chegara integrando a comitiva de Carlos V. Como humanista que se prezava, visitou várias partes da Europa para estudar a presença romana. De Portugal entraria ao serviço dos banqueiros Fugger, em Augsburgo, dedicando a Anton uma parte da sua obra.

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trada do Douro, traçando planos, imaginando estruturas arquitectónicas e compondo epígrafes latinas. Miguel da Silva pretendia reproduzir no rio o complexo de obras que os Romanos haviam erguido no porto de Óstia. A arte ao serviço da navegação e da protecção dos mareantes. E do prestígio do promotor da obra. O bispo-mecenas conseguiu fazer um templete suportado por colunatas no meio do rio, à entrada da Foz, onde colocou imagem togada, à romana, e um farol na margem, pequena jóia de arquitectura renascentista,

onde foram gravadas as epígrafes que Cremona teve o cuidado de discutir com Accursio. No farol, há muito que se apagaram os “fogos perpétuos” que Miguel da Silva mandara acender e as epígrafes desvanecem-se; o templo marinho ter-se-á arruinado e sepultado no fundo do rio; e a estátua togada, que poderes portuários substituíram por uma cruz de ferro quando o prelado caiu em desgraça e fugiu para Roma, foi resgatada das águas em 1868 e levada para Lisboa, onde está actualmente, no Museu Arqueológico do Carmo.

Gravura 1 - Farol de São Miguel-o-Anjo. Cantareira In BARROS, Amândio Jorge Morais - Porto. A construção de um espaço marítimo no início dos tempos modernos. Lisboa: Academia de Marinha, 2016, p. 80

Imagem 1 e Gravura 2 – A estátua togada à romana Portmus e o templete onde esta estava. In BARROS, Amândio Jorge Morais - Porto. A construção de um espaço marítimo, cit., respectivamente p. 79 e 78.

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Gravura 3 – A reconstituição do farol de S. Miguel-o-Anjo, por Gouveia Portuense

CRISTÃOS-NOVOS, ALEMÃES E FLAMENGOS NA ÉPOCA MODERNA Foi na cidade do Porto que se decidiram alguns dos destinos do Douro. E os cristãos-novos tiveram uma grande quota-parte nisso. Não vou deter-me em apreciações sobre os tratos marítimos deste porto, e dos portos portugueses em geral, profundamente influenciados pela acção destes mercadores, pela ascensão das suas redes, capacidade financeira e facilidade de intervenção nos centros mais dinâmicos da economia-mundo da Época Moderna109. Uma parte do valor-acrescentado que favorecia os seus empreendimentos foi realizada no Douro. Pelo século XVI em diante percebemos o seu interesse nos vinhos, que encaminhavam até ao Porto e aos navios, 109  BARROS, 2015.

e nos sumagres, que lhes completavam as cargas de pastel que adquiriam nos Açores e alimentavam as indústrias de Castela e do Norte da Europa. Além disso, convém não esquecer que a geografia destes mercadores conversos e cristãos-novos portugueses estava bem representada em várias vilas e povoados durienses, transmontanos e beirões. Um dos traços mais marcantes do comércio dos séculos XVI e XVII era a constituição de parcerias entre capitalistas, que avançavam o grosso do dinheiro envolvido, e mercadores que davam o seu trabalho, a “indústria”, na letra dos contratos. Tinham a duração de um ano mas, em geral, eram renovadas, criando, assim, uma familiaridade e confiança entre as partes, atributos essenciais ao bom andamento dos negócios. O grande mercador era sedentário. Tinha a sua casa e o seu armazém, que funcionavam, por vezes, como escritório, feitoria e casa bancária. Precisava de quem

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se movesse no terreno em seu nome e comprasse fazendas, acertasse contratos sobre produções futuras e garantisse a colaboração de diversos fornecedores. Se, além disso, conseguisse que estes sócios circulassem sem problemas nos portos europeus, melhor. Os alemães eram conhecidos no Porto pelo comércio marítimo – o porto de Hamburgo que, de resto, era franco e ‘escondia’ muitos armadores e navios holandeses, enviava navios ao Douro anualmente – e por outro motivo menos pacífico: alguns dos que se acomodaram na cidade compunham o corpo de lansquenetes alemães que enfileiravam no exército de Sancho de Ávila quando os castelhanos tomaram posse da cidade em nome de Filipe I, em 1580. Deixaram-se ficar; e ao fim de poucos anos já tinham trocado o pique e a lança pela mula e a albarda com que se metiam aos caminhos a mercadejar. São os primeiros que encontro a frequentar sistematicamente o Douro em parceria com negociantes do Porto. Tudo começou em 1585, quando Melchior Rodrigues, mercador da cidade, morador na Rua Chã, celebrou contrato de parceria com um alemão chamado “Daniel da Rosa Estam” (assina Daniel de Rossem Stam), entregando-lhe 50 mil reais em moedas de tostões de prata para que este fosse rio acima a tratar em vinhos. Talvez porque as expectativas fossem mais altas do que o habitual, e a procura de vinhos mais elevada, diz-se que a parceria duraria “ho tenpo que elles forem contentes e ouverem por bem”. Pouco depois entra o contrato com João Estroll (Johanes Stuhell), que seguirá o mesmo caminho110. É possível também que em finais do século, algumas ligações familiares entre ‘flamengos’ e alemães possam significar alguma coisa nestes movimentos. Pêro Rey, casado com a senhora “Giralda Badems”, associado a “Pero Rutez” e “Juan Vel”, flamengo, têm uma série de negócios pendentes para o que nomeiam procuradores em 1596111. De resto, Rey já era assíduo na documentação notarial da cidade na década de 1590, e continuará a sê-lo nas seguintes. Afastando-se um pouco deste padrão, mas certificando a produção vitivinícola do Douro voltada para o grande mercado marítimo ibérico – e para a armada112 110  165.

– em 1595, “Francisco Lopez d’Emsiso”, tesoureiro dos alfolis da Galiza, nomeou procurador “Dioguo Ruvio de Vergara”, de Santiago de Compostela, para subir o rio a cobrar os vinhos que lhe deviam de transacções combinadas antes, acompanhado por “Antonio Dellgadilho, de Sima de Bouças do reino de Galiza” e “Gaspar de La Elgeira” (assina: Guaspar dela Helguera), estante em Aveiro e “Antonio Escrivano” (assina: Antonio Escriviano) morador em Pontevedra, estante no Porto; no documento refere-se que os vinhos já deviam estar prontos para serem entregues. Na sua maioria, destinavam-se à armada de Ferrol113. Do mesmo modo, e juntando aos vinhos os sumagres, o mercador Simão Vaz enviava regularmente ao Douro comerciantes zamoranos, entenda-se, almocreves abastados, a negociar em seu nome sumagres em Trevões, São João da Pesqueira, que se tornara um importante centro produtor desta mercadoria114. É natural que a presença destes estrangeiros, principalmente dos do Norte da Europa, tenha criado condições para que a província duriense passasse a ser conhecida nos seus lugares de origem ou nos centros europeus onde os produtos eram vendidos. E que esse facto pudesse atrair outros mercadores seus conterrâneos a estas paragens; conhecimento que podia ser também adquirido na conversação com os marinheiros que vinham ao Douro carregar os seus barcos; basta conferir os registos de visitas de saúde das embarcações entradas na barra do Douro na Época Moderna, e os livros da redízima para nos apercebermos dessa movimentação forte. No entanto, penso que os motivos para a grande atracção registada a partir da segunda metade do século XVII, quando o fenómeno da presença de estrangeiros se tornou evidente, foram gerados nas próprias dinâmicas sociais do comércio. Um fenómeno que se traduziu na fixação de ‹flamengos›, alemães e dinamarqueses no Porto e no Douro, onde compraram terra e ergueram quintas (por vezes a partir das granjas dos velhos mosteiros de Cister) e cujos nomes hoje identificamos com algumas marcas de vinho do Porto. É o que veremos a seguir.

Arquivo Distrital do Porto (ADP) – Po1º, 3ª série, liv. 77, fls. 162,

111  ADP – Po1º, 3ª série, liv. 110, fl. 189v.

plo: ADP – Po1º, 3ª série, liv. 112, fl. 7.

112  Não por acaso, aquele que foi, porventura, o maior mercador do Porto na segunda metade do século XVI, Simão Vaz, arrematou a sisa dos vinhos no Porto, precisamente nos derradeiros anos da centúria, quando se registava uma procura intensa de vinhos para abastecer as armadas. Exem-

113 

ADP – Po2º, 1ª série, liv. 3, fl. 168.

114  Correspondência de Simão Vaz com Simón Ruiz, em BARROS, 2017 (no prelo).

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CONCLUSÃO: O PORTO, O DOURO E OS FLAMENGOS Em 1618 houve grande agitação na cidade com uma visita inquisitorial que surpreendeu os cristãos-novos. Em plena trégua com as Províncias Unidas (1609-1621), quando tudo parecia tranquilo, teve como efeito a prisão de mais de uma centena de mercadores, entre os quais se contavam os importantes da cidade, e subsequente fuga de muitos deles para Amsterdão, Hamburgo e Londres115. A economia da cidade ressentiu-se dessa debandada e a Câmara bem a lamentou. Mas é pouco provável que os inúmeros tratos que estavam em curso ou prometidos (e pagos, nalguns casos) ficassem desertos. O prejuízo seria intolerável tanto para compradores como para vendedores. Por isso, não será por acaso que, pouco depois deste êxodo, vejamos desembarcar no Porto famílias inteiras de homens do Norte da Europa que, também não por coincidência, vêm trilhar os mesmos caminhos e desenvolver a mesma actividade. Chegava o tempo dos ‘Flamengos’. Veronika Joukes estudou-os e registou as notas que se seguem116. Vindos de vários lugares do Norte da Europa, da ‘antiga’ Flandres medieval, mas, principalmente, das Províncias Unidas (origem que, em geral, escondiam), os flamengos apresentavam-se fortalecidos por laços matrimoniais directos ou colaterais, de que se destacavam três grupos: 1. Francisco Selrico, Guterres Ferreira, João Henriques, João e Arnão Piper, Pedro Pedrosen e João Van Zeller; 2. João Descorsia, Daniel de la Pedra, Pedro van Susteren, João Cuypers e Jacques de Cramere; 3. Pedro Vaseur, Chorim van der Horst, João van Zeller e a família Robim. Instalaram-se no Porto, é certo. Mas faziam negócios com Lamego, Viseu, São João da Pesqueira, para onde se deslocavam com frequência. E a esses negócios não era alheia a expansão ultramarina/marítima da Holanda, responsável pelo aumento da produção e calibração dos vinhos do Douro, assim feitos de propósito para suportarem as longas viagens de mar117. 115  Ver MEA, 1996: 345-355. 116  JOUKES, 1999. 117  Sobre este assunto ver, PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio Jorge Morais – Wine trade in the Early Modern Period: a comparative perspective from Porto, in Patrimonio cultural de la vid y el vino: Con-

Só faltava dar o passo seguinte. O da própria participação destes negociantes no trato português do Atlântico, caso do Brasil, como aconteceu com Otto Elders, em 1654. Este tipo de intervenção não nasceu do nada nem aconteceu por acaso. Futuras investigações poderão confirmar esta hipótese que hoje, cada vez mais, me parece uma certeza. O padrão é o mesmo que se detecta no século XVI, utilizado pelos mercadores portugueses desde a cidade, fretando navios europeus para os mandar ao Brasil, mesmo em pleno bloqueio à navegação das Províncias Unidas (e da Inglaterra) ordenado pela Coroa Dual, empregando sócios para subir o Douro e calcorrear os trilhos que percorriam montes e vales, em busca dos vinhedos, dos sumagreiros e dos linhares que lhes aumentariam os lucros. O Douro modificara-se desde os tempos dos Cistercienses ou do próprio barão de Rosmital. Os estrangeiros já não se amedrontavam com o arvoredo medonho ou os bichos terríveis, e já não era só o Porto que bebia os seus vinhos. Barcos toscos, feitos por homens rudes, de saberes antigos, porventura as velhas azurrachas, que dentro em breve seriam barcos rabelos, uniam as povoações que cresciam a pouca distância do rio. E levavam esses homens de outras paragens por um rio que aos poucos, quase sem dar por isso, transformava aquele vale num inesperado anfiteatro de xisto e vinhedos. Impressionando-os. Fazendo-os ficar. Até hoje. BIBLIOGRAFIA Fontes manuscritas Arquivo Distrital do Porto (ADP) – Po1º, 3ª série, liv. 77. Fontes bibliográficas ABREU, Susana Matos (2010) – “A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal: novas pistas de investigação”, in A encomenda. O artista. A obra, coord. de Natália Marinho Ferreira Alves. Porto: Cepese. BARROS, Amândio (coord.) (2015) - Os Descobrimentos e as Origens da Convergência Global. Porto: Associação para a Divulgação da Cultura da Língua ferencia internacional / coord. Sebastián Celestino Pérez, Juan Blázquez Pérez, Vol. 1, 2013 (Patrimonio cultural de la vid y el vino: ponencias invitadas), p. 195-209.

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Painel 2

Estrangeiros no Douro Vinhateiro Fátima Matos Didiana Fernandes Gaspar Martins Pereira

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Nota biográfica: Fátima Loureiro de Matos é professora auxiliar do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, investigadora do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT) e auditora de defesa nacional. Tem desenvolvido investigação nas temáticas relacionadas com o mercado e política habitacional, qualidade de vida e habitação e o papel das cooperativas de habitação na promoção de habitação de interesse social. Tem participado em encontros científicos nacionais e internacionais nos quais tem apresentado os resultados dessa investigação, alguns dos trabalhos realizados deram origem à publicação de artigos científicos e capítulos de livros. Participou na equipa técnica que elaborou o Plano Estratégico da Habitação 2008-2013, para o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). Participou na equipa técnica do programa Bairros Críticos - Bairro do Lagarteiro e nos Planos Regionais de Ordenamento do Território da Região Centro e da Região do Oeste e Vale do Tejo. Leciona várias unidades curriculares do 1º e 2º ciclos, do Departamento de Geografia da FLUP e tem orientado diversas teses de Mestrado.

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Um inglês no Douro dos anos trinta: John Gibbons (Este artigo retoma, em parte, um anterior, da autora (Matos, 2012)

Fátima Loureiro de Matos Departamento de Geografia da F.L.U.P./CEGOT

Resumo: Neste artigo procuramos descrever a paisagem do Douro nos anos 30, a partir da obra de John Gibbons I Gathered no Moss. Esta paisagem é descrita a partir de uma pequena aldeia perdida nas vertentes deste rio, Coleja, no concelho de Carrazeda de Ansiães, onde o autor permanece quatro meses. A obra de John Gibbons pode ser integrada nos relatos de viagens, escritas por autores estrangeiros, que ganham grande expansão a partir de meados do séc. XVIII, num corpo que ficou conhecido por “literatura de viagens”. Nestes relatos sobressaem descrições de paisagens que revelam uma sensibilidade plenamente do Romantismo, não possuindo propriamente um caráter científico, destinam-se, sobretudo, ao comum dos leitores. O autor descreve com pormenor as características da região e da população, um território onde a beleza esculpida e gerida pela comunidade, é sem dúvida um dos seus maiores atrativos.

Abstract: In this paper we describe the landscape of the Douro in the 30s, from the book of John Gibbons I Gathered no Moss. This landscape is described from a small village lost in the slops of this river, Coleja, in the municipality of Carrazeda de Ansiães, where the author remains four months. John Gibbon’s book can be included in travel reports, written by foreign authors, which earn large expansion from the mid-18th century, a body which became known as “travel literature”. In these reports emerged descriptions of landscapes that reveal a sensitivity fully of Romanticism, don’t have a scientific nature, intended primarily to public readers. The author describes in detail the characteristics of the region and the population, a territory where beauty carved and managed by the community, is undoubtedly one of its major attractions.

Palavras-chaves: Douro, John Gibbons, Paisagem, Relatos de Viagem

Keywords: Douro, John Gibbons, Landscape, Travel Reports

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1. INTRODUÇÃO

S

ão várias as obras de descrição geral e relatos de viagens, escritas por autores estrangeiros acerca de Portugal até à publicação, em 1939, de I Gathered no Moss, de John Gibbons, onde encontramos uma panorâmica geral das características físicas e socioeconómicas do país em várias épocas da história. É sobretudo a partir de meados do séc. XVIII, que encontramos vários relatos de viagens, em cartas, diários e memórias, em obras de pendor informativo ou fantasioso, ou em fusão de ambos, constituindo textos cada vez mais valorizados, num corpo conhecido por literatura de viagem, “ que, na sua generalidade… não veiculavam uma imagem favorável do nosso país, sendo…salientados o seu atraso económico, a barbárie das tradições religiosas e a ignorância do povo” 118. Estes relatos, associam-se ao hábito de viajar que ganha, um caráter educativo e cultural, sendo frequente os jovens nobres e burgueses, sobretudo do Norte da Europa, efetuarem viagens como complemento da sua educação, destacando-se, os relatos de viagens de ingleses, que se terá iniciado com o Grand Tour, a viagem iniciática pela Europa dos jovens das classes superiores inglesas e que se desenvolveu e floresceu sobretudo a partir de 1660, até ao momento da chegada do caminho-de-ferro, mais particularmente na década de 1840 … [O] advento dos transportes de massas, por volta de 1825 não impediu a continuação do Grand Tour … passou a significar viagens mais fáceis, seguras e abertas a todos, inclui novos países nos programas das viagens119. Esta expansão das viagens, não é alheia, ao desenvolvimento dos meios de transportes, sobretudo o ferroviário, o marítimo e mais tarde, após a 1ª Guerra, o rodoviário, o que possibilitou uma maior liberdade de viajar, o que aliado a uma melhoria das condições económicas e sociais, tornam as viagens mais acessíveis a um número cada vez maior de pessoas. Nestes relatos, sobressaem descrições de paisagens que revelam uma sensibilidade plenamente do Romantismo, não possuem propriamente um caráter 118  CALADO, 2005: 16 119  PINHO, 2009: 108

científico, destinam-se, sobretudo, ao comum dos leitores, ainda que alguns apresentem narrativas plenas de informação, de estatísticas e de descrições sistemáticas, e outras em que a sensibilidade do autor, a sua relação com o objeto e com a natureza, são os aspetos primordiais. Entre os dois conflitos mundiais, Portugal parece ganhar um certo protagonismo enquanto destino escolhido por vários viajantes estrangeiros, destacando-se entre estes os ingleses, situação que não é alheia a um conjunto de medidas que se vão sucedendo em Portugal, com o objetivo de divulgar o país como destino turístico, saliente-se, a criação da Repartição de Turismo, que edita vários folhetos turísticos sobre o país e encomenda filmes sobre Portugal enquanto destino turístico. É neste contexto, que surgem, várias narrativas de viagem por autores ingleses, que apostam, sobretudo, na divulgação do país, descrevendo a beleza das suas paisagens naturais, a sua história, arquitetura, as festividades religiosas, sendo poucas as que se referem à situação política e económica do país. Contudo, apesar do grande número de obras publicadas deste género, não são abundantes relatos de autores estrangeiros incidindo, particularmente, sobre uma pequena aldeia do Alto Douro - Coleja - perdida nas vertentes do rio. Na verdade, em 1938 a região do Alto Douro120 encontrava-se isolada do restante país podendo ser caracterizada, em termos paisagísticos, como um anfiteatro coberto de vinhas, uma paisagem construída com o esforço e suor de várias gerações, abrigando, escondidas entre as encostas do rio, minúsculas aldeias e belas quintas produtoras do afamado vinho do Porto, tão apreciado pelos ingleses. É esta deslumbrante paisagem, com uma morfologia única em que a ação do homem deixou traços inconfundíveis, que John Gibbons encontra ao desembarcar na Estação do Vesúvio tendo como destino final a pequena aldeia de Coleja, pertencente à freguesia de Seixo de Ansiães, do concelho de Carrazeda de Ansiães. Nesta aldeia, partilhou com os camponeses quatro meses das suas vidas, descrevendo com pormenor as características daquela região, os seus problemas e an120  O Alto Douro constitui uma designação já antiga, sendo utilizada desde meados do século XVIII, para referenciar a região vinhateira e a sua individualidade regional. Lembre-se, que a Região Demarcada do Douro, é a primeira região vitícola a ser demarcada a nível mundial em 1756, cobrindo uma área que ultrapassa os 250 000 hectares.

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seios. 2. O AUTOR E O SEU LIVRO John Gibbons, escritor pouco conhecido e jornalista, nasceu em Londres em 1882 e faleceu em 1949. Filho de um advogado oriundo de uma família de pequenos proprietários rurais do Lincolnshire, passou a sua infância e juventude em York, aos dezassete anos, abraçou a fé católica, tornando-se praticante, e, quatro anos depois, casou com Mabel Woodhead, de quem teve duas filhas121. Por essa altura, torna-se investigador do British Museum onde decifrava manuscritos antigos dos arquivos deste museu, em 1914, alista-se como voluntário, e parte para Flandres de onde regressa em 1918 com uma doença nervosa de guerra. Em 1922, será abalado pela morte da mulher, tendo casado de novo, mais tarde122. Em 1928, uma filha deste seu segundo casamento adoece e, o autor com o apoio da revista católica Universe, leva a filha em peregrinação a Lourdes, descrevendo as recordações desta viagem em -Tramping to Lourdes, que foi publicado pela Methuen & Co. e traduzido para francês, com o título Le Vagabond de Notre Dame. Em 1929, o autor assina um contrato de três anos com a The Wide World Magazine e é, a partir daqui, que começa uma autêntica vida de “cavaleiro errante”, percorrendo 28 países, sempre por caminhos pouco conhecidos, viajando a pé ou de comboio em 3ª classe. Ao longo dessas viagens vai escrevendo o que vê e o que sente, relatando de uma forma simples, viva e por vezes cómica as suas aventuras. A sua primeira estadia em Portugal, em 1930, levou-o ao Algarve e Alentejo, tendo então escrito o livro A Foot in Portugal, publicado em 1933, por George Newnes, para depois voltar em 1934, a convite das Comissões de Iniciativa de Turismo da região Algarvia e escreve Playtime in Portugal - An Unconventional Guide to the Algarves, publicado pela Mentuen & Co., em 1936, dois anos depois, regressa a Portugal, desta vez ao Alto Douro. “Antes desta viagem, esteve em vários lugares – Norte de África, Estados Unidos, Palestina, Irlanda, Finlândia, Países Bálticos, sendo um produtivo escritor de viagens já bastante conhecido e popular, que a par disso publica obras em jeito de almanaque

de curiosidades…e títulos de cariz religioso ou hagiográfico”123. Como o seu forte era os relatos de viagens o seu editor aconselha-o a escrever, fora do seu país, dado que Portugal era um país que o autor já conhecia e possuía uma vida mais barata, estas circunstâncias, permitia-lhe, sobreviver com o adiantamento feito pelo editor. A ideia inicial de Gibbons era escrever uma autobiografia, que contudo não se veio a concretizar, ainda que, em alguns capítulos de I Gathered no Moss o autor se detenha em alguns detalhes autobiográficos, sobretudo, no segundo e quinto capítulos. I Gathered no Moss foi publicado em 1939 e recebeu o prémio Camões, referente à melhor crítica em língua estrangeira acerca de Portugal, instituído pelo então Secretariado de Propaganda Nacional. A tradução portuguesa foi publicada em 1984, pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, nas comemorações dos 250 anos desta Vila, com o título Não criei Musgo. O título do livro tem uma relação com o provérbio, A rolling stone gathers no moss, que personifica, as pessoas que estão sempre em movimento, que mudam constantemente de profissão ou local de trabalho, que não criam raízes, nada fazendo de consequente e perene e nunca chegando a alcançar sucesso ou fortuna124. É com este sentido que o autor explica o título da obra, “como nunca consegui fazer fortuna em vida, o título I Gathered no Moss pareceu-me o mais sugestivo”125. Quanto à escolha de Coleja, o autor explica o “fantástico golpe de sorte” que teve – “acontece que conheço um cavalheiro português126, que reside em Londres, cuja família é oriunda de uma aldeiazinha do Alto Douro (...) ainda possuía lá uma casinha - e talvez uma cama, segundo o meu amigo. Se eu quisesse podia ali passar uns meses”127. Segundo Rui Pedro Pinto (2009), a obra de Gibbons Não criei Musgo, é um compêndio ideológico do Estado Novo, onde se constata 123 

ARAÚJO, 2016

124 

CALADO, 2005

125 

GIBBONS, 1984: 19

121  ARAÚJO, 2016

126  “Alcino Moutinho, filho de João Moutinho. Este aos 12 anos deixou a sua Terra Natal e partiu para o Porto como ajudante de balcão, tornou-se depois proprietário de uma casa que fabricava peças em prata e conseguiu fortuna. Foi ele que mandou edificar o edifício da escola primária, com moradia anexa para a professora”, nota da tradução, p.20 e entrevista de John Gibbons dada ao Diário de Notícias de 23/03/1940, aquando da sua estadia em Portugal para receber o Prémio Camões.

122  ARAÚJO, 2016

127 

GIBBONS, 1984: 20

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uma evidente sobreposição de planos discursivos entre o registo do autor inglês e a ideologia salazarista de valorização do ruralismo, traduzida na exaltação do viver das comunidades aldeães, como se especialmente nestas se abrigassem os mais sólidos e admiráveis sentimentos de abnegação e de patriotismo, de autenticidade e de genuína pureza128. Reconhecemos, facilmente, na descrição que Gibbons faz dos camponeses de Coleja o arquétipo do chefe de família, honesto, devoto e ordeiro, tido como o espelho do homem novo do salazarismo, o ser virtuoso, suporte da defesa e da ordem nova. 3. A DESCRIÇÃO DE COLEJA Coleja dada a sua posição encaixada na vertente Norte do Douro, voltada para o rio, aproveitando um pequeno valeiro e envolta por socalcos talhados ao longo da encosta do rio a montante do famoso Cachão da Valeira é uma “bênção aos olhos”, de qualquer viajante. Mas deixemo-nos envolver pela paisagem descrita pelo autor Montanhas a perder de vista, enormes picos afiados de rocha pura, selvagem, socalcos de terra arável um pouco mais abaixo (...) no topo do apertado vale que sobe a pique desde o Douro (...) estamos, digamos, numa autêntica cavidade da montanha, e por cima de nós acastelam-se penhascos com cerca de cem pés de altura. Nesta espécie de concha ergue-se a nossa povoação, que, tinha pouco menos de cem “fogos”. (...) À vista não há uma jarda de terra arável, pois esta situa-se no interior da dita concha. As casas que trepam a pique por cima dos telhados umas das outras são na sua maioria brancas e com varandas (...). Nesta povoação trabalha-se, quase todos os homens têm, pelo menos, um palmo de terra que lhes pertence, no alto da serra e o proprietário demora 1 hora a lá chegar, um pedaço de vertente rochosa que ele trabalhou em socalcos129. Com estas descrições, o autor assinala a morfologia da aldeia em “cascata”, adaptada às características topográficas do terreno e a ação do homem sobre a natureza hostil, um solo acidentado, em que as pequenas

propriedades se espalhavam pelas encostas do Douro, em terraços abertos pelo esforço dos homens, transformando a paisagem. O autor descreve, ainda, as características principais da povoação, as habitações, tipicamente transmontanas, cujo princípio dominante é abrigar, sob o mesmo teto a habitação (no primeiro andar - o sobrado, geralmente com um ou dois quartos, a cozinha e a varanda coberta que serve para secar cereais ou roupa) e as lojas, no rés-do-chão, que compreende, normalmente, os estábulos - o curral -, o celeiro e a adega, onde se abriga o gado, se guarda a lenha, as alfaias e produtos agrícolas, descrevendo, também, os equipamentos e o comércio da aldeia. Há uma espécie de cozinha... logo a seguir, encontra-se uma divisão muito agradável, que é uma espécie de sala de estar-trabalhar-e-jantar. A seguir... um quarto. Não existem janelas, mas a luz penetra tanto por um vidro coalhado colocado entre as telhas como pela porta, que geralmente está aberta. Esta dá para uma varanda larga, com telhado alto... no rés-do-chão, e ligado por uma pequena escada, fica o estábulo da mula. Temos a nossa pequena escola… foi oferecida à povoação pelo pai do meu amigo de Londres … temos o nosso próprio forno … temos uma loja instalada na casa da Sra. Clara, que nem sempre está aberta, ou por a dona não estar, ou por falta de artigos para vender…Nem para tudo estávamos dependentes de Carrazeda, assim, tínhamos os nossos bufarinheiros, semelhantes aos vendedores ambulantes escoceses de há século e meio atrás. O «homem dos cobres» ou o «homem dos barros» … Descobri …que temos uma igrejinha…um pequeno cemitério…. Também temos uma forja...mas a presença mais regular era a da mulher das sardinhas… o barbeiro vendia vinho e era o local de reunião dos homens ao Domingo…Não dispúnhamos de cinema …mas as fitas chegavam até nós por intermédio de um ambulante …A povoação apesar de pequena, dispõe de dois lagares130. Tratando-se de uma região em que as atividades agrícolas dominavam a estrutura económica local, o autor, faz, referência às principais culturas locais: - a vinha, não podemos deixar de salientar que Coleja se encontra situada em plena Região Demarcada do Douro, mais concretamente na sub-região do Cima

128  PINTO, 2009: 116 129  GIBBONS, 1984: 26-33, 43-45

130 

GIBBONS, 1984:32-34;43-44, 174-181, 207

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Corgo, em que o vinho do Porto é de superior qualidade. Para além do vinho do Porto, o autor não deixa de referir o vinho de consumo, feito pelos próprios lavradores, o qual, aliás ajudou-o a aquecer os longos dias frios, “o vinho de consumo está-lhes na massa do sangue e as crianças, mal a mãe deixa de as amamentar, começam logo a bebê-lo aos golinhos (...). Na quinta do Serafim, havia sempre uma garrafa cheia e cada vez que eu entrava na sala enchiam-me um copito com a maior naturalidade”131; - o cereal e a oliveira, relativamente a esta última o autor descreve e participa numa das atividades principais do calendário agrícola - a apanha da azeitona -, que envolve toda a população da aldeia, os olivais revestem a maior parte das encostas, tendo substituído a vinha, após a filoxera. O autor não deixa de fazer referências a esta doença, que atingiu a região entre 1870 e 1872, causando graves prejuízos, principalmente aos pequenos agricultores, levando à emigração da população e ao abandono de vários socalcos, ainda hoje, encontramos na paisagem duriense muitos destes “mortórios”. (...) todas as pessoas da aldeia são recrutadas, [para a colheita da azeitona] incluindo as de dois anos de idade e a escola fica fazia. A colheita é uma espécie de festa familiar. O pai, com uma vergasta comprida, vareja as oliveiras (…) de uma vergastada, as bolinhas negras caem todas à uma como saraiva. A apanha vai-se processando calmamente, como se se tratasse de um «pic-nic» familiar…Apesar do trabalho ser bastante duro e obrigar as costas a estarem permanentemente vergadas, as mulheres cantam enquanto apanham os minúsculos frutos132. [Este] lugarejo longínquo e primitivo [espraia-se] pelas regiões mais sofisticadas do globo. (...) foram várias as pessoas da aldeia que me pediram para escrever os seus nomes à máquina, em envelopes, para parentes nos Estados Unidos, no Brasil ou na África Portuguesa133. Para além da agricultura, o autor relata outros meios de subsistência da população, a caça sobretudo às perdizes e a pesca no rio Douro, que é descrita pelo autor com um certo sentido de humor. O empregado tirou uma pedra enorme do fun131  GIBBONS, 1984: 39

do do barco, atou-lhe uma ponta da rede, lançou-a ao rio …vamo-nos afastando lentamente, à medida que desenrolamos a rede... começamos a remar para trás… e o empregado, com uma vara comprida, põe-se a dar vergastadas na água e a berrar… o homem está nitidamente a insultar o rio e calculo que seja para assustar os peixes e obrigá-los a descer até à rede…. Bem, de qualquer modo posso entreter-me a insultar o rio, porque ninguém percebe o que eu digo … Os meus berros foram tão bons que consegui assustar os peixes134. Descreve também a queda do Sívio, também conhecida como fraga da Ola ou Pena Amarela. Caminhando sempre chega-se a uma Cruz de pedra no topo da colina… uma caminhada de meia hora e tem-se uma magnífica vista de uma queda d´água que se despenha de cem pés acima. Neste local abunda uma espécie de mármore branco, que faz faísca quando se lhe atira com uma pedrinha135. 4. A DESCRIÇÃO DA REGIÃO O autor, para além da descrição de Coleja, também descreve a paisagem do Alto Douro, através de um conjunto de relatos das viagens que faz, à volta de aldeia, às quintas inglesas, a Carrazeda de Ansiães, a Barca d’Alva e a Miranda do Douro. As famosas vinhas do Douro estendem-se ao longo do rio por uma extensão de cerca de meia hora de caminho. …O rio é bastante bonito, as pequenas ilhas artificiais, muito abundantes no Alto Douro, que têm pequenas cabanas, são moinhos de água onde moem o trigo …. Neste Novembro de Verão... houve uma onda de calor que atravessou a Europa, o Douro quase secou.…Neste ponto em que me encontro, o rio corre através de um vale com cerca de meia milha de largo. A montanha que se ergue na margem oposta está escavada em forma de concha para dar passagem à linha de comboio.…O Douro em breve subiria e os moinhos correriam perigo, de forma que os homens apressam-se a retirar as mós e a desarmá-los… Vejo junto ao rio, duas quintas produtoras do Porto, vinho que tornou o Douro famoso em todo

132  GIBBONS, 1984:193-195

134 

GIBBONS, 1984: 249

133  GIBBONS, 1984: 57

135 

GIBBONS, 1984: 156

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o mundo. As quintas para, além dos terrenos, são compostas pela casa senhorial, por uma casa mais pequena para alojar o caseiro português que aí vive permanentemente e por um aglomerado de pequenas casinhas para os trabalhadores efectivos. Este pessoal suficiente para as necessidades da quinta durante o ano, torna-se muito escasso para os trabalhos a fazer na altura das vindimas. Noutros tempos era a Galiza espanhola, pobre e superpovoada…que fornecia a Portugal a mão-de-obra necessária nessa época do ano …os socalcos mais antigos do Douro foram talhados por eles,...mas os tempos mudaram, as vindimas são hoje feitas exclusivamente por portugueses… Não paro de me surpreender com a maravilhosa organização destas quintas. O transporte dos pipos até aos carros de bois é facilitado por um mini-caminho de ferro, cada quinta possui um sistema de iluminação próprio... Hoje a Grã-Bretanha controla cerca de oitenta por cento do comércio do vinho do Porto, e os ingleses conservam as casas geralmente fechadas, vindo, de semanas a semanas do Porto, para as arejarem… Recebi um convite, tratava-se do proprietário de uma das grandes quintas de vinho do Porto existentes no vale… Esta família inglesa possui há quatro gerações uma das maiores firmas de comércio de vinho do Porto136. …Ali no topo da serra, vê-se um monte de rocha … são provavelmente os socalcos mais antigos, construídos ainda pelos Galegos, … são estreitos, apenas para a largura suficiente para uma ou duas filas de videiras, e ainda hoje considerados os melhores. Actualmente fazem-se socalcos mais largos137. Nas aldeias transmontanas de economia exclusivamente agrícola, o comércio era relativamente restrito, apenas existindo o Tem Tudo, onde, como o nome o indica, se vendia de tudo, em Coleja apenas existia uma loja deste tipo, como referido acima, daí que tenham um papel fundamental, na estrutura comercial desta região as feiras. A feira constitui o espaço comercial tradicional sendo, simultaneamente, responsável por uma larga percentagem das transações mercantis da região. As feiras são, com efeito, a principal oportunida-

de e o principal espaço de transação comercial de que dispunha a população. Estes pontos de encontro periódicos, dado o aglomerado humano que suscitavam e pela sua regularidade, constituíam um dos principais acontecimentos socioculturais da região, sendo o centro de difusão das notícias, daquilo que se passava no Mundo, assim o eram no passado, assim continuam, ainda que, progressivamente a sua importância, quer como local de comércio, quer de transmissão de informações, esteja a diminuir, a favor de novas formas comerciais ou de novos meios de comunicação. Os negócios eram feitos, geralmente, entre discussões e gracejos, selados com copos de vinho e apertos de mão. O dia de feira constituía para os camponeses a folga das fainas agrícolas e para os seus filhos, muitas vezes, o primeiro contacto com o mundo exterior à aldeia. São algumas destas características que Gibbons nos transmite, quando descreve a sua ida à feira de Carrazeda. (...) Os animais, levam atados no lombo, com cordas, os sacos de géneros para vender na feira (...) Desemboco num campo aberto, o local onde se realiza a feira ao ar livre e vejo as mulheres tentando pacientemente vender objectos manufacturados. São capazes de caminhar cinco milhas para vender uma ou duas galinhas ou apenas alguns ovos! (...) Carrazeda é uma vila bastante pitoresca, com cerca de mil habitantes, hoje invadida por uma multidão de camponeses (...) as lojas vendem de tudo, desde toucinho a frascos de perfume barato e estão apinhadas138. O autor descreve-nos a sua subida ao longo do Douro de comboio, até à fronteira espanhola em Barca d’ Alva, referindo-se à “sensação de vastidão e altura tremendas [das vertentes do Douro], que se vai acentuando à medida que se sobe o rio”139. Esta viagem, como foi efetuada durante a Guerra Civil Espanhola, despertou no autor a curiosidade de conseguir vislumbrar alguma movimentação no outro lado da fronteira, “ao passarem-se coisas tão emocionantes do outro lado, eu não podia deixar de tentar aproximar-me o mais possível. A guerra travava-se a milhares de milhas dali, mas tive a esperança infantil de ver qualquer coisinha”140.

136  A quinta, que o autor refere é a Quinta da Senhora da Ribeira pertencente à empresa DOW’S empresa, resultante da fusão das empresas Silva & Cosens e a Dow & Co, a família referida era a Symington.

138 

GIBBONS, 1984: 107-123

139 

GIBBONS, 1984:198-199

137  GIBBONS, 1984:37, 62,81,90,99,161,100,143,198.

140 

GIBBONS, 1984:199

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Esta linha, que segue até Barca d’ Alva tinha, então, um papel muito importante não só na economia transmontana, mas também como elo de ligação internacional, uma vez que, era fundamental para o transporte de mercadorias e o único meio de ligação terrestre entre as várias povoações das margens do Douro, dado que, o transporte rodoviário não tinha qualquer expressão nessa altura. O comboio misto que inicia o percurso na Régua, levando cerca de dez carruagens de carga e duas de passageiros. A linha de que falo é a única que estabelece a ligação entre as várias vilas,...não há autocarros nem camionetas por estas serras. Chegamos a Barca d’ Alva. A via-férrea segue até Fuentes San Esteban, onde faz a ligação com a linha internacional que vai por Medina até Salamanca, Irún e Paris (...). A fronteira está fechada e é rigorosamente proibido passar para além da Barca d’ Alva141. Em Barca d’ Alva Gibbons visitou a célebre “Quinta da Batoca”, que pertenceu a Guerra Junqueiro. A visita a Miranda do Douro, constitui a realização de um sonho que o autor acalentava desde a sua primeira visita efetuada a Portugal, durante esta primeira estadia e a altura que vai para Coleja, Gibbons tenta recolher informações sobre Miranda do Douro, “só encontrei três linhas no Guide de Muirhead e um pequeno parágrafo numa Catholic Cyclopaedia. ... Miranda era uma cidadezinha demasiado longínqua, com uma velha história e pouco mais”142. A viagem, feita em parte de comboio, até Duas Igrejas e em camioneta, até Miranda, demorou cerca de 11 horas, efetuada em pleno Dezembro, aliás poucos dias antes do Natal, estando um “frio gélido”. O autor refere, mais uma vez, a importância do comboio como único meio de comunicação com o exterior, “se rebentasse uma guerra mundial, a notícia chegaria sempre pelo comboio”143, e as grandes distâncias que separam as várias povoações, uma vez que as viagens eram muito lentas “...por volta das dez e meia chegámos finalmente a Miranda. Ao fim de oito anos! (foi o tempo que a viagem de comboio me pareceu levar)“144. 141  GIBBONS, 1984: 199-200

Na cidade o autor visita a sua Sé, as ruínas do antigo Paço Episcopal e a casa, onde o seu compatriota, General Wellington se tinha instalado durante as lutas travadas com os franceses aquando da invasão napoleónica. “Depois do pequeno almoço...fui visitar a Sé, …a Casa Duque Villington, onde Wellington, se instalou durante as Guerras peninsulares….A pequena Miranda, no topo da sua colina destacava-se na paisagem … pensei então … que muito poucos ingleses visitaram até hoje Miranda, embora valha a pena”145. Descreve ainda, um pouco da História de Miranda, dado que “os quatro cavalheiros [que o autor conheceu na pensão] ofereceram-me um exemplar da ‘História de Miranda’, da autoria do Major Teixeira, apaixonado pela cidade e sua história”146. O autor apresenta-nos um belo roteiro turístico de Miranda, onde não falta as referências ao típico capote transmontano, à dança dos Pauliteiros e ao célebre ex-líbris de Miranda o Menino Jesus da Cartolinha. Um excelente sobretudo, que cobre um homem das orelhas aos tornozelos com suas várias camadas de forro. As suas três capas e uma enorme gola de pele. …Executaram a “dança dos paus” e os intervenientes todos homens, são conhecidos localmente por Pauliteiros. Vestiam uma saia do género “Kilt” escocês, que parece ser de origem céltica… Pude admirar o famoso Menino Jesus da Cartolinha, coisa que, segundo o meu amigo, muitos poucos ingleses terão podido fazer. A imagem tem realmente o seu quê de engraçado. Representa Jesus em rapazinho …dispõe de um guarda-roupa privativo … Entre os vários trajes havia um de antigo nobre de Portugal e outro que há cerca de um século lhe fôra oferecido, cópia dos fatos usados pelos fidalgos ingleses. Nem a cartola faltava!147 Relata, ainda, a bela paisagem da garganta do Douro, o desfiladeiro que faz a fronteira com Espanha, conhecido regionalmente como “Arribas do Douro” onde hoje se encontra, a Barragem de Miranda. O desfiladeiro que estabelece a fronteira tem centenas de pés de profundidade e as rochas com reflexos dourados e de várias cores precipitam-se na vertical para a corrente que ruge. Recordo alguns magníficos panoramas das minhas viagens pelo mundo, mas este

142  GIBBONS, 1984: 270

145 

GIBBONS, 1984:274, 285

143  GIBBONS, 1984: 273

146 

GIBBONS, 1984: 278

144  GIBBONS, 1984: 274

147 

GIBBONS, 1984: 280-286.

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de Miranda é tão fabuloso, que não esquecerei enquanto viver148. Para Gibbons Miranda é das mais belas cidades do Mundo valendo bem todo o esforço que fez para a visitar, ”andei em muitas estradas, vi muitas coisas belas; mas a mais bela do Mundo, para mim, é Miranda... é quase inacessível; mas quando se chega até lá, pode uma pessoa considerar-se paga de todos os esforços” 149 . O autor desloca-se, ainda ao Porto, após ter apanhado uma forte gripe, que o obriga a ficar internado no Hospital Inglês pertencente à Colónia Britânica residente no Porto, onde acaba por passar o Ano Novo. Aproveita então para descrever um pouco a cidade. A descrição que faz, é não só a de um roteiro turístico, onde não faltam as referências quer a alguns monumentos que marcam a imagem turística da cidade, quer até mesmo a alguns dos seus locais mais típicos, ou dos pontos onde se vislumbram as melhores vistas panorâmicas. Salienta, ainda, alguns aspetos mais negativos, ou até mesmo algumas iniciativas do poder local, além de episódios mais trágicos, como é o caso das cheias, fruto de um espírito curioso e de uma observação cuidada da paisagem e vida da cidade. John Gibbons, ao longo de todo o livro tece várias considerações acerca do “Novo Portugal”, que estava a ser construído pelo “Dr. Salazar”. Na verdade, as suas abonatórias apreciações ao Estado Novo e a descrição bucólica que faz do Portugal rural, tão ao gosto do regime, são, sem dúvida razões suficientes para o prémio que recebe com este livro, aliás entregue pelo próprio diretor do Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro, cuja obra “Salazar”, Gibbons também traduziu.

148  GIBBONS, 1984: 279 149  Entrevista ao Diário de Notícias de 23/03/1940

5. CONCLUSÃO Viajando em terceira classe, como sempre fazia, e equipado, com uma bagagem reduzida, um guarda-chuva e uma máquina de escrever, Gibbons apresenta-nos, em Não criei Musgo, um retrato singular da Região Duriense, uma região isolada, com uma paisagem de rara beleza selvagem, apenas conhecida pelo famoso vinho do Porto, onde viveu durante alguns meses sofrendo os rigores do Inverno, aquecido pelo “consumo” e pela hospitalidade dos camponeses da região. Percorreu as vertentes íngremes e xistosas, contemplou o nascer e o pôr-do-sol nas encostas recortadas de socalcos, que o homem duramente construiu. Compartilhou as alegrias e tristezas de uma população isolada nas vertentes do Douro, que apesar de não compreender a sua língua, nem por isso deixou de acolhe-lo com generosidade e amizade. Escrito ao correr da pena, comovente e transbordante de humanidade, este livro, lido hoje, faz-nos reviver uma época em que o tempo não contava, as distâncias eram percorridas ao ritmo lento de um comboio ou de um barco rio acima e em que as coisas mais banais que hoje nos são indispensáveis não existiam. Hoje os novos meios de transporte e comunicação, encurtaram as distâncias, as autoestradas, a televisão, a internet, as segundas residências e o turismo, já chegaram ao Douro, contudo o ritmo do dia-a-dia ainda é o mesmo e podemos saborear a calma e a beleza de uma paisagem, que permanece quase intocável.

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BIBLIOGRAFIA: ARAÚJO, António (2016) - Não Criei Musgo, de John Gibbons. Malomil. Disponível em: http://malomil.blogspot.pt/2016/07/nao-criei-musgo-de-john-gibbons.html. [Consulta realizada em: 12/07/2016] CALADO, Ana Isabel (2005) - O Portugal de Salazar visto de uma Varanda Trasmontana. Centro de Estudos Anglo-Portugueses, FCT. GIBBONS, John (1984) - Não Criei Musgo. Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães. GIBBONS, John, entrevista do Diário de Notícias de 23/03/1940. MATOS, Fátima Loureiro de (2012) - A Paisagem Duriense a partir de uma Obra de John Gibbons. «Revista da Faculdade de Letras – Geografia», III série, vol. I, p. 59-73. Disponível em: http://ojs.letras.up.pt/ index.php/geografia/article/view/12/2. PINHO, Jorge (2009) - The selective traveller in Portugal: Anacrónicos e Peculiaridades de um olhar sobre Portugal. «Via Panorâmica», 2, IIª série, Revista Electrónica de Estudos Anglo-Americanos, p. 101-128. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7538.pdf. [Consulta realizada em: 12/05/2011]. PINTO, Rui Pedro (2009) - Prémios do Espírito Um estudo sobre prémios literários do Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2ª ed.

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Nota biográfica: Didiana Margarida Fachada Lopes Fernandes é licenciada em Gestão e Planeamento em Turismo (1997) pela Universidade de Aveiro (Portugal). Em termos profissionais esteve sempre ligada à docência na área do Turismo. Em 2005 fez uma especialização em Construção de Memórias Históricas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e prestou as suas provas de mestrado em Estudos Locais e Regionais, em 2007, pela mesma instituição (FLUP, Porto, Portugal). É doutorada desde 2014 em Ciências da Cultura pela Universidade de Trás-osMontes e Alto Douro. Atualmente é professora adjunta da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego – Instituto Politécnico de Viseu e investigadora integrada do Centro de Estudos em Educação, Tecnologias e Saúde (CI&DETS). Desenvolve investigação na área da interdisciplinaridade do ensino em turismo, na área do desenvolvimento do turismo e dos estudos locais e regionais em turismo, na área da conceção de itinerários turístico-culturais e ainda no âmbito da literatura de viagens e da leitura histórica do espaço.

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O Douro Vinhateiro nos guias de viagem estrangeiros dos séculos XIX e XX (1845-1974) Didiana Fernandes Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego – Instituto Politécnico de Viseu (CIDETS)

Resumo Este artigo- O Douro Vinhateiro nos guias de viagem estrangeiros dos séculos XIX e XX (1845-1974) tem como finalidade estudar a forma como o espaço duriense foi percecionado e divulgado ao longo do tempo, através dos guias de viagem estrangeiros (impressos e editados) e, conjuntamente, analisar as alterações sociais, culturais e espaciais, associadas à viagem por este território. A pesquisa inscreve-se no campo da experiência de viagem proposta aos viajantes: das motivações, das formas possíveis de se deslocar para e pela região, de permanecer nos lugares, do compor a paisagem. O motivo pelo qual se optou por estudar esta realidade prende-se com a clara perceção de uma insistente complexidade na criação de uma imagem sobre o Alto Douro.

Abstract This article- The Douro Wine Region in foreign travel guides of the 19th and 20th centuries - aims to study how the space was perceived and revealed over time, through foreign travel guides (printed and edited) and jointly analyse the social, cultural and spatial changes associated with the journey across the territory. The research falls within the field of travel experience offered to travellers: the motivations, the possible ways to travel to and from the region, the dwelling in this places and the landscape reading. The option to conduct this study is due to a clear perception of a persistent complexity on the creation of the Alto Douro’s image.

Palavras-chave Alto Douro Vinhateiro, guias de viagem, espaço, representação.

Keywords Alto Douro Wine Region, travel guides, space, representation.

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INTRODUÇÃO

P

orquê eleger guias de viagem? Porque este meio de comunicação, pela forma como atua sobre o viajante, com a sua eficácia na transmissão de mensagens objetivas e claras, condensa o que é essencial e elementar do conteúdo das representações turísticas, embora nem sempre consensual. Poderá ser redutor mas não caberá aqui a análise destas fontes de estudo, da sua utilidade e das suas limitações. Nesta apresentação, de forma sucinta, os principais objetivos passam por tentar: - Reconstituir os momentos determinantes na cronologia de afirmação do Douro vinhateiro como espaço de visita; observar as alterações verificadas nas viagens pelo Douro, em grande parte determinadas pelo desenvolvimento tecnológico e industrial que permitiu o aparecimento e generalização de novos meios de transporte; -Analisar a representação estética da natureza e dos ângulos sociais e culturais mais expostos nas reproduções narradas e, se possível, observar a evolução na conceção do(s) espaço(s) nos guias consultados. Na verdade, esta abordagem estará sempre mais próxima da região designada no início do século XIX por “País Vinhateiro do Alto Douro”, que embora nunca chegasse a constituir um quadro político-administrativo autónomo sempre foi considerada uma região delimitada e com identidade própria. Os limites da região produtora de vinho do Alto Douro e o levantamento cartográfico do seu espaço, na totalidade, e com rigor, são representados tardiamente, aquando da publicação, em 1843, do Mappa do Paiz Vinhateiro elaborado pelo Barão de Forrester (1831-1861), constituindo esta imagem, como que o início estabelecido para a nossa investigação, dado que, finalmente, a região do Alto Douro se encontrava cartograficamente fixada e difundida. Mas não podíamos fugir ao período de generalização das viagens e do caminho-de-ferro e omitir as décadas em que os itinerários se diversificam, em que se criam novos hábitos e a viagem se generaliza e dissemina na Europa Mesmo em Portugal, no início do século XX, o turismo é institucionalizado, com a criação do Conselho e Repartição de Turismo e de uma máquina de propaganda política que vai veicular uma nova imagem de Portugal que acabaria por abrir o País ao exterior.

O ano de 1974 surge como data limite da análise com a passagem ao Regime Democrático, marcando uma viragem no sector do turismo, com a sua reestruturação administrativa e a subsequente criação da Secretaria de Estado do Turismo. SELEÇÃO DE FONTES, METODOLOGIA E PRESENÇA DO DOURO VINHATEIRO NOS GUIAS Perante a diversidade de guias de viagem e escolhas, deparámo-nos com a necessidade de estabelecer critérios de seleção dos guias de viagem que expõem Portugal e/ou o Alto Douro. No fundo, tratava-se de definir as estratégias de apreensão e representação do espaço através da seleção das fontes. Como procurávamos a visão de Portugal e do Douro no exterior, perante a constatação de que as séries de guias mais famosas incluíam Portugal em guias sobre a Europa e que, posteriormente, se aplicaram na publicação de guias dedicados à Península Ibérica, em consecutivas reedições e traduções em inglês e francês, este foi o nosso universo preferencial. Deixámos por analisar os guias de viagem estrangeiros dedicados exclusivamente a Portugal porque se situavam, sobretudo, num contexto temporal tardio, já no século XX, pela sua componente repetitiva e porque se alicerçavam, sobretudo, em traduções de guias de autores e edição portuguesas, o que condicionaria o nosso estudo, pois, através do olhar estrangeiro, procurámos uma observação tendencialmente mais distanciada. Nesta fase etapa começámos por observar quantitativamente a presença do Alto Douro nos guias analisados. Efetivamente, são poucos guias de viagem dedicados à Europa que se aventuraram em comentários acerca do espaço Alto Douro e acerca das suas características. Este facto leva-nos a crer que o Alto Douro, dada a sua interioridade, salvo raras exceções, se manteve fechado a expedições de forasteiros, o que, por si só, não impulsionava os autores dos guias a promoverem esta região. Esta circunstância levou-nos a analisar, numa primeira fase, obras que apenas divulgavam ideias gerais sobre a região do Douro, ou seja, a partir das descrições da cidade do Porto e sua área envolvente. Tentámos compreender a importância regional do negócio do vinho do Porto, para além das fronteiras

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do território vinícola e detivemo-nos, igualmente, na existência, ou não, da noção e da imagem de um território duriense produtor de vinho. Grande surpresa, aquando da análise dos guias dedicados à Península Ibérica. Obviamente que, pela redução do espaço a descrever, a exposição é mais completa e organizada, constatando-se que quase todos salientam e referem este território. Não podemos, no entanto, afirmar que esta presença é clara ou que os guias dedicam textos especificamente sobre o Alto Douro Vinhateiro, mas, independentemente do tipo de guia, mais descritivo ou mais funcional, esta região acaba por surgir como uma proposta de visita. Há, assim, uma presença constante e relativamente em termos cronológicos, sendo que a lacuna por volta de 1945 se deve à escassez de guias sobre a Península Ibérica, devido à Guerra Civil de Espanha e durante e logo após a II Guerra Mundial. Poderíamos supor que esta presença se deve à cidade do Porto e que, o vale do Douro e sua descrição são um prolongamento da difusão da segunda maior cidade do país, mas essa não é a verdade. Desde logo, os itinerários propostos até ao Alto Douro são regulares embora surjam descrições restringidas a localizações precisas ou a generalidades acerca do vinho do Porto. PERCEÇÃO DO TERRITÓRIO DURIENSE PRODUTOR DE VINHO Após tentarmos compreender a importância do vinho do Porto, para além das fronteiras do território duriense, centrar-nos-emos na consciência e conhecimento da existência de um território duriense produtor de vinho. Nos finais do século XVIII, o autor do famoso Guide des voyageurs, referia-se a um distrito produtor exclusivo, onde os ingleses compravam toda a colheita que seria depois carregada para os seus armazéns. Porém, os guias acerca da Europa publicados posteriormente ignoram esta parcela de território e como se centram na cidade do Porto, reportam-se apenas ao negócio do vinho e ao seu peso nas exportações, descrevendo o dinamismo da cidade que advinha deste negócio, ignorando a região vinhateira, território produtor apartado. Esta visão de distância poderia servir de resguardo aos redatores dos guias de viagem, que, naturalmente, possuíam muito mais informação disponível acerca do Porto e de seus arredores. Apenas o

Harper’s handbook, de 1864, se refere explicitamente a um território adjacente onde era produzido o vinho do Porto. Na verdade, até 1920, nos guias vocacionados para a Europa nunca houve espaço para este território, como se pode constatar através do quadro. Apenas em 1936 surgiu uma referência à Region of Port Wine, no guia Fodor, mas sem convite à viagem, indicação de trajetos ou sugestões de visita no Douro. Aliás, esta será a realidade em todos os guias similares posteriores. A par desta escassez de informação, a falta de precisão em relação à região vinhateira sempre esteve patente nos guias dedicados à Europa. Na década de 30 a confusão subsistia e o espaço produtor de vinho é registado como uma região abrangente que envolvia toda a vizinhança do Porto. Apenas na década de 60, com a chegada da aviação comercial, com a reparação das estradas e das vias férreas, com a popularização dos automóveis, que se tornaram acessíveis a pessoas de médios e até de pequenos recursos, as vias de acesso em Portugal simplificaram-se e o fluxo de turistas principiou. As viagens internas passaram a ser cada vez mais comuns e os guias procuravam aconselhar os turistas relativamente a excursões nos subúrbios das principais cidades. O Porto era uma cidade exemplar para este tipo de visita e o Alto Douro começa a fazer parte das propostas de visita, a par de Braga e Guimarães150. Porém, apesar da referência a este território, as informações para quem pretendesse deslocar-se até à região e por lá viajar são escassas e, apesar de nos guias sobre a Europa o Alto Douro surgir, pontualmente, por entre as sugestões de visita em Portugal, esta região nunca é verdadeiramente decifrada. Estava agarrada ao conceito “casa do vinho do Porto”. Constatamos pois, que a informação constante nos guias sobre a Península Ibérica era objetivamente a única existente, no entanto, a evolução no território passa por fases distintas. Nos guias dedicados à Península Ibérica, surge quase sempre alguma informação sobre o Alto Douro, mas sem grande rigor e sobretudo ligada a pormenores que rodeavam a produção, acerca das doenças da vinha e mesmo acerca das quintas mais famosas e prósperas, ligadas aos principais proprietários da região, escasseando, contudo, a descrição direta do espaço. 150 

FIELDING, 1960.

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A evolução no território era pouco percetível até à década de 1910, e tanto se encontram generalidades sobre o Alto Douro, como referências a povoações, excursões, caraterísticas da vinha e do vinho e da região como um todo ou áreas em particular. Após 1910 já se encontram referências a este território e já se encontra a expressão Paiz do vinho, as suas características geológicas e a subdivisão deste território em Baixo Corgo e Cima Corgo. Progressivamente os guias sobre a Península Ibérica passam a dedicar-se, sobretudo, à disponibilização de itinerários sintéticos e apegados aos melhoramentos na linha de caminho-de-ferro do Douro e, gradualmente, a informação acerca do território vai-se desagregando. Nas décadas de 1920 e 1930 esta tendência torna-se evidente, com a descrição da linha, apeadeiros e pouco mais. A partir dos anos 1940, os guias de viagem sobre a Península tomam outro rumo e passam a apresentar descrições em forma de artigos, baseados e (ou) copiados dos discursos do Estado Novo, onde cada região possuía uma identidade própria, e a informação condensa-se em volta do vinho e da sua produção. Era a imagem da “nação” a ser transportada para os guias estrangeiros. A terra do vinho faz agora parte integrante dos guias e, de forma sintética (numa ou duas páginas de texto) está sempre presente uma visão da Land of wine151, do Wine country152, ou do Upper Douro153. Começa a existir uma separação, em capítulos independentes, da cidade do Porto e da região produtora de vinhos, porque, evidentemente, o vinho nasce lá longe, embora ainda sem rigor nas distâncias e nos conselhos aos viajantes acerca do território. Esta falta de rigor denota alguma fragilidade no contacto efetivo dos narradores e autores dos guias com o espaço do Alto Douro, sendo a informação retirada, consecutivamente, de guias antecessores, o que se trata de uma característica inata aos guias de viagem mas que vem desvirtuar a construção da imagem da região, mesmo nos guias que apenas se dedicavam a Portugal e a Espanha.

151  OGRIZEK, 1953: 431. 152  CLARK, 1953: 116. 153  FODOR, 1960: 399.

A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO: O TERRITÓRIO DE VIAGEM, A PAISAGEM, O RIO E OS ASPETOS SOCIAIS A leitura prende-se, sobretudo, com o estudo de variáveis que pudessem transmitir a realidade espacial dos viajantes e dos durienses no período em análise. Não nos restam dúvidas de que os autores dos guias que propunham uma visita ao Norte de Portugal estavam conscientes da existência um território adjacente onde era produzido o vinho do Porto. No entanto, apenas no século XX se encontram referências ao antigo País do Vinho, tratando-se da parcela de vinhedo mais antiga. Esta área manter-se-ia a mais projetada nos guias como que formando um eixo central -Vila Real-Régua-Lamego. Sempre houve alguma inconsistência acerca da circunscrição desta região, até porque o espaço cultivado de vinha e a demarcação sempre se confundiram. Na verdade, os esclarecimentos acerca da localização, configuração e dimensão apenas se encontram nas entrelinhas e com parco destaque. Os limites estabelecidos no Mappa do Paiz Vinhateiro (Barão de Forrester) perduraram no tempo embora saibamos que decorreu um processo de alargamento espacial da região produtora, muito pouco claro nos guias analisados. O Douro superior, a montante do Cachão da Valeira, apenas desperta a curiosidade dos guias com a finalização da linha do Douro. Progressivamente os guias passam a dedicar-se, sobretudo, à disponibilização de itinerários demasiado apegados à linha de caminho-de-ferro do Douro e, gradualmente, a informação acerca do território vai-se desagregando, surgindo um Alto Douro ao longo do rio. Os registos encontrados nos guias, face à rede hidrográfica do Douro, reportam-se quase exclusivamente ao rio Douro, como se este fosse um elemento isolado. Mais uma vez foram as novas ligações ferroviárias e ramais a trazer mais alguns esclarecimentos acerca dos seus afluentes e suas localizações geográficas. A descrição da paisagem duriense e do meio envolvente é também mais exígua nos guias de viagem do que era expectável. Na verdade, a descrição paisagística está confinada à grandiosidade de uma paisagem declivosa e completamente repleta de vinhas. Cansativa. Imponente e solitária. A híper-conotação do vinho

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na paisagem não é de estranhar, dado que seria esta a grande referência que os autores dos guias possuíam, o que, de certo modo, veio desertificar a paisagem descrita. Há, na segunda metade do século XX, um retorno à imagem traçada do Douro e dos durienses provavelmente por força das políticas do Estado Novo face às tradições e ao turismo. Inesperadamente voltava-se ao Paiz Vinhateiro do Alto Douro de Forrester. Há um regresso à representação do Alto Douro através de uma cortina de idealismo e conserva-se uma imagem que ultrapassa a realidade: o que de facto o Douro vinhateiro seria capaz de ser, mas que de facto nunca foi. É agora ainda mais notória a presença inglesa e dominante no negócio do vinho do Porto. Na verdade, estes consideravam os portugueses como incapazes de promover internacionalmente o vinho do Porto, e não lhes custava condescender que o vinho do Porto era mais próximo do gosto inglês porque estes eram, genuinamente, melhores apreciadores. É a permanente cedência aos interesses estrangeiros. No entanto, o retrato dos comerciantes ingleses na região é inexistente, assim como é inexistente, nos guias de viagem, a relação entre os cultivadores e compradores. O mesmo se passava em relação ao papel dos lavradores durienses. Para além do esforço humano de adaptação da cultura da vinha às difíceis condições de terreno acidentado pouco há a reter sobre o Duriense nos guias de viagem. Escasseiam expectativas face aos aspectos sociais e culturais da região. Na generalidade, relativamente a cada povoação, os guias reportavam-se apenas a questões ligadas à sua localização, posição estratégica no comércio da região ou a curtas apreciações sobre a sua organização e valores patrimoniais, esquecendo, de todo, as suas gentes. Só a partir de meados do século XX se valoriza a azáfama da vindima e se retomam alguns estereótipos e imagens do passado, repetitivos e republicados, porque eram cópias de descrições literárias do século XIX. Voltam a ser transmitidos os momentos de grande movimento associados à vindima, mas nem sempre como uma atividade perfeita, pela extrema dureza de um trabalho mal pago, embora fosse enaltecida a alegria conotada a este momento. Apesar de nada fazer esquecer a principal função do rio que era o transporte de vinhos até às caves de Vila Nova de Gaia, depreendendo-se pouca utilidade para uso turístico ressurgem alusões a viagens aventureiras, de barco rabelo, até ao Porto, que, na verdade

são cópias de relatos de viagem do século XIX que haviam tido grande projeção. A terra do vinho faz agora parte integrante dos guias sobre a Península Ibérica, no entanto, as informações para quem pretendesse deslocar-se até à região, mesmo depois de 1960, são quase inexistentes e esta região nunca chega a ser realmente descoberta. Na segunda metade do século XX, com a difusão da informação e a publicação de obras dedicadas ao vinho do Porto, os guias começam a dar, simultaneamente, ênfase a algumas questões técnicas ligadas à degustação e ao processo de envelhecimento do vinho, até aqui ausentes. O mistério de produção do vinho residia no processo de envelhecimento, nas caves, frente à cidade do Porto. E perdura esta ideia de que uma visita ao Porto quase possibilitava a contemplação das vinhas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Elegemos guias de viagem pela eficácia na transmissão de mensagens objetivas e claras, condensando o que é essencial e elementar do conteúdo das representações turísticas e isso trouxe-nos algumas dificuldades. Há que reconhecer que os guias analisados pertencem a uma literatura puramente informativa. É claro que, numa perspetiva de criatividade literária adquire-se pouco. Os guias de viagem estão mais próximos das enciclopédias do que de romances e, embora, muitas vezes, possam conter fantasia e imaginação, aderem ao seguro e reconhecido. Isso torna o texto mais do que criação, repetição: raramente arriscam expor transformações. Com efeito, os guias não nos deram o retrato “fiel” do Alto Douro. Constituem, entre outras, visões desta região. Muitos dos aspectos e conflitos do contexto social foram abafados em função da manutenção da dinâmica das relações de poder existentes. Em geral, estas publicações evitaram os conflitos, insatisfações e as debilidades do território, promovendo uma aparente “coesão social”, que sabemos não existir. Ao longo da análise os guias raramente abordam questões ligadas à história da produção vinícola, ao facto de haver adulterações do vinho, conflitos entre viticultores e negociantes que foram uma constante na história desta região. Curiosamente o papel da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, enquanto reguladora do comércio fica ausente de

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apreciações. As questões institucionais e económicas da região, muito diversas ao longo do intervalo temporal de análise foram suprimidas criando um “espaço” temporal sem oscilações o que sabemos ser falso. Se pensávamos que as variáveis aqui estudadas faziam parte do passado, alicerçando-se na memória de uma região esquecida e, posteriormente, promovida durante um regime de propaganda interna e externa, constatámos que, no caso do Douro, a imagem recuperada do Alto Douro foi a que há muito existia, não se adaptando à evolução no território e à sociedade duriense. Os elementos que se mantêm referência turística são os mesmos de há séculos e a imagem é tão forte que dificilmente mudará, porque os durienses a tomam como verdadeira. BIBLIOGRAFIA FETRIDGE, William Pembroke (1864) - Harper’s handbook for travellers in Europe and the East, 2.ª ed.. Nova Iorque: Harper & brothers. FIELDING, Temple (1960) - Fielding’s Travel Guide to Europe. Nova Iorque: W.Sloane Associates Inc. FODOR, Eugene (1936) - On the Continent. Londres: Francis Aldor, Aldor Publications. FORRESTER, Joseph James (1843) - Mappa do Paiz Vinhateiro do Alto Douro. Porto: António Maria de Magalhães. REICHARD, Heinrich August Ottokar (1793) Guide des voyageurs en Europe, 2 vol., 1.ª ed.. Weimar: Bureau de l’Industrie. CLARK, Sydney (1953) - All the best in Spain and Portugal. Nova Iorque: Dodd, Mead. OGRIZEK, Doré (1953) - Spain and Portugal, Colecção World in colour series. Nova Iorque, Londres, Toronto: McGraw-Hill Publishing.

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Trabalhadores galegos no Douro vinhateiro Gaspar Martins Pereira Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador do CITCEM

À memória de José Alexandre Roseira

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Nota biográfica: Gaspar Martins Pereira é Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória». Tem desenvolvido investigação nas áreas de História Urbana, História Social, História Empresarial e História da Vinha e do Vinho. É autor de diversas obras, de que se destacam, entre as publicações mais recentes, Crise e Reconstrução. O Douro e o Vinho do Porto no século XIX (coord., Porto, 2010), Roriz. História de uma Quinta no Coração do Douro (Porto, 2011), Alves Redol e o Douro. Correspondência para Francisco Tavares Teles (org., Porto, 2013), Unicer, uma longa história (Leça do Balio, 2014).

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Resumo O trabalho intensivo nas vinhas durienses, devido à escassez da mão-de-obra local, dependeu, durante séculos, da atracção de populações pobres das regiões vizinhas. Com o desenvolvimento do comércio dos vinhos generosos do Douro, a partir de finais do século XVII, quando despertaram a preferência do mercado britânico, alastrou a plantação de novas vinhas e aumentou a necessidade de trabalhadores para o seu granjeio. Nessa altura, o Douro passou a atrair também muitos galegos, sobretudo para as fainas grandes das surribas, das plantações, da construção de socalcos, das cavas e das vindimas, que, nas maiores quintas, chegavam a concentrar centenas de trabalhadores. Durante quase dois séculos, até ao início do século XX, todos os anos chegavam ao Douro milhares de trabalhadores galegos, em bandos, acompanhados de «empreiteiros», que negociavam alguns meses de trabalho nas quintas. Depois da destruição provocada pela filoxera, quando foi preciso reconstruir todo o vinhedo regional, muitas surribas e plantações de novas vinhas foram realizadas por galegos. A partir das primeiras décadas do século XX, os galegos deixaram de vir procurar trabalho no Douro. Desaparecidos e esquecidos, os galegos deixaram, no entanto, uma marca indelével não apenas na paisagem vinhateira monumental do Alto Douro mas também na sua população, nos hábitos que se enxertaram nas tradições locais, nos modos de dizer e de fazer, da gastronomia à religiosidade, à música ou ao imaginário popular. Nesta breve comunicação, numa perpectiva histórica sintética de longa duração, pretende-se situar o trabalho dos galegos na construção e reconstrução do Douro vinhateiro. Palavras-chave Douro: Estrangeiros; «Galegos»; Trabalho.

Abastract Due to the shortage of local workers, the intensive work in the Douro vineyards has depended for centuries in the attraction of the people from the poor neighbouring regions. With the development of the trade of the fortified wines of the Douro, from the late seventeenth century on, when the preferences of the British market stood out, the planting of new vineyards spread and the need for workers to their “granjeio” increased. At that time, the Douro attracted many ”galegos” (Galicians), especially for big chores of “surribas”, plantations, construction of terraces, “cavas” and the grape harvest, which in the larger estates, came to concentrate hundreds of workers. For nearly two centuries, until the beginning of the twentieth century, every year thousands of ”galegos” workers reached the Douro in droves, accompanied by ‘contractors’ who traded a few months working on a farm. After the destruction caused by phylloxera, when it was necessary to rebuild the entire regional vineyard, many “surribas” and new vines plantations were carried out by ”galegos”. After the first decades of the twentieth century, the ”galegos” stopped to looking for work in the Douro. Disappeared and forgotten, the ”galegos” left, however, an indelible mark not only on the monumental vineyard landscape of the Alto Douro but also in its people, habits that are grafted on local traditions in ways of saying and doing, gastronomy, religiosity, music or popular imagination. In this brief communication, a synthetic historical perspective of the long term, we intend to place the work of the ”galegos” in the construction and reconstruction of the Douro wine region. Keywords Douro; Foreigners: “Galegos”; Work.

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INTRODUÇÃO

O

trabalho intensivo nas vinhas durienses, devido à escassez da mão-de-obra local, dependeu, durante séculos, da atracção das populações pobres transmontanas e beirãs, que afluíam ao vale nos períodos das grandas fainas vitícolas. Com o desenvolvimento do comércio dos vinhos generosos do Douro, a partir de finais do século XVII, quando despertaram a preferência do mercado britânico, alastrou a plantação de novas vinhas e aumentou a necessidade de trabalhadores para o seu granjeio. Nessa altura, o Douro passou a atrair também muitos galegos, sobretudo para as fainas grandes das surribas, das plantações, da construção de socalcos, das cavas e das vindimas, que, nas maiores quintas, chegavam a concentrar centenas de trabalhadores. Durante quase dois séculos, até ao início do século XX, todos os anos chegavam ao Douro milhares de trabalhadores galegos, em bandos, acompanhados de «empreiteiros», que negociavam alguns meses de trabalho nas quintas. Depois da destruição provocada pela filoxera, quando foi preciso reconstruir todo o vinhedo regional, muitas surribas e plantações de novas vinhas foram realizadas por galegos. Desde as primeiras décadas do século XX, os galegos deixaram de vir procurar trabalho no Douro. Como escreveu António Barreto, “os grandes desaparecidos do Douro são um homem e um barco. [...] Os galegos, até ao século XIX, vinham à procura de trabalho, fugiam da miséria deles. São os responsáveis por grande parte dos socalcos e dos muros. Deixaram vida e sangue na vinha. Além de proletários eram imigrantes. Foram-se embora e raramente são lembrados”154. Desaparecidos e esquecidos, os galegos deixaram uma marca indelével não apenas na paisagem vinhateira monumental do Alto Douro mas também na sua população, nos hábitos que se enxertaram nas tradições locais, nos modos de dizer e de fazer, da gastronomia à religiosidade, à música ou ao imaginário popular. Falta-nos um estudo aprofundado dos galegos no Douro, numa perspectiva histórico-antropológica, apesar de se conhecer a sua presença na região e mesmo a fixação de muitos deles, que aqui constituíram família. O escritor João de Araújo Correia, que dedicou algumas das suas crónicas aos galegos e à importância 154  BARRETO, 1993: 55.

do seu trabalho na reconstrução do Douro, sustenta que poucas seriam as famílias da Régua em que não correria sangue galego155. Cito do livro Horas Mortas: O meu pátrio Doiro, de vinhas renascidas depois do escaldão chamado filoxera é, em grande parte, obra de galegos. Por aqui ficaram alguns, regando com o seu sangue, através de gerações, o meu país vinhateiro156. Neste encontro sobre «os estrangeiros no Douro», creio que se justifica, por isso, uma perspectiva histórica, ainda que sintética, do trabalho dos galegos na construção e reconstrução do Douro vinhateiro. DO INÍCIO DA MIGRAÇÃO GALEGA AO TEMPO DA FILOXERA Segundo Camilo Fernandez Cortizo, o grande fluxo da migração galega para Trás-os-Montes e Alto Douro ter-se-á desenvolvido após a Guerra da Sucessão de Espanha (1701-1714), quando as comunidades galegas mudaram o seu modelo migratório, substituindo os destinos tradicionais de Castela e Andaluzia pelas terras do Norte de Portugal157. Esta cronologia coincide com o período de forte expansão do vinhedo duriense, estimulada pelo aumento da procura dos seus vinhos generosos no mercado britânico. Desde então tornou-se contínua a ocupação de galegos nos trabalhos mais duros da viticultura do Douro. Chegavam todos os anos em bandos ou «empreitas», oferecendo os seus serviços pelas quintas, onde ficavam, geralmente, entre o final da vindima e o final da Primavera. A documentação duriense da época, desde os registos paroquiais à contabilidade das quintas, está cheia de naturais do «Reino da Galiza». Por exemplo, nos documentos das quintas da Siderma, dos Canais e dos Currais, pertencentes aos padres da Congregação do Oratório do Porto, no século XVIII e inícios do século XIX, encontramos diversas referências a «empreitas» de galegos158. Numa descrição da Quinta de Roriz, em 1756, quando a mesma pertencia ao irlandês Diogo Archbold, faz-se referência a um cardenho com a expressão «para dormirem galegos», 155  Cf., por exemplo, CORREIA, [1938] 2010: 78; CORREIA, 1972: 7172; CORREIA, 1974: 239. 156 

CORREIA, 1968: 255-256.

157 

FERNANDEZ CORTIZO, 2007: 88.

158 

PEREIRA, 1984: 13-49.

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significando que os trabalhadores rurais dessa quinta seriam então geralmente galegos159. E em outras quintas sucedia o mesmo. Na Devassa realizada em 1771, para descobrir e punir os proprietários de vinhas que haviam desrespeitado as leis da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, aparecem-nos dezenas de referências a grupos de galegos, que nessa vindima tinham trabalhado em diversas quintas160. Na enorme Quinta das Figueiras, o «capitalista da Régua» António Bernardo Ferreira que a comprou em 1823, iniciou, em Novembro desse ano, uma grande plantação de vinha, com uma «empreita» de 150 galegos, que continuaria nos anos seguintes, chegando a empregar, como em 1825, mais de 500 homens por dia161. Na documentação dos séculos XVIII e XIX podemos encontrar múltiplas referências não só à importância da mão-de-obra galega na viticultura duriense mas também à imagem que então se formou dos galegos como trabalhadores humildes, frugais e que se contentavam com salários mais baixos. Em finais do século XVIII, o fisiocrata duriense Francisco Pereira Rebelo da Fonseca calculava serem necessários mais de 20 mil jornaleiros para o granjeio das vinhas do Douro, e 40 mil durante a vindima, referindo que a maior parte desses trabalhadores vinha, habitualmente, da Galiza. Segundo esse autor, os galegos mereciam “a preferência dos lavradores pela sua humildade, e sujeição ao trabalho, e porque se contenta[va]m com alimentos menos dispendiosos”162. Num território pouco povoado, a afluência de trabalhadores da Galiza permitia travar a tendência para a elevação dos salários, resultante da escassez de jornaleiros locais. Por exemplo, em Outubro de 1819, o comissário da Quinta de Roriz, em carta para o proprietário, Cristiano Nicolau Köpke, queixava-se da falta de braços e da subida dos salários: “[...] os homens se pagaram por mais dois vinténs e se não chegassem galegos, ainda que tarde, não se achava um homem menos de 360 réis, como alguns assim os justaram e assim lhes pagaram”.163 Em meados do século XIX, o escocês Forrester, negociante de vinhos, que conhecia bem a região do Douro, afirmava que todo o trabalho da vinha, à ex-

cepção da poda e do corte das uvas na vindima, era realizado por galegos164. Forrester referir-se-ia, certamente, tal como outros autores, às grandes quintas, que empregavam maiores ranchos de galegos, tornando-se aí mais visível a sua presença, já que a maioria das vinhas durienses, tal como hoje, pertencia a pequenos vitivinicultores, que as trabalhavam com a sua família. Os galegos que vinham trabalhar nas vinhas durienses regressavam geralmente à Galiza natal todos os anos, depois de amealharem os seus salários. Mas nem sempre assim acontecia. Muitos adoeciam e morriam no Douro. Os registos paroquiais de óbitos165, de entradas nos hospitais166 e outras fontes documentais da época estão cheios desses mártires galegos que participaram na construção do Alto Douro Vinhateiro. Alguns ainda muito jovens, com 13 ou 14 anos. A frugalidade e o rigor do trabalho das vinhas, sobretudo no Verão, quando atacavam as febres palustres, multiplicavam as vítimas.

159  PEREIRA, 2011: 53.

165 

Por exemplo, a paróquia de S. Nicolau, do concelho de Mesão Frio, chega a contar com mais de 20% de galegos no total dos óbitos, na década de 1720 a 1729. FERNANDEZ CORTIZO, 2007: 89.

166 

No Hospital da Misericórdia de Mesão Frio, as entradas de doentes galegos chegam a ultrapassar os 33% do total, entre 1790 e 1794; e no Hospital da Misericórdia de Vila Real, ultrapassam mais de 25%, em 1797-1799. FERNANDEZ CORTIZO, 2007: 92.

Fig. 1. Registo de óbito de Domingos, «pobre», de 13 anos, «do Reino da Galiza», falecido no Peso da Régua, no dia 27 de Setembro de 1741 (Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Óbitos da Paróquia de S. Faustino da Régua, 1724-1742, fl. 197).

164 

160  Publicada por OLIVEIRA & MARINHO, 1983. 161  PEREIRA & OLAZABAL, 1996: 17. 162  FONSECA, 1791: 105-106. 163  PEREIRA, 2011: 109.

FORRESTER, 1853: 76.

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Fig. 2. Registos de óbitos de galegos na paróquia de Loureiro, em Maio e Julho de 1744. (Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Óbitos da Paróquia de Loureiro, 1742-1763, fl. 196)

Em certos anos, o temor das sezões aumentava as dificuldades de encontrar trabalhadores para substituir os que fugiam das quintas. Por exemplo, em Outubro de 1822, o comissário dos Köpke, responsável pela administração da Quinta de Roriz, informava os seus patrões sobre a dificuldade de arranjar trabalhadores, devido à notícia das doenças que grassavam nessa e em outras quintas: este ano tem sido uma epidemia de doentes e, por isso, por mais que eu quisesse para ali mandar quem os descansasse, não pude, pois correu a notícia dos muitos doentes que estavam continuamente a vir dali e das mais quintas e, por isso, respondiam-me que não queriam ir morrer; de 40 galegos que para ali foram só escaparam sem adoecerem 9; na 5.ª feira foram 9 para o hospital, ontem foram 8 e um morto para a Ervedosa167. 167  PEREIRA, 2011: 115.

Fig. 3. Registos de óbitos da paróquia de Poiares, entre 23 de Novembro de 14 de Dezembro de 1754. Dos 7 óbitos registados, cinco são de galegos (Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Óbitos da Paróquia de Poiares, 1728-1759, fl. 20)

Houve também casos mais felizes de galegos que não regressaram à Galiza natal porque se fixaram no Douro. Muitos continuaram com a condição de jornaleiros e de criados de lavoura, aparecendo na documentação, a cada passo, com a referência de «pobres». Mas alguns foram recompensados pelo seu trabalho e dedicação, tornando-se homens da confiança dos proprietários e ascendendo ao estatuto de feitores ou caseiros, como aquele «Lucas Galego», que em 1790 era caseiro da enorme Quinta de Ventozelo e que aí conduziu as primeiras grandes plantações de vinha168. Outros estabeleceram-se nas vilas da região e integraram-se nas comunidades locais, como artesãos (sapateiros, carpinteiros, etc.) ou como pequenos comer168  Arquivo do Paço de Guminhães — Petição feita por José Manuel de Novaes contra o caseiro da Quinta de Ventozelo, Lucas Galego, por não poder utilizar o caminho público que a atravessa, 19.12.1790.

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Fig. 4. Registos de baptismos da paróquia de S. Faustino da Régua, entre Maio e Julho de 1811. Dos 4 registos, 3 assinalam ascendentes galegos, entre eles o de Antónia (Adelaide Ferreira), neta de Pedro Gil, galego, natural de Tui. (Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Baptismos da Paróquia de S. Faustino da Régua, 1808-1816, fl. 36v-37)

ciantes. Alguns enriqueceram. Em algumas das mais ricas famílias do Douro corre também sangue galego. Basta referirmos a ascendência da célebre D. Antónia, a maior proprietária duriense do século XIX. O seu avô materno, Pedro Gil Gargamalla, era natural de Tui e estabeleceu-se na Régua por volta de 1783 com uma pequena loja de fazendas. Poucos anos depois viria a relacionar-se com uma rapariga de Godim, Teresa de Jesus. Dessa relação nasceu Margarida Rosa, baptizada como filha de pai incógnito, mas que Pedro Gil reconheceria um ano depois, provavelmente quando decidiu casar com Teresa. Entretanto, Pedro Gil terá conseguido alguma fortuna para se abalançar a negócios mais largos. No início do século XIX, envolveu-se no tráfico de vinhos, aparecendo em alguns anos como arrendatário de várias adegas, movimentando centenas de pipas de vinho, com negócios com empresas exportadoras de vinhos do Porto, como a Sandeman, a Köpke, a Croft e outras. Em 1809, casaria a sua filha

Margarida Rosa com José Bernardo Ferreira (pais de Antónia Adelaide Ferreira), que se lhe reuniria nos negócios do vinho, chegando a formar uma empresa comum, Pedro Gil & Ferreira, com armazéns em Gaia e no Douro e com actividade exportadora para o Brasil e para Inglaterra, embora se dedicassem sobretudo à actividade de intermediários, comprando vinhos a lavradores durienses e vendendo-os às firmas exportadoras do Porto, em certos anos, mais de mil pipas. No final da sua vida, Pedro Gil tornou-se também proprietário vinhateiro, tendo comprado as quintas de Per-o-Couto e do Rodo, na Régua169. Poderíamos referir muitas outras famílias com sangue galego, com maior ou menor notoriedade regional, algumas delas que se distinguiram com obras de solidariedade, como os Vasques Osório ou os Verdial, na Régua. 169 

PEREIRA & OLAZABAL, 1996.

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OS GALEGOS NA RECONSTRUÇÃO DO DOURO PÓS-FILOXÉRICO O ritmo da imigração galega no Douro sofreu grandes flutuações anuais ao longo dos séculos XVIII e XIX, resultantes das diferentes conjunturas de crise ou de prosperidade quer na Galiza quer na região duriense. As múltiplas referências documentais parecem apontar para uma maior presença de galegos no Douro nos períodos de grande expansão ou de reconversão vitícola. Em finais do século XIX, a epopeia da reconstrução do vinhedo duriense, que havia sido totalmente devastado pela filoxera desde os anos sessenta, foi protagonizada, em grande parte, por galegos. É provável que, numa primeira fase, a destruição das vinhas e o empobrecimento dos viticultores tivessem feito retrair a oferta de trabalho. Ainda assim, o número de trabalhadores galegos contava-se por milhares. No início dos anos setenta, por exemplo, a imigração galega nos distritos de Bragança, Vila Real, Guarda e Viseu, que abrangiam concelhos da região duriense, rondava os 5 mil trabalhadores anuais170. Em meados dessa década, segundo o Visconde de Vila Maior, a maior parte dos trabalhos de plantação das vinhas do Douro era feita por galegos: «A plantação do bacelo e os trabalhos correlativos são geralmente feitos de empreitada, e, regra geral, os empreiteiros são galegos. / São três as operações principais deste serviço: 1.ª a abertura dos valados; 2.ª a plantação propriamente dita, com o suchiamento e escombramento; 3.ª a construção dos calços ou muros de suporte. As duas primeiras fazem sempre o objecto de uma única empreitada, que se deve computar equivalente a 100 jornais por cada mil bacelos, pagando-se estes pelo duplo do preço corrente mais uma certa porção de comestíveis. A 3.ª também se pode fazer por empreitada; mas atendendo à dificuldade de fazer previamente as medições exactas neste género de trabalhos, preferem muitos mandar executar as obras a jornal. Os pedreiros que nelas trabalham são arraianos da Galiza, das imediações de Melgaço, cujos bandos, como aves de arribação, aparecem por estes sítios regular e periodicamente no mês de Outubro para de novo se ausentarem para as suas montanhas no mês 170  Primeiro Inquérito Parlamentar sobre a emigração portuguesa pela Comissão da Camara dos Senhores Deputados, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, p. 508-511.

de Abril seguinte»171. E o repórter britânico Henry Vizetelly, que visitou demoradamente a região em 1877, escrevia: «A enxofra, juntamente com a poda e a erguida, é feita pelos lavradores da região; mas todo o trabalho duro da vinha, desde a preparação dos socalcos e construção dos muros de pedra até ao transporte dos pesados cestos de uvas para os lagares, e a sua pisa, é realizado pelos esforçados e frugais Galegos, uns 8 mil dos quais encontram emprego no Alto Douro»172. A partir de meados dos anos oitenta do século XIX, a construção da linha férrea facilitou a formação de grandes quintas vinhateiras na zona do Douro Superior. Foi por esta altura que D. Antónia Adelaide Ferreira, a maior proprietária do Douro, iniciou a formação da enorme Quinta de Vale Meão, nos terrenos baldios que comprara ao concelho de Vila Nova de Foz Côa. O projecto da quinta, com largas estradas de acesso a extensos vinhedos, foi executado, em parte, pelo empreiteiro galego António Orge Passos, e, durante alguns anos, trabalharam aí centenas de jornaleiros, muitos deles galegos173. Entre finais do século XIX e os primeiros anos do século XX, investiu-se também na replantação de muitas quintas destruídas pela filoxera no Baixo Corgo e no Cima Corgo. Por essa altura, a reconstrução da Quinta da Boavista, em Covas do Douro, pertencente aos filhos do Barão de Forrester e aos seus sócios da Offley, Cramp & Forresters, exigiu grandes surribas e plantações, com a construção de possantes muros de xisto dos socalcos, muitos deles ainda existentes.

171 

VILA MAIOR, 1876: 51-52.

172 

VIZETELLY, 1880: 89.

173 

PEREIRA & OLAZABAL, 1996: 139-140.

Fonte: Quinta da Boavista — Livro de férias do serviço da Quinta da Boavista, 1900-1905.

89

Sob a direcção do caseiro da quinta, primeiro Luís Roseira (falecido em 1896), depois Albino Bártolo da Silva174, empregaram-se então nesses trabalhos sucessivas «empreitadas» de galegos, geralmente entre finais de Outubro ou Novembro, depois de terminadas as vindimas, até Abril do ano seguinte, chegando a reunir cerca de 120 trabalhadores. Por vezes, alguns galegos permaneciam na quinta para o trabalho das cavas. Em relação aos trabalhadores portugueses, os galegos eram mais mal pagos (aqui e ali, nas duras operações de surriba, aparece-nos a expressão «por preço de cava») e, até 1897, recebiam uma ração alimentar inferior (menos duas sardinhas e menos uma medida de arroz ou batatas por dia)175. No período da reconstrução pós-filoxérica do vinhedo, a maior parte dos trabalhadores galegos dirigiu-se para o Alto Douro central, onde se localizavam as maiores quintas. Os concelhos de Sabrosa, Alijó, Carrazeda de Ansiães e S. João da Pesqueira concentravam, em 1890 e 1900, respectivamente, 71% e 73% dos galegos presentes em todos os concelhos da região176. Esta distribuição contrasta com a do período anterior, entre inícios do século XVIII e meados do século XIX, em que a migração galega se concentrava mais no Baixo Corgo e na zona da Régua, reflectindo o reordenamento do vinhedo regional no período pós-filoxérico, com uma expansão para leste.

174  Bisavós paternos de José Alexandre Roseira, de Covas do Douro. Pouco antes de falecer, em Abril de 2015, José Alexandre confiou-me o Livro de férias do serviço da Quinta da Boavista, onde seu bisavô Albino Bártolo da Silva registou todos os trabalhos realizados e os pagamentos aos trabalhadores entre Maio de 1900 e Maio de 1905. 175  A ração alimentar diária dos trabalhadores galegos foi equiparada à dos portugueses a partir de Novembro de 1897. Arquivo Forrester — Diário da Quinta da Boavista, 1890-1902. 176  Recenseamentos da População, 1890 e 1900.

O FIM DA MIGRAÇÃO GALEGA PARA O DOURO VINHATEIRO Se consultarmos os Recenseamentos da População, entre 1890 e 1940, que nos fornecem o número de estrangeiros presentes, em 31 de Dezembro, em cada concelho e por países de naturalidade, verificamos que, nos concelhos da região do Douro, os espanhóis (a maioria dos quais seria de origem galega) são largamente dominantes até 1920. No entanto, após terem atingido valores ainda expressivos em 1890 e 1900, no período das grandes plantações pós-filoxéricas, o seu número desceu continuamente a partir do censo de 1911, até se reduzir a menos de uma centena em 1940. A descida brusca das migrações galegas para o Douro vinhateiro, a partir do início do século XX, relaciona-se com a crise comercial do vinho do Porto, que fez travar as novas plantações e reduziu a oferta de trabalho no Douro, ao mesmo tempo que estimulou a emigração de muitos trabalhadores durienses. A presença de galegos diminuiu substancialmente, até se tornar cada vez mais rara no período entre as duas guerras.

90

«Espanhóis» presentes nos concelhos do Douro, em 31 de Dezembro (1890-1940)177: Concelhos Alfândega da Fé Carrazeda de Ansiães Freixo de Espada à Cinta

1890 1900 1911 1920 1930 1940 26 10 8 1 1 3 349 299 24 21 17 10 47

100

33

5

11

0

Mirandela

100 96 63 28 27 3

Torre de Moncorvo

100

60

25

3

3

12

Vila Flor

84 48 11 11 6 0

Figueira de Castelo Rodrigo

29

Meda Vila Nova de Foz Côa Alijó Mesão Frio Murça

11

15

14

12

0

8 10 4 3 7 0 89

107

28

9

1

0

644 892 112 52 6 8 8 1 0 2 1 0 38 55 15 5 16 0

Peso da Régua

101

80

Sabrosa

542 936 54 47 8 3 18

34 3

9 8

7

Santa Marta de Penaguião

45

Vila Real

69 141 39 27 13 12

Armamar

22

61

2

4 146 1 3 1 3

Lamego

10 24 7 6 3 5

Resende

3 3 2 0 0 1

S. João da Pesqueira Tabuaço TOTAL

416

36

9

0

5

19 33 12 22 3 6 2.731 3.500 568 305 153 80

Fonte: Recenseamentos da População, 1890 a 1940.

177  Recenseamentos da População, 1890 a 1940.

426

91

FONTES E BIBLIOGRAFIA: Fontes manuscritas: Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Óbitos da Paróquia de S. Faustino da Régua, 1724-1742. Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Óbitos da Paróquia de Loureiro, 17421763. Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Óbitos da Paróquia de Poiares, 1728-1759. Arquivo Distrital de Vila Real. Paroquiais — Livro de Registo de Baptismos da Paróquia de S. Faustino da Régua, 1808-1816. Arquivo do Paço de Guminhães — Petição feita por José Manuel de Novaes contra o caseiro da Quinta de Ventozelo, Lucas Galego, por não poder utilizar o caminho público que a atravessa, 19.12.1790. Arquivo Forrester — Diário da Quinta da Boavista, 1890-1902. Quinta da Boavista — Livro de férias do serviço da Quinta da Boavista, 1900-1905. Fontes impressas: Primeiro Inquérito Parlamentar sobre a emigração portuguesa pela Comissão da Camara dos Senhores Deputados, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, p. 508-511. Recenseamentos da População, 1890 a 1940.

pa.

Bibliografia: BARRETO, António (1993) — Douro. Lisboa: Ina-

CORREIA, João de Araújo (1968) — Horas Mortas. Régua: Imprensa do Douro. CORREIA, João de Araújo (1972) — Palavras fora da boca. Régua: Imprensa do Douro. CORREIA, João de Araújo (1974) — Pó levantado. Régua: Imprensa do Douro. CORREIA, João de Araújo (1938) — Sem Método. Régua: Imprensa do Douro; (2010) — Sem Método. Porto: Modo de Ler. FERNANDEZ CORTIZO, Camilo J. (2007) — La emigración gallega a la provincia portuguesa de Tras-os-Montes y Alto Douro (1700-1850): evolución temporal, tipología y localidades de partida y de destino. «Douro. Estudos & Documentos», n.º 22. Porto: GEHVID, p. 79-112. FONSECA, Francisco Pereira Rebelo da (1791) —

Memória sobre o estado da Agricultura, e Comércio do Alto Douro. In Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa. Tomo III. Lisboa: Academia Real das Ciências de Lisboa. FORRESTER, Joseph James (1853) — The Oliveira prize. Essay on Portugal. Londres: John Weale. OLIVEIRA, António Braz de; MARINHO, Maria José, org. (1983) — Devassa a que mandou proceder Sua Majestade no Território do Alto Douro pelo Desembargador António de Mesquita e Moura. Lisboa: Biblioteca Nacional. PEREIRA, Gaspar Martins (1984) — As quintas do Oratório do Porto no Alto Douro. «Revista de História Económica e Social», n.º 13. Lisboa: Sá da Costa Editores, p. 13-49. PEREIRA, Gaspar Martins (2011) — Roriz. História de uma Quinta no coração do Douro. Porto: Afrontamento. PEREIRA, Gaspar Martins; OLAZABAL, Maria Luísa (1996) — Dona Antónia. Porto: Edições Asa / A. A. Ferreira. VILA MAIOR, Visconde de (1876) — O Douro Ilustrado. Porto: Magalhães & Moniz. VIZETELLY, Henry (1880) — Facts about Port and Madeira. Londres: Ward, Lock & C.º.

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