Até onde vai a adequação do modelo fundado em \'gestos\' ?

June 13, 2017 | Autor: Wilmar DAngelis | Categoria: Phonological Theory, Distinctive Features, Gestural Phonology, Phonological Primitives
Share Embed


Descrição do Produto

0

ATÉ ONDE VAI A ADEQUAÇÃO DO MODELO FUNDADO EM ‘GESTOS’ ? Wilmar R. D’Angelis (Unicamp)1

To Eleonora, with the conviction that, despite the opinions that I can express in disagreement with her, I will be heard /read with real academic interest, and seriously taken into account, even though for a salutary divergence. And, Eleonora, you can be sure that I am following your example in the practice of real academic debate.

Resumo Um aparato descritivo da fala humana que seja capaz de uma expressão semelhante à produção de um espectrograma, seria como um “mapa de Borges”. Sua elaboração até nos permitiria colocar atenção e, com isso, descobrir detalhes que jamais nos haviam interessado, e por isso, nunca havíamos observado. Mas o resultado desse esforço não seria uma representação do que é relevante (e apenas do que é relevante) para o uso e a compreensão da linguagem. Não seria, pois, um modelo. Necessitamos distinguir um modelo que permita descrever como o aparato vocal do falante produz determinadas combinações fônicas, de um modelo que permita explicar como a mente de um ouvinte processa distinções sonoras com valor simbólico na linguagem? Uma africada como [tS] pode ser articulatoriamente bem representada em uma pauta gestual, o que atesta a adequação observacional do modelo; mas porque e como uma africada representa apenas variação ‘alofônica’ em um sistema linguístico, enquanto é um elemento distinto no “padrão fônico” de um outro sistema, essa é a grande questão que coloca dúvidas sobre a adequação (ou poder) explicativa do modelo erigido sobre a unidade “gesto”.

1

Exposição durante a Mesa Redonda Representação fonológica: questionamentos em torno da unidade representacional, no 5º Encontro do DINAFON – Grupo de Pesquisa Dinâmica Fônica (Marília: UNESP, ago.2012) – evento em homenagem a Eleonora Cavalcante Albano.

1

Introdução O modelo da Fonologia Gestual não parece reservar espaço ao segmento (ou a alguma versão de fonema), bem como aos traços distintivos, e postula, como primitivo do sistema fonológico, o gesto. A abordagem trouxe, à luz, fatos até então desprezados pelas abordagens clássicas em Fonologia no século XX, alguns inclusive incômodos para aquelas abordagens, e igualmente lançou luz sobre uma considerável gama de fatos dos quais jamais se cogitou a existência (alguns, a partir de hipóteses preditivas do modelo). Isso é suficiente para nos sugerir duas coisas: - a Fonologia Gestual já tem prestado um relevante serviço à linguística, e ao nosso melhor conhecimento de várias ordens de fatos, da aquisição da linguagem à patologia clínica. - a Fonologia Gestual comporta princípios ou fundamentos que devem corresponder a aspectos reais do funcionamento das línguas, o que explica sua capacidade de descrever melhor (do que as teorias concorrentes) um conjunto de fatos do componente sonoro das línguas, e igualmente explica seu poder preditivo. Estudos exemplares, como aqueles que nos revelam a existência de “contrastes encobertos” (Berti, 2006; Freitars, 2007 e 2012, Rinaldi, 2010; Rodrigues, 2007 e 2012) e “contraste deslocado” (Schliemann, 2011) são muito bons exemplos disso. Nesses casos, uma transcrição fonética de oitiva, com base no IPA, jamais permitiria revelar tais contrastes (sobretudo com transcrição feita por falantes nativos). As descobertas proporcionadas por essa abordagem, nos trabalhos orientados por Eleonora, têm o poder científico de revolucionar formas de diagnóstico e práticas fonoaudiológicas de correção de fala. Só não realizou, ainda, isso, pelo poder não científico, mas antes, burocrático, administrativo, econômico e político que sustenta as velhas tradições na área. No entanto, apesar de arregimentar os argumentos possíveis a seu favor, o modelo Gestual apresenta dois tipos de dificuldades: (i) dificuldade de postular uma explicação mais plausível para a aquisição e reconhecimento da linguagem com base em um componente de base articulatória, e não acústica; (ii) dificuldade em distinguir se todos os detalhes fonéticos e toda a gradiência sonora é parte da gramática das línguas ou não, e quais seriam os critérios que deveriam orientar a necessária distinção entre processos que são de natureza simbólica (fonológica) e processos que podem ser interpretados como puramente mecânicos. O componente acústico e o componente articulatório: papéis específicos? Com relação à primeira dificuldade destacada acima, gostaria de me permitir uma digressão, um vôo livre de pensamento.

2

Inicio por apresentar minha concordância, em última análise, com a seguinte afirmação de Jakobson: É evidente que a produção e a percepção da fala são dois mecanismos acoplados, cada um dos quais afeta o outro. O processo articulatório envolve um retorno auditivo e demonstra ser perturbado quando este último é retardado (cf. Huggins), e de modo semelhante, a percepção de fala é normalmente complementada por uma resposta motora (cf. Liberman et al.). No entanto, esta inquestionável coordenação sensóriomotora (cf. MacKay e Haggard) dificilmente pode justificar qualquer especulação sobre o primado da representação articulatória no reconhecimento da fala. (Jakobson ([1966] 1971:713-714). 2 Mas, com isso, não recuso a importância do componente articulatório. Em minha tese de Doutorado, há quase 15 anos, em uma avaliação crítica da então versão corrente da Fonologia Articulatória (FAR), escrevi o seguinte: ...a matemática do modelo da dinâmica de tarefa é excelente para construir um sistema de síntese de fala a partir de uma simulação do funcionamento do aparelho fonador humano, mas me parece que não é o que está na cabeça do falante de uma língua (...). Dizendo de outra maneira, parece-me que as dificuldades da FAR advêm das condições mesmas de sua origem, ou seja, B&G estiveram ocupados em construir um modelo que funciona como o aparelho fonador, e não um modelo de como funciona a fala. (D’Angelis, 1998:343). Minha presença nesse Encontro do DINAFON (Marília, agosto 2012) é uma busca (como se vê, possivelmente atrasada) de resposta àquela questão, agora dirigida a esta que contemporaneamente é referida como Fonologia Gestual. Por certo muitos aqui se perguntarão se faz sentido ocupar, ou mesmo, perder tempo de um encontro de especialistas adeptos de um modelo fonológico para ouvir e responder as perguntas de um não-praticante possivelmente mal informado. Conquanto eu reconheça minha ignorância dos desenvolvimentos dessa abordagem teórica na última década, tenho a convicção de que algumas questões cruciais, que estão no cerne das concepções específicas que justificam a existência do modelo, merecem permanente reelaboração por parte dos seus adeptos. A oportunidade de aclarar essas questões para um (digamos) outsider, pode ser uma oportunidade de aclarar e aprofundar, para os próprios “praticantes”, 2

No original: “It is evidente that speech production and perception are two coupled mechanisms, each of which affects the other. The articulatory process involves an auditory feedback and proves to be disturbed when the latter is delayed (cf. Huggins), and in a similar way, speech perception is normally complemented by a motor feedback (cf. Liberman et al.). However, this unquestionable sensori-motor coordination (cf. MacKay and Haggard) can hardly justify any speculation on the primacy of articulatory representation in speech recognition.”

3

o que é argumento e o que é retórica na justificação do modelo. Por exemplo, tornou-se lugar comum dizer que os modelos baseados em unidades discretas como o fonema ou os traços distintivos “não dão conta” da realidade gradiente de fatos fonológicos, coisa que apenas modelos dinâmicos conseguem expressar, porque “superam o fosso” cavado por Trubetzkoy ao demarcar as fronteiras entre Fonética e Fonologia. Essa fórmula (ou alguma variante) tornou-se, assim, uma resposta cômoda, mas sinceramente, nem sempre embasada e não suficientemente esclarecedora. Quanto um iniciante na área se contenta com formulações desse tipo, e as repete acriticamente como profissão de fé, aquilo que alguns interpretam como um sinal da maturidade do modelo – que teria passado então à sua fase de “Ciência normal” (para lembrar Thomas Kuhn) – eu interpretaria como extrapolação dos limites do fazer Ciência, e um ingresso no campo das crenças, ou da ideologia, se preferirem. Voltando, pois, à conclusão de Jakobson (citada acima), de que toda a importância que se possa reconhecer ao componente articulatório, “dificilmente pode justificar qualquer especulação sobre o primado da representação articulatória no reconhecimento da fala”, gostaria de sugerir, ao menos para iniciarmos um debate, que em matéria de língua falada, o input auditivo é crucial para a aquisição da linguagem. Mais que isso, uma língua pode ser adquirida (passivamente) apenas empregando esse componente. Sugiro que o processo normal de aquisição, no entanto, funcione de algum modo semelhante ao aprendizado de um instrumento como violino. Para aprendêlo, o interessado precisa criar ou aprender parâmetros acústicos muito precisos. Mas à medida em que a pessoa vai adquirindo a habilidade de executar o instrumento (ou falar a língua), gestos motores coordenados vão se constituindo na memória motora que passa a ser acionada para executar a nota, acorde ou “fonema” (se fonema houver). Note-se que, se a pessoa passar muitos anos sem praticar (ou empregar a língua), ainda que ela não tenha perda no conhecimento em relação ao que havia adquirido, será necessário algum treino ‘balístico’ para voltar a executar o que sabia. O mesmo valeria para um jogador de basquete que tivesse sido um grande cestinha, e ficasse um ou dois anos fora das quadras. O fato de que a transição formântica infantil seja maior, em duração, comparada com a dos adultos, pode ser um argumento que fale a favor dessa ideia. Mesmo sendo, o gesto, a unidade da produção da fala, é indiscutível que a retro-alimentação acústica opera como calibrador importante. Experimentos como aquele de Loureiro el al. (2012), sobre assincronia e ajuste de sincronia dos clarinetistas que acompanhavam a si mesmos e a terceiros, podem revelar fatos que corroboram essa ideia. No sentido inverso, a resposta motora pode contribuir com o reconhecimento da fala (e experiências sobre neurônios-espelho poderiam ilustrar isso), mas minha convicção atual é que isso não é crucial para nossa percepção da fala. Caso contrário, não compreenderíamos palavras que não falamos, ou

4

palavras novas, e não haveria aquisição passiva de uma língua. No entanto, essa é uma das importantes questões a merecer muito mais investigação, como mostrou o Gustavo Nishida (2012). Sobre o papel dessa memória motora, nós temos experiências comuns, em nosso dia a dia, por exemplo, quando resolvemos mudar de lugar objetos que usamos diariamente. Para algumas pessoas, pode levar semanas para que a nova situação seja finalmente assimilada. E poderia também lembrar aqui o interessante caso de pessoas que, perguntadas sobre determinado número de telefone (“você sabe o número do fulano?”), precisam digitar ou simular a digitação do número ao telefone, para lembrarem-se dele. O que estou advogando, enfim, é a possibilidade de minha anotação, de quinze anos atrás, fazer bastante sentido: ... B&G estiveram ocupados em construir um modelo que funciona como o aparelho fonador, e não um modelo de como funciona a fala. (D’Angelis, 1998:343). O modelo Gestual funciona como o aparelho fonador, porque representa uma concepção adequada da produção da fala. Mas talvez não dê conta dos fatos da fala como um todo, e necessitemos não só de um componente acústico, mas também, sim, de parâmetros acústicos simbólicos, que não sejam gestos, mas efetivamente traços. Toda gradiência fônica é parte da gramática das línguas? Volto, agora, à segunda questão (ou “dificuldade”) apontada. Veja-se, por exemplo, que não parece difícil apresentar uma explicação fonética para o fato de que em alguns dialetos do Português Brasileiro a presença de uma vogal anterior alta em um núcleo de sílaba iniciada por oclusiva coronal (“t” ou “d”) provoca uma palatalização da consoante do onset silábico que a antecede

t, d

> t∆ , d∆

/ ___ i

t, d

> tS , dZ / ___ i

[d∆iå], [bat∆iå], [nojt∆I] [dZiå], [batSiå], [nojtSI]

enquanto que em certos dialetos nordestinos do PB, é a ocorrência de uma aproximante palatal alta em coda silábica que palataliza uma oclusiva coronal no onset da sílaba subsequente,

t, d

> tS , dZ / j ___

["dojdZU] , [mũj)tSo], [nojtSI]

No entanto, atribuir tais fatos ao mero contato fonético de uma consoante e uma vogal contíguas não explica:

5

(a) por que, no primeiro caso, alguns dialetos produzem consoantes suavemente palatalizadas, enquanto outros produzem consoantes africadas como resultado daquele processo; (b) por que, em alguns dialetos, o elemento aproximante palatal afeta uma consoante seguinte, enquanto em outros, afeta uma consoante precedente. Os estruturalismos também não respondem a tais perguntas, mas quando reconhecem o papel sociolinguístico de tais distinções (dialetais), não hesitam em atribuir-lhes estatuto linguístico. Em trabalho já citado aqui, avaliando criticamente um modelo fonético proposto Ohala (1995), questionei o risco de uma ... super-simplificação que pode resultar de tal modelo, como se os fatos linguísticos todos pudessem ser atribuídos a peculiaridades inerentes ao aparelho fonador. Se assim fosse, porque algumas línguas teriam consoantes pré-nasalizadas e outras não? Ou porque algumas nasalizariam suas vogais na contiguidade de consoantes nasais, e outras fariam o contrário? Teríamos que atribuir essas e muitas outras distinções a diferenças na coordenação motora dos gestos articulatórios de um povo para outro? 3 Em outras palavras, a representação sistemática (...) que justificaria que na transição entre dois sons determinados "ambas as passagens de ar podem ser brevemente fechadas formando uma oclusiva", não pode explicar porque algumas línguas fazem uso sistemático disso e outras não. O que quero expressar aqui é, por um lado, o incômodo com as posturas que pretendam dar explicações puramente mecânicas para fatos que têm significação linguística.4 Por outro lado, desejo chamar a atenção ao fato de que parecem ainda faltar, à Fonologia Gestual, procedimentos e critérios para realizar a delimitação e separação dos dois tipos de fenômenos. Por exemplo, quais dos fatos abaixo relacionados são ajustes fonéticos irrelevantes para os falantes-ouvintes, e quais carregam, para eles, informação linguística relevante? - o alçamento ou centralização da vogal posterior baixa não-arredondada /a/ em algumas posições átonas (sobretudo em átona final) e quando nasalizada, em dialetos do PB (exÜ [Æpalåtogra"fiå] , [banå)nå] ou [bå)nå)nå] ) - a palatalização de /t/ e /d/ antes de /i/, em dialetos do PB; - a palatalização de /k/ e /g/ antes de /i/, no PB;

3

Hyman, tratando de processo idêntico em dialetos do Chinês, pergunta-se por que ele “aparentemente não ocorre em línguas sem um contraste de nasalização em vogais?”. A resposta, diz ele, tem a ver com o fato de que a desnasalização parcial das consoantes nasais “não é um processo articulatoriamente motivado, mas antes, perceptualmente motivado” (Hyman 1975:255 - grifos do autor). 4 Palavras do foneticista Osamu Fujimura, em sua conferência no 5o Encontro do DINAFON (Marília: UNESP, agosto 2012): “Phonetics is not universal. Phonetics is language specific. Phonetics depends very strongly of language”.

6

- o alongamento de vogal em sílaba fechada por consoante oclusiva vozeada, em inglês, em contraposição à vogal em sílaba fechada por oclusiva surda (ex: /bat/ x /bad/ => [bœt] x [bœÜd] ) - a retroflexão do tepe em coda de sílaba precedida de vogal baixa, em alguns dialetos Kaingang (ex: /ka|/ > [ka«] , /fO|/ => [fO«] ) - a pré-nasalização e vozeamento de consoante obstruinte surda em onset, na fronteira de morfema precedido por morfema terminado por vogal nasal, em diversas línguas Tupí (ex: mõ + potar => mõmbotar) A propósito, como a questão também não é claramente discutida e resolvida na perspectiva estruturalista, encontramos dezenas de descrições da fonologia do Português Brasileiro que tratam da palatalização de oclusivas dentais diante de /i/, mas que não mencionam a palatalização das oclusivas velares no mesmo contexto. No entanto, nenhuma palavra é dita ao leitor sobre os critérios de escolha, que fazem um processo ser descrito e não o outro. Na verdade, a escolha parece operar inconscientemente para muitos analistas. Quero sugerir, outra vez à guisa de estimular um debate (e um tanto à moda de licença poética), que a gradiência não é tomada em conta pelos falantes/ouvintes (quando se trata de sua língua materna), por uma de duas razões: a) em processos de valor fonológico, os fatos são interpretados ou percebidos como categóricos: o ouvinte percebe, por exemplo, nasalidade ou nãonasalidade, nunca “meia-nasalidade”. Pode haver circunstâncias que prejudiquem a recepção e percepção da fala, e nelas o ouvinte poderia, eventualmente, ficar em dúvidas se ouviu ou não ouviu a nasalidade, ou de outro modo, se ouviu determinado elemento como nasal ou como não-nasal. Nunca se coloca a hipótese da “meia-nasalidade”, porque ela não tem valor fonológico, ou seja, não tem lugar na representação mental que o falante nativo faz do seu sistema. Como resolve, o ouvinte, o problema dos traços (se me permitem o uso do termo, com licença poética) mal ouvidos? Como em tudo, na linguagem, preenche os vazios deixados pelo enunciador e os indeterminados (que são próprios da constituição da língua), e o faz empregando todas as pistas que a linguagem oferece: pistas de um “fonema”, deixadas em “fonemas” contíguos (ou pistas de um traço, presentes nos elementos adjacentes ao elemento mal realizado), redundâncias da palavra, contexto linguístico e extra-linguístico. E como em tudo, na língua, algumas vezes o ouvinte erra em sua ‘dedução’. b) em processos fonéticos, a gradiência opera sobre elementos não distintivos (por exemplo: nasalidade das vogais, no Português brasileiro; vozeamento de fricativas em coda silábica, na mesma língua; etc.), exatamente o que lhe permite maior liberdade de realizações. Como se trata de traço sem valor para a determinação das significações, o falante não coloca, sobre eles, a mínima atenção, e a gradiência que eles apresentem é igualmente irrelevante.5 5

Uma analogia que cunhei em um texto didático é a seguinte: apesar dos inúmeros tons de vermelho (ou mesmo de rosa e pink) que podem apresentar as luzes “vermelhas” dos semáforos (faróis ou sinaleiras, conforme a região do país) dentro de uma mesma cidade, os motoristas e pedestres não dão nenhuma

7

A propósito, deixe-me ilustrar com um comentário de Otake e Cutler (1996:1): É na percepção, sobretudo, que a rigidez do sistema humano de processamento da linguagem com relação à fonologia não-nativa contrasta de modo mais supreendente com a extrema flexibilidade que podemos apresentar dentro de nossa própria língua. Podemos lidar facilmente com diferentes falantes e diferentes condições de escuta: vozes não ouvidas antes podem ser imediatamente entendidas: a fala de tratos vocais de homens, de mulheres e de crianças é igualmente compreensível, apesar da enorme variação acústica causada por diferenças no tamanho do trato; podemos compreender a fala apesar de ruídos de fundo, de obstrução do trato vocal (um resfriado trancando o nariz, uma boca cheia de comida) ou restrição radical na banda ou faixa de transmissão (como em conversas telefônicas). No entanto, com uma língua diferente, a nossa flexibilidade nos abandona. Embora possamos ter dominado estruturas gramaticais e acumulado um vocabulário substancial, ouvir uma língua não-nativa, com frequência continua sendo difícil.6 Destaco, ainda, que não igualo ou confundo, por isso, gradiência com variância. A variância é aquele tipo de alofonia que o falante precisa adquirir junto com a aquisição da linguagem, e que comporta valor de representação social (de classe, de sexo, de grupo étnico ou outra). No meio do caminho havia um fonema Apontei, anteriormente, que os traços (categóricos) ainda devam ser reconsiderados como importantes primitivos da Fonologia, cujas distinções é o que efetivamente aprendemos a reconhecer e produzir, ao adquirir linguagem. Isso não significa, como alguns podem pensar, que em uma fonologia cujo primitivo é o traço não haja lugar para o fonema. Do mesmo modo que, seja o traço tomado como primitivo, seja o fonema, a maioria dos modelos fonológicos reconhece um estatuto à sílaba.

importância a essa gama de tonalidades, porque ela não tem relevância, não é significativa (distintiva) em um sistema de controle do trânsito. 6

No original: “In perception, above all, the inflexibility of the human language processing system with respect to non-native-phonology contrasts most strikingly with the extreme flexibility which we can demonstrate within our own language. We can cope effortlessly with different speakers and different listening conditions: previously unheard voices may be immediately understood: speech from men’s, women’s and children’s vocal tracts is equally comprehensible despite the enormous acoustic variation caused by differences in vocal tract size; we can comprehend speech in spite of background noises, vocal tract obstruction (a cold in the nose, a mouthful of food) or radical bandpass restriction (as in telephone conversations). Yet with a different language, our flexibility deserts us. Although we may have mastered grammatical structures and amassed a substantial vocabulary, listening to the non-native language often remains difficult.”

8

Entre os muitos fatos que, aqui ou ali, vemos arregimentados para justificar o abandono da noção de unidades como segmento ou fonema, algumas vezes se têm mencionado as pesquisas (e são muitas) que mostram que pessoas não alfabetizadas apresentam grandes dificuldades com certos jogos de linguagem envolvendo aquele tipo de unidades; essa dificuldade ou incapacidade de falantes nativos manipularem com tais unidades induziu alguns autores a tomar o fato como prova da inexistência delas. Se o raciocínio for aplicado à Linguística em geral, deveremos assumir como irreais muito do que sabemos sobre morfologia verbal, palavras gramaticais, e outras tantas coisas, além dos próprios gestos, da FonGest. Se para a Ciência só tivesse existência o que corresponde à consciência possível ao senso comum, então nem haveria necessidade da Ciência, nem teríamos abandonado a perspectiva geocêntrica, entre muitas coisas. Ademais, se a noção de fonema segmental não encontrasse nenhum eco em representações mentais possíveis dos falantes com respeito à própria língua, seria bem trabalhoso explicar o fato de que a alfabetização de crianças possa acontecer de maneira tão rápida, como acontece. E até mesmo o fato relatado por Sapir ([1933] 1981:40), envolvendo um falante do Paiute do Sul, que o levou à concepção do que chamou de “realidade psicológica do fonema”, se tornaria inexplicável por razões científicas; e em lugar de nos apresentar o falante em questão como “my native interpreter” e como “a young man of average intelligence”, Sapir deveria ter reconhecido, nele, um grande xamã, capaz de produzir, sozinho, um construto teórico que grande parte dos linguistas, àquele tempo, ainda não aceitava. Um mapa de Borges? Uma terceira dificuldade do modelo Gestual, que se soma às duas discutidas nesse trabalho, diz respeito à sua capacidade de descrever, com a necessária generalização, os fatos linguísticos. Dito de outro modo, é indispensável que uma teoria fonológica possa descrever adequadamente a generalidade dos fatos fonológicos (particularmente, o que denominamos “processos fonológicos”), em lugar de descrevê-los um a um, isoladamente; caso contrário, não passará de um bom e acurado sistema de transcrição fonética (ainda que venha a ser mais realista e menos reducionista que o IPA). Ladefoged já alertou para o fato de que o modelo gestual “não têm os traços que reflitam as requeridas classes naturais”, e não me parece que tenha tido uma resposta convincente. Não é o caso de lembrar, aqui, que o modelo não se baseia em traços; esse não é o problema. A questão levantada por Ladefoged (1990) é que os gestos, tal como formulados, não parecem permitir alguns agrupamentos facilmente reconhecidos em processos fonológicos de muitas línguas: por exemplo, processos que se produzem pela presença de qualquer vogal anterior, ou processos disparados por qualquer (toda e somente) vogal alta, etc. Como demonstração do problema, Ladefoged propôs tomar em consideração – “em termos das variáveis de trato propostas por Browman e Goldstein” – “as

9

classes naturais de vogais que resultam” quando se divide o conjunto das vogais da língua Ngwe: [ i, e, E, œ, A, O, o, u ]7: “as vogais [A, O, o, u, i ] têm um grau

E ] a constrição está situada a uma considerável distância da glote, mas para a vogal [œ ] a constrição

razoavelmente pequeno de constrição; para as vogais [ e,

que existe é comparativamente mais próxima da glote; e para [ u ] ela está a meia distância. Não há modo pelo qual qualquer dos grupos resultantes possa ser chamado de classe fonológica natural” (Ladefoged 1990:401). Quero concluir, pois, refletindo, ainda, sobre essa última questão. Muitos de nós já cansou de ler o ouvir, em muitos trabalhos de análise fonológica (em fonologia gerativa, em autossegmental, em otimalidade, e também em fonologia gestual), uma declaração singela do tipo: o modelo (ou a teoria) dá conta de explicar os fatos... etc. O mais comum é ler isso em textos de estudantes. Raramente a pessoa que escreve isso sabe em que sentido está usando o verbo “explicar”, ou que sentidos ele pode ter. E quase sempre, o que a pessoa está apontando como “explicação” é apenas o fato de que o modelo em questão permite representar determinado processo (ainda que o faça com toda arbitrariedade possível, e sem ultrapassar os limites do que Chomsky chamou de “adequação observacional”). Modelos poderosos, que, sem dificuldade, podem representar tudo, antes de nos deixarem muito otimistas, deveriam nos deixar em alerta. Um modelo precisa conter restrições ou ser limitado o suficiente para não produzir o que seria uma super-representação: a capacidade de representar ou gerar resultados jamais atestados ou, mesmo, interditados às línguas humanas. É com essa reflexão que gostaria de encerrar minha fala, apoiando-me em um conto do genial escritor argentino, Jorge Luis Borges: Del rigor en la Ciência: ...En aquel Imperio, el arte de la Cartografia logró tal perfección que el mapa de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y el mapa del Imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, esos mapas desmesurados no satisficieron y los Colegios de Cartógrafos levantaran un Mapa del Imperio que tenía el tamaño del Imperio y coincidía puntualmente com él. Menos adictas ao estudio de la Cartografía, las generaciones siguintes entendieron que ese dilatado mapa era Inútil y no sin impiedad lo entregaron a las inclemencias del Sol y de los inviernos. En los desiertos del Oeste perduran despedazadas ruínas del mapa, habitadas por animales y por mendigos; en todo el país no hay otra relíquia de las disciplinas geográficas. SUÁREZ, MIRANDA: Viajes de varones prudentes, Libro Cuarto, Cap. XLV, Lérida, 1658.8 7 8

Os dados articulatórios são relatados em Ladefoged 1971:68. On Exactitude in Science . . .

10

Um aparato descritivo da fala humana que seja capaz de uma expressão semelhante à produção de um espectrograma, seria como um “mapa de Borges”. Sua elaboração até nos permitiria colocar atenção e, com isso, descobrir detalhes que jamais nos haviam interessado, e por isso, nunca havíamos observado. Mas o resultado desse esforço não seria uma representação do que é relevante (e apenas do que é relevante) para o uso e a compreensão da linguagem. Deixaria de ser um mapa; não seria, pois, um modelo.

Referências Bibliográficas BERTI, L. C. (2006). Aquisição incompleta do contraste entre /s/ e /ʃ/ em crianças falantes do português brasileiro. Campinas: IEL-UNICAMP. Tese de Doutorado. BERTI, L. C.; MARINO, V. (2008). Marcas linguísticas constitutivas do processo de aquisição do contraste fônico. Revista do GEL, v. 5, n. 2, p. 103-121. BORGES, Jorge Luis (1960). El hacedor. Buenos Aires: Emecé, p.103. D’ANGELIS, Wilmar R. (1998). Traços de modo e modos de traçar geometrias: línguas Macro-Jê & teoria fonológica. Campinas: IEL-UNICAMP. Tese de Doutorado, 2 vols, 420pp. FRAJZYNGIER, Zygmunt. (2004). The principle of Functional Transparency in language structure and in language evolution. In Z. Frajzyngier et al. (ed.), Linguistic diversity and language theories. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2004, p. 259-283. HYMAN, Larry. (1975). Nasal states and nasal processes. In C.A. Fergunson et al. (eds.). Nasálfest: papers from a symposium on nasal and nasalization. Stanford/CA: Stanford University, pp. 249-64. JAKOBSON, Roman ([1966] 1971). The role of phonic elements in speech perception. In Selected Writings 1 - Phonological Studies. The Hague: Mouton, p. 705-718. KIPARSKY, Paul. (1982). From cyclic phonology to lexical phonology. In H. van der Hulst e N. Smith (Orgs.), The structure of phonological representantion – Parte I. Dordrecht: Foris, p. 131-175. LADEFOGED, Peter (1990). On dividing phonetics and phonology: comments on the papers by Clements and by Browman and Goldstein. In J.Kingston & M.E.Beckman (eds). Papers in Laboratory Phonology I. Between the grammar and physics of speech. Cambridge/UK: Cambridge University Press, pp.398-405.

…In that Empire, the art of Cartography attained such perfection that the map of a single Province occupied the entirety of a City, and the map of the Empire, the entirety of a Province. In time, those Maps without measure no longer satisfied, and the Cartographers guilds struck a Map of the Empire whose size was that of the Empire, and which coincided point for point with it. The following Generations, who were not so fond of the study of Cartography as their forebears had been, realize that so vast Map was useless, and not without some pitilessness, they delivered it up to the inclemencies of Sun and of the Winters. In the deserts of the West, still today, there are tattered ruins of that Map, inhabited by animals and beggars; in all the land there is no other relic of the disciplines of Geography. Suarez Miranda,Travels of Prudent Men, Book IV,Cap. XLV, Lérida, 1658. Para ouvi-lo na voz do autor: http://video.google.com/videoplay?docid=8747548060623486309#

11 LOUREIRO, Maurício A.; MOTA, Davi A.; CAMPOLINA, Thiago; YEHIA, Hani C.; LABOISSIÈRE, Rafael. (2012). Padrões de sincronização temporal em duos

de clarinetas: influencia do acompanhante e da estrutura musical. João Pessoa, Anais do XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós‐Graduação em Música. NISHIDA, Gustavo (2012). Incomensurabilidade entre as teorias de percepção da fala: um debate sobre a natureza da percepção da fala. In Encontro do DINAFON – Grupo de Pesquisa Dinâmica Fônica (CNPq), 5, 2012, Marília. Anais eletrônicos do 5º Encontro do DINAFON. Marília: Fundepe. CDROM. OHALA, John J. (1974). Phonetic explanation in Phonology. In A.Bruck; R.A. Fox & M.W. Lagaly (eds.). Papers from the parasession on Natural Phonology. Chicago Linguistic Society, p. 251-274. OTAKE, Takashi; CUTLER, Anne (1996). Introduction: Phonological structure and its role in language processing. In ______ (Eds.), Phonological Structure and Language Processing. Cross-linguistic studies. Berlin: Mouton de Gruyter, p. 1-12. RINALDI, L. M. (2010). Procedimentos para a Análise de Vogais e Obstruintes na Fala Infantil do Português Brasileiro. Campinas: IEL-UNICAMP. Dissertação de Mestrado. RODRIGUES, L.L. (2007). Aquisição dos róticos em crianças com queixa fonoaudiológica. Campinas: IEL-UNICAMP. Dissertação de Mestrado. ______.(2012). A complexidade fônica na aquisição da escrita: um estudo com crianças da educação infantil. Campinas: IEL-UNICAMP. Tese de Doutorado. SAPIR, Edward ([1933] 1944). The psychological reality of phonemes. In Selected Writings of Edward Sapir. Berkeley: University of California Press, p. 44-60. SCHLIEMANN, L. R. R. (2011). Contraste de vozeamento por crianças entre 6-8 anos: uma abordagem dinâmica. Campinas: IEL-UNICAMP. Dissertação de Mestrado. WOOD, Sidney A.J. (1995). The gestural and temporal organisation of assimilation. In K. Elenius & P. Branderud (eds). Proceedings of the XIIIth International Congress of Phonetic Sciences. Estocolmo: Universidade de Estocolmo, Instituto Real de Tecnologia, 1995, vol.1, p.392-395.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.