Até que a Vida os Separe: Um Ensaio sobre Relacionamentos Afetivos na Pós Modernidade

June 15, 2017 | Autor: Renata Netto | Categoria: Trabalho, Amor, Individuação Feminina, Emancipação feminina
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ATÉ QUE A VIDA OS SEPARE: Um Ensaio sobre Relacionamentos Afetivos na Pós Modernidade Renata Netto do Nascimento1, 2015. “Não basta o compromisso, vale mais o coração.” Renato Russo. RESUMO

A organização tradicional de família na pós-modernidade vem sofrendo abalos estruturais em virtude da mudança de estilo de vida a partir do consumo e do individualismo, pois não mais se coaduna com a organização social do trabalho vigente, que conta com a força produtiva das mulheres. Na busca por desenvolvimento pessoal e profissional, casais vivem um conflito de prioridade entre as relações conjugais e a entidade familiar, de modo que as novas gerações elegem parceiros de vida que apoiem e auxiliem o crescimento noutros aspectos da vida. Nessa nova configuração, a liberdade existencial responsável ocupa o espaço do livre-arbítrio na orientação das decisões. Palavras-chave: amor, emancipação, trabalho, individualização

ABSTRACT

The traditional shape of families in post-modernity has been shaken by lifestyle changes around consumerism and individualism because that familiar configuration does not fit the actual social labor organization anymore, which counts with women’s work on job market. Seeking for professional and personal development, many couples live a kind of priorities conflict between marriage and family cell on a way that new generations started to choose life partners who support them and help with their growth in other fields of life. In this new scenario, the existential responsible freedom keeps free-will place’s on orientating one’s decisions. Keywords: love, emancipation, work, individualization.

Pós graduanda em Filosofia e Sociologia pelo Núcleo-Pós Aperfeiçoamento Profissional – Volta Redonda/RJ, com certificação pela Faculdade Redentor. 1

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INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem por objetivo tecer considerações a respeito da dificuldade do ser humano de relacionar-se afetivamente na sociedade contemporânea e as implicações disso nas estruturas familiares. Para tanto, nos esforçamos a fim de não cair no discurso sexista e não reduzir a temática à luta de gêneros, muito embora essa pauta tenha ganhado anotação aqui.

É de bom alvitre esclarecer, inicialmente, que não é possível adentrar num ensaio a intimidade de cada lar, razão pela qual as constatações aqui trazidas referem-se a um tipo específico de estrutura familiar do ocidente, com grande ressonância da construção social de gênero e da organização social do trabalho, refletindo um padrão mais ou menos genérico.

Considerando a necessidade de delimitação do tema bem como a pluralidade humana e a enormidade de ações, pensamentos e sentimentos dela decorrentes, este ensaio é despretensioso ao elencar razões para a alteração dos modelos familiares, de modo que apenas as mudanças na organização social do trabalho e na perspectiva da liberdade e da construção de identidades e individualidades são trazidas à baila como base do argumento aqui defendido.

Partimos do exame da estrutura tradicional de família para enfrentar, no segundo capítulo, os impactos do trabalho e do consumo nessa configuração e constatar, no terceiro, a fragilidade do amor prometido como sustentáculo das relações ante a realidade da vida conjugal, agora influenciada pela busca da liberdade e por novas possibilidades individuais.

Em seguida, trazendo um contraponto teórico, analisamos estórias produzidas pela teledramaturgia nacional para apontar algumas diferenças entre esse amor prometido e o amor que se escolhe sentir e vivenciar com o outro.

Por derradeiro, concluímos abrindo espaço para reflexão, aplicada ao tema, sobre liberdade e livre-arbítrio na lógica de mercado e responsabilidade e autoria das próprias ações.

1) PARAMETRIZAÇÃO TRADICIONAL DE FAMÍLIA No século passado, até a segunda “fase” do feminismo e a ascensão galopante do consumismo após o fim da guerra fria, época em que as desigualdades sociais refletiam o

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extremismo das diferenças ideológicas no mundo, as famílias ocidentais de modo geral apresentavam estrutura mais ou menos padronizada: biparental, heterossexual, oficialmente estabelecida, iniciada em torno dos 18 e 25 anos de idade dos cônjuges, com dois ou mais filhos.

Observava-se também uma organização do trabalho dinamizada em sua maior parte pela população pertencente às classes sociais intermediárias. Naquela organização, vigorava para o homem o cargo e o encargo de provedor financeiro das famílias, uma vez que às mulheres cabiam as tarefas de cuidar dos filhos, da casa e do marido.

Já nas classes sociais extremas, compreendidas por aquelas faixas da população em que ou a miséria ou a riqueza inestimável predominavam, a organização comum do trabalho não ditava cem por cento do sistema de provisão familiar, que apresentava alguma alteração em relação às famílias daquelas classes intermediárias.

Isto porque, para além do aspecto econômico, vigoravam outros vetores sociais na distribuição do ônus de sustento do lar ou das tarefas domésticas, como necessidades maiores de sobrevivência, entre os mais miseráveis, e a herança escravista de se ter muitos empregados numa casa bem como influências europeias de engrandecimento intelectual e cultural da mulher, entre aqueles mais abastados.

No primeiro caso, a mulher também precisava contribuir com dinheiro no lar para o atendimento de necessidades básicas como alimentação, moradia e vestuário. Entre os muito ricos, todavia, a contribuição feminina para as finanças domésticas era decorrente de um desenvolvimento pessoal prazeroso, por exemplo, caso a mulher fosse uma artista plástica respeitada ou uma concertista reconhecida.

Ainda assim, socialmente o ônus de sustento recaía sempre sobre o homem, sendo certo que eventual participação feminina no custeio do lar era complementar e até opcional – eventual estado de fortuna ou de miserabilidade jamais seria imputado à “(in)atividade” econômica da mulher.

Como se vê, em que pese pequenas variações, tratava-se de uma conformação predominantemente rígida, cujos papéis eram bastante delimitados e os membros do clã familiar praticavam pouco ou nenhum intercâmbio de tarefas, atividades, pensamentos e sentimentos.

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2) IMPACTOS DO TRABALHO E DO CONSUMO NAS RELAÇÕES

A pós-modernidade trouxe consigo uma tecnologia sempre inovadora, que, por sua vez, despertou novas demandas no mercado. Segundo o economista britânico John Maynard Keynes, a grande promessa da inovação e aprimoramento crescentes das técnicas de produção, era uma jornada de trabalho de apenas cerca de 15 horas por semana em virtude da diminuição da necessidade da presença física do trabalhador em seu local de serviço, legando-lhe mais tempo para outras atividades.

Mas não foi bem isso que ocorreu. Mais tecnologias, mais produção, mais opções, mais demandas, mais necessidades, mais desejos. O homem parece estar cada vez mais perseguindo uma meta que nunca chega, pois, a ampliação da oferta dos sempre novos bens de consumo não trouxe a equivalente e automática ampliação do acesso a tais bens, como imaginado pelo pensamento econômico do início do século XX.

De tal sorte, as inumeráveis tecnologias que dinamizaram a produção também o fizeram (e muito!) com o consumo e também com o desejo pelo consumo – pois há que se separar estas duas esferas –, alimentados pela lógica neoliberal pós-moderna na qual reina uma busca incessante para manter altíssimos os níveis de desejo e consumo, a fim de que as margens de lucro não despenquem.

E nesse jogo vale tudo. Em especial em termos de publicidade. As necessidades de consumo, hoje, não se restringem à subsistência e a uma poupança para imprevistos, mas exorbitam esses limites e afetam aspectos psicológicos profundos e socialmente construídos de pertencimento, bem-estar, estilo de vida e felicidade. Numa palavra – o consumo, hoje, é associado à condição humana; só é humano quem consome, conforme se depreende da força mesma da legislação de amparo ao consumidor...

Com efeito, em decorrência da ascensão tecnológica, houve significativa redução no número de postos de trabalho nos quais a pessoa desempenhava funções que considerava relevantes na cadeia produtiva. Por outro lado, o mercado ainda precisava absorver a mão-deobra de pessoas sequiosas por consumir as benesses que a tecnologia estava oferecendo. E, assim, a profecia de Keynes não se cumpriu desde os anos 30.

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Tal fenômeno é irmão de outro – o da especialização. A linha produtiva está cada vez mais fragmentada em seções cada vez mais específicas. Tais funções muitas vezes são consideradas quase inúteis e sem significado para quem as exerce; esse trabalhador não se enxerga no organograma e no fluxograma das organizações como unidade valorosa e percebe que sua função parece se destinar apenas a abarcar uma faixa da sociedade qualificada ao trabalho, mas não à lida com a tecnologia de ponta.

Para este novo mercado de consumismo e ofícios fragmentados e sem valor ou significado, as antigas estruturas familiares e de trabalho não estavam preparadas. Surge uma indagação: como um pai, sozinho, poderia prover não só as necessidades biológicas, mas também aquelas crescentes demandas sociais/comportamentais de si, da esposa e dos filhos?

Aqui, então, o feminismo encontrou o consumismo e, um fortalecendo o outro, levaram as mulheres a ingressarem em massa no mercado de trabalho, a fim de que a família não experimentasse a defasagem do consumo e permanecesse classificada como cidadã, sujeita de direitos na ordem civil. Longe de tecer críticas ao feminismo, pelo contrário, o ingresso ostensivo da mulher no mercado de trabalho foi fator crucial para sua emancipação e desenvolvimento financeiro e pessoal.

Por outro lado, há outra indagação de relevo: como seguir a vida exercendo uma função medíocre, desprovida de potencial de realização pessoal? Sim, pois a maior fatia dos postos de trabalho está no nível operacional das organizações e não no gerencial, onde se verifica maior satisfação pessoal com o trabalho.

E homens e mulheres, sequiosos por não apenas consumir, mas por construir sua identidade individual, pertencer, viver bem, numa média socialmente agradável de consumo, angariar reconhecimento e prestígio em seu trabalho e fora dele, bem como usufruir de liberdade partiram não só para o mercado, mas para a busca pela excelência na qualificação profissional, a fim de ocuparem os postos cujo valor não foi usurpado pela tecnologia.

3) A FRAGILIDADE DO AMOR ANTE A REALIDADE CONJUGAL

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A vontade de os homens manterem-se profissional e pessoalmente realizados trazia consigo um perfeitamente aceitável, plausível e mesmo de se encorajar alto nível de dedicação de tempo, além das horas da jornada laboral, para que obtivesse a excelência de qualificação que os autorizasse a desempenhar atividades cada vez mais importantes em seus trabalhos.

Até aqui, a despeito do pouco tempo investido no compartilhamento de afeto e no cuidado emocional entre os cônjuges e entre eles e os filhos, o amor prometido no altar e no cartório seguia com seu poder inviolável de manter vigente a ordem moral e legal que excedia os domínios do lar. A família estruturada sobre essa pedra fundamental era sagrada e inabalável. Até que a morte os separasse.

Todavia, esse movimento a que os sociólogos alemães Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim, na segunda metade do século XX, chamam de individualização2 e cujas definições e consequências nos relacionamentos afetivos desenvolvem no livro “O Caos Normal do Amor”3, somente estremeceu a configuração da família tradicional quando a mulher foi buscar aquela mesma satisfação profissional bem como a realização pessoal através da emancipação econômica e do desenvolvimento intelectual e cultural de que gozava o homem4.

Nesse diapasão, esses fatores exorbitantes ao simples consumir que levaram as mulheres ao mercado de trabalho, fortaleceram a construção da sua identidade enquanto individualidade pensante, ativa e não apenas de “mãe-dos-filhos”, “esposa-do-marido” e “donade-casa” – situações nas quais a identidade é profundamente atrelada a funções exercidas exclusivamente em decorrência de outras pessoas ou coisas. Só há mãe, se há filho(s); só há esposa, se há marido; só há dona, se há casa.

A referida busca feminina, então, por força das históricas e limitadoras diferenças de gênero cimentadas pelo patriarcalismo, começou a trazer à tona insatisfações conjugais antes “empurradas para debaixo do tapete”. Agora, com independência econômica e potencial

Tradução livre do termo inglês “individualization”. Esse conceito foi mais profundamente desenvolvido na obra “Individualization - Institutionalized Individualism and its Social and Political Consequences” (Individualização – Individualismo Institucional e suas Consequências Sociais e Políticas). Londres, Reino Unido: SAGE Publications, 2002. Esta obra recebeu um prefácio de Zygmunt Bauman, o que evidencia o diálogo dos autores aqui trabalhados. 3 Tradução livre do título inglês “The Normal Chaos of Love”. 4 BECK, Ulrich e BECK-GERNSHEIM, Elisabeth. The Normal Chaos of Love. Trad. Mark Ritter and Jane Wiebel. Cambridge, Reino Unido: Polity Press, 1995. Págs. 19 e 21 2

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aproveitado no desenvolvimento pessoal, as amarguras decorrentes do desfalecimento do afeto, deixado à míngua de cultivo, não precisam mais ser suportadas até que a morte os separe.

Deste modo, a individualização parece exercer uma espécie de coação irresistível sobre as famílias no cenário pós-moderno, razão pela qual aquele amor salvador das relações afetivas começa a ficar fragilizado, perdendo um poder que outrora lhe fora outorgado para manter unidas pessoas que agora tem outras metas além da vida doméstica. 4) VIVER PARA SI, VIVER PARA O OUTRO E VIVER COM O OUTRO – CASOS DA MÍDIA

A despeito de todas as mudanças que vêm se verificando no cenário das relações amorosas/familiares, o valor social da união tradicional e oficial ainda é bastante pesado e muitos casais, muito embora não vivam um para o outro, mantêm-se casados, seja por aparência e interesse, ocasião em que traição e fantasias sexuais tornam-se atrativos para vencer uma rotina marcada pela apatia e para manter os níveis de euforia de indivíduos, seja por reconhecerem outras formas de amar, quando a monogamia entra em xeque e aquela liberdade buscada encontra espaço para se realizar inclusive no exercício do amor.

Apesar do fato de que poderia ser classificada por Adorno e Horkheimer como um dos maiores veículos da indústria cultural5 no Brasil, A Rede Globo de Televisão, resgatando um sopro da aura crítica e reflexiva da arte, recentemente retratou com maestria dramatúrgica exemplos dessas possíveis consequências do atual estado de coisas das famílias pós-modernas, nas tramas da minissérie “Felizes para Sempre?”6, de título profundamente sugestivo da crise institucional familiar experimentada hoje, e da novela “Império”7.

A) A Liberdade Deturpa o Amor – Apatia, Traição e Fantasia

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ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. Seleção de textos de Jorge M. B. de Almeida. 5ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2009. 6 De Euclydes Marinho, levada ao ar entre 26/01/2015 a 06/02/2015. 7 De Aguinaldo Silva, exibida entre 21/07/2014 e 31/03/2015.

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Na minissérie “Felizes para Sempre?”, o tom de depravação marcou o enredo: o casal protagonista, deputado federal Cláudio Drummond e a restauradora de obras de arte Marília Drummond, vivia um matrimônio apático, no qual ele se mantinha por aparência social e por ter envolvido a esposa em esquemas de corrupção sem que ela anuísse, e ela, por ainda gostar dele e ter esperanças de que sua vida a dois se recompusesse. Cláudio sempre se envolvia com amantes e prostitutas até que, numa sessão de terapia de casal à qual compareceu por insistência de Marília, propôs à sua esposa a realização de uma fantasia sexual, para a qual contrataram a prostituta bissexual Dany Bond, cujo nome verdadeiro é Denise. A partir desse encontro, a prostituta seguiu sendo amante de ambos os cônjuges, sem que um soubesse do outro. Com Marília, viveu uma relação aparentemente sincera e sem remuneração, e com Cláudio, manteve a prostituição. A estória terminou com a morte de Denise e a relação de Claudio e Marília, confusa.

Zygmunt Bauman olha para essa situação como quem vê a metonímia do colapso humano e, apontando o cume dos efeitos do consumismo sobre as relações humanas, em sua obra “Amor Líquido”8, assevera o sociólogo polonês, sem viés moralista algum, que o indivíduo pós-moderno padece de grave incapacidade de amar o próximo.

A lógica de mercado que governa o inconsciente coletivo extrapolou a órbita dos bens de consumo e afetou a sociedade como um todo, dando-lhe a característica de liquidez, conceito criado pelo referido autor para representar o caráter consumível de tudo e todos na pós-modernidade – fluidez, fugacidade, aspecto inapreensível, efemeridade, inconstância. Outrossim, pode-se evocar a semântica financista da palavra liquidez, referente a dinheiro, já que na pós-modernidade tudo e todos têm preço.

Bauman compara as relações humanas, em especial as afetivas, a uma rede na qual as pessoas, como bem retratado na minissérie, conectam-se e desconectam-se umas às outras com bastante facilidade e numa perspectiva utilitarista – as relações servem a alguma coisa e sua duração está irrevogavelmente associada à vantagem de sua manutenção.

Ora, considerando que a possibilidade de felicidade noutros projetos de vida além da união afetiva e familiar passou a escancarar a qualidade (ou falta dela) de tais relações, essa

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BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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“conexão” tornou-se muito mais atraente do que os relacionamentos uma vez que não traz em seu bojo nenhum tipo de conflito com os novos caminhos que a pós modernidade oferece para os indivíduos – não existe o ônus de manter uma união que se afigura inútil e incômoda.

Sustenta-se essa rede de conexões numa espécie de promessa de liberdade e de proteção contra os obstáculos que a alteridade, naturalmente decorrente do relacionar-se, impõe à ideia que se tem de felicidade no mundo pós-moderno, visceralmente dependente do individualismo. Afinal, felicidade é poder consumir cada vez mais e melhor.

A teia pós-moderna, muito bem ilustrada pelas redes sociais, a propósito, pode ser comparada a um mercado que oferece relações para todos os tipos, gostos e paladares, de várias cores, sabores e texturas; em sua maioria, são curtas e prometem eficácia em proporcionar cada vez mais prazer, êxtase, euforia. Qualquer queda desse padrão é motivo justo e suficiente para o rompimento e descarte. Noutras palavras, no mercado de relacionamentos, os produtos vêm com a indicação de “satisfação garantida, ou seu investimento de volta.”

A ideia vigente de liberdade, atrelada ao individualismo conjugado com um poder consumir o que quiser e o quanto quiser, subverte a lógica o amor – pois ele não se dá ao consumo – e coloca as relações afetivas contra a parede: ou vive-se para si mesmo e é feliz, ou vive-se para o outro e é infeliz. Mas ainda assim as pessoas querem “um amor” e, por isso mesmo, o investimento não volta e o risco da insatisfação não desaparece.

Quando se é traído pela qualidade, tende-se a buscar a desforra na quantidade. Se “os compromissos são irrelevantes” quando as relações deixam de ser honestas e parece improvável que se sustentem, as pessoas se inclinam a substituir as parcerias pelas redes. (...) Manter-se em alta velocidade, antes uma aventura estimulante, vira uma tarefa cansativa. Mais importante, a desagradável incerteza e a irritante confusão, supostamente escorraçadas pela velocidade, recusam-se a sair de cena. A facilidade do desengajamento e do rompimento (a qualquer hora) não reduzem os riscos, apenas os distribuem de modo

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diferente, junto com as ansiedades que provocam.”9

B) O Amor Precisa de Liberdade – Poliamor e Afetividade Eletiva Já na novela “Império”, o poliamor (ou poliamorismo) coloriu a estória do casal Beatriz e Cláudio Bolgari: viviam um matrimônio fundado no amor, na amizade, na cumplicidade, na sinceridade e no entendimento mútuo e o marido mantinha uma relação extraconjugal com o rapaz Léo, por quem devotava sincero afeto e auxiliava financeiramente, com a ciência, consentimento e apoio da esposa e do rapaz. A relação entre Léo e Cláudio era mantida às escondidas de todos, pois ele e Beatriz preconizavam o casamento e os filhos, bem como a sociedade profissional bem sucedida que mantinham há anos, até que um blogueiro flagrou os homens num beijo apaixonado e vazou as fotos na internet. A família de Cláudio ficou profundamente abalada e filho homofóbico Enrico cortou relações com o pai enquanto a filha Bianca seguiu apoiando os pais. Cláudio rompeu com Léo que, sem emprego, chegou à mendicância, ocasião em que Beatriz o encontrou e o ajudou a se recuperar. Cláudio e Léo ficaram juntos outra vez, agora publicamente, e Beatriz se separou do marido e conheceu outro homem, com quem passou a viver junto. Continuaram nutrindo uma amizade sincera e os negócios em comum, além da convivência próxima com o apoio dos filhos.

Beck e Beck-Gernsheim enxergando também uma crise nas relações amorosas e familiares da pós-modernidade, afirmam que o amor (sentimento que não se dá ao consumo, como já dito), agora, é o mais importante esteio que um relacionamento pode ter, pois estamos imersos numa sociedade do risco e, num viés um pouco diferente de Bauman (e talvez mais otimista), pontuam que as pessoas estão descobrindo novas formas de vivenciar o amor.

Ao trazer estatísticas de divórcios na Alemanha dos anos 90, os autores afirmam que, entre casais de mais idade e maior tempo de casamento, o número de divórcios aumentou muito, porém, dado interessante, entre os casais mais jovens, o número de casamentos oficiais tem aumentado – o que demonstra que o desejo de construir uma relação duradoura persiste.

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BAUMAN, Zygmunt. Ob. Cit. Pág. 8

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O que se verifica, explicam, é que as relações que se iniciam nesse contexto pósmoderno e que ganham ares de definitividade não prescindem da liberdade necessária para a execução dos projetos individuais dos engajados, e, por isso mesmo, cimentam-se pela parceria de vida: uma espécie de sociedade amorosa em que os afetos buscam promover mutuamente o desenvolvimento do outro.

Tal é a condição para a manutenção da união. Não deixa de representar certo utilitarismo porquanto “haver incentivo e suporte conjugal para projetos individuais” é uma das, senão a principal, finalidade a que uma união deve atender. Contudo, o utilitarismo não é a cor com a qual o casal Beck pinta a conversa.

Ainda através de dados sobre estado civil das pessoas na Alemanha e na Europa ocidental na década de 90, elucidam que apenas uma minoria das pessoas que vivem sozinhas enquadra-se no tipo “solteira” – jovens, adultas e profissionalizadas. A maioria são esposas idosas cujos maridos já faleceram. Acrescentam também que a maior parte dos jovens, embora rejeite o casamento e a família rígida como modelo a ser seguido, busca sim comprometimento amoroso, só que sem as pressões legais e religiosas. Diante desse quadro, afirmam que “Seria um erro interpretar essas tendências simplesmente como uma anarquia crescente e medo de comprometer-se em relacionamentos entre homens e mulheres. (...) Não está claro para onde tudo isso está nos levando e a resposta para a pergunta popular ‘a família na rota do fim?’ é uma mistura de sim e não.”10

Alertam que a emancipação feminina, marcada pela entrada da mulher no mercado de trabalho, pela sua crescente qualificação profissional e pela conquista paulatina de direitos, ainda não exorcizou a dicotomia “viver a própria vida” ou “estar à disposição da família”, sobretudo no que tange à maternidade; muitos homens ainda não aceitam a necessidade de se instituir no lar uma parceria, uma gestão plural e colaborativa da vida familiar, a fim de que ambos possam se desenvolver individualmente, sem que fazer ruir aquela união.

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Beck e Gernsheim-Beck, op. cit., Pág. 6 – tradução livre

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A quebra das antigas regras de gênero e sexualidade e da respectiva organização social do trabalho, como evidenciado na novela, representam parcela muito significativa dessa mudança estrutural nos relacionamentos amorosos, pois dão à família a característica de reunião de afinidades eletivas que não prescinde de cultivo e harmonização constante, pois que o juramento feito no momento de sua constituição não tem mais o poder de mantê-la indissolúvel.

Nunca teve, aliás. Forças morais e sociais é que mantinham uniões apesar da inexistência de sentimento. Hoje, com ou sem juramento oficial, há a necessidade vital de um juramento interno, em que razão e emoção digam ‘amém’, constantemente renovado, para que a estrutura erigida não venha a cair. Trata-se, portanto, de um compromisso que os envolvidos firmam de viver juntos, fundando uma comunidade em que o que lhes é comum os fortaleça.

CONCLUSÃO

As perspectivas dos autores aqui apresentados olham para um mesmo ponto e chegam a uma mesma conclusão – as estruturas familiares estão em crise na sociedade pósmoderna em virtude das mudanças profundas ocasionadas pelo atual estilo de vida marcado por individualismo e consumo.

Todavia, suas prospecções são opostas.

Zygmunt Bauman, na obra referenciada, parece não vislumbrar beleza no horizonte da humanidade atual que não sabe o que fazer com a liberdade que tem nas mãos, concedida pela tecnologia e pelo acesso à informação. Pior: a sociedade contemporânea parece estar cada vez mais escravizada no modelo que criou de comunicação e movimento constantes, incapaz de ver vantagem em relações de longo prazo.

Ulrich Beck e Elisabeth Gernsheim-Beck, por seu turno, enxergam que esse processo de individualização das pessoas, ao mesmo tempo que levou à ruína muitas famílias, tem trazido para as novas gerações a liberdade de escolha, talvez mais sagrada que o amor em si, não só entre carreira e família, mas mais no que concerne aos parceiros, à gestão do lar, à maternidade/paternidade, enfim, às várias decisões que fazem parte da vida para que não sejam conflitantes com a formação de identidade.

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Seria ingênuo acreditar que, em tempos mais remotos, o afeto não se esgotava e por isso as relações eram mais duradouras. Não. Talvez os afetos se esgotassem até mais, em virtude da maior supressão da escolha dos parceiros, ocasiões em que as relações, no sentido dinâmico da palavra, se acabavam; restava apenas o sentido estático, oficial, exterior, aparente que, muitas vezes, por outro lado, contribuía para que, numa convivência forçosa, algo de bom surgisse – como consideração, por exemplo.

Não nos parece crível que os problemas das famílias de hoje são novos. Podem até ter uma roupagem diferente, ser deflagrados por outros fatores e manifestar-se de maneiras diversas dos das famílias de ontem, mas, na essência, giram em torno de um mesmo problema central: a dificuldade de conciliar a relação conjugal e familiar com os demais aspectos da vida.

Estabelecer uma linha divisória clara e precisa entre equilibrar afetividade e identidade e negligenciar a afetividade em nome da identidade é tarefa das mais difíceis pois com as modificações nos estilos de vida, casar e ter filhos não necessariamente são prioridades, mas ter conforto e viajar, talvez sejam.

A comparação das análises dos autores eleitos serviu à pretensão deste ensaio: mostrar que o ser humano, por mais liberdade que tenha conquistado, parece ter grande dificuldade em relacionar-se. A liberdade da pós-modernidade aparenta carência de responsabilidade, pois confunde-se com livre-arbítrio: o indivíduo pode escolher entre e casar e estruturar sua carreira. Mas só entre essas opções.

Segundo Martin Heidegger, em Ser e Tempo, a liberdade originária de vir-a-ser humano transcende o livre-arbítrio e é a que efetivamente pauta a existência do indivíduo, outorgando-lhe a genuína autoria de suas ações. Ao se ver preso a opções que considera muito importantes mas que são aparentemente inconciliáveis, o homem sente dificuldade de lidar com esse livre-arbítrio e acaba negligenciando uma coisa ou outra, num momento ou noutro.

Dessarte, fica a reflexão sobre a alimentação, pela lógica de mercado pós-moderna, desse conflito a respeito da liberdade, que fortalece a dúvida e a generalizada inaptidão para relacionamentos afetivos: se amo não consumo, se consumo não amo. E, assim, as pessoas se mantêm unidas até que a vida as separe.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. BECK, Ulrich. BECK-GERNSHEIM, Elisabeth. The Normal Chaos of Love. Trad. Mark Ritter and Jane Wiebel. Cambridge, Reino Unido: Polity Press, 1995 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. Seleção de textos de Jorge M. B. de Almeida. 5ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

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