\"Athe a completa extinção\" - Quilombos em regiões florestais e a luta por liberdade no extremo sul do Brasil (Rio Pardo-séc. XIX)

June 2, 2017 | Autor: José Eckert | Categoria: Environmental History, History of Slavery, Agrarian History
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“Athe a completa extinção”- Quilombos em regiões florestais e a luta por liberdade no extremo sul do Brasil (Rio Pardo- séc. XIX)

José Paulo Eckert Se “renunciar a própria liberdade é renunciar a qualidade de homem”1, em nenhum momento da escravidão nas Américas houve essa renúncia. Tanto nos intermináveis sertões do norte, nordeste, centro e sudeste, tampouco no extremo sul dos territórios conquistados por portugueses aos indígenas o inconformismo se fez coercível. Neste contexto muitas foram às formas de resistir, mas sem dúvida, uma das mais significativas foi o ajuntamento de escravos fugidos em quilombos. De grande atenção na historiografia e fruto de um longo debate a respeito, há de se considerar o protagonismo dos aquilombados como força contrária ao sistema escravista, tendo por base uma organicidade dentro daquela sociedade que o produziu. 2 Tal organicidade é representada por uma rede social que dá sustentação, seja econômica ou logística, a formação e continuidade de quilombos em diversas regiões do Brasil. Sendo assim na análise é necessário não considerar apenas o quilombo em si, mas mergulhar nos universos em que estes se formaram e viveram.3 O texto que segue pretende o estudo do papel atribuído às regiões florestais do Rio Grande do Sul dentro do contexto do século XIX. De forma especial, nos interessa a 1 ROSSEAU, Jean Jaques. Do Contrato Social- ou princípios do direito político. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 27. Ressalva seja feita a idéia de liberdade e de homem que apresenta o autor e as distinções desta em relação ao imaginário ou mesmo a condição imposta ao sentido de liberdade e de homem no contexto tratado. 2 “O escravismo, que um momento anterior de globalização, juntou as força subalternos dos quatro cantos do mundo. Para o espanto das casas-grande, as novas lógicas que iam surgindo desse encontro- e ressurgindo, como a Hidra- constituíram-se, freqüentemente, na maior ameaça para o sistema.” SLENES, Robert W.. O escravismo por um fio?. Introdução in: GOMES, Flavio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séc. XVIII-XIX).São Paulo: Ed. Polis, 2005. p. 22. 3 Gomes, op. cit., 2005.

perspectiva do escravo que busca nesta por condições outras às vividas no cativeiro. Contudo, não deixamos de considerar outras possíveis interpretações, como de uma “visão oficial”. Isto ocorre pelo fato de as fontes de que dispomos serem exclusivamente produzidas por órgãos de repressão no período. O recorte espacial em que pretende-se acurar o foco de análise diz respeito a região conhecida como Serra Geral, que durante a primeira metade do século XIX fez parte do município de Rio Pardo. Esta que, no período em questão constituía-se literalmente em uma zona de transição entre o planalto e a campanha, onde os contrafortes da serra serviam de “degraus”. (ver mapa no anexo I) Tal característica não abrevia-se nas unidades geomorfológicas, mas estende-se a características sociais e econômicas. A vila foi um dos principais centros militares na formação da fronteira meridional e nas guerras subseqüentes do XIX, também, entreposto comercial fazendo parte do principal eixo econômico para o oeste e noroeste da província. Saint-Hilaire descreve a paisagem local da seguinte forma:

“Passamos uma planície úmida, parecendo ser a continuação da que ontem atravessei antes de chegar ao Jacuí. Tem igualmente pouca largura e é limitada à direita por diversas colinas (coxilhas) e à esquerda por matas, além das quais se vê a Serra Geral. Após ter feito cerca de duas léguas nessa planície, começamos a subir as colinas. A região que vimos depois desse momento é extremamente bonita, desigual e oferecendo um alegre rendilhado de pastagens e bosquetes. Continua-se a avistar, ao longe, os cumes da Serra Geral, que são menos uniformes e por conseguinte mais pitorescos.”4 Rio Pardo é um dos quatro primeiros municípios a serem criados na província, fruto da interiorização portuguesa para o oeste pelo rio Jacuí ocorrida no século XVIII, quando o território, chamado Capitania de São Pedro do Rio Grande, tem como fundamento básico de apropriação da terra a atividade pecuária.5 Nilo Bernardes tratando da expansão do povoamento nos campos ressalta o exclusivismo das atividades pecuárias em relação à utilização de áreas de campo, enquanto que “permanecendo inaproveitadas as terras de mata que eram atravessadas pelos caminhos, quando necessário, e sempre em suas partes mais estreitas”.6 O binômio geográfico 4

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. São Paulo, 1974, p.183. PESAVENTO, Santra Jatahy. Pecuária e Indústria- formas de realização do capitalismo na sociedade gaúcha no século XIX. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1986. 6 BERNARDES, Nilo. Bases Geográficas do Povoamento do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997, p. 59. 5

campo/floresta impulsiona a historiografia, no qual a ocupação dos campos por práticas tradicionais (pecuária) “precede e condiciona o surgimento e a localização das demais atividades agrícolas”. 7 Tentativas de complexificação a este reducionismo vêm sendo sistematicamente produzidas, e tendem a empreender esforços em busca de personagens históricos cujas interpretações orbitem para além das já tradicionais referentes a estancieiros e seus peões e dos colonos europeus, buscando então a participação dos homens livres pobres, escravos e indígenas. 8 Quanto à presença do escravo, cada dia mais sua importância na formação do espaço platino, e em especial do que viria a ser o Rio Grande do Sul, vem a reforçar-se e resignificarse no aprofundamento e proliferação das pesquisas. O debate a respeito deste protagonismo é amplamente conhecido pelos estudiosos do tema na história regional. Há desde textos que desconsideram a existência da mão-de-obra escrava indo até da escravidão “benevolente”, passando pelo emprego limitado a alguns ofícios, e, mais recentemente, de interpretações onde a utilização generalizada de escravos é apontada. 9 Define-se então a ampla participação destes nas mais diversas atividades exercidas no período, seja no meio urbano ou rural, onde até bem pouco discutia-se a presença escrava nas estâncias como peões.10 Tal interpretação fornece base para pensarmos também na ampla resistência à escravidão, distribuída nas mais diversas regiões e atividades, estas voltadas a pecuária, ao comércio, ou a agricultura. É comum, mas inspiradora, a afirmação de que onde houve escravidão, houve resistência. Esta que, no espaço riograndense, possui a característica de, a partir da fuga,

7 CUNHA, Jorge Luiz da. Os colonos alemães e a fumicultura- Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, 18491881. Santa Cruz do Sul: FISC, 1991, p. 41. 8 Entre outros, recordo de maneira significativa os trabalhos de: RÜCKERT, Aldomar A.. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul: 1827/1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997. ZARTH, Paulo Afonso. Do Arcaico ao Moderno- o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. FARINATTI, Luiz A. E.. Sobre as Cinzas da Mata Virgem- Lavradores Nacionais na Província do Rio Grande do Sul (Santa Maria, 1845-1880). Porto Alegre: PUC/RS, 1999 (dissertação de mestrado), CHRISTILLINO, Cristiano L. Estranhos em seu próprio chão: o processo de apropriação e expropriação de terras na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (O Vale do Taquari no período de 1840-1889). São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 205 (dissertação de mestrado). 9 Para um resumo atualizado do debate historiográfico a respeito do uso da mão de obra escrava no Rio Grande do Sul dos séc. XVIII e XIX ver: PETIZ, Silmei de Sant’Anna. Buscando a Liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2006. 10 A respeito da utilização de escravos na função de peão ver: OSÓRIO, H. Escravos da fronteira: trabalho e produção no Rio Grande do Sul, 1765-1825. In: XIX Jornadas de Historia Econômica. San Martin de los Andes: Asociación Argentina de Historia Económica/Universidad Nacional de Comahue, 2004, e FARINATTI, L. A. E.. Escravos do pastoreio: pecuária e escravidão na fronteira meridional do Brasil (Alegrete, 1831-1850).IN: Ciência & Ambiente, v. 1, 2006, p. 135-154.

projetar no horizonte dos estados vizinhos a possível liberdade. Uma liberdade com conotação distinta da do resto do território nacional em formação onde, por mais longe que sertão à dentro fosse, o escravo não se distanciava de sua condição legal11. Sem dúvida, essa peculiar característica de fronteira onde o indivíduo tem a possibilidade de emancipação, principalmente se engajando em milícias ou trabalhando na pecuária, é um fato singular e que merece estudos, contudo, é limitado a um específico período, e mais, um determinado contexto beligerante. Lembramos que já em 1851, com o fim da “Guerra Grande”, é imposto ao Uruguai, a exemplo de tratado realizado em 1848 com a Argentina, que todos os escravos exilados em seu território deveriam ser remetidos aos seus originas senhores.12 Tendo em vista este fato, pensamos, dentro do contexto da resistência escrava no Rio Grande do Sul, ser necessário cuidado em não sobre valorizar a importância da fronteira com os estados castelhanos. Pois, se a perspectiva de tornar-se homem livre em países vizinhos tão difundida estava, por que o cativo se aquilombaria? Maestri tentando responder a indagação semelhante pondera:

“Múltiplas causas determinam a formação de quilombos no Sul. A distância e a dificuldade de alcançar a fronteira. A pouca vontade de trabalhar como peão castelhano. O medo do desconhecido. O apego à terra. O certo é que um número considerável de cativos sulinos fugiu e aquilombou-se em serras despovoadas, em florestas agrestes, em ilhas isoladas, no meio dos banhados, nas cercanias das cidades, etc.”13

Porém, o mesmo autor pondera a influência da alternativa de fuga para a fronteira como uma das variáveis que contribui para que os quilombos no estado não tenham alcançado um número grande de integrantes se comparado a outras partes do país. As regiões florestais apresentam-se então como uma ótima perspectiva de refúgio a quilombolas, no caso do recorte espacial aqui utilizado tal área está representada na Serra

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A partir de 1815 os escravos gaúchos são tentados a lutar em prol da independência do Uruguai em troca de liberdade e terras, em 1835 o mesmo estado proibia a entrada de africanos em seu território e em 1842 é abolida a escravidão. A proximidade da fronteira faz com que muitos escravos busquem aquele território como estratégia de liberdade. PETIZ, op. cit., 2006, p. 41 e 42. 12 A respeito das fugas além fronteira ver PETIZ, op. cit. 2006. 13 MAESTRI, Mario. Deus é grande, o mato é maior! Trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. UPF, 2002, p. 37.

Geral que tradicionalmente possuiu um estigma negativo pelo que podemos considerar sociedades do centro colonizador, sendo o lugar do selvagem, do hostil, do criminoso. Mesmo ao final do séc. XIX, e com a região praticamente toda colonizada, em mensagem dirigida ao conselho municipal, o intendente de Venâncio Aires, reintera esta imagem:

“Este município devido a sua situação muito próxima a serra, aonde, como bem o sabeis, acha solícito acolhimento grande número de criminosos e vagabundos, sofre continuamente depredações e ameaças a segurança individual.”14

A vila de Rio Pardo está localizada ao sul desta serra, contudo esta, e grande parte do oeste esta compreendido no território do município durante a primeira metade do oitocentos. Por características econômicas e sociais já levantadas, não é de se estranhar que a região possua uma expressiva presença escrava. Em 1798 o número de escravos do sexo masculino nas localidades de Rio Pardo, Cachoeira e Santo Amaro, supera o total de homens brancos.15 Paulo Zarth pesquisando em inventários post-mortem de moradores de Rio Pardo entre 1821 e 1881 constata a presença de escravos em 81,2% deles, com uma média de 8 escravos por inventário. Somente Felisberto Pinto Bandeira, de famosa família do município e da província, possui em 1831 sessenta e quatro escravos.16 Para o século XIX temos os seguintes dados: População escrava nos municípios da região do Vale do Rio Pardo Localidade/ Ano 1780 1814 1859 1884 1885 1887 Rio Pardo 519 2.429 2.174 1.654 488 232 Santo Amaro 208 773 282 169 Encruzilhada do Sul 2.238 1.670 1.007 646 Santa Cruz do Sul 53 0 0 Fonte: VOGT, Olgário P.. Formação social e econômica da porção meridional do Vale do Rio Pardo. IN: VOGT, Olgário P.; SILVEIRA, Rogério L. L. da (org.). Vale do Rio Pardo: (re)conhecendo a região . Santa Cruz do Sul EDUNISC, 2001, p. 95. 14

INTENDÊNCIA MUNICIPAL DE VENÂNCIO AYRES. Mensagem apresentada ao Conselho Municipal de Venâncio Ayres em 18 de novembro de 1889. Pelo intendente Narciso Mariante de Campos. Registro de Mensagens Livro n. 1, 1989. 15 VOGT, Olgário P.. Formação social e econômica da porção meridional do Vale do Rio Pardo. IN: VOGT, Olgário P.; SILVEIRA, Rogério L. L. da (org.). Vale do Rio Pardo: (re)conhecendo a região . Santa Cruz do Sul EDUNISC, 2001, p. 69 a 122. 16 ZARTH, op. cit., 2002, p. 112 e 113.

Nesta população escrava, entre as formas de resistência, esteve presente a fuga como uma constante, principalmente em períodos de conflito como o da Revolução Farroupilha. Em ofício de 30 de janeiro de 1849 o delegado de polícia de Rio Pardo faz uma relação “das pessoas de todos os Distritos do Termo desta Cidade que tem escravos fugidos no Estado Oriental ou nas Províncias vizinhas” na qual são nomeados 132 escravos de 57 senhores, uma média de no mínimo dois escravos fugidos por senhor. 17 É imediatamente após este período beligerante que encontramos o maior número de registro de quilombos para a região, contra os quais as forças repressoras, contando com relativa estabilidade e disposição de homens, organizam um combate sistemático. Isto não significa que tais ajuntamentos de escravos fugidos não existissem antes, mas, sendo fontes oficiais que disponibilizam estes fatos à interpretação, ficamos limitados a este contexto de pesquisa. Indício desta mobilização pode ser visto nas somas de “Jornais pagos a homens, empregados na destruição de quilombos no município de Rio Pardo”, entre 1847 e 1848, 268$000, de 48 a 49, 240$000, em 50 463$280, e em 53 a soma de 1:340$800. Talvez estes gastos tenham conseguido ações de certo êxito já que somente quatro anos mais tarde é registrado novo pagamento, então de 302$420.18 As câmaras municipais tanto de Rio Pardo como Taquari são as principais denunciadoras dos quilombos, enquanto a primeira clama que:

“A extinção e destruição dos quilombos existentes na serra geral, neste município e no da vila de Cruz Alta, é uma necessidade urgentíssima por depender dela a segurança se não pública, ao menos a de particulares, e ser este o meio de precaver attentados e crimes.”19

A segunda pede a contratação de homens e a organização do combate aos quilombos articulada com a vila de Santo Amaro:

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AHRS, Polícia, maço P 26, 30/01/1849. CESAR, Guilhermino. Quilombo e Sedição de Escravos. Caderno de Sábado do Correio do Povo. Porto Alegre. 20/03/1976. apud. MAESTRI FILHO, Mario J.. O Escravo no Rio Grande do Sul- a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: EDUCS, 1984, p. 137. 19 Correspondência da Câmara Municipal de Rio Pardo, 26-8-1850, AHRS, L.148, M. 193. apud. ZARTH, op. cit., 2003, p. 142. 18

“Esta Camara Municipal faz subir ao conhecimento de V. Exª o officio junto por copia, acrescentando ás considerações expendidas pelo Juiz de Paz de Santo Amaro, e haver, tanto naquelle Districto, como o de Taquary, crescido o numero d’escravatura empregada na lavoura, carecendo só por isso a solicitude das authoridades em crear meios de prevenção a qualquer sinistro acontecimento, a prevenção pela segurança reclama de onse homens, inclusive o capitão do mato, da Guarda Nacional móvel, e da 1ª linha para em cada um dos dous Districtos deste Município serem empregados na destruição de quilombos e ajuntamentos, que ainda mais perigosos, possão desenvolver intenções devastadoras. V. Exª tomando a devida consideração a que se acaba de expender, se servirá dar o apreço que merece a requisição que ora se faz. Illmo. e Exmo. Snr. Conselheiro José Antonio Pimentel Bueno, Presidente da Provincia.”20

Dentro da massa documental produzida pelos delegados de polícia de Rio Pardo durante o período, sem dúvida, o relato mais significativo relativo à perseguição a quilombos diz respeito à ação realizada no início de 1847. O objetivo era “coadjurar a destruição dos quilombos que existião nas proximidades” da vila, e contava com um contigente formado de guardas nacionais e quatro vaqueanos, entre eles um capitão do mato,

“Depois de marchar trez dias na Serra a referida Partida, guiada pelo Capitão do Matto Pedro Rodrigues da Costa, conseguio suprehender o dito Quilombo a o ponto do meio dia, colhendo em resultado a aprehenção dos escravos constantes da relação inclusa ficando mortos hum preto e huma preta no primeiro conflito, em consequencia de havêrem os aquilombados resistido á Força armada.”21

Além dos mortos, outros seis escravos, dois homens e quatro mulheres, foram capturados, enquanto conseguiram fugir

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Correspondência da Câmara Municipal de Taquari de 1850, nº 39. AHRS. AHRS, Polícia, M26, 04/03/1847

“de seis a oito negros e duas negras por se acharem disperços pelo mato empregados em diferentes trabalhos, mas obteve-se mais o conveniente resultado de serem queimados dous grandes Ranxos, que sendo alli construidos a perto de vinte annos, dava indicio serto de grande numero de escravos estabellecidos, estragando-se alem disso todo, ou se não grande parte dos mantimenos colhidos.”22

Os ranchos, avaliados como tendo por volta de 20 anos, remontam portanto ao período da Revolução Farroupilha em que a região esteve envolvida, sua localização segundo depoimento do capturado Miguel era “na Costa da Serra Geral Mato dentro de quinze a vinte léguas”. O período de permanência dos aquilombados variava, um ano era o caso de Miguel, para Victoria fazia “quinze para deseceis annos que andava no mato”, enquanto que Benedicta e Josefa estavam aquilombadas a aproximadamente seis anos. Esta última alegando ter sido “condusida de Porto Alegre para este Quilombo pelo Escravo Romão (...), o qual igualmente se achava fugido com ella e no acto de ser preza pela mesma Escolta elle se escapou”. Romão era um dos anteriormente citados seis a oito que com mais duas mulheres haviam conseguido fugir a captura. Estes provavelmente continuariam aquilombados, não no mesmo lugar nem próximo a ele, mas cerca a outros quilombos que se sabia existir na região, ou ainda nem nestes, mas mais adiante “mato dentro”. A possível localização de “mais alguma reunião de Escravos aquilombados” foi pergunta repetida para todos capturados no interrogatório, sem exceção, todos afirmaram saber “por houvir diser a outros negros haver outro Quilombo perto” ou ainda “pôr ver aparecer fumassa na mesma Serra”. Quando do referido assalto aos ranchos, o próprio “Capitão do Matto, observou vestígios, que muito alem daquelle existia outro estabellecimento de Negros e assegura que sobre elle se conseguirá feliz resultado”.23 A perseguição com objetivo a “exterminação dos quilombos” continuaria, após a captura descrita a cima outro contingente igualmente formado de guardas nacionais e capitão do mato e vaqueanos rumariam outras vezes a serra. Contudo, “apesar das grandes diligencias que fizerao”, não lograram êxito nestas investidas. Segundo as autoridades policiais “os

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AHRS, Polícia, M26, 04/03/1847. AHRS, Polícia, M 26, 04/03/1847.

aquilombados se retirarão para dentro desses mattos em distância de mais de três léguas e o tempo não deu mais lugar a que ahi mesmo fossem perseguidos”. 24 A interiorização foi o que, muito provavelmente, determinou a inexistência de um conflito subseqüente. Ainda em relação a ligação entre os aquilombados na serra, difícil acreditar que vivendo a tanto tempo no local, tendo roças e realizando coletas em meio a mata não tivessem o conhecimento dos que viviam em seu entorno. O fato de conhecer a mata e seus caminhos era fundamental para a sobrevivência e resistência. Em 1849 a Câmara de Rio Pardo noticia a incapacidade das forças repressivas em combater os aquilombados mais bem preparados:

“Constante a esta câmara que cada vez mais se augmentão os quilombos existentes na serra próxima desta cidade e que tem sido infructosas as diligências que se tem feito para os dissolver, por serem praticados por militares não acostumados a transitar matta condensadas como são as da dita serra. E além disto armados com armas impróprias a tal serviço, por isso que semelhante armamento a cada paso dentro do matto os pode estorvar e demorar a marcha, que deve ser feita quase sempre com rapidez e de noite, resolveo a mesma câmara na sessão de hoje suplicar a V. Exa. Enérgicas providências a serem os mencionados quilombos com breviedade batidos athe a completa extinção”25

Era assim a “própria imensidão da floresta a maior inimiga das autoridades e senhores de escravos, portanto amiga dos fugitivos.”26 A caça e coleta também deveria ser abundante tendo em vista que os colonos imigrantes pouco tempo depois aproveitaram de forma intensa o grande número de macacos e “porcos do mato” e também de pinhão (semente da araucária) em sua dieta.27 A mata, ou o “sertão”, que é termo utilizado pelo delegado de polícia encarregado da repressão aos quilombos, oferece grande perspectiva de sobrevivência e refúgio. Contudo, não podemos deixar de inserir esta movimentação quilombola em regiões florestais dentro de processo mais amplo, ou seja, a expansão da fronteira agrária. 24

AHRS, Polícia, M. P 26, 29/05/1847. Correspondência da Câmara Municipal de Rio Pardo, L148, M. 192. apud. ZARTH, op. cit., 2003, p. 142. 26 GOMES, op. cit., 2005, p. 51. 27 CORREA, Silvio M. de S.; BUBLITZ, Juliana. Terra da Promissão: uma introdução à eco-história da colonização no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo; Santa Cruz do Sul: Ed. Universidade de Santa Cruz do Sul, 2006. 25

Segundo Farinatti o predomínio da pecuária na província de São Pedro do Rio Grande do Sul e o apossamento das áreas de campo ainda no séc. XVIII e nas primeiras décadas do XIX “fizeram com que as áreas florestais se tornassem o local por excelência da fronteira agrária aberta a partir da década de 1830”.28 Inserir neste processo os quilombolas instalados nos contra fortes do planalto das Araucárias é extraí-los de uma concepção de isolamento. Indígenas estavam presentes neste espaço, aja vista a captura de Pierre Mabilde, quando este abria estradas na região da colônia de Santa Cruz.29 Além destes, muitos homens livres pobres que dividiam seu tempo entre as atividades relacionadas à produção de erva mate, ou constituindo suas roças ou trabalhando em obras de infra-estrutura da colonização por imigrantes europeus, esta que, a partir de 1850, se adianta sobre as matas da região. 30 Além destes, como aponta Beschoren, “foragidos da lei encontram nesta mata um refúgio seguro, onde as mãos da justiça dificilmente os alcançam”, torna-se também “um abrigo seguro para os desertores”. 31 A serra está, principalmente para a primeira metade do XIX, solidamente inserida dentro da concepção de sertão, este, segundo Russel-Wood para o Brasil colonial, caracteriza-se socialmente da seguinte forma:

“Os habitantes naturais do sertão eram ‘selvagens’ (...) Duas outras categorias de pessoas associadas ao sertão não eram nativas desta área, sendo movidas por um ou dois motivos, muitas vezes interligados: nomeadamente, refúgio e oportunidade. O sertão era um local de refúgio para aqueles que rejeitavam ou que eram rejeitados pela sociedade, ou que fugiam da Igreja, da justiça, ou da opressão.”32 28 FARINATTI, Luiz A. E.. Sob as cinzas da mata virgem- Lavradores nacionais na Província do Rio Grande do Sul (Santa Maria, 1845-1880). Porto Alegre: PUC-RS, 1999, p. 94 (dissertação de mestrado). 29 MABILDE, Pierre F. A. B. Apontamentos sobre os indígenas selvagens da Nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande do Sul: 1836-1866. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, Fundação Nacional PróMemória, 1983. 30 Quanto a produção de erva mate na serra ver: BELL, Stephen. Aimé Bonpland e a avaliação de recursos em Santa Cruz, 1849-50. In: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, v. XXI, n. 2, dezembro de 1995, p. 63-79. Quanto a posse da terra por homens livres pobres produtores de erva mate ver, entre outros já citados: RÜCKERT, Aldomar A.. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul: 1827/1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997. 31 BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do Sul- 1875-1887. trad. TEIXEIRA, Júlia Schütz. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989, p. 22. 32 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fronteiras no Brasil Colonial. IN: Oceanos, no. 40, Lisboa, out. e dez. de 1999, p. 08.

Assim, entre “refúgio e oportunidade”, nesta mata “mais habitada do que parece”, onde “caminhos e ‘picadas’ cruzam-na em todas as direções e levam a casebres e ranchos bem escondidos” não são apenas quilombolas que encontram uma alternativa, mais do que isso, estes encontram colocação e fazem parte desta estrutura social periférica. Provavelmente possuem amplas relações com indivíduos que não estão aquilombados, o que possibilita a presença na região, caso contrário, suas possibilidades de atuação seriam muito reduzidas e não teriam a afirmação em um espaço que era concorrido com o elemento indígena. Exemplo deste leque de relações é o caso que tomamos conhecimento a partir de Maestri, onde, a partir da destruição, no ano de 1853, de um quilombo entre os arroios Sampaio e Taquari- Mirim, atual território do município de Venâncio Aires, os capturados revelam o auxílio de um proprietário de terras com armas e outros objetos necessários para a vida na mata em troca de serviços prestados.33 Para concluir pretendemos ressaltar esta inserção dos quilombolas dentro de uma sociedade periférica cujo cenário é a mata, seu protagonismo e a pressão que exerceram na sociedade do período. Fato onde é fundamental o papel que este sertão possibilita aos indivíduos e é causa de preocupação para as sociedades centrais. No Rio Grande do Sul a fuga de escravos para os países vizinhos foi uma constante, contudo a presença de quilombos também o foi, sempre buscando lugares escondidos em que as regiões florestais exerceram papel de refúgio, seja na região de Pelotas, de Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira do Sul ou Santa Maria, todos tiveram nestes ajuntamentos uma fonte de medo e de desestabilidade do sistema opressor em que viviam.

Para uma abordagem conceitual de sertão ver: AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995, p. 145-151. 33 MAESTRI, Mario. Deus é grande, o mato é maior! Trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. UPF, 2002, p. 68.

ANEXO I Áreas de mata nativa no Rio Grande do Sul e áreas de colonização açoriana.

Fonte: CORREA, Silvio M. de S.; BUBLITZ, Juliana. Terra da Promissão: uma introdução à eco-história da colonização no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo; Santa Cruz do Sul: Ed. Universidade de Santa Cruz do Sul, 2006, p. 49.

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