ATITUDES PERANTE A MORTE EM SÃO PAULO (SÉCULOS XVII a XIX

May 29, 2017 | Autor: Sandra Guedes | Categoria: Historia Social, Historia Cultural, História da morte
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ATITUDES PERANTE A MORTE EM SÃO PAULO (SÉCULOS XVII a XIX)

Dissertação de mestrado apresentada por SANDRA PASCHOAL LEITE DE CAMARGO GUEDES para a obtenção do títu1o de mestre em Hist6ria Social

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São Paulo, out. de 1986.

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Agradecimentos

A FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO (FAPESP), pela proveitosa bolsa de estudos que nos concedeu de 1/8/82 a 30/7/81, período em que pudemos coletar toda a documentação e redigir grande parte desta dissertação. À Professora Dra Nanci Leonzo, amiga e orientadora, pelas inúmeras e preciosas horas que dedicou a esse trabalho.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. .........................................................................4 1. OS CUIDADOS ESPIRITUAIS COM A MORTE: OS TESTAMENTOS..............................................................13 1.1. O Preâmbulo......................................................................20 1.2. As Recomendações com a Alma.........................................27 1.3. A Acolhida do Corpo.........................................................37 1.4. Os Aparatos Funerários: Mortalhas e Acompanhamentos...51 1.5. As Preocupações Pós-Sepultamento: Missas e Esmolas......65 2. DA LAICIZAÇÃO À EVOCAÇÃO DA MORTE NO SÉCULO XIX ........................................................................73

2.1. A Construção de Cemitérios Públicos...............................74 2.2. A Exploração da Morte: A Luta pela Secularização dos Cemitérios......................................................................97 2.3. A Visão da Morte na Literatura......................................118

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................142 ANEXOS Testamento do século XVII...................................................147 Testamento do século XVIII.................................................149 Testamento do século XIX...................................................151 Leis Provinciais sobre Cemitérios e Enterros.........................153

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FONTES............................................................................... REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS.....................................166

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INTRODUÇÃO

A preocupação dos historiadores com o estudo sobre a morte foi

despertada na França, na década de 1970. A importância do tema para o

desenvolvimento da História das mentalidades foi considerada fundamental pelos historiadores franceses, assim como o estudo da família e do

casamento. Trabalhos sobre a morte foram aparecendo, sucessivamente, deixando sempre em evidência a necessidade de se ampliar cada vez mais o número e as perspectivas de abordagem desses estudos.

Um dos mais importantes historiadores da temática “Morte” é Michel

Vovelle. Muitos artigos e livros já foram por ele escritos sobre o assunto,

sendo que um dos primeiros foi Pieté baroque et Dechristianisation. Attitudes provençales devant la mort au siécle des Lumières. (Paris: Plon, 1973), onde foram utilizadas séries de testamentos como principais documentos para o

estudo das atitudes perante a morte, o que nos despertou grande interesse, já que possuímos documentos similares para serem tratados de maneira qualitativa, quantitativa e serial. No ano seguinte Vovelle publicou Mourir Autrefois: Atitudes Collectives devant la mort aux XVII- et XVIII- siecles. (Paris: Gallimmard, 1974), obra de grande repercussão na qual a importância dos testamentos como fonte de estudo sobre a morte foi novamente evidenciada, assim como a necessidade de faze-1os numa perspectiva de longa duração, pois somente assim as mudanças e estagnações de mentalidade coletiva podem ser registradas.

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Dentre os historiadores franceses que tem se ocupado deste tema podem-se ressaltar, além de Vovelle, Philipe Ariés (L’Homme devant la mort.

Paris: Du Seiul, 1977; e História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1977), François Lebrun (Les Hommes et la mort en Anjou

aux XVII- et XVIII- siéc1es.Essai de démographie et de psychologie historiques. Paris: Haia/ Mouton,1971) e Pierre Chaunu (La Mort a Paris XVIe, XVIIe et XVIIIe siéc1es. Paris: Fayard, 1978). Emmanuel Le Roy Ladurie (“Chaunu, Lebrun, Vovelle: la nouvelle historie de la mort” IN: Le territoire de l’historien. Paris : Ga1limard, 1973) encarregou-se de sintetizar a contribuição de cada um deles. A publicação de um número especial da revista ANNALES totalmente

dedicado ao estudo da morte (ANNALES. Économies Sociétés Civilisations. Paris : Armand Colin, Jan-Fev, 1976) denota ainda mais a importância do

tema para a historiografia contemporânea. Além dos já citados M.Vovelle e P.Chaunu, podemos encontrar artigos de R.Chartier (“Les arts de mourir, 1450-1600”), D. Roche (“La memoire de la mort”), M.Crouzet (“Michelet,

les morts et l’anée l842”) e C.Herzlich (“Le travail de la mort”), cada um deles apresentando uma metodologia diferente de análise do problema.

Quando esta dissertação foi defendida em 1986, não havia, no Brasil,

pesquisas relacionadas com o tema na perspectiva da História das mentalidades. Os testamentos, como se pode observar nos textos dos historiadores franceses, em especial nos de Vovelle e Chaunu se constituem no suporte mais incontestável do discurso sobre a morte. A intelectualidade brasileira começou a se voltar à importância do

estudo da morte na década de 1980. O Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo promoveu em 1982 e 1983 dois seminários sobre a morte, quando

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diversos puderam apresentar seus trabalhos. O primeiro destes seminários foi publicado num volume denominado A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira (MARTINS, José de Souza org. São Paulo: HUCITEC, 1983) e a maior parte dos artigos ali publicados, está relacionada com a Sociologia de

uma maneira geral, e em especial com os rituais afro-brasileiros e indígenas em certas regiões do país. Em termos de História, podemos salientar os artigos da Professora Dra. Maria Luiza Marcílio “A Morte de nossos ancestrais”, que mostra a necessidade de se fazer um trabalho aprofundado sobre o tema, salientando mais uma vez a importância dos testamentos como

fonte de relevo; o artigo da Professora Dra. Nanci Leonzo sobre “O culto dos

mortos no sáculo XIX: os necrológios”, onde estes documentos sintetizam uma maneira especifica de se tratar a morte e que também será explorada na segunda parte deste trabalho e, finalmente, o artigo do Professor Dr. J.S. Witter sobre “Os anúncios fúnebres (l920-l940)” encontrados nos jornais do

Arquivo do Estado de São Paulo e que exemplificam a publicidade da morte no inicio do século XX.

Posteriormente, em 1991, João José Reis publicou A morte é uma festa

(São Paulo: Cia das Letras) enfatizando os ritos fúnebres e a revolta popular

chamada A Cemiterada, na Bahia do século XIX. O mesmo autor elaborou

um capítulo em História da vida Privada no Brasil v.2, denominado “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista” (São Paulo: Cia das Letras, 1997) reafirmando a importância do tema para a historiografia brasileira.

A morte, presente em todos os momentos de nossas vidas, faz com que a maioria das ações humanas seja regida pela idéia que dela temos. Desse modo, procuramos apreender e avaliar as atitudes dos paulistanos perante a morte, tendo-se em conta uma perspectiva de longa duração.

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A documentação existente delineou e delimitou esta abordagem.

Analisamos primordialmente as atitudes dos paulistanos “brancos” perante a

morte, já que a escassez de documentos relativamente à vida dos negros (devemos lembrar que em 1890, o Dr. Rui Barbosa mandou destruir todos os documentos e arquivos referentes à escravidão), assim como também de depoimentos e testamentos pessoais, impedem uma abordagem sistemática do assunto. Os escravos eram proibidos de fazer Testamento, como veremos no decorrer deste trabalho, o que dificulta uma análise nos moldes da que foi feita com relação aos brancos. O mesmo ocorreu com relação aos indígenas,

povo oprimido e “desclassificado” da sociedade. Lembramos aqui a

importância que apresentam para a análise da morte do negro e do índio, as obras de cunho antropológico e sociológico que trataram e continuam a tratar de atitudes mitológicas e fetichistas daquelas sociedades. Nesse sentido, salientamos, mais uma vez, a importância dos seminários realizados no

Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo e do livro,

também citado, publicado por José de Souza Martins. Especificamente sobre os rituais africanos sobre a morte citamos a tese de doutorado em etnologia na Universidade de Sorbonne da Dra. Juana Elbein dos Santos Os Nagôs e a Morte, traduzido e publicado pela editora Vozes em Petrópolis em 1976.

Embora as obras citadas tenham analisado o comportamento atual das sociedades indígenas e negras, pode-se ter uma idéia de todo misticismo que envolve suas vidas e mortes. Contudo, no decorrer do trabalho faremos alusões ao tratamento que os brancos davam aos negros mortos e, portanto, registrados na documentação utilizada.

A periodização deste trabalho também está profundamente ligada à

documentação. O período que iniciamos esta pesquisa corresponde ao século

XVII, já que o XVI possui poucos registros acessíveis, tornando inviável uma referência específica a ele, e a concluímos no fim do século XIX com a

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secularização dos cemitérios públicos. A evolução das pesquisas e os resultados obtidos mostraram a necessidade de dividir o trabalho em duas partes, já que significativas mudanças de atitudes foram registradas durante o século XIX. Deste modo, a primeira parte enfoca os caracteres comuns aos três séculos em estudo e a segunda as características da morte peculiares ao século XIX.

Na primeira parte, os Testamentos constituem a documentação principal. Adequamos, na medida do possível, a orientação de Pierre Chaunu

(História e Ciências Humanas. A História Serial. A História como Ciência Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976), para os Testamentos paulistas do século XVII (publicados pelo Arquivo do Estado de São Paulo de 1920 a 1968), do século XVIII (manuscritos localizados no acervo da Divisão de Arquivos do Estado de São Paulo) e do século XIX (microfilmes pertencentes ao Serviço

de Arquivo e Microfilmagem do Fórum Dr. João Mendes Junior). Devido à

infinidade de Testamentos existentes e a característica constância em suas informações, optamos por uma amostragem significativa para o estudo de cada século. Os mesmos critérios foram utilizados para todas as épocas, ou seja, tanto para o sécu1o XVII, como para o XVIII e o XIX, o mesmo

número de documentos foi analisado, obedecendo a um roteiro pré-

estabelecido e que retirou da documentação sempre o mesmo tipo de

informação. Esta escolha foi feita da seguinte maneira: sessenta testamentos para cada século, sendo vinte para o inicio do século, ou seja, de 1600 a 1617, de 1700 a 1712 e de 1806 a 1827; vinte para meados do século, ou

seja, de 1636 a 1655, de 1746 a 1769 e de 1850 a 1862 e, finalmente, vinte para o fim de cada século, de 1682 a 1698, de 1777 a 1799 e de 1880 a 1887, completando, portanto, um total de aproximadamente 180 testamentos. “Aproximadamente”, pois devido ao alto grau de deterioração em que se encontram os testamentos setecentistas, não foi possível encontrar o número

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suficiente de documentos, em condições de serem manipulados, necessários a

essa análise. Contudo a falta de dezoito testamentos setecentistas foi compensada pela possibilidade de compreensão obtida através da análise dos demais testamentos somada às informações contidas nas CONSTITUIÇÕES

PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA (Coimbra: Real Collegio das Artes da Comp. de Jesus, l720) e dos diversos Estatutos e Compromissos de diversas Irmandades e Confrarias existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Do mesmo modo, as datas escolhidas, que num primeiro projeto deveriam ser uniformes, tiveram de se ajustar ao material documental encontrado, ou seja, ao invés de se ter para as primeiras partes dos três séculos testamentos de 1600 a 1610, 1700 a 1710 e de 1800 a 1810, foi necessário modificá-las para 1600 a 1617, 1700 a 1712 e 1806 a 1827, como ficou exposto anteriormente. O mesmo aconteceu para o meio e final de cada século, já que não foi possível encontrar documentos passíveis de

serem lidos (e até mesmo de serem manipulados) na quantidade estabelecida

e dentro das datas também previstas, o que forçou uma adequação a um número de vinte testamentos para o inicio, meio e fim, sem termos mais a preocupação das datas coincidirem umas com as outras.

Para cada testamento foi feita uma ficha contendo as seguintes informações: em que ano o testamento foi feito, qual o sexo e idade do testante (quando aparecia); qual a justificativa dada por estar fazendo testamento; qual o local escolhido para ser sepultado; qual a mortalha; quantas missas pedia para serem rezadas após sua morte e quais as esmolas e outros detalhes que gostariam que fossem realizados pelos testamenteiros. As informações relativas ao tema e que saíram deste esquema foram anotadas à parte e receberam um tratamento qualitativo. Aqueles dados, após terem sido

coletados, foram acomodados em tabelas que facilitaram o cômputo dos mesmos. Em seguida, receberam um tratamento qualitativo, feito em

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conjunto com as informações obtidas através da Documentação Civil e

Eclesiástica, que forneceu os aspectos legais imbuídos em cada uma das questões em exame.

Verificou-se nessa parte apenas os aspectos religiosos ou seja, as preocupações tomadas para o bom encaminhamento da alma, procurando depreender qual era o pensamento sobre a morte: o que significava para os habitantes de São Paulo e o que pretendiam encontrar depois que morressem.

A documentação eclesiástica forneceu as informações legais de um testamento cristão. Delimitar as obrigações de um católico romano e aquelas que eventualmente possam ser qualificadas como “preocupações íntimas” foram objeto de análise. No discurso testamentário, o destino da alma é de suma importância. A razão e a dimensão desta ênfase no sobrenatural, que ultrapassa os limites daquela legislação, é mais uma preocupação.

O Preâmbulo, as recomendações com a alma, a acolhida do corpo, os

aparatos funerários - mortalhas e acompanhamento - além das preocupações pós-sepultamento - missas e esmolas-

foram analisadas de maneira a

comparar os três séculos nesta primeira parte. A comparação feita entre os três séculos estudados, relativamente a

cada um dos “itens espirituais” fornecidos pelos testamentos, possibilitou o

registro de uma importante mudança de costume no século XIX. Essa

mudança, motivada por uma questão material a passagem dos sepultamentos de dentro das igrejas para céu aberto, forçou a população, pouco a pouco, a transformar suas atitudes frente à morte.

Estas transformações, por serem bastante complexas e atingirem

diferentes estágios durante todo o século, mereceram um tratamento mais

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profundo. Deste modo, reservamos a segunda parte deste trabalho para a análise daquelas mudanças. A proibição dos enterramentos no interior das igrejas provocou reação

da população, que se negava a aceitar um cemitério público. A superação de tal costume foi cercada de intensa luta política, liderada pelos liberais. Era necessário retirar das mãos da Igreja também este baluarte: o poder de decisão sobre os sepultamentos.

Na análise das lutas políticas contra a Igreja deparamos com um novo tipo de pensamento sobre a morte e que se identificou plenamente com as características apresentadas por P.Ariés em sua análise sobre a Europa Ocidental. Este novo tipo de pensamento é o dos românticos, que invadiu o

século XIX, dando ao culto à morte uma perspectiva totalmente nova com relação aos séculos XVII e XVIII, principalmente por parte dos integrantes

da Academia de Direito de São Paulo. Por esta razão, esta segunda parte foi denominada “Da laicização à evocação da morte no século XIX”.

A documentação para esse período é vasta. Os jornais, por exemplo,

fornecem o acompanhamento praticamente diário da situação sanitária da cidade de São Paulo anos antes da construção do primeiro cemitério público.

O aparecimento de epidemias em diversas cidades brasileiras assustava os paulistanos e esse medo denunciava o perigo que os enterramentos dentro dos templos ocasionava. Estes debates puderam ser localizados, não somente nos

periódicos,

mas

também

nos

ANAES

DO

PARLAMENTO

BRAZILEIRO e nos DISCURSOS PARLAMENTARES DA CÂMARA DOS DEPUTADOS.

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As ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO e as

diversas Coleções de Leis e Posturas da Cidade de São Paulo apresentam muitas informações a respeito da construção de cemitérios a céu aberto que, junto com outros documentos, puderam completar o “quadro” da época. Romances, poesias e memórias também fizeram parte da documentação utilizada nesta segunda parte, toda “temperada” com os ares do Romantismo.

“A construção de cemitérios públicos”, “A exploração da morte” e “A

visão da morte na literatura” compõem a segunda e última parte deste

trabalho com o qual pretendemos formar um quadro das atitudes perante a morte em São Paulo nos séculos passados.

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1. OS CUIDADOS ESPIRITUAIS COM A MORTE: OS

TESTAMENTOS

Foram os Romanos os responsáveis pela introdução do costume de

testar. No entanto, foi a partir da restauração do Direito Justiniano no sécu1o XII que passou a ser obrigação de todo cristão fazer testamento1, sendo

considerada grande ofensa morrer sem tê-lo feito2. Ao que parece, contudo, foram os interesses da Igreja em proteger os legados pios deixados em testamento, o que contribui mais decisivamente para a manutenção daquele costume3.

A igreja, unida ao Estado, procurava por todos os meios assegurar uma liberdade ilimitada de testar através da legislação civil e secular em vigor em toda a Europa Ocidental4. Podemos perceber por intermédio do Código

Philippino e da Constituição do Arcebispado da Bahia (em vigor desde 1707) que esses interesses penetraram no Brasil juntamente com os primeiros povoadores, predominantemente de origem portuguesa e, portanto, portadores de costumes tradicionalmente Católicos Romanos. MACHADO, Alcântara. Vida e morte do Bandeirante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1930. p.219. 2 Lei de 9 de setembro de 1769, IN: Código Philippino ou Ordenações e Leis do reino de Portugal. Rio de Janeiro: instituto Philomático, 1870. p. 1057. 3 MACHADO, Alcântara. Op.cit. 4 Lei de 9 de setembro de 1769, IN: Código Philippino ou Ordenações e Leis do reino de Portugal. Rio de Janeiro: instituto Philomático, 1870. p. 1057. 1

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Todas as pessoas tinham assegurado seu direito de testar livremente e esse direito passou a ser, na prática, um compromisso moral e obrigatório

para todos os que desejassem “morrer cristãmente”. Aqueles que por

qualquer razão impedissem alguma pessoa de fazer seu testamento ou a

obrigassem a modificar suas últimas vontades, seriam seriamente punidos. A

igreja promovia pena de excomunhão total àqueles que impedissem alguém de testar e caso o impediente fosse um clérigo, além de excomunhão seria condenado à prisão5 .

O Código Philippino também assegurava a “faculdade de livremente

testar” e de deliberar livremente sobre os seus bens a quase todos os cidadãos6.

Algumas pessoas eram proibidas de fazer testamento. Estavam entre essas pessoas, o homem menor de 14 anos, a mulher com menos de 12 anos e aqueles que fossem comprovadamente loucos ou mentecaptos. Os filhos que estivessem sob o pátrio poder só poderiam testar com a permissão dos pais, fossem de que idade fosse. Poderiam, contudo, dispor dos bens castrenses7 ou quase castrenses sem precisarem da autorização paterna, caso tivessem a idade suficiente. Também o herege, o apóstata, o escravo, o religioso

professo, o pródigo, o surdo e o mudo de nascença8 ou aqueles que fossem condenados à morte9 eram proibidos de fazer testamento.

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXXVIII. Idem. Título LXXXI. 7 Bens relativos a ordens militares. 8 Porém, aqueles que ouvissem e falassem com dificuldade poderiam testar. Conf. Código Philippino. Título LXXXI do 4o livro das Ordenações, p. 910. 9 Nesse caso, porém, a Justiça permitia que os condenados dispusessem de suas terças em favor da libertação dos cativos,ou em legados pios tais como casar órfãos dar esmolas a hospitais ou igrejas ou para mandar dizer missas. Contudo, aos condenados por crime de heresia, traição ou sodomia esse “direito” também era negado. Código Philippino. p. 910. 5 6

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Existiam certas regras para que um testamento tivesse validade: devia ser feito perante cinco testemunhas, que deviam ser homens maiores de quatorze anos e livres ou tidos por tais10 (10). Essas testemunhas e o testador precisavam assinar no final do testamento. Caso o testador não soubesse ou não pudesse assinar, uma das testemunhas assinava em seu lugar. Esse testamento era chamado “aberto”, pois era feito publicamente. O testamento também podia ser cerrado, ou fechado. Nesse caso o

testador após escrever ou mandar alguém capacitado11 escrever o testamento, o lacrava e entregava ao tabelião perante cinco testemunhas, da mesma forma que o testamento aberto. A seguir, o documento recebia a aprovação do tabelião e a assinatura do testador e testemunhas no verso.

No caso de alguém fazer testamento sem obter a aprovação do tabelião, ele devia ser assinado por seis testemunhas capazes e ser publicado depois da morte do testador pela autoridade da Justiça citando as partes a que pertencesse12. Além dessas três formas, o testador podia fazer seu testamento oralmente perante seis testemunhas, homens ou mulheres, caso estivesse prestes a falecer. Contudo, se o testador viesse a se recuperar, este testamento perderia sua validade13.

Código Philippino. Título LXXX. Os Párocos e Clérigos também eram instruídos para escreverem testamentos quando solicitados, já que poucas eram as pessoas que sabiam escrever no Brasil Colonial e Imperial. 12 Código Philippino, Título LXXX. 13 Código Philippino. Esses testamentos chamavam-se Nuncupativos 10 11

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A Igreja, porém, não desejando abster-se dos legados daqueles

testamentos que possivelmente fossem anulados pela justiça civil, assegurava

a validade de todos os testamentos que instituíssem por herdeiros “algum Mosteiro, Igreja, Hospital, Casa de Misericórdia, Órfãos, pobres ou outro

qualquer lugar ou casa pia”14. Estes “testamentos pios” tinham validade

mesmo se contassem com apenas duas ou três testemunhas, contrariando as leis do Reino e o Direito Civil. Do mesmo modo, as partes relativas a legados pios constantes em testamentos considerados nulos pelo Direito Civil, tinham validade para a Igreja e deviam ser cumpridos nesses itens, sofrendo pena de excomunhão todo aquele que encobrisse qualquer testamento que deixasse obras pias15 .

Na grande maioria dos testamentos estudados, o testador designava quem seriam seus testamenteiros, que geralmente era alguém da família: um filho, cunhado, esposa ou marido, por exemplo. O testamenteiro, uma vez que aceitasse este cargo16 devia cumprir no prazo de um ano e um mês todos os pedidos feitos pelo testador, salvo se este prazo fosse ampliado pelo próprio testador ou se fosse comprovadamente insuficiente para que o testamenteiro pudesse cumpri-lo na íntegra.

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XL, § 787. Id.Ibid. 16 Ninguém poderia ser obrigado a aceitar o cargo de testamenteiro, salvo se quisesse ser herdeiro e legatário. No entanto, uma vez que aceitasse o cargo não poderia mais deixar de cumpri-lo. “E não tendo ainda principiado a execução, ou aceitado a testamentaria, não a querendo aceitar, o nosso Juiz dos Resíduos nomeará testamenteiro dativo, que melhor lhe parecer, nomeando sempre um dos herdeiros do defunto, se houver”. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLI, § 796. 14 15

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A testamentaria era cargo de muita responsabilidade. “O testamenteiro

é um administrador e como tal responsáve1 até aos casos fortuitos”17. Era ele que fazia cumprir tanto os pedidos relativos às aspirações espirituais do

testador quanto aqueles relativos à herança. Nesse sentido, é compreensível a grande expectativa que cercava suas atitudes, já que tanto a justiça civil (que muitas vezes embargava grande parte dos bens deixados em testamento), como a ec1esiástica, estavam intimamente interessadas na execução dos testamentos.

Resolução de 21 de Maio de 1821. IN: Código Philippino. 2o livro das Ordenações. p. 516. 17

20

A não execução dos testamentos retirava dos testamenteiros os

“legados, sa1ários, prêmios ou interesses que pelos defuntos lhe fosse deixado por serem testamenteiros”18, assim como quaisquer outros legados, bens ou herança que houvesse. Esses legados de maneira geral seriam, nesse

caso, transferidos para o Juiz dos Resíduos19 “para se distribuírem e gastarem em obras pias”20. Além disso, qualquer tipo de fraude realizada pelo

testamenteiro em exercício deste cargo seria judicialmente apurada. Se de alguma forma os testamentos não fossem cumpridos ou se houvesse desvio

de bens do testador para o testamenteiro ou para alguém de sua família até a quarta geração, estes deviam ser devolvidos imediatamente. Esta investigação

poderia prolongar-se até quarenta anos depois do falecimento do testador, quando o testamenteiro “ladrão” ainda era obrigado a devolver ao Resíduo todos os bens que por direito não lhe pertencessem21 .

Mesmo na falta de testamento, os herdeiros não podiam deixar de dar à

Igreja a terça da terça parte de todos os bens deixados pelo falecido para se “fazer bem por sua alma”. Esta cota era conhecida como “quarta funerária,

porção canônica ou mortulhas”22 . Em diversos inventários de “ab intestado” encontram-se quitações relativas a esmolas dadas pelos herdeiros a instituições religiosas, assim como advertências aos mesmos herdeiros que não tivessem tomado nenhuma providência para o bom encaminhamento da

alma do defunto. A pena nestes casos era de excomunhão, como podemos ver no inventario de Francisco Dias Pinto: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLI, § 791. Veja-se, por exemplo, uma quitação que deu o testamenteiro de Catharina da Silva, em 1695: “Digo eu Estevão Lopes, que é verdade que estou pago de dezesseis mil réis que a defunta minha avó Catharina da Silva me deixou do trabalho de ser seu testamenteiro e por verdade passei esta quitação”. Testamento de Catharina da Silva. Inventários e Testamentos. São Paulo: Arquivo do Estado, 1920 - 68, v.23. 19 Juiz dos Resíduos era a pessoa encarregada de administrar os bens deixados com encargo de obras pias. 20 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLI,§ 792. Ver também Código Philippino.Livro 1o Título LXII, §s12 e 14. 21 Código Philippino. Título LXII § 16. Livro 1o. 22 MACHADO, A. Op.cit. p. 220. 18

21

Não consta por este inventário fazer-se bem pela alma de Francisco

Dias Pinto. Mando se tire da terça para o que de direito compete do ab

intestado para o que serão notificados os herdeiros em cumprimento.., com pena de excomunhão. São Paulo, hoje, 14 de dezembro de 613 anos. O Vigário João Pimentel.23

A morte assim como a excomunhão eram temidas, por isso era muito

importante fazer testamento e nele deixar bem claro que estavam “bem com Deus” e em dia com todas as obrigações espirituais. Por isto, até meados do

século XIX, aproximadamente, a parte mais importante de um testamento era

aquela em que se tomavam as precauções para o bom destino da alma. Todos se preocupavam muito em assegurar um lugar no céu cercando-se de todos os subterfúgios conhecidos para alcançar este objetivo. É essa parte dos testamentos que nos interessa neste estudo, pois é ela e não a partilha dos bens que preocupava nossos antepassados e que pode nos revelar dados significativos para conhecermos o que pensavam sobre a morte e quais suas atitudes perante este fato intransferível e inevitável. 23

Inventário de Francisco Dias Pinto. 1611. Inventários e Testamentos. v. 3, p. 28.

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1.1. O Preâmbulo. O preâmbulo, ou parte inicial dos testamentos24, era constituído de

uma oferta do testamento a Deus Nosso Senhor, a Jesus Cristo ou à Santíssima Trindade, indistintamente. A seguir vinha a data, o nome do testante (raramente aparecia sua idade), o lugar em que estava fazendo o testamento e seu estado físico.

A razão pela qual uma pessoa escolhia aquele dia determinado para

tomar providências com o seu pós-morte é a primeira informação que encontramos. Em todo o século XVII percebe-se uma uniformidade no estado

físico das pessoas que fizeram testamento. A grande maioria (84%) dos testantes declarou estar doente ou "em perigo de morte" naquele momento. Os próprios testantes nos revelam a razão dessa decisão e o temor que

possuíam de morrerem ab intestados. O testamento era considerado um instrumento, o último em vida, para se redimirem dos pecados numa tentativa de preparar sua entrada no céu quando morressem. Este desejo de “descarregar consciências” é bastante claro nos testamentos, assim como a certeza de que todos são mortais e que Deus poderia chamá-los a qualquer momento. Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a que hora viria o ladrão vigiaria e não deixaria que fosse arrombada a sua casa. Por isso ficai também vós apercebidos, porque, à hora em que não cuidais, o filho do homem virá25 Esta denominação também foi utilizada por Chaunu em La mort a Paris.16e; 17e;18e siècles. Paris: Fayard, 1978. 25 Mateus - 24.42-44 24

23

Rafael de Oliveira, por exemplo, estando doente

sem saber a hora em que [Deus Nosso Senhor seria] servido [leválo] desta vida presente [e] considerando quão incerta é e a estreita conta que tenho de dar a meu redentor e criador me pareceu para bem de minha alma e descargo [sic] de minha consciência dispor de minhas cousas como faço[...]26 Maria Leite fez seu testamento “em nome da Santíssima Trindade Padre Filho Espírito Santo Três Pessoas e um só Deus verdadeiro” demonstrando acreditar na trindade divina, fato comum em quase todos os testamentos, não só do século XVII, mas também do XVIII e do XIX. Declarou também estar doente e em meu perfeito juízo e entendimento que Nosso Senhor me deu doente em cama temendo-me da morte e desejando por minha alma no caminho da salvação por não saber o que Nosso Senhor de mim quer fazer e quando será servido de me levar para si... 27 A presença de uma doença lembrava aos habitantes da Vila de São

Paulo a proximidade da morte, pois era “coisa muito ordinária” como dizia Miguel Vaz Pinto28.

O temor à morte estava presente em todos os testamentos seiscentistas e era esse medo que levava as pessoas a fazerem tal documento, cumprindo a risca as regras ditadas pela Igreja Católica Apostólica Romana.

Devemos, porém, ter sempre em mente que, no século XVII, a precariedade de atendimento médico e hospitalar (praticamente inexistentes) e portanto a Testamento de Rafael de Oliveira, o velho, 1648. Inventários e Testamentos. v. 3, p. 307. Testamento de Maria Leite, 1691. Inventários e Testamentos. v. 23, p. 33. 28 “[...] temendo a morte cousa mui ordinária [...]”. Testamento de Miguel Vaz Pinto, 1637. Inventários e Testamentos. v. 10. 26 27

24

dificuldade de atendimento aos doentes, além do próprio desconhecimento da cura de doenças, as mais corriqueiras nos dias de hoje, faziam com que qualquer doença pudesse levar uma pessoa à morte.

Em princípio eram os Jesuítas que atuavam como médicos. Porém,

era bastante grande o número de benzedeiros e triagueiros29. Tanto que em 1579 foi instituído o cargo de “juiz do ofício dos físicos” dado ao barbeiro

Antonio Rodrigues30. Todos que quisessem curar deveriam ter licença ou

carta de examinação dada por ele. Percebe-se, então, que não eram necessários grandes conhecimentos sobre medicina para se exercer a função

de curar. Somente a partir do sécu1o XIX começaram a vir cirurgiões profissionais para o Brasil31, mas mesmo assim, continuaram a existir os “curiosos” da medicina aos quais os jornais oitocentistas combateram ferrenhamente32. Além dessas

dificuldades de tratamento

médico,

devemos

acrescentar as próprias agruras pelas quais passavam os desbravadores dos sertões. Um bandeirante estava sempre arriscando a vida, enfrentando toda série de perigos que as matas virgens do planalto paulista ofereciam. Assim é que o bandeirante Antonio Rodrigues Miranda fez seu testamento pelo simples fato de “estar de caminho para o sertão buscar meu remédio e por ser mortal e não saber a hora que hei de dar conta de minha vida a Deus Nosso

Senhor”33. Ou então, como Pedro de Araújo que “neste sertão de Paraupava [...] estando são e em meu perfeito juízo por andar a risca ... aventuras e não sabendo a que Deus fará de mim neste sertão.. .”34 fez seu testamento.

Triagueiros eram chamadas os indivíduos que preparavam remédios caseiros. MACHADO, A. Op.cit. p.96 31 Id. Ibid. 32 A prática da medicina em São Paulo. A Lei. São Paulo, 22 mar 1858, n. 53, p. 3. 33 Testamento de Antonio Rodrigues Miranda, 1616. Inventários e Testamentos. v. III, p. 378 34 Testamento de Pedro de Araújo, 1616. Inventários e Testamentos. v.V. p. 196. 29 30

25

As preocupações espirituais precediam qualquer outra “quer à hora

extrema dos testantes doentes de doença que Deus lhe deu, quer quando por

mera precaução deliberavam testar por não saber o que Deus deles deseja fazer”35. A maneira pela qual tanto homens com mulheres justificavam o fato de estarem fazendo seu testamento variava pouco. Geralmente era do tipo: estando eu doente de doença que Deus me deu e querendo aparelhar-me

para quando Deus Nosso Senhor for servido levar-me para si... Porém, são as pequenas variações que nos revelam informações importantes para o estudo

das mentalidades. O fato de uma pessoa dizer que faz seu testamento da “maneira que todo fiel cristão tem obrigação de fazer”36 nos mostra, por exemplo, o compromisso moral daqueles que se diziam cristãos em mostrar

sua fé fazendo o seu testamento nos moldes da Igreja. O próprio fato dos bandeirantes fazerem testamento, mesmo estando bem de saúde, denota o

temor de serem atingidos pela morte sem terem o importante documento. Se isso acontecesse, certamente não seriam absolvidas de suas culpas e nem das penas do ab intestado.

O medo de morrer ab intestado levava as pessoas a fazerem testamento até mesmo sem terem condições físicas para isso. O número de pessoas que faziam testamento estando doentes continuou a ser superior ao de pessoas sãs até fins do século XVIII aproximadamente. Em 25 de junho de 1766, D . José I sancionou uma lei que dentre outras coisas, proibia que

pessoas doentes ou atacadas por algum tipo de achaque crônico, fizessem testamento. Caso já tivessem feito eles deveriam ser anulados:

TAUNAY, Afonso de E Piratininga. Aspectos sociais de São Paulo seiscentista. São Paulo: Ideal, 1923. 36 Testamento de Izabel Sobrinha, 1619. Inventários e Testamentos v. V, p. 276. 35

26

Mando que todos os testamentos, codicilos, escritas ou nuncupativos e geralmente todos os atos de legítima vontade, feitos depois de haverem principiado as doenças dos testadores, ou estes se achem na cama ou estejam fora dela, sejam nulos e de nenhum efeito.37 A razão dessa lei era a de que muitas pessoas “insinuando-se

artificiosamente no espírito dos testadores, umas vezes inabilitados pelas suas decrépitas idades, outras enfraquecidas pela agravação de suas doenças”38, faziam os testadores redigirem os testamentos em seu favor, prejudicando assim os verdadeiros herdeiros. Esses abusos não eram realizados apenas por pessoas seculares, mas também eclesiásticas e regulares, as quais fazendo maior a sua culpa com a relaxação das disposições canônicas, e da verdadeira e santa disciplina Regular que as obrigava a não buscarem nas sobreditas direções mais do que a salvação das almas.39 Deste modo, ficava também proibido a qualquer pessoa Eclesiástica

que fosse ajudar uma pessoa de qualquer condição a escrever seu testamento,

a induzi-lo a deixar bens em seu favor ou de sua família até o quarto grau de parentesco, assim coma a qualquer Confraria ou Corporação de qualquer tipo

ao qual estivessem ligados40. Todos os testamentos que estivessem enquadrados nessas proibições deveriam ser anulados e a herança passaria automaticamente

aos

verdadeiros

herdeiros,

“a quem por

Direito

pertencerem, se os houver, ou não os havendo, ao meu fisco, e Câmara Real”41.

No entanto, ao que parece, essa lei não foi muito respeitada em São Paulo ou, se foi, isto aconteceu apenas no momento em que foi feita. Apesar Lei de 25 de junho de 1766: Regula os testamentos e ultimas vontades. Código Philippino. 14o Livro das Ordenações, p.1056. 38 Id.Ibid. p.l054. 39 Id.Ibid. 40 Idem, p.1055. 37

27

de ter havido uma significativa mudança no fim do século XVIII em re1ação

ao estado físico com que as pessoas faziam seus testamentos, no século XIX a grande maioria continuava a fazer testamento estando doente e por temer a morte. No inicio do século XVIII, 70% testou estando doente; no meio do século o número se igualou aos sãos: 44% doentes e 44% sãos, enquanto

12% fizeram testamento por estarem com idade avançada. No fim do século a posição se inverteu: 70% sãos e 30% doentes. O que encontramos no século

XIX, no entanto, não permite que aceitemos a idéia de que a lei que proibia pessoas doentes de fazerem testamento tenha tido força, já que no início do

sécu1o 65% testaram estando doentes, enquanto apenas 20% estando bem de saúde. 15% dos testantes nada declarou a respeito. Entre 1850 e 1862 as coisas mudaram novamente. Desta vez, 55% declarou estar bem de saúde “temendo a morte que a todos é natural” e 22,5% estando doentes.

Encontramos ainda 4,5% que disse estar “em perigo de vida”, 9% com idade avançada e outros 9% que nada declararam. No fim do século XIX, no

entanto, 75% dos testantes declararam estar doentes enquanto apenas 25% estavam bem de saúde quando fizeram seus testamentos.

A forma de se iniciar o testamento continuou a ser a mesma durante os séculos XVIII e XIX. Apesar das variações com relação ao estado de saúde dos testantes em suas horas extremas, o sentido de se fazer testamento permaneceu o mesmo. Os preâmbu1os continuaram a apresentar frases indicativas da

presença de um temor a morte e era esse temor que justificava a feitura dos testamentos. “... estando doente mas em meu perfeito juízo e temendo-me da hora fatal, faço este meu solene testamento..."42 41

Id.Ibid. Testamento de Policena Thereza de Jesus, 1850. ARQUIVO DO FORUM. Dr. JOÃO MENDES JUNIOR, Processo n.954, microfilme n. 1, rolo n. 1. 42

28

ou ainda: "...estando em meu perfeito juízo e com saúde, mas temendo-me da morte, que a todos é tributo infalível e desejando por minha alma no caminho da salvação...”43. Temer a Deus era condição essencial para todos que se dissessem

cristãos. A Igreja continuou a pregar a seus fiéis para que temessem a Deus, pois o temor era sinônimo de submissão e obediência irrestrita.

Acreditamos que o interesse da Igreja em promover a feitura do maior número possível de testamentos, conseguiu fazer com que, mesmo

após a lei de 1766 pessoas adoentadas e em “perigo de vida” continuassem a escrever seus “desejos de ultima vontade”.

43

Testamento de Anna Francisca de Brita, 1850. ARQUIVO DO FORUM Dr. JOÃO MENDES JUNIOR.Processo 648,microfilme n.1, rolo n. 1.

29

1.2.A Recomendação da Alma.

A preocupação com o que aconteceria à alma apos a morte levava tanto homens como mulheres a dedicarem a principal parte de seu testamento à recomendação daquela. Invariavelmente, ela era precedida de um “primeiramente”. Este “primeiramente” indica a importância do assunto, a necessidade de enfatiza-lo bem, de dar destaque maior ao fato. Muitas vezes, o “primeiramente” é repetido mais de uma vez no testamento, nos indicando os pontos aos quais o testador dava maior importância. Podemos perceber este fato, por exemplo, no testamento de Antão Pires: “primeiramente encomendo

minha alma ao Senhor Deus (...)“ e mais abaixo, novamente “primeiramente mando que meu corpo seja enterrado na igreja de Nossa Senhora do Carmo”44. Assim como este, muitos outros testamentos indicam essa preocupação.

A

presença

de

um

“primeiramente”

antecedendo

a

encomendação das almas também foi notada por historiadores franceses nos estudos feitos em testamentos europeus45. Verifica-se que o caso paulista compara-se plenamente ao da civilização ocidental. A própria Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia em seu Título

XXXIX, determina a forma pela qual os párocos e outros clérigos deveriam fazer os testamentos que lhes pedissem:

44 45

Testamento de Antão Pires, 1600. Inventários e Testamentos. v. 1, p. 329. Ver. Pierre CHAUNU. La Mort a Paris. Op.cit.

30

Para evitarmos algumas desordens, escândalos e maus exemplos, que podem dar na direção dos testamentos, exortamos, e encarregamos muito a todos clérigos, que,quando escreverem e fizerem testamentos de algumas pessoas, tenham em primeiro lugar intento do que convém a salvação do testador, descarga de sua consciência, paz e quietação de sua família e sucessores, aconselhando-lhe com caridade e zelo que trate de sua sa1vação, disponha de suas coisas e as deixe de tal sorte ordenadas que não fique ocasião aos herdeiros de demandas46 .

Podemos notar que é exatamente esta seqüência que encontramos nos testamentos paulistas estudados. A recomendação da alma a Deus é uma parte bastante importante num testamento, pois indica qual era o caminho que os testadores pensavam que ela iria tomar. A crença na existência de um tribunal celeste que julga todos os mortos individualmente, colocando numa grande balança todas as boas e as más ações realizadas em vida, fica evidente através da leitura dos testamentos seiscentistas paulistas47.

A alma se desprenderia do corpo e compareceria ao tribunal de justiça diante de Deus, do Cristo, da Virgem Maria e de todos os Santos e Santas e Anjos, que examinariam o balanço de sua vida

“Porque o filho do Homem há de vir na Glória de seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um conforme as suas obras”48.

Nesse momento, Deus abriria um grande livro- o livro da vida - onde estaria registrada toda a vida da pessoa e através da qual se faria o veredicto. Conforme a Bíblia. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXXIX, § 783. Ver também Philipe ARIËS. O Homem Diante da Morte. v. 1. p. 108 e segs. 48 Mateus. 16.27. 46 47

31

Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles. Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos de pé diante do trono. Então se abriram livros. Ainda outro livro, o livro da vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras conforme o que se achava escrito nos livros49 A Virgem Maria e todos os Santos e Santas da corte do céu são chamados para interceder pela alma do defunto perante Deus, que toma o papel de juiz, enquanto a Virgem Maria seria uma espécie de advogada de defesa.

Primeiramente encomendo minha alma a Deus Nosso Senhor que a criou e remiu com o seu precioso sangue e à Virgem Nossa Senhora seja minha advogada e intercessora diante de seu Sacratíssimo Filho e a todos os Santos e Santas da corte do céu50. O julgamento após a morte, previsto por Mateus51 passou a

fazer parte da crença popular por volta do século XII52 em substituição à visão apocalíptica, na qual o grande julgamento se faria apenas no final dos tempos53.

Os testamentos nos revelam uma esperança de que uma “boa

morte” poderia substituir uma vida cheia de erros e pecados54. Para se ter uma boa morte era necessário cercar-se de toda proteção divina possível. O perdão dos pecados poderia ser dado em troca de esmolas,

missas, exéquias e Ofícios Divinos, além de uma sepultura em local santo, de preferência ao lado de algum altar, como veremos adiante.

Apocalipse. 20..ll-l2. Ver também Daniel. 7.10. Testamento de Paula Fernandes, 1614. Inventários e Testamentos. v. III, p. 286. 51 “Quando vier o Filho do Homem na sua majestade...” Mateus 25. 31-46. 52 ARIÉS,P. O Homem Diante da Morte. p. 30. 53 Apocalipse 20.11-15. 54 ARIÉS,P. Op.cit. p. 33. 49 50

32

A encomendação ou invocação da alma, como prefere Chaunu, parecia seguir um modelo pré-estabe1ecido. Embora não possamos contar com documentos notariais, tais como existem na França55 que comprovem essa nossa teoria, acreditamos que no sécu1o XVII existiram basicamente dois modelos de invocação. Um deles prevaleceu durante as duas primeiras décadas, possivelmente tendo

surgido antes dessa época, e o outro notadamente a partir da década de

1630. Contudo estes modelos básicos podiam sofrer algumas alterações

pessoais dos testantes que, porém, não alteravam a mensagem central do texto.

O primeiro modelo foi utilizado pela maioria dos testantes (70%) do início do século XVII. A alma era encomendada “a Deus Nosso Senhor que a criou e a remiu com o seu precioso sangue” ,

pedindo a “Virgem Maria Nossa Senhora” que fosse a “advogada e intercessora diante de seu sacratíssimo Filho e a todos os Santos e Santas da corte do céu”56. Este modelo foi aumentado ou enriquecido de detalhes em 25% dos testamentos estudados e em 5% foi mais sintetizado. Os aumentos consistiam em maiores detalhes sobre a morte de Cristã, os nomes dos Santos Apóstolos e sobre a certeza de que a alma iria se deparar com um tribunal após a morte. Escolhemos um testamento escrito pelo mesmo tabelião que escreveu o testamento do exemplo anterior para demonstrar que a vontade do testante, muitas vezes, Pierre CHAUNU em La Mort a Paris, p. 304. Registrou a existência de 2 fórmulas de invocação testamentária sugeridas pelo ‘notaire’ da praça de Maubert no séc. XVI: uma longa e outra reduzida e que são extremamente semelhantes às encontradas nos testamentos paulistas.

55

33

sobrepujava a própria maneira de escrever do tabelião ou escrivão.

Antonia Gonçalves “encomendava sua alma a Deus Nosso Senhor que de nada teve por bem de a criar e com seu divino e precioso sangue na arvore da Vera Cruz teve por bem de a redimir e salvar e à Virgem Gloriosa Nossa Senhora e a São Miguel Arcanjo e aos Santos Apóstolos e Santos e Santas da corte do céu que sejam em sua ajuda e favor quando sua alma deste mundo seu corpo sair seja merecedora de ir a ver sua divina face”57 Em nenhum testamento do início do sécu1o XVII houve

alguém que encomendasse sua alma à Santíssima Trindade, fato que se tornou comum a partir da década de 1630. A figura de Deus, até então era onipotente. Apenas em um dos testamentos do inicio do século registramos um oferecimento de alma a Jesus Cristo, porém a mensagem é idêntica às que ofereciam a Deus Nosso Senhor: “Primeiramente encomendo minha alma a Nosso Senhor Jesus Cristo

que a remiu por seu precioso sangue queira haver misericórdia de minha alma e rogo à Virgem Nossa Senhora queira ser ... do seu bento Filho, amém”58. Contudo, a crença na Trindade Divina já era uma realidade,

comprovada pelo fato de diversos testamentos terem sido feitos “em nome da Santíssima Trindade, Padre Filho e Espírito Santo, três pessoas e um só Deus verdadeiro” e de termos encontrado na

Testamento de Paula Fernandes, 1614. Inventários e Testamentos v.III, p. 286. Escrito pelo Tabe1ião Simão Borges Cerqueira. 57 Testamento de Antonia Gonçalves, 1613. Inventários e Testamentos. v. III, p. 160 e segs. Tabelião Simão Borges Cerqueira. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia obrigava todos os clérigos que fossem chamados para escrever testamentos que escrevessem fielmente o que o testador mandasse. Título XXXIX, § 784. 56

34

invocação de Fernão Dias a vontade de que “‘todos os santos e santas da corte do céu queiram rogar às três pessoas da Santíssima Trindade Padre Filho e Espírito Santo três pessoas e um só Deus ....Misericórdia com minha alma e recebê-la em sua santa glória quando desta vida partir, amem”59. A partir da década de 1630 até aproximadamente 1680, as

recomendações à Santíssima Trindade foram se igualando àquelas feitas a Deus Nosso Senhor, passando a supera-las no fim do século. As invocações a Deus, que constituíam cerca de 70% dos testamentos do

inicio do século, passam a ser de 48% nos do meio do século e de 14%

nos do final, enquanto que as recomendações à Santíssima Trindade passam a ter maior vulto à medida em que o século XVII chega a seu

final: 0% nos testamentos do início, 43% nos de meados do sécu1o e 76% nos do final do sécu1o60 . Paralelamente à superação das recomendações das almas a

Deus Nosso Senhor pelas da Santíssima Trindade, passa a tomar parte das recomendações a declaração de que o testador era cristão e acreditava em todos os dogmas da Religião Católica Apostólica

Romana. Essa declaração, que até aproximadamente 1649 pertencia aos preâmbulos foi, aos poucos, tomando uma posição de maior destaque nos testamentos paulistas. Se na segunda metade do século XVII ela se

encontrava no final das recomendações das almas, como se fosse uma

espécie de “fechamento” de assunto, já no século XVIII pudemos Testamento de Manuel de Chaves, 1603. Inventários e Testamentos. v.I, p. 461. O testamento encontra-se danificado no trecho em que aparecem as reticências, porém, fica claro o pedido pela proteção da Virgem Maria também neste documento 59 Testamento de Fernão Dias, 1601. Inventários e Testamentos. V. 1, p. 108 e segs. 60 As porcentagens restantes pertenceram às recomendações feitas a Jesus Cristo: 30%, 9% e 10% respectivamente para o começo, meio e fim do século XVII. 58

35

encontra-la em seu início, acabando por substituir totalmente as recomendações das almas no sécu1o XIX. Como exemplo da

declaração de cristandade no fim da recomendação da alma, podemos ter o Testamento de Anna da Costa, feito em 1649: Primeiramente encomendo minha alma à Santíssima Trindade que a criou (...) queiram por mim interceder e rogar (...) porque como verdadeira cristã protesto viver e morrer em a Santa Fé Católica e creio o que tem e crê a Santa Igreja Católica de Roma e em esta fé espero salvar minha alma, não pelos meus merecimentos, mas pelos da paixão do Filho de Deus61 Para o começo da recomendação, podemos exemplificar com

o Testamento de Maria Francisca, de 1707, “Primeiramente confesso

crer que a Santa Madre Igreja crer como fiel cristã e a Nosso Senhor pois de nada me criou e redimiu com seu precioso sangue”62 Por todo o século XVIII continuaram a predominar as

recomendações das almas à Santíssima Trindade. No início do século, 82% dos testadores recomendaram suas almas à Santíssima Trindade,

enquanto 18% o fez com relação a Deus Nosso Senhor. No entanto, de

meados do século até o seu final elas apareceram na totalidade dos testamentos por nós estudados.

No início do século XIX, como já dissemos, as declarações de catolicidade passaram, aos poucos, a tomar o lugar das recomendações das almas. Nessa época, essas declarações já faziam parte de 20% dos testamentos, enquanto 35% continuavam a dedicar suas almas à Inventários e Testamentos. v. 40, p. 35 Secretaria de Estado da Cultura. Arquivo do Estado de São Paulo. Lata 24, ordem 501. 61 62

36

Santíssima Trindade e 40% nada diziam a este respeito: simplesmente não consta desses 40% a invocação da alma ou a declaração de catolicidade em seu lugar. Os 5% restantes encomendavam suas almas a Deus Nosso Senhor. A linguagem desses testamentos, apesar de representar as mesmas ansiedades, tornou-se um pouco mais rebuscada:

Primeiramente encomendo minha alma à Santíssima Trindade que a criou, a seu Unigênito e Dileto Filho que a remiu, ao Espírito Santo que a vivificou e iluminou com a tocha da Santa Fé revelada, cuja ensina como mestra e depositária a Santa Madre Igreja Católica, e nesta crença protesto viver e morrer pela salvação de minha alma, rogando ao Eterno Pai a queira receber como recebeu a de seu Filho, quando por me salvar espirou na cruz. Rogo também à sempre Virgem Maria Santíssima, aos Santos Apóstolos e Santos da corte Celestial, especialmente aos de minha devoção, queiram por mim interceder no trono do Altíssimo63.

Como podemos notar, através deste trecho do testamento do

Brigadeiro Luiz Antonio de Souza, já aparece a declaração de catolicidade no centro das recomendações de sua alma, o que não era comum nos séculos anteriores. Contudo, continuou a crença no

Tribunal Celeste e na possível intervenção da Virgem Maria e dos Santos Apóstolos frente à decisão de Nosso Senhor.

Em meados do século, a declaração de catolicidade tomou,

definitivamente, o lugar das recomendações das almas nos testamentos paulistas. Não era mais necessário dizer para onde desejavam que suas almas fossem, pois o simples fato de afirmarem sua fé na Santa Igreja

37

Católica Apostólica Romana, já garantia uma entrada no céu. “Declaro

que sou Católica Apostólica Romana em cuja fé sempre tenho vivido e

portanto morrer convencida de que não poderei salvar-me senão pelos merecimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo”64, afirmava a Marquesa de Santos em seu testamento em 1862. Outros foram ainda mais sucintos nessa declaração: “Declaro

que sou Cató1ica Romana e como tal desejo viver e morrer”65.Essa forma foi a mais comum dentre as encontradas em meados do século XIX. 60% dos testamentos são deste tipo enquanto 32% nada declararam a este respeito e apenas 8% encomendaram suas almas a alguma divindade: 4% à Santíssima Trindade e 4% a Deus Nosso Senhor.

No

final do

século

desapareceram completamente as

recomendações à Santíssima Trindade e apenas em um testamento encontramos uma recomendação de alma “... sou Católico Apostólico Romano, Primeiro que tudo recomendo a minha alma a Deus esperando pela sua alma infinita misericórdia a salvação da mesma”66. Nota-se a simplicidade desta recomendação com relação

àquelas encontradas no século XVII, por exemplo. Ela deixou de apresentar dados sobre a morte do Cristo na cruz, seu sofrimento e a esperança na intercessão da Virgem perante Deus no momento do Testamento do Brigadeiro Luiz Antonio de Souza, 1819. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 907, microfilme n. 1, rolo n. 1. 64 Testamento de Maria Domitila de Castro. Marquesa de Santos. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Manuscrito em exposição. 65 Testamento de Gertrudes Angélica de Toledo, 1850. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior Processo n. 687, microfilme n. 1, rolo n. 1. 66 Testamento de Luiz Pinto, 1880. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior, Processo n. 1426, microfilme n. 4, rolo n. 4. 63

38

julgamento final. De um modo geral, os testamentos oitocentistas tornaram-se mais sucintos com relação às preocupações espirituais, como veremos no decorrer deste trabalho.

39

1.3. A Acolhida do Corpo.

Os primeiros europeus que vieram para o Brasil trouxeram consigo o costume de se enterrarem os mortos em lugar sagrado: dentro das igrejas, perto dos Santos. Este costume vinha desde a Idade Média, quando a antiga repugnância aos mortos cedeu lugar a uma convivência muito próxima entre

vivos e mortos. Ariés atribui esta mudança à “fé na ressurreição dos corpos associada ao culto dos antigos mártires e de seus túmulos”67. Acreditava-se que a proximidade aos santos asseguraria uma entrada no céu após a morte,

já que os santos, verdadeiros representantes de Cristo na Terra, possuíam toda proteção Divina: Quem vos recebe, a mim me recebe, e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. Quem recebe um profeta, no caráter de profeta, receberá o galardão de profeta, quem recebe um justo no caráter de justo, recebera o galardão de justo.68

As próprias Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,

diziam que todos os fiéis cristãos deveriam ser enterrados nas igrejas

67 68

ARIÉS, P. op.cit. v.1 p.35 MATEUS 10.40-41.

40

porque como são lugares a que todos os fiéis concorrem para ouvir e assistir às missas e Ofícios Divinos e Orações, tendo à vista as sepulturas, se lembrarão de encomendar a Deus Nosso Senhor as almas dos ditos defuntos, especialmente dos seus, para que mais cedo sejam livres das penas do Purgatório e se não esquecerão da morte, antes lhes será aos vivos muito proveitoso ter memória dela nas sepulturas. Portanto, ordenamos e mandamos, que todos os fiéis que neste nosso Arcebispado falecerem, sejam enterrados nas igrejas ou cemitérios e não em lugares não sagrados, ainda que eles assim o mandem porque esta sua disposição como torpe e menos religiosa se não deve cumprir69.

Essa legislação transformava em regra o que já era tradição desde a Idade Média.

69

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LIII, § 843.

41

Izabel Sobrinha, em seu testamento datado de 1619, dizia que ela desejava “que seu corpo fosse enterrado na igreja matriz desta Vila, diante do altar de Nossa Senhora do Rosário”70. A proximidade de um Santo poderia significar uma proteção eterna de sua alma. Não bastava estar enterrada dentro da igreja, mas quanto mais perto de um Santo, maior a segurança de que seria muito bem cuidada após a morte. Esses lugares eram muito

disputados nas poucas igrejas e capelas paulistas do sécu1o XVII. Taunay afirma que em 1624 elas eram em número de quatro: a igreja do Colégio ou

da Companhia de Jesus ou ainda Mosteiro de São Paulo, a Igreja matriz, a igreja ou Convento de Nossa Senhora do Carmo e a Santa Casa da Misericórdia71. Havia também pequenas ermidas, tais como a de São Bento e a de Santo Antonio, que serviu de matriz enquanto ela não ficou pronta:

“...que meu corpo seja enterrado na igreja de Santo Antonio que agora serve de matriz nesta Vila”72.

Testamento de Izabel Sobrinha. Inventários e Testamentos. v. V, p. 277. TAUNAY, Afonso de E. História Seiscentista da Vila de São Paulo. Op.cit.Tomo II, p. 277. 72 Testamento de Diogo Martins Machuca, 1603. Inventários e Testamentos. v. III, p. 452. 70 71

42

No início do século XVII, os testamentos revelam uma preferência

pelos subterrâneos da igreja de Nossa Senhora do Carmo, sendo que 45%

dos testantes escolheram essa igreja para serem enterrados. Fundada pelos carmelitas, a igreja de Nossa Senhora do Carmo datava aproximadamente de 159473 e na época abrigava a maioria dos fieis da Vila de São Paulo. Após o término da matriz em 1612, as preferências foram aos poucos se dividindo entre esta e Nossa Senhora do Carmo, sendo que 25% dos testantes escolheram o solo da igreja matriz para serem sepultados rio inicio do século XVII.

Por volta de 1640 essas duas igrejas ainda dividiam as preferências dos paulistas: 34% continuaram a preferir Nossa Senhora do Carmo, enquanto 29% escolhia a igreja matriz. Contudo, a construção do Convento

dos Franciscanos em 1640 fez com que o panorama começasse a se modificar

novamente. A permanência dos franciscanos ao lado dos paulistas em sua luta

contra os Jesuítas relativamente à escravidão indígena, fez com que aqueles recebessem o carinho e a proteção dos paulistanos. O Convento foi erguido

as custas das esmolas oferecidas por eles74, que passaram a demonstrar gradativamente uma preferência pela Casa dos Franciscanos. Se por volta de 1650, 14% dos sepultamentos eram feitos naquele Convento, no fim do século aquele índice subiu para 45%, ficando a igreja matriz com 10% e a dos Carmelitas com 15% das preferências.

73 74

ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1966. p. 60. Afonso de E.TAUNAY. História Seiscentista da Vila de São Paulo. p. 285.

43

Além da determinação da igreja em que desejavam ser enterrados,

algumas pessoas especificavam quererem ser enterradas “na sepultura do

marido”75 ou na “sepultura (...) onde está uma menina minha filha enterrada”76. Esse desejo aparece no decorrer de todo o século indistintamente em testamentos femininos e masculinos: “Mando que meu corpo seja sepultado no Convento de Nossa Senhora do Carmo na sepultura de minha sogra Maria Rodrigues, já defunta...”77 . Querer ser enterrado com outra pessoa poderia estar ligado ao fato de que as sepulturas nas igrejas e em particular aquelas pertencentes às Ordens Terceiras, poderiam ser “vendidas” ou como se costumava dizer,

pertenciam àquelas pessoas que fizessem parte daquela Irmandade e pagassem seus anuários corretamente.

A venda de sepulturas era, teoricamente, proibida pela Legislação Eclesiástica. Porém, como a primeira constituição eclesiástica brasileira só foi publicada em 1720 (sendo, porém, recopilada das leis anteriormente em vigor

em Portugal e suas Colônias), podemos acreditar que havia uma certa

“tolerância” para com os abusos cometidos, principalmente pelas Irmandades e Confrarias paulistas no século XVII. Os testamentos confirmam a existência de vendas de sepulturas. O negócio era confirmado através de carta de posse. Mathias de Oliveira dizia que era “contente que seu corpo seja enterrado no

Mosteiro de Nossa Senhora do Carmo desta Vila em uma sepultura que lá tem comprada de que tem carta”78. Em 1633 o frei Domingos da Encarnação, sacristão-mor do Testamento de Antonia Gonçalves, 1613. Inventários e Testamentos. v. III, p. 160. Ver tb Testamento de Domingas Antunes, 1624. Inventários e Testamentos. v.VI, p. 247. 76 Testamento de Paula Fernandes, 1614. Inventários e Testamentos. v. III, p. 287. 77 Testamento de Simão da Mota Requeixo, l650. Inventários e Testamentos, v. 44,p. 126. 78 Testamento de Mathias de Oliveira, 1624. Inventários e Testamentos. v. VI, p. 269. 75

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Convento de Nossa Senhora do Carmo passava uma quitação dizendo que “Mathias de Oliveira que Deus tem se enterrou neste dito Convento na era de seiscentos e vinte e oito”, quatro anos após a feitura de seu testamento,

portanto, “a três ou quatro de agosto,ou o que na verdade se achar em a sua sepultura que tem por carta o que certifico passar na verdade por nos constar da tábua deste convento....” 79. Fica aqui novamente registrada a importância das quitações para desobrigar os herdeiros e testamenteiros de seus encargos.

Um testamento conjunto feito em 1643 por Antonio Pedroso de Alvarenga e sua esposa Anna Correa, também confirma a venda de sepulturas no convento de Nossa Senhora do Carmo, especificando com exatidão o local em que ela estava:

Declaramos que sendo nosso Senhor servido de nos levar desta vida presente nossos corpos serão enterrados na nossa sepultura que temos na igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo desta Vila que está de baixo do lampadário do altar mor (...) e declaramos que a dita sepultura é nossa a qual compramos e temos paga.80. Muitas pessoas pediam para serem enterradas nas sepulturas pertencentes às Irmandades de que eram irmãos e às quais tinham, portanto, direito. Não contamos com documentos relativos às Irmandades do século

XVII, porém, os Estatutos das Irmandades do século XVIII e XIX ainda existentes e os testamentos do século XVII estudados nos levam a crer que

nessa época as atividades daquelas Ordens eram praticamente as mesmas dos séculos seguintes.

Era uma das obrigações das Irmandades fornecer sepultura aos

irmãos que pagassem seus anuais. Muitos são os testantes que demonstraram pertencer a alguma Ordem Terceira e terem direito a uma sepultura. Joana 79 80

Idem, Ibdem. Inventários e Testamentos. v. 44, p. 50, Grifo nosso.

45

Lopes em 1685, pedia que seu corpo fosse “sepultado no convento de São

Francisco desta Vila na capela da Venerável Ordem Terceira como filha professa da dita ordem”81 . Cada irmandade possuía um determinado número de sepulturas nas

igrejas da cidade e estas eram divididas entre os irmãos, como veremos na

documentação referente ao século XVIII. O testamento de Luis Fernandes Salgado revela que sua sepultura era “dentro da igreja como irmão que era”82. Outra atividade das Ordens Terceiras e seus respectivos irmãos e que

consistia um ato de misericórdia que agradava a Deus, era a de ajudar aos pobres e dar esmolas. Maria Leite, em 1692, parece ter se valido dessa “disposição” à caridade dos cristãos ao pedir aos religiosos de São Francisco

que lhe dessem “uma cova pelo amor de Deus”, pois era uma “mulher viúva e

pobre" e portanto dependia de uma “esmola” para poder ter direito a uma sepultura naquele convento ou em outro qualquer83 . Era também com a denominação de “esmola” que se faziam os

pagamentos às Irmandades ou Fábricas das igrejas pelos serviços referentes aos funerais e as covas utilizadas pelos irmãos e fiéis. Porém, essa “esmola”

representava uma quantia determinada e que estava presente nos costumes populares. Era a “esmola costumada”: "...que lá em a casa de Nossa Senhora me enterrem com a esmola acostumada...”84 . As esmolas deixadas às Instituições Religiosas eram freqüentes na

grande maioria dos testamentos. Já existia, sem dúvida, uma espécie de comércio da morte através do qual encobria-se uma pretensa caridade cristã. Testamento de Joana Lopes, 1685. Inventários e Testamentos. v. 23, p. 100. Testamento de Luis Fernando Salgado, 1628. Inventários e Testamentos. v. 7, p 454. 83 Testamento de Maria Leite, 1692. Inventários e Testamentos. v. 23, p. 34 84 Testamento de Felippa Vicente, 1615. Inventários e Testamentos. v. 3, p. 424 81 82

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Praticamente nada era gratuito. As “esmolas” pagavam todos os serviços: Como os lugares das igrejas, capelas e cemitérios deputados para sepultura dos mortos sejam religiosos e sagrados, sobre o que não se podem fazer contratos, não se pode vender, nem comprar, ainda que se diga que compra a terra somente; porque é estreitamente proibido pelos sagrados cânones; porem porque é licito e permitido tido por pio e antigo costume dar-se pelas sepulturas alguma esmola certa para a fabrica das igrejas, mandamos que neste nosso Arcebispado se guarde o costume que nele há sobre este particular; dando-se a esmola costumada (a qual se não pedirá antes do defunto ser sepultado) ou o que o defunto mandar dar ...85

As Constituições Primeiras, garantiam ainda, que todas as pessoas fossem enterradas nas igrejas que desejassem, ou seja, onde determinassem através de seus testamentos86 . Era proibido aos religiosos de um modo geral, influírem nesta escolha em favor de suas igrejas, pois isto acarretaria prejuízo

para a igreja em que o testante realmente desejasse ser enterrado ou que por direito o seria87, tais como sepulturas de familiares se as tivessem ou as da freguesia a que pertencessem. Esta lei revela a grande importância que aquelas esmolas representavam para as igrejas. Os religiosos que infringissem essa lei sofreriam pena de “excomunhão maior reservada à Sé Apostó1ica”

além disso, seriam “obrigados a restituir os corpos às igreja em que deviam ser sepultados (se forem pedidos) e todos os emolumentos que tiverem recebido dentro em dez dias os quais passados sem restituírem, ficam as ditas igrejas e cemitérios delas “ipso jure” interditos até que plenamente satisfação”88. No século XVIII já existia um respeito pelas diversas freguesias Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LVI, § 854. Grifo nosso. Id., Título LIII 87 Id., Título LIV. 85 86

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paroquiais de São Paulo. Para que as pessoas fossem enterradas fora delas,

era necessária a permissão de seu vigário. Antonio Valente Porto em 1791

salientou a necessidade de se pedir permissão do vigário de sua freguesia para

ser enterrado em outra igreja que não a de que era freguês89. Suzana Rodrigues de Arzão, ao invés de determinar um local para ser enterrada, decidiu esclarecer que se falecesse

nos limites da freguesia de Santo Amaro de onde sou freguesa serei sepultada na igreja do dito Santo (...) porém, se suceder ser o meu falecimento nesta cidade será meu corpo sepultado na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de onde sou irmã (...)90. Contudo, a igreja do Convento dos Franciscanos continuou a ser a preferida pelos paulistas no inicio do século XVIII. Nessa época, 37% dos testantes escolheram aquela igreja, enquanto 19% a igreja matriz, 12% a de Nossa Senhora do Carmo e 12% a igreja do Colégio da Cia de Jesus. Os 20%

restantes dividiram-se entre a igreja de Nossa Senhora da Conceição, a Santa Casa de Misericórdia e os testamentos que não nos foi possível identificar estes dados. Em meados do século, repartiram-se ainda mais as preferências pelas

sepulturas. A igreja de São Francisco não era mais a preferida, mas sim a igreja matriz que recebeu 25% das preferências, enquanto a de São Francisco apenas 7%. Em segundo lugar aparecem os testamentos ilegíveis, totalizando

19% dos testamentos. Os restantes 49% dividiram suas escolhas entre as igrejas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Nossa Senhora do

Pilar, Nossa Senhora da Penha e a de Nossa Senhora da Conceição de Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LVI, § 847. Testamento de Antonio Valente Porto, 1791. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 999, Microfilme n. 1, rolo n. 1. 90 Testamento de Suzana Rodnigues de Arzão, 1747. Secretaria de Estado da Cultura. Arquivo do Estado de São Paulo. Lata 55, Ordem 532. 88 89

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Itanhaem. No final do século XVIII, a maioria das escolhas continuou a recair sobre a igreja matriz. De 1777 a 1799, 30% dos testantes escolheram a igreja matriz para serem sepultados quando falecessem. Os testamentos dessa época também se encontram em péssimo estado, o que impediu que decifrássemos o

nome das igrejas escolhidas em 30% dos documentos. Os 40% restantes dividiram-se entre as igrejas de Nossa Senhora do Carmo e a de São Francisco. Era na igreja matriz que os irmãos do Santíssimo Sacramento

possuíam suas sepulturas. A irmandade possuía em 1736 “quatro sepulturas da cerca da igreja para cima para serem enterrados os irmãos ou mulheres de irmãos ou filhos que estiverem de baixo do pátrio poder”, onde também havia o altar do Santíssimo Sacramento91.

O Padre Marcello de Almeida Ramos pedia em 1767, que seu corpo fosse sepultado “na igreja e matriz desta Vila em uma das sepulturas concedidas à Irmandade do Santíssimo Sacramento de quem indignamente sou irmão”92 .

Os irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens

Pretos também tinham suas covas na igreja matriz. Em 1778 a Irmandade,

estando com as covas que tinham direito naquela igreja praticamente saturadas, pedia ao Sr. Bispo que pelo amor de Deus concedesse a Irmandade Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento, 1736. Livro 34, Cap.12 e 16. Testamento do Padre Marcello de Almeida Ramos. Departamento de Arquivo do Forum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 953, Microfilme n. 1, rolo n. 1. 91 92

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mais “cinco ou seis covas nas que tem esta igreja matriz na Vila de São

Paulo, para enterrar nossos irmãos defuntos, enquanto não fizermos nossa igreja à parte [e... ] se lhe dará sepultura a seu corpo, nas covas que tiver esta Irmandade. Estando as ditas covas capazes de se enterrar nelas” 93 . André Gomes da Cruz, falecido em 1751, parece ter sofrido este problema de falta de sepultura da Irmandade a qual pertencia, pois nas quitações

de seu

testamento

encontramos a seguinte informação:

“acompanhou o corpo do defunto... de onde faleceu para a sepultura no

mesmo esquife da Irmandade não se lhe deu sepultura por estar os da Irmandade ocupada e foi sepultado em sepultura datada aos 16 de fevereiro de 1751”94. Não bastava, no entanto, ser Católico Romano para poder ser

enterrado dentro das igrejas ou a seus redores. Havia uma série de casos em que a sepultura eclesiástica era negada. As Constituições do Arcebispado da Bahia proibiam a sepultura eclesiástica nos seguintes casos: 1)Aos judeus, hereges, sismáticos e apóstatas da Santa Fé católica e a todos os que os favorecessem ou defendessem; 2)Aqueles que blasfemassem contra Deus ou a qualquer Santo ou Santa sem que tivessem se arrependido em vida; 3)aos que se matassem ou matassem outra pessoa sem que tivessem se arrependido; 4)aos que participassem de desafios públicos e neles morressem e também aos padrinhos de tais desafios; 5) aos usurários; 6) aos ladrões e violadores de igrejas; 7) Àqueles que tivessem sido excomungados e que não tivessem sido absoltos antes de falecerem; Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. 1778. Cap. 1. 94 Testamento de André Comes da Cruz, 1750. Secretaria de Estado da Cultura. Arquivo do Estado de São Paulo Lata 46, Ordem 523. O nome da Irmandade a qual ele pertencia também não nos foi possível ler, tal o grau de deterioração do documento 93

50

8) aos religiosos professos que tivessem bens próprios; 9) Àqueles que comprovadamente não tivessem se confessado ou comungado durante o ano; 10) aos infiéis e pagãos que nunca foram batizados nem o desejassem fazer na hora da morte; 11) às crianças que não fossem batizadas.95 Essas restrições se faziam, principalmente com o fim de lembrar aos

fieis que receberiam um castigo muito grande se cometessem aqueles “tão

graves e enormes pecados”, pois seriam, depois de mortos, separados “da comunicação e ajuntamento dos fiéis”96. Não ter direito a sepultura eclesiástica era uma grave ofensa e razão para “grande escândalo”, além de um danoso “prejuízo espiritual” e “temporal”97, não só ao defunto mas a toda sua família, que estaria à mercê dos comentários populares.

Uma grave acusação como essa, deveria estar baseada em provas bastante seguras, caso contrário, os acusadores receberiam castigos como

excomunhão ou prisão no aljube98. No caso de uma pessoa ter sido enterrada em solo cristão sem o merecer, seu corpo deveria ser retirado da sepultura e remetido a outro lugar não santo às custas do sacristão ou de qualquer

pessoa que tivesse permitido tal pecado. Essa pessoa seria excomungada além do que “seja eclesiástica ou secular, será preso e do aljube pagará cinqüenta cruzados” e caso fosse Pároco ou clérigo seria suspenso de seus ofícios99. O

século XIX também apresenta mudanças no que diz respeito

aos sepultamentos. Aos poucos, os testamenteiros passaram a ter mais obrigações com relação aos encargos religiosos desejados pelos defuntos. Os Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LVII. Idem, § 857. 97 Idem. Título LVIII, § 859. 98 Idem, Ibdem. Aljube era uma espécie de prisão, destinada a padres e que ficava, geralmente, em algum mosteiro. 99 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LVII, § 858. 95 96

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testantes começam a abdicar de seus direitos de escolher suas sepulturas em favor dos testamenteiros. A confiança depositada nos testamenteiros, pode-se dizer, era total. Na medida em que o século XIX chegava a seu final, mais se acentuava esta tendência. No inicio do século, 25% dos testantes deixaram a seus testamenteiros a incumbência de prepararem tudo sobre seus funerais. No meio do século este número cresceu para 54,6% e no final para 73%.

Esses índices contudo, devem ser analisados juntamente com o fato de que a partir de 1828 passaram a ser proibidos todos os enterramentos dentro das igrejas devido a medidas sanitárias, como estudaremos na terceira parte deste trabalho. Apesar desta proibição ter sido cumprida somente a partir de 1858,

quando foi inaugurado o primeiro cemitério público em São Paulo, nota-se que a incerteza sobre se poderiam ou não ser enterrados nas igrejas que escolhessem, fazia com que deixassem que seus testamenteiros cuidassem desse detalhe que, nos séculos anteriores era de tão grande importância espiritual. A1ém disso, como salientou Ariés, e ao que tudo indica é válido

também para o Brasil, a partir do século XIX o apego à família aumentou

cada vez mais, o que fez com que a confiança sobrepujasse as ordens testamentárias.

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As escolhas de sepulturas não desapareceram totalmente dos

testamentos paulistas. Esta mudança foi feita lentamente, como acontece com todas as transformações de mentalidade. No inicio do século XIX 25% dos testantes escolheram o solo da igreja matriz para serem enterrados. Esta preferência pelas igrejas matrizes geralmente estendia-se para a de qualquer

cidade em que o testante viesse a falecer: “meu corpo seja ... enterrado na porta da Igreja Catedral da Matriz do lugar onde eu falecer...”100. Outros 25% escolheram a igreja de Nossa Senhora do Carmo e 10% a de São Francisco. Os 15% restantes dividiram opiniões entre a igreja da Boa Morte, a Capela de Santo Antonio e a Ordem Terceira da Penitencia. De 1850 a 1862, época em que foi inaugurado o cemitério público,

como já foi dito, diminuíram bastante as escolhas de sepulturas nas igrejas: 9% escolheram a igreja matriz, 14,5% a de Nossa Senhora do Carmo, outros 4,5% a Santa Casa de Misericórdia, 13,6% a Ordem Terceira de São Francisco e outros 13,6% dividiram-se pela igreja de Santo Antonio, a de São Benedito e a de Nossa Senhora da Boa Morte. O número de pessoas que deixaram a escolha de suas sepulturas a cargo de seus testamenteiros totalizou 54,8%.

Em 1880 Raphaela Eugenia da Silva Pereira disse apenas que gostaria que fosse enterrada “no mesmo jazigo onde estão os restos mortais de meus pais e filhos”101, sem especificar onde ficava este jazigo que deveria ser de conhecimento da família. Totalizaram 13% aqueles que escolheram o cemitério como última Testamento de Bernadino da Costa Filgueiras, 1814 Departamento de Arquivo do Forum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 933 Microfilme n. 1, rolo n. 1. 101 Testamento de Raphaela Eugenia da Silva Pereira, 1880. Departamento de Arquivo do Forum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 1359, microfilme n.4, rolo n.4. 100

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morada”. Adão José de Souza, em 1882 disse que queria que seu corpo fosse conduzido ao cemitério por seus irmãos da Ordem Terceira (de São Francisco) em caixão coberto de parminho preto, sem galão dourado devendo a sua sepultura ser modesta e simples, a flor do chão, isto é, ao rés do chão, coberto com uma lápide branca de mármore onde terá a inscrição: - Aqui jazem os restos mortais de Adão José de Souza, nascido a vinte e seis de Janeiro de mil oitocentos e vinte e cinco - acrescentando-se a esta inscrição a data do seu falecimento, comprando-se para este fim, o necessário terreno no cemitério onde tinha de ser enterrado...102. Desejar um funeral simples e sem pompas era uma maneira de demonstrar a renuncia pelo luxo e pelas coisas materiais. A vaidade era condenada pela Igreja e os túmulos deveriam ser exemplos de simplicidade cristã. A grande maioria dos testantes do fim do século XIX ou seja, 78%, nada disseram a respeito do local que desejavam ser enterrados. A existência do cemitério e a proibição de se enterrarem os mortos nas igrejas tornava desnecessária a escolha de um local. Agora todos deveriam ser

enterrados em cemitérios a céu aberto e caberia ao testamenteiro escolher em qual deles. Além disso, a compra antecipada de terrenos nos cemitérios determinava com precisão o local onde as pessoas seriam enterradas.

Testamento de Adão José de Souza, 1882. Departamento de Arquivo do Forum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 1389, Microfilme n. 4, rolo n. 4. 102

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1.4. Os Aparatos Funerários: mortalhas e acompanhamentos.

A mortalha ou vestimenta com que os cadáveres eram levados a sepultura era um complemento importante para uma morte cristã, principalmente nos séculos XVII e XVIII. Ser enterrado com a mesma roupa que usava um religioso significava a posse de um corpo tão santo quanto

deles. A preocupação com as mortalhas fez com que os frades e freiras tivessem interesse em vender seus hábitos, no entanto, este costume só começou a fazer parte da vida dos paulistas por volta de meados do século XVII. No inicio do seiscentos, apenas uma pessoa dentre todos os testamentos estudados, exprimiu o desejo de ser enterrada com o hábito de Nossa Senhora do Carmo, “se houvesse” “...e mando que lá em a Casa de Nossa Senhora (do Carmo) me enterrem com a esmola costumada e havendo hábito me enterrem com ele”

103

.

Nessa época, todos os tecidos eram

importados, o que tornava as roupas extremamente caras. As Ordens Terceiras paulistas não possuíam, na época, recursos financeiros suficientes para fornecer hábitos a todos os irmãos que desejassem. Além disso, a pobreza dos habitantes da pequena Vila de São Paulo não permitia que “comprassem com a esmola costumada” hábitos para serem sepultados.

Em 1607, uma sepultura no Convento do Carmo era conseguida por 2.000 réis, enquanto um hábito da mesma Ordem por 6.000 reis, o que pode justificar a falta de pedidos por hábitos nos testamentos.

Secretaria de Estado da Cultura. Arquivo do Estado de São Paulo. Testamento de Felippa Vicente, 1615. Inventários e Testamentos. v. III, p.424. 103

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O Padre Luiz dos Anjos, vigário deste Convento de Nossa Senhora do Carmo e mais padres e Frei Vicente da Conceição que recebemos de Pedro Nunes 2000 réis de um sepultura em que se enterrou sua mulher Izabel Fernandes que Deus tem. Recebemos mais 6.000 réis de um habito que levou a mesma defunta...104

No entanto, as pessoas poderiam obter um hábito caso dessem o

tecido para confeccionar o seu ou o de outra pessoa. Nas quitações do inventário de Maria Jorge podemos perceber que seu marido, Gonçalo

Madeira, deu “algumas” varas de raxeta105 “para um habito por outro que levou a defunta à sepultura”106 . Também era função do testamenteiro ou algum parente próximo a de se incumbir de arranjar uma mortalha para o

defunto ser sepultado. Conseguir um hábito de alguma Ordem Religiosa,

como vimos, tornava-se um luxo acessível apenas aos mais abastados. Os demais se contentavam com as roupas de uso normal. Pero Sardinha, por exemplo, foi amortalhado em duas camisas, como demonstra o auto de seu inventário datado de 1615: “... e que o amortalhassem em duas camisas o que todos prometeram fazer o melhor que Deus lhe desse a entender...”107 . No meio do século a situação continuava semelhante. Contudo, a

chegada dos Franciscanos em 1640 também fez com que as pessoas começassem a procurar seus hábitos para serem enterrados, assim como

aconteceu com as sepulturas: l4% dos testamentos consultados revelaram uma preferência pelo hábito de São Francisco, enquanto apenas 5% escolheu o de Nossa Senhora do Carmo. Os restantes 81% continuaram a nada declarar a respeito de suas mortalhas.

Inventários e Testamentos, v. 5, p. 17. RAXA: pano grosseiro de algodão 106 Inventário de Maria Jorge, 1611. Inventários e Testamentos. v.III, p. 239. 107 Auto do inventário de Pero Sardinha, 1615. Inventários e Testamentos. v. III, p. 395. 104 105

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Por volta da década de 1680, no entanto, escolher em testamento a

mortalha passou a ser mais comum do que no início do século. A Vila de São Paulo começou a ter algum progresso devido a afluência de ouro encontrado

pelos bandeirantes. Nessa época, somente 10% dos testantes deixou de escolher sua mortalha, o que é, sem dúvida, uma mudança significativa. O hábito de São Francisco obteve 45% das preferências, o de Nossa Senhora do Carmo 35% e os 10% restantes preferiram ter um lençol como mortalha. São

poucas as informações sobre os hábitos no século XVII, mas pudemos inferir que o preço do hábito de Nossa Senhora do Carmo que em 1607, como

vimos, custava seis mil réis, se fosse acrescido de uma capa, poderia custar doze mil réis, como nos mostra esse inventário de 1695

Recebi de Manuel Corrêa Penteado como testamenteiro do defunto Pedro Vaz de Barros, 12.000 réis, esmola do hábito em que foi amortalhado e juntamente da capa (...) e por assim ser verdade lhe passei esta quitação em o Convento de Nossa Senhora do Carmo. Hoje 26 de março de 1695 anos - Frei João Damasceno Roxas, sacristão maior108. Para o século XVIII os testamentos foram ainda mais pobres em

detalhes sobre as mortalhas, já que, como dissemos, estão em péssimo estado de conservação. Podemos saber, no entanto, através das Constituições do

Arcebispado da Bahia, como os sacerdotes e clérigos deveriam ser enterrados quando falecessem, ou seja, com suas roupas habituais, que eram:

com loba ou roupeta comprida e por cima dela com a vestidura Sacerdotal ou clerical, congruente a sua ordem na forma seguinte. Se o defunto for sacerdote, sobre a dita loba ou roupeta irá revestido com amieto, alva, cordão, manipulo, estola e planeta (como quando qualquer sacerdote se prepara para dizer missa) com barrete na cabeça, cálice ao menos de cera ou pau inclinado sobre os peitos: poderá porém ter em casa e levar pelo caminho cálice de prata da igreja emprestado e ao tempo que houver de ser sepultado lho tirarão e porão de cera ou 108

Inventário de Pedro Vaz de Barros, 1695. Inventários e Testamentos. v. XXIV, p. 22.

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pau. Se for Diácono, sobre a loba ou roupeta comprida irá revestido com amieto, alva, cordão e estola sobre o ombro esquerdo e por baixo do braço direito e por cima com dalmatica roxa ou preta se a houver e não a havendo irá sem ela e com barrete na cabeça. E sendo subdiácono sobre a dita loba levará amieto, alva, cordão, manipulo, dalmatica, se houver e barrete”109. Podemos, através dessa descrição, ter uma idéia de qual era a

vestimenta comum dos sacerdotes no século XVIII e com a qual também eram enterrados. Contudo, o que sabemos sobre os homens comuns é apenas o que os testamentos nos informam. No início do século, 56% dos paulistas escolheram o hábito de São Francisco para usarem como mortalha, 19% o de Nossa Senhora do Carmo, 12,5% nada disseram a respeito e 6% optaram por um lençol. Não nos foi possível decifrar o que estava escrito sobre as mortalhas em 6,2% dos documentos disponíveis. No meio do século XVIII o hábito de São Francisco ainda era o

preferido pela maioria dos testantes, ou seja, por 31,2%, um lençol, por 12,5% e o hábito de Nossa Senhora do Carmo por 6,2%. Outros 6,2%

indicaram o hábito de Nossa Senhora de Itanhaém e 6,2% simplesmente disseram preferir “um hábito de pano”. 19% dos testantes nada disseram a respeito da mortalha com que gostariam de ser enterrados, deixando a cargo de seus testamenteiros esse detalhe. Estavam ilegíveis 19% dos testamentos. No final do século XVIII, 33,3% optaram pelo hábito de São

Francisco, 33,3% um lençol, 22,2% o hábito de Nossa Senhora do Carmo e

11% nada declararam a respeito. No século XIX, no entanto, os documentos nos foram um pouco mais favoráveis. Efigênia Maria do Rozário, por exemplo, disse em seu testamento que gostaria que seu corpo fosse “envolto

no hábito de São Francisco que já tem comprado” e mais abaixo acrescentou 109

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLVII, § 827. Loba ou

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que “do hábito que tem para o seu enterro deixa uma saia e uma camisa que com elas quer ser vestida”110. Já Clara de Souza, também em 1812, dizia querer ser enterrada “no hábito inteiro de Nossa Senhora do Monte do Carmo”111, sem se preocupar com o que mais usaria. No inicio do século XIX, 40% dos testantes pediram o hábito de

São Francisco, dando continuidade à preferência registrada nos séculos anteriores. Em seguida apareceram os hábitos de Nossa Senhora do Carmo,

constituindo 25% dos testamentos e outros 25% dos testamentos daqueles que deixaram essa escolha a cargo de seus testamenteiros. Apenas 5% decidiu-se por um lençol e outros 5% nada disseram a respeito.

roupeta, denominações para batina de padre. 110 Testamento de Efigênia Maria do Rozario, 1812. Departamento de Arquivo do Forum Dr. João Mendes Junior Processo n. 1011 Microfilme n. 1, rolo n. 1. 111 Testamento de Clara de Souza, 1812. Departamento de Arquivo do Forum Dr. João Mendes Junior Processo n. 935, microfilme n. 1, rolo n. 1.

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A partir de meados do século XIX, também as mortalhas deixaram

de ser importantes para os testadores paulistas. Além das sepulturas, os testamenteiros passam a ser os responsáveis também pelas mortalhas. No meio do século, 82% dos testantes deixaram a cargo dos testamenteiros tudo sobre seu funeral enquanto apenas 18% escolheram sua mortalha. No final do século esta tendência se acentuou ainda mais, aumentando o número daqueles

que nada disseram a respeito de suas mortalhas (43,5%). Foram também 43,5% dos testantes que deixaram a cargo do testamenteiro essa decisão. Uma das testantes do final do século, no entanto, especificou querer ser

enterrada “vestida como virgem, de palma e capela”112. Era comum, na época, que as virgens fossem enterradas de branco simbolizando sua pureza.

Por isso, Ana Benedita desejou ser enterrada segurando uma palma e com uma grinalda de flores (capela) na cabeça. Cornélio Penna, com base numa tela pertencente a sua família, descreveu com beleza, o traje que vestiu uma menina de aproximadamente sete anos de idade, ao ser levada a sepultura:era um vestidinho branco, “com manguinhas de quitute e a saia curta [..] rígida e bem armada, de forma a deixar aparecer as anáguas com rendas muito engomadas e franzidas[...]” e também levaria uma grinalda de rosinhas à cabeça.113.

Não bastava encomendar a alma, ser enterrado com um hábito

religioso e em local santo, para garantir a entrada no céu. O defunto não

poderia ser abandonado em nenhum momento, senão correria o risco de também ser abandonado por Deus pela falta de uma morte cristã. Existia uma

série de providências que deveriam ser tomadas, principalmente pelos Testamento de Ana Benedita, 1882, Departamento de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 1385. Microfilme n. 4, rolo n.4 113 PENNA, Cornelio. A Menina Morta. [Rio de Janeiro]: s.ed, [1954]. 112

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testamenteiros, que começavam a partir da morte e seguiam por muito tempo

depois do sepultamento. Em geral, essas providências estavam ligadas às Ordens Religiosas que prometiam a todos os seus irmãos a realização e

participação em todos os atos fúnebres necessários para o bom encaminhamento da alma dos cristãos. O acompanhamento dos corpos da residência até a sepultura, era de suma importância, assim como todas as missas e orações que se pudessem dizer durante esse percurso. Os momentos que se seguiam à morte eram muito

importantes: os vivos ficariam orando enquanto a alma do defunto estaria sendo julgada no Tribunal Celeste ou seja, conforme suas posses permitissem, já que todas as missas e demais sufrágios eram feitos em troca da “esmola costumada”. É coisa santa, louvável e pia o socorro de sufrágios pelas almas dos defuntos para que mais cedo se vejam livres das penas temporais que no Purgatório padecem em satisfação de seus pecados e aos que já gozam de Deus se lhes acrescente a glória acidental. Portanto, exortamos muito a todos nossos súditos que em seus testamentos e últimas vontades se lembrem não só de mandarem dizer as missas e fazer os ofícios costumados, mas além disso, os mais que cada um puder, conforme sua devoção e possibilidade114

114

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título L, § 834

61

Desde o inicio do século XVII, encontramos pedidos de acompanhamentos e missas de corpo presente nos testamentos. Estas missas, no entanto, não tinham o mesmo significado que têm atualmente, já que não

era necessária a presença do corpo para que elas fossem realizadas. As missas

poderiam ocorrer em várias igrejas ao mesmo tempo, contanto que fossem ditas a partir do raiar do sol e até o meio dia. Um mesmo padre também não poderia rezar mais de uma missa por dia, o que era proibido pela legislação eclesiástica115. Fernão Dias, sabendo dessa proibição, mandou em testamento

que as vinte missas pedidas por sua alma fossem rezadas “por diversos padres para que logo sejam ditas”116. Era necessário que as missas fossem rezadas o quanto antes, de preferência antes que o morto fosse enterrado.

Era costume que, durante o velório, se recitasse o oficio dos mortos,

constituído de inúmeras preces em favor da alma do morto. Essas missas sucediam-se quase sem interrupção. Um número muito grande de missas fazia necessário um clero também bastante numeroso.

Muitas pessoas pediam “uma capela de missas”, ou seja, missas

cotidianas ou semanais. Outros pediam que no dia do sepultamento fossem rezados um ou mais ofícios de três lições, ou seja, “três missas cantadas consecutivas: a do Bendito Espírito Santo, a de Nossa Senhora (Beata) e, enfim a dos mortos , como explicou Ariés117.

Havia também aqueles que pediam um oficio de nove lições,

especificando em qual igreja desejavam que fossem rezadas ou cantadas. Outros, sabedores das restrições eclesiásticas a respeito do número de missas que poderiam ser rezadas por um mesmo padre e também sobre os horários delas, pediam que se rezassem quantas missas de corpo presente se puderem Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título V.Contudo, as missas “in extremis” poderiam ser ditas em horários diferentes aos descritos. 116 Testamento de Fernão Dias, 1601. Inventários e Testamentos. v.1, p. 411. 117 ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente.op.cit. p. 77. 115

62

dizer no mesmo dia”. No entanto, alguns testadores, no século XVIII, pediam um número bastante alto de missas de corpo presente, mesmo que só

pudessem ser ditas nos dias consecutivos: “Por minha alma deixo se me digam duzentas missas as que puderem ser no dia de meu falecimento e as mais quanto mais depressa melhor”118 .

O Padre Marcello de Almeida Ramos pedia que fossem rezadas por sua alma, “na igreja em minha sepultura, missas de corpo presente por todos os sacerdotes desta matriz", sem especificar o número delas, pois seria o

mesmo número dos padres que lá estivessem.Pedia, ainda, mais “cinqüenta missas de corpo presente" e "um ofício de corpo presente na igreja onde eu for sepultado”119. Os padres que celebravam essas missas, logicamente, recebiam um pagamento significativo dos testamenteiros120, que era retirado da terça parte dos bens do defunto. Deste modo, aqueles que não possuíssem bens, deveriam contar com a caridade dos vivos. Manuel Bueno de Moraes, em 1755 salientou em seu testamento que não lhe dissessem sufrágio algum “por não ter bens com que se possa pagar”121.

No século XIX, houve mudanças também com respeito às missas de

corpo presente e ao funeral de um modo geral. De meados a fim do século, são os testamenteiros que passam a ser os responsáveis por quase todos os detalhes com relação ao sepultamento e funeral. Os testamentos foram, aos poucos, tomando a configuração que encontramos hoje em dia: os bens materiais tornam-se mais importantes que os espirituais, pois estes passam a ser transmitidos oralmente, como voltaremos a falar adiante. Testamento de Pedro Vaz de Barros, 1695. Inventários e Testamentos. v. XXIV, p. 16. Testamento do Padre Marcello de Almeida Ramos, 1767. Departamento de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 953. Microfilme n. 1, rolo n. 1. 120 Ver também Philippe ARIÉS. História da Morte no Ocidente. p. 76 121 Testamento de Manuel Bueno de Moraes, 1755. Secretaria de Estado da Cultura. Arquivo do Estado de São Paulo Lata 55, Ordem 532. 118 119

63

A participação do clero não era requisitada apenas para celebrar

missas, mas também para o simples acompanhamento do corpo à sepultura.

Esse acompanhamento era outra atividade das Irmandades. Todos os seus membros tinham, ao morrer, o direito ao acompanhamento de todos os religiosos e irmãos da dita Irmandade, como também às missas e orações durante o velório. Do mesmo modo, eram obrigados, enquanto vivos, a

assistir com suas próprias preces e presença às exéquias dos outros irmãos defuntos. Braz Rodrigues de Arzão declarou em seu testamento “que sou

irmão da Santa Casa da Misericórdia e peço ao Senhor Provedor e os mais irmãos queiram pelo amor de Deus e pela obrigação que têm de acompanhar meu corpo até a sepultura”122 (126).

O Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário

dos Homens Pretos, por exemplo, garantia a todos os irmãos da dita Irmandade que em troca dos anuais que cada um pagasse, teriam o direito, além da sepultura e das missas por sua alma quando morressem, ao

acompanhamento com todo o aparato, quais fossem: “o esquife, guião, cruz e capelão, ao qual se pagara esta Irmandade conforme aquilo em que se concertarem”. Explicava ainda, como deveria ser este acompanhamento: “irá diante o guião”, ou o estandarte da Irmandade,

e seguirão logo os irmãos com suas capas brancas e velas acesas, quando levarem o irmão defunto a enterrar, e no fim desta Irmandade a cruz e atrás da cruz logo irá o capelão e mais atrás o esquife e todo o aparato sairá de onde estiver a fábrica e levará o irmão defunto até a sepultura123

Testamento de Braz Rodrigues de Arzão, 1692. Inventários e Testamentos. v. XXIII, p. 158. 123 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Capítulo IV. 122

64

A Irmandade do Santíssimo Sacramento mandava às ruas, logo que

algum irmão falecesse, um andador, com a cabeça coberta em sinal de luto, tocando uma campainha para avisar a todos os demais irmãos sobre o

falecimento e para que acompanhassem o corpo à sepultura124. Essa Irmandade encarregava-se de acompanhar também as esposas e filhos ou filhas dos irmãos que viessem a falecer, salvo se as mulheres tivessem casado novamente ou se os filhos ou filhas não estivessem mais sob o pátrio poder.

Antes do corpo ser sepultado e quanto mais perto da hora em que a pessoa falecesse, sua alma devia ser encomendada pelo Pároco local125, que também seguia o cortejo até a igreja onde ocorreria o sepultamento.

124 125

Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento. Capítulos VII e X. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLV.

65

Os cortejos fúnebres, ou acompanhamentos, eram verdadeiras

procissões, às quais um grande número de pessoas comparecia, mesmo que

nem conhecessem o defunto. A atenção aos mortos, as orações por suas almas e os acompanhamentos às sepulturas constituíam obras de misericórdia e caridade cristã. Segundo Ariés, foi aproximadamente a partir do século XIV

que “o ato de enterrar os mortos foi promovido ao mesmo nível da caridade que alimentar os famintos, saciar quem tem sede, vestir os que estão nus, dar

abrigo aos peregrinos, visitar os doentes e os presos”126. O número de

pessoas era tão grande nos acompanhamentos que a Igreja achou por bem ordená-los para evitar “os inconvenientes que muitas vezes acontecem”127.

Deste modo, os testamenteiros ou outras pessoas responsáveis deveriam avisar a todos os clérigos, religiosos e Confrarias que participariam, da hora certa em que o cortejo sairia. Haveria uma ordem que todos precisavam respeitar: em primeiro lugar iria a cruz da Sé, seguindo a bandeira da

Irmandade da Misericórdia e a cruz da Freguesia do defunto. A seguir viriam todas as outras confrarias e Irmandades segundo a antiguidade de cada uma128. Todos os eclesiásticos e Confrarias deveriam obedecer a ordem estabelecida pelo Provisor da Sé, responsável pela ordem dos cortejos.

Até 1720, quando a Constituição do Arcebispado da Bahia foi publicada, era costume quando o defunto fosse enterrado em outra freguesia que não a sua, que o Pároco do defunto cedesse o seu lugar à frente do

cortejo em favor do Pároco da freguesia em que o corpo fosse sepultado, assim que entrasse nos limites de tal freguesia. A partir daquela data, no entanto, ficava estabelecido que a troca só seria feita quando o cortejo entrasse na igreja onde seria feito o sepultamento. Dependendo das posses do defunto, seriam dadas velas a todos ou a uma parte dos participantes do ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. p. 78. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLVI, § 820. 128 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLVI, § 822. 126 127

66

acompanhamento. Geralmente as Irmandades forneciam a seus irmãos as velas ou ceras para os acompanhamentos, recebendo depois, do testamenteiro, o referente a esse serviço.

Antonio Vieira dos Santos assim descreveu como gostaria que fosse o seu funeral: acompanhado pelo meu reverendo Pároco onde quer que eu falecer e mais sacerdotes que houver e quiserem acompanhar e me dirão dez missas de corpo presente pela esmola costumada, no mesmo dia se for possível. Ou no seguinte, me façam um ofício de nove lições no qual haverá musica. Esta me acompanhará também de casa para a igreja e me cantará três mementos na forma do estilo aos quais ajustará meu testamenteiro pelo que lhes parecer justo. Acompanhará meu corpo à sepultura a Irmandade do Santíssimo Sacramento da qual sou indigno irmão e assim mais a Irmandade das almas e a de Nossa Senhora do Carmo, dando-lhes as esmolas de estilo, a todas as pessoas de qualquer qualidade que acompanharem o meu corpo à sepultura meu testamenteiro distribuirá cera por todos na forma que se costuma e a mesma distribuição se fará aos que assistirem ao ofício...129. Eram comuns também os pedidos para que um certo número de

pobres acompanhasse o corpo à sepultura. Este número correspondia às posses do testador, já que suas presenças também eram pagas com uma certa “esmola”. Quanto maior o número de pessoas presentes no cortejo, maior o

número de orações pela alma do defunto. Além disso, como muito bem percebeu Ariés, “a pobreza devia estar presente, não apenas para ser auxiliada e um pouco atenuada, como também, ao contrário, para ser bem visível, como o espetáculo de uma compensação necessária”130. A mesma razão levava as pessoas a pedirem funerais simples, “sem vaidade alguma”.

Testamento de Antonio Vieira dos Santos, 1796. Departamento de Arquivo do Forum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 1001. Microfilme n.1, rolo n.1 Ver também sobre esse assunto, “A Exploração da Morte” neste trabalho. 129

67

O brigadeiro Luiz Antonio de Souza, pessoa de muitas posses, recomendava a seu testamenteiro que lhe fizesse um funeral simples. Deixava também a “todos os pobres de ambos os sexos que acompanharem meu

corpo e assistirem ao meu ofício de corpo presente, se dará de esmola uma pataca a cada um”131. A mesma intenção encontramos no testamento conjunto de Bento José Gomes e Maria da Silva, que desejavam que o corpo

de cada um deles fosse carregado para o cemitério por oito homens pobres, dando-se a cada um deles a esmola de cinco mil réis”132.

ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. p. 78 Testamento do Brigadeiro Luiz Antonio de Souza. Departamento de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Processo n.907, microfilme n.1, rolo n. 1 132 Testamento de Bento José Gomes e Maria da Silva, 1886 Departamento de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Processo n.1539, microfilme n.5, rolo n.5. 130 131

68

1.5. As Preocupações Pós-sepultamento: Missas e Esmolas.

O êxito de uma morte cristã não estava assegurado mesmo após o

sepultamento do cadáver. Os testadores tinham consciência disso e não restringiam suas recomendações aos cuidados com o funeral. Um número

imenso de missas devia prosseguir por muito tempo após o sepultamento,

além de esmolas e a compra de Bulas papais, garantindo a absolvição dos pecados e a entrada no céu. As missas eram deixadas em nome dos mais variados Santos e Santas ou divindades, em favor de suas almas, ou pela alma de outros parentes mortos. No século XVII foram os seguintes os Santos e Santas mais evocados nos testamentos por nós estudados: 

ao Anjo da Guarda



ao nome de Jesus

   

às Almas à honra de todos os Santos confessores a todos os Santos ao Santíssimo Sacramento

 ao Santo crucifixo



à Virgem Maria Nossa Senhora



a Santo Alberto

 

à Santa Catarina a Santo Antão

 a Santo Antonio



São João Batista

69



São José



São Pedro



São Miguel

 São Sebastião

 Nossa Senhora da Boa Morte

 Nossa Senhora do Bom Sucesso  Nossa Senhora das Candeias  Nossa Senhora do Carmo

 Nossa Senhora da Conceição  Nossa Senhora do Desterro  Nossa Senhora da Luz

 Nossa Senhora da Misericórdia  Nossa Senhora do Monserrate

  

Nossa Senhora da Penha Nossa Senhora da Piedade Nossa Senhora do Rosário Era comum também deixar cinco missas às cinco chagas de Jesus

Cristo e três à Santíssima Trindade, o que pode indicar a possibilidade de

uma certa crença na simbologia numérica. Além disso apareciam quantidades variadas às almas do purgatório, a honra e louvor da paixão de Cristo, a todos os defuntos e pelos escravos mortos. Havia também aqueles que se precaviam por muitos anos de missas.

Catharina da Silva em 1693, deixou cem mil réis de esmola à capela de uma das Irmandades às quais pertencia (ela não especificou a qual delas, já que era Irmã Terceira de Nossa Senhora do Carmo, de São Francisco, do Santíssimo Sacramento e das Virgens) para que todos os anos lhe mandassem [...] dizer quatro missas pela minha alma e outras quatro pela alma de meu marido, que se dirão no oitavário dos finados e serão também obrigados a cobrir a minha sepultura e a de meu marido no dia da

70

comemoração dos defuntos pondo quatro velas em cada sepultura133. Este é um dos poucos testamentos em que aparece uma referência ao dia dos finados e que coloca ainda a possibilidade de, caso a Irmandade não aceitasse aquele encargo, de colocar os cem mil réis a juros para que com os ganhos seus testamenteiros pudessem cumprir aquela sua vontade indefinidamente. Sabemos que a igreja era drasticamente contra a aplicação de dinheiro a juros e que chegava até mesmo a negar a sepultura eclesiástica àqueles que usassem desse subterfúgio para viver. Contudo, parece que para este fim tão caridoso a Igreja não se opunha à aplicação de dinheiro.

O oferecimento de missas se dava de forma bastante variada. A ajuda era pedida a todos aqueles que pudessem interceder junto à Deus. Nos testamentos

do

século

XVIII

conseguimos

registrar

os

seguintes

oferecimentos de missas: - Anjo da Guarda - as almas - as almas do Purgatório - a todos os Santos - em satisfação a seus pecados - a Nossa Senhora da Boa Morte - a Nossa Senhora da Conceição -Nossa Senhora da Piedade - Nossa Senhora das Graças - Nossa Senhora do Carmo - Nossa Senhora do Monserrate - Nossa Senhora do Rosário - Nossa Senhora dos Passos

133

Testamento de Catharina da Silva, 1693. Inventários e Testamentos. v. 23, p. 235.

71

-pela agonia que teve na Cruz - Nossa Senhora da Penha - Nossa Senhora do Pilar - Jesus, Maria e José - Nossa Senhora do Rosário - São Joaquim - pela alma dos escravos - pela caridade do Senhor -pelas chagas de Nosso Senhor - pelas peças vivas e defuntas com que tinham negócios -pelo suor de seu sangue na cruz -Santa Gertrudes - Santíssimo Sacramento - Santíssima Trindade - Santa Anna -Santo Antonio -Ao santo do nome - Santo Inácio - São Bartolomeu - São Bento

- São Francisco

- São João Batista - São Miguel - São Pedro

- as almas do Purgatório. Era comum, não só no século XVIII, como também no XVII, deixar-se missas para a santa ou santo que tivesse o mesmo nome que o testador, assim como ao anjo da guarda. Acreditava-se que esses santos tinham uma maior

72

“afinidade” com a pessoa e por isso também a protegeria depois da morte. Ao adentrarmos o sécu1o XIX e a medida em que passamos de seu

meio para o final, notamos uma significativa diminuição no número de missas deixadas às divindades específicas. Os testadores começam a preferir deixar

missas para pessoas com quem tivessem alguma relação e que gostariam de

proteger, ou então para aqueles com quem gostariam de se redimir por algum mal que pudessem lhes ter feito. Deixa-se também este pormenor ao encargo dos testamenteiros, que deveriam dividir a quantia deixada em testamento relativa aos funerais, entre o sepultamento, habito, missas e demais aparatos das pompas fúnebres. Foram os seguintes os beneficiados com missas no século XIX:

-as dores de Nossa Senhora -Nossa Senhora da Penha de França -Nossa Senhora de Santa Anna -Nossa Senhora dos Remédios -Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos

- Nossa Senhora da Conceição de São Francisco -a Senhora Santa Maria -ao Senhor dos Passos -Nossa Senhora do Monte do Carmo -pela alma de filhos e filhas -pela alma do pai -pela alma do marido - pela alma da mãe - pela alma da mulher - pela alma dos irmãos falecidos - pela alma dos irmãos terceiros

73

- pela alma das pessoas de sua obrigação - pelas almas do fogo do Purgatório - pela alma dos escravos -pelas almas daqueles com quem teve negócios -pela alma dos amigos -pela alma dos parentes Do meio do século para o fim, encontramos apenas um testamento que deixou missas a Nossa Senhora do Monte do Carmo, enquanto as demais pertenceram, na maioria, a familiares e amigos já defuntos. Nessa época, tornou-se mais comum deixar esmolas em dinheiro ou em

bens imóveis a Instituições Religiosas e a pobres, como uma maneira de redimir-se dos pecados através da caridade. As missas ficaram, a partir de meados do sécu1o XIX, reservadas às de corpo presente, de sétimo dia, de mês e de ano. “O partido conservador desta Capital pretende mandar celebrar

no trigésimo dia do passamento do ilustre finado (Dr. Manoel Bento Guedes de Carvalho) um ofício para eterno descanso de sua alma.”134 Francisco Gomes Netto, por exemplo, deixou a capela de Santo Antonio um conto de réis, quantia bastante vultosa em 1850, com a condição de lhe mandarem rezar todos os anos, no dia de Santo Antonio, uma missa por sua alma, além das missas pelas almas de familiares.135

A Lei São Paulo, 8 abr. 1858 n. 56, p. 1 e 2 Testamento de Francisco G. Netto.1850. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior Processo 612. Microfilme n. l, rolo n. 1. 134 135

74

Costumava-se deixar para repartir entre pessoas pobres certas quantias em dinheiro; Josefa Maria de Oliveira, por exemplo, deixou 20 mil réis136; Ignácio Mendes137 deixou 400 réis aos pobres aleijados e cegos; a Marquesa

de Santos 400 mil réis para serem repartidos entre famílias “pobres e honestas que não viviam de pedir esmolas”138 e ainda, Candido Gabriel da Silveira Cintra139 300 mil réis para serem divididos a pobres miseráveis da Paróquia de Atibaia, por exemplo. Geralmente as grandes esmolas deixadas às Instituições Religiosas

subentendiam uma série de favores em troca, tais como a obrigação de se rezarem missas pela alma do testador durante anos a fio ou até que a esmola

terminasse. Bento José Gomes e sua esposa Maria da Silva deixaram a Irmandade de Nossa Senhora da Consolação em 1886, uma casa térrea com a condição de que a dita Irmandade assim que tomasse posse do legado,

arrecadasse e colocasse “em sua igreja uma Imagem de Nossa Senhora da Conceição, uma Santa Cruz dos Aflitos e dois pequenos sinos existentes na

capea dele testador a rua do Conselheiro Chrispiniano”, mandando “nos dias apropriados festejar ao menos com uma missa cantada, aquela Santa Cruz”140

Ficou famosa, no entanto, a vultosa esmola que deixou a Marquesa de Santos ao Cemitério da Consolação, onde ainda hoje se encontra sua sepultura e os ornamentos comprados com os 4 contos de réis que deixou

Testamento de Josefa Maria de Oliveira, 1818. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior Processo n. 949, microfilme n. 1, rolo n. 1. 137 Testamento de Ignácio Mendes, 1823 Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior Processo 941, microfilme n. 1, rolo n. 1. 138 Testamento da Marquesa de Santos, 1862. Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Manuscrito em exposição. 139 Testamento de Candido Gabriel da Silveira Cintra, 1880 Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior Processo n. 1325, microfilme n. 1, rolo n. 1. 140 Testamento de Bento José Gomes e Maria da Silva, 1886 Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. Processo n. 1539, microfilme n. 5, rolo n. 5 136

75

para a sua capela.

Nota-se, portanto, que na medida em que chegamos ao fim do século XIX, os testamenteiros passam a ter cada vez mais em suas mãos todas as

atribuições espirituais que nos séculos XVII e XVIII os testadores cuidavam pessoalmente. Percebemos também, que a caridade cristã passa a ser sinônimo de sa1vação das almas, porém, essa “caridade” nada mais era do

que uma tentativa de “comprar” a absolvição dos pecados, que nos séculos anteriores era “conseguida” através de sufrágios.

76

2. DA LAICIZAÇÃO À EVOCAÇÃO DA MORTE NO SÉCULO XIX.

Na medida em que o século XIX se aproximava, as atitudes perante a

morte tiveram de se ajustar às novas condições que o progresso determinava.

A evolução natural dos tempos e o aumento gradual da população impuseram um novo estilo de vida, não só aos paulistanos, mas à população cristã de todo o mundo. Por isso, depois da análise feita através dos testamentos, passaremos a

investigar de que forma os aspectos materiais influíram nas modificações de mentalidade ocorridas no século XIX. A construção de cemitérios públicos, sua secularização e a evocação da morte proporcionada pelo romantismo serão agora objeto de analise.

77

2.1.A Construção de Cemitérios Públicos.

Na França os sepultamentos dentro e ao redor das igrejas passaram a

ser proibidos já no século XVIII. As populações que habitavam as vizinhanças dos templos não suportavam mais os odores exalados ininterruptamente pelas sepulturas e os cemitérios das igrejas parisienses encontravam-se superlotados. As valas, bastante profundas do cemitério dos Inocentes, um dos principais da cidade, foram preenchidas em 1780 com cal viva, numa tentativa de desinfeta-las, mas o trabalho não surtiu efeito algum, já que os odores penetravam pelas paredes e pelo solo abaixo, contagiando os arredores da mesma maneira. No mesmo ano, aquele cemitério foi fechado

por decisão do Parlamento francês e transferido para local aberto, fora da cidade141. Os cemitérios paulistas sofriam do mesmo mal. Os sepultamentos

eram feitos de maneira aleatória no piso interno e externo (Adro) das igrejas.

Nenhum critério de determinação de locais era seguido, a não ser pela

condição social do indivíduo. As valas “mais bem localizadas”, como aquelas sob o altar mor, destinavam-se àqueles que mais pudessem pagar por elas,

enquanto que as mais afastadas e as abertas ao redor do muro das igrejas ficavam para os mais humildes. Contudo, essas sepulturas não possuíam inscrição alguma. Sabia-se mais ou menos onde determinada pessoa havia sido enterrada, mas não com certeza... “perto da porta”, “ao lado do pilar’, “diante do altar de Nossa Senhora do Rosário” ou debaixo do lampadário do altar mor, como citam os testamentos, por exemplo. Os corpos iam sendo 141

ARIÉS,Philippe. O Homem Diante da Morte. v. II, p. 539- 40.

78

depositados em buracos feitos no chão que, após a encomendação feita pelo Pároco, eram novamente fechados com a mesma terra que dali fora retirada.

Até o sécu1o XIX, aproximadamente, os defuntos eram sepultados apenas com a roupa do corpo ou com a mortalha escolhida. Não era costume utilizar-se caixões mortuários ou outro tipo de “proteção” aos cadáveres. Cada igreja possuía geralmente um caixão que servia apenas para o transporte do corpo da casa até o local em que deveria ser sepultado. Após o

depósito do defunto na cova, o caixão era devolvido à sacristia, onde permanecia a espera de outro cadáver142 .

Deste modo, na medida em que os corpos iam naturalmente se deteriorando, misturavam-se com a terra que os envolvia e com os corpos que os circundavam. Toda vez que um novo cadáver era sepultado, a terra era remexida e os gases pútridos liberados e transferidos para o ambiente,

chegando a atingir distancias apreciáveis. Esses odores tornavam-se tremendamente danosos à saúde pública e em especial àquelas pessoas que

presenciavam as cerimônias fúnebres ou que freqüentavam as igrejas para fazerem suas preces. No entanto, somente com os progressos da medicina é que a noção de

higiene como forma de proteção à saúde se desenvolveu. Antes disso, não se

fazia idéia de que os gases emitidos pelas sepulturas pudessem causar algum mal à saúde e talvez também por isso aquele costume não tenha terminado antes. Em 1836, o prefeito da Vila de Santos, reconhecia e atribuía ao

“superante número de mortos (no) local das sepulturas e a falta de numeração

79

de campas e escrituração de sepulturas”, os principais motivos para o

freqüente desenterramento de corpos recém-sepultados e a conseqüente exalação daqueles odores tão malignos143.

Conforme salientou Taunay, havia apenas um banco na igreja Matriz em 1832 (150), o que forçava mesmo as senhoras a sentarem-se no chão,

diretamente sobre a terra contaminada144. Essa situação permaneceu

praticamente igual até meados do século XIX, como registrou muito bem Francisco de Assis Vieira Bueno:

O maior desacato, que naqueles tempos se praticava nas igrejas, aliás inconscientemente, sem intenção irreverente, ao contrario, com a de abrigar em lugares sagrados os restos mortais dos que faleciam era o de converta-las em cemitérios, focos imundos de pestilência, sem a mínima preocupação de higiene[...] No desconjuntado soalho (quando havia soalho) divisavam-se campas feitas de tábuas. Levantadas estas, cavava-se a terra já saturada de podridão, e mesclada de ossos, e abrindo-se uma cova, que nem sempre era profunda; ali depositado o cadáver, que geralmente não tinha caixão mortuário, punha-se por cima a mesma terra cavada, que era socada com pilões iguais aos que serviam para socar taipas. Imagine-se que ar mefítico enchia tais igrejas, e a que perigo de infecção se expunham as mulheres, passando horas sentadas sobre o pavimento, pois naquele tempo não havia assentos145 . O problema não era tão perceptível aos olhos da população cristã em

geral. Somente em épocas de epidemia, quando o número de cadáveres aumentava e o medo de contágio assustava as pessoas e que as autoridades procuravam tomar alguma providência com relação aos sepultamentos. No

Ver MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora. 2 ed. São Paulo: Martins, 1943. p. 58. 143 Relatório com que o Prefeito da Vila de Santos abriu a sessão da Câmara da mesma a 6 de setembro de 1836. Jornal O Paulista official. p. 14. 144 TAUNAY, Affonso de E.. História Seiscentista da Villa de São Paulo. Tomo III, p. 278-9. 142

80

entanto, essas providências eram apenas de caráter provisório, ou seja, não era objetivo acabar com os sepultamentos no interior das igrejas, mas sim evitar a contaminação, enquanto os surtos epidêmicos persistissem. Por ocasião do primeiro surto de varíola registrado em São Paulo em 1735,

“foram proibidos os enterros públicos e todos os sepultamentos se fizeram a noite”, a fim de diminuir o contágio146.

Até mesmo o lazareto para onde obrigatoriamente deveriam ir todos os bexiguentos, foi transferido para as proximidades da igreja de Nossa Senhora da Luz, assim poderiam ser atendidas todas as necessidades “da administração dos sacramentos e o sepultamento em sagrado”147 .

Em 1798 uma nova epidemia atacou a cidade e o medo deixado pela anterior fez com que Melo Castro e Mendonça, Governador e Capitão

General de São Paulo (1798-1802), proibisse os sepultamentos de variolosos dentro do perímetro da cidade. Desta vez, todos os que falecessem no

hospital interino especialmente destinado aos bexiguentos, deveriam ser sepultados na capela de Nossa Senhora do Ó148 . Procurava-se evitar o

contágio que “o imprudente uso de se trazer para dentro do povo os mortos que haviam sido obrigados a sair vivos” da cidade, freqüentemente ocasionava149.

Passado o surto, o problema foi novamente deixado de lado e a prática de sepultamentos no interior das igrejas continuou sem nenhuma alteração. BUENO, Francisco de A.V. A Cidade de São Paulo.São Paulo: Academia Paulista de Letras, 1976.v. 2, p.137-8. 146 TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo no século XVIII. v.1, 2a parte, p.240. 147 Idem, Ibdem. 148 Atas da Câmara Municipal de São Paulo. 1797-1809. v. XX. 149 TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo no século XVIII, 2a parte, v. VI, p. 240. 145

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A transição era necessária, os sepultamentos precisavam sair de

dentro das igrejas para locais abertos. Uma mudança no costume funerário

era imprescindível para o próprio bem da população em geral. Porém, uma transformação como essa não se fez subitamente e no Brasil ela custou muito a ser aceita e a fazer parte do cotidiano. A Igreja, grande interessada na preservação do costume funerário

então vigente, procurou abafar os ecos de reprovação vindos da Europa.

Contudo, outros incidentes juntavam-se aos surtos variólicos, para alertar as pessoas mais esclarecidas do grande mal que este predomínio eclesiástico nos sepultamentos proporcionava.

82

O alto preço cobrado pelos párocos para realizar um sepultamento,

ou seja, “a esmola costumada” para o acompanhamento, impedia os pobres de terem seus corpos enterrados dentro das igrejas. De acordo com Taunay, “cobravam eles estipêndio acima das posses da pobreza que ainda se achava compelida a pagar a taxa da Fábrica”150, pois no momento da morte todos gostavam de mandar celebrar o maior número possível de missas e exéquias em geral. Deste modo, tornou-se comum o abandono de cadáveres no

interior ou nas portas das igrejas, para que a compaixão dos padres se encarregasse do funeral dos mais desfavorecidos. Em 1748, um aumento nas taxas funerárias levou o povo a reclamar à Câmara do desgosto e

constrangimento que passavam ao se verem obrigados ‘‘a enterrarem os pobres, seus filhos e escravos, no bangüê ultimamente feito na Santa Casa de Misericórdia”151. No mesmo ano foi encontrado o cadáver de uma mulher

branca, semidevorada por cães, junto a porta da igreja Matriz ainda em construção152. Este fato causou grande repugnância ao bispo Dom Bernardo Rodrigues Nogueira, que logo tratou de determinar a obrigatoriedade dos párocos fazerem o acompanhamento também daqueles que houvessem, em testamento, rejeitado tal acompanhamento, pois considerava esta rejeição “um abuso e corruptela intolerável contra a determinação da igreja e disposição do Direito”153.

Geralmente os pobres e escravos eram enterrados nos campos, cada um de forma que suas posses permitiam, pois não era conveniente aos TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo no século XVIII. v.I, 1a parte, p. 234. “Fábrica” era um conselho constituído de clérigos e leigos que administrava os bens de cada paróquia. 151 TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo no século XVIII. v.I, 1a parte, p. 233 152 Idem. p. 234. 150

83

senhores de escravos despender qualquer quantia no sepultamento dos negros que estiveram a seus serviços. As poucas descrições que temos sobre essa

prática são encontradas em fontes não oficiais como, por exemplo, nos romances e poesias.

... em seguida o corpo foi levado por dois negros,colocado na nade e levado para o cemitério dos escravos situado na outra banda do morro". "... com agilidade e presteza transformou o mísero catre em improvisada maca, sem tocar no cadáver ...em breve seguiam o caminho do cemitério dos escravos onde havia sempre valas abertas e não ficava muito longe da fazenda...Já chegados, tendo depositado o corpo na cova, fechada agora com as pedras e a terra solta ali abandonada... Teve então remorso e vergonha do abandono e da esquálida miseria daquilo tudo..., sem uma cruz,sem um sacerdote, sem a benção que tudo santificaria154 Era costume cobrar-se 1040 réis pelo sepultamento de um cativo,

sendo 640 pela missa de corpo presente, 320 pela encomendação e 160 por

uma vela, o que, sem dúvida, era bastante. Contudo, a partir de 1748, essas cifras foram elevadas para 3.200 réis155, causando revolta e maior desobediência as regras determinadas pela Igreja. Os sepultamentos clandestinos eram feitos com bastante cautela, pois a Constituição do

Arcebispado da Bahia já condenava em 1722 quando foi compilada pela primeira vez, à pena de excomunhão e de 50 cruzados aqueles que enterrassem alguma pessoa “de qualquer estado, condição e qualidade.., fora

do sagrado...” caso fosse “cristão batizado” e não estivesse na lista dos excomungados pela Igreja Romana156 .

153

Idem. p235 PENNA, Cornélio. A Menina Morta. p. 943, 1285-6. 155 TAUNAY, Afonso de E. História da Cidade de São Paulo no século XVIII, p. 236. 156 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LIII, § 844 154

84

Apesar dos clamores populares por causa das novas taxas funerárias, a Câmara não tomou nenhuma medida contra o poder eclesiástico. 0s poderes da Igreja frente ao Estado pareciam sufocar os políticos do século XVIII.

Numa tentativa de colocar também sob sua fiscalização os

sepultamentos dos menos favorecidos e que eram vítimas de enterros clandestinos, a Cúria criou, em 1775, um cemitério ao ar livre. O cemitério

dos Aflitos ou dos Enforcados, como passou ser chamado a partir de 1821, quando uma forca foi ali construída157. Este cemitério, pioneiro num país católico, de acordo com Maria Amélia S. Loureiro, destinava-se ao

sepultamento de escravos, indigentes e sentenciados, muitos dos quais eram ali mesmo enforcados, ou seja,

pessoas que normalmente não eram

sepultadas no interior das igrejas paulistanas158.

O registro do primeiro

sepultamento naquele cemitério, comprova para qual tipo de pessoas ele estava destinado Aos três dias de outubro de mil seiscentos e setenta e cinco anos nesta freguesia faleceu da vida presente, com todos os sacramentos Maria, de cor parda, forra, que dizia ser casada, cujo marido ignoravam; foi recomendada e sepultada no cemitério da Rua Nova, da que fiz assento que assinei. Joseph Xavier de Toledo.159

A construção do cemitério dos Aflitos, não mudou em nada a situação

da população em geral, já que como se pode inferir, ele era destinado àqueles “desclassificados” . Assim, a maioria das pessoas continuou a ser enterrada nas igrejas, enfrentando todos os inconvenientes causados pelo predomínio MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora.São Paulo: Martins, 1943. p. 97. LOUREIRO, Maria Amália. Origem Histórica dos Cemitérios. São Paulo: Secretaria de Serviços e Obras, 1977. p.47 e segs 159 Livro de Óbitos da Sé (1757-1777), p. 194. Ver também, Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1848-9. v. XXXVII, p. 76 e 114. 157 158

85

eclesiástico nos sepultamentos, principalmente pela permanência da proliferação dos odores emitidos pelas sepulturas mal feitas.

Em 1801, influenciado pelo exemplo de diversos países europeus, o

Príncipe regente, D.João, ordenava, a 14 de Janeiro, através de Carta Régia,

a todos os presidentes de Províncias, que tomassem as devidas providências para que fossem construídos cemitérios públicos ao ar livre e longe das cidades160. Contudo, este pedido só foi formalizado a 1 de outubro de 1828, quando D.Pedro I promulgou a lei que em seu artigo 66, parágrafo 29, obrigava as Câmaras Municipais, de acordo com a autoridade eclesiástica do lugar, a construírem cemitérios fora das cidades e a céu aberto161.

Do mesmo modo que a primeira, esta lei custou muito a ser cumprida. Todos se mostravam por demais envolvidos e acostumados às determinações da Igreja Católica. Ser enterrado dentro de alguma igreja era uma tradição tão antiga, que praticamente ninguém cogitava em modificá-la.

Em Salvador, por exemplo, a proibição de sepultamentos no interior das igrejas motivou uma reação violenta da população. Por essa razão, o acontecimento foi batizado de “a cemiterada”162

LOUREIRO, Maria Amália. Origem Histórica dos Cemitérios. p52 Lei de 19 de Outubro de 1828. Da nova forma às câmaras Municipais marca suas atribuições e o processo para a sua eleição e os juizes de paz. IN: COLLEÇÀO DAS LEIS DO império DO BRAZIL de 1828. 162 TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo sob o Império (1831— 1842). São Paulo: Divisão do Arquivo Histórico, 1961. v.V. p. 341. 160 161

86

No entanto, nem todos permaneciam indiferentes aos problemas causados por aquele costume. Na medida em que a população da cidade crescia, principalmente com a imigração estrangeira para as lavouras de café e para os centros urbanos, novos costumes iam surgindo163 . A existência cada vez mais significativa de devotos de outras seitas religiosas, como, principalmente, o protestantismo, deixava uma parte da população sem local determinado para serem enterrados, já que a Igreja Católica não permitia que

seus corpos fossem sepultados no interior de seus templos. Para que a colonização tivesse sucesso era necessário que nossas leis oferecessem “garantias às crenças religiosas do estrangeiro", como dizia Freitas Coutinho em um discurso proferido na câmara dos Deputados164. Em 1829 a Câmara designou uma comissão formada por médicos

para determinar qual seria o local mais apropriado para a construção do

“cemitério geral”. Foram escolhidos os doutores Justiniano de Mello Franco, João Baptista Badaró e o cirurgião-mór Candido Gonçalves Gomide. Ao Marechal de Campo Daniel Pedro Müller coube o feitio da planta para o

mesmo cemitério165. No entanto, como ficava claro através da lei de 19 de Outubro de 1828, qualquer decisão relativa aos sepultamentos dependia da aprovação da Igreja, que em Sã0 Paulo era representada pelo Exmo. Bispo

Diocesano que, sempre que consultado a respeito do local escolhido pela comissão, procurava adiar ao máximo uma decisão166.

Segundo Richard Morse em 1820 a população da cidade ultrapassava os 20 mil habitantes. 164 Discurso do Sr. Freitas Coutinho na sessão de 19 de fevereiro de 1879. Annaes do Parlamento Brasileiro. fev-maio, 1879. Tomo III, p. 37. 165 Atas da Câmara Municipal de São Paulo. 1829-1830. v. XXV, p.8-22. 166 Idem 1831-1832. v. XXVI, p. 101 e 529. 163

87

Os anos iam passando e tanto em São Paulo como nas demais Vilas

da Província eram inúmeras as reclamações pela construção de cemitérios públicos. Em “O Paulista Official”167, por exemplo, são constantes os pedidos que as diversas prefeituras faziam ao presidente da Província para que promovesse a construção de cemitérios em suas cidades.

167

Jornal O Paulista Official. São Paulo, 1836-1838.

88

As "desculpas” dadas pelo atraso nas construções giravam, normalmente, em torno da falta de verbas ou de locais apropriados. Acreditamos, porém que o principal motivo desses atrasos devia-se aos empecilhos criados pela Diocese e pela própria população. A ligação Igreja-

Estado obrigava as Câmaras Municipais a ficarem na dependência da autorização do Bispo Diocesano pana que pudessem tomar qualquer decisão

relativa à religião oficial. Do mesmo modo, a lei de 19 de outubro de 1828,

apesar de atribuir novos deveres às Câmaras, tais como cuidar para que fossem construídos os cemitérios públicos, não lhes dava autonomia

administrativa ou financeira.”As Câmaras eram então meros agentes administrativos, que os novos ‘Conselhos Gerais de Província’ e os Presidentes

Provinciais

(nomeados

pelo

Imperador)

estreitamente

controlavam”168. A Câmara necessitava a aprovação desses órgãos para o uso de verbas para qualquer obra pública. Como o Governo provincial não

enviava dinheiro para a construção de cemitérios, cada vila da Província procurava obtê-lo através de seus próprios meios. Geralmente a captação de impostos era a medida escolhida. A Câmara de Porto Feliz, por exemplo, estipulou a quantia de 160 réis por habitante, exceto os menores de dez anos,

pelo espaço de quatro anos, para a construção de um cemitério e de uma cadeia naquela vila169. Já o Prefeito de Franca apelou para a benevolência da população, mas nada conseguiu, apesar de ter contado com o apoio do

pároco local. Deste modo, lamentou não poder “gozar desta salutar

providência, determinada pela lei, livrando-nos das epidemias, que causam as exalações de pútridos miasmas, provenientes dos enterros no Adro da Igreja desta Villa”170.

MORSE, Richard N. Formação Histórica de São Paulo (de Comunidade à Metrópole). São Paulo: DIFEL, 1970. p. 81. 169 Jornal O Paulista Official. São Paulo, 26 mar 1836, p. 1. 170 Idem. 8 fev.1836,p.4 168

89

Cresciam cada vez mais as críticas aos sepultamentos no interior das igrejas católicas romanas.O prefeito da Vila de São Roque, por exemplo, pedia auxílio pecuniário ao Presidente da Província para por fim as venenosas exalações que todos os dias se estão reproduzindo dentro da igreja matriz, abrindo-se sepulturas com corpos ainda frescos e não consumidos, cujo hálito putrefato vão os povos recebendo quando para os atos religiosos entram no templo e dali podem sair vitimas de tão pestíferas exalações ali comprimidas e abafadas171.

No entanto, nem a população, em geral, nem muito menos a Igreja, contribuíam para que os cemitérios ao ar livre fossem construídos. O Prefeito da Vila de Castro alertava o Presidente da Província para que terminasse com aquele “prestígio religioso felizmente desprezado pelas idéias do século e da civilização” promovendo a salubridade pública através da construção de um cemitério fora da povoação172. Os templos deveriam deixar de ser depósito de mortos para serem apenas um lugar próprio para se fazerem orações173. A resistência exercida por parte da população, além das crenças

milenares que giravam em torno de uma maior proteção da alma se o corpo

estivesse enterrado dentro de um templo, havia também o fato de que era

prestígio social ser enterrado no interior de uma igreja. As poucas atividades sociais de São Paulo durante o período Colonial e Imperial estavam ligadas às festividades e atos religiosos patrocinados pela Igreja. A maioria da população não vivia no perímetro urbano, mas sim em seus arredores, em fazendas ou pequenos sítios de onde tiravam seu sustento. Os mais privilegiados possuíam também uma casa na cidade, para onde vinham nos dias de “festa”. As procissões e os enterros eram praticamente as únicas atividades sociais da maioria da população. Todos vinham à cidade para 171

Idem. 30 jun.1836, p.3. Jornal O Paulista Official São Paulo, 5 jul 1836, p. 2-3. 173 Relatório com que o Prefeito da Villa de Cunha abriu a sessão da Câmara da mesma. Jornal O Paulista Official . São Paulo, 17 maio 1836, p. 3. 172

90

participarem dessas ocasiões e por isso, a importância de cada um ter um enterro digno de comentários elogiosos.

No entanto, os cronistas do século XIX criticavam a falta de

religiosidade nessas atitudes. Somente a “arraia miada” comparecia às

procissões, enquanto os “irmãos ricos” das Irmandades e Confrarias” ficavam na janela”, envergonhavam-se “de acompanhar os santos”174.

“Um irmão pobre” escrevia para um jornal em 1856 criticando essa

situação.”...ai vem as procissões da quaresma. Serão elas como sempre foram abandonadas aos moleques?” E continuava afirmando

[...]Como não será assim, se os irmãos ricos só comparecem quando são ministros? Se os fidalgos ficam na janela!... Senhores, tendes horror do habito, ele os envergonha? Se tudo é fingido, acabemos com isto: lucra-se não depreciar os atos religiosos, porque o povo, que aprende bem os exemplos que vem de cima, já olha com desdém para estas coisas [...] tudo é profanação e indiferença... Se não houvesse “pendão” para os ricos ocuparem a lugar de distinção, ficavam em casa175.

174 175

Jornal A União dos círculos. São Paulo, 31 jan 1856, p. 4-5 Idem.Ibdem.

91

Deste modo, compreende-se o porque do interesse da Igreja em promover a vaidade pública enfatizando a necessidade de todos terem um enterro “cristão”, suficientemente enriquecido com todos os tipos de exéquias que seus herdeiros pudessem pagar com a esmola costumada”. Richard Morse explicou muito bem a razão desta força da Igreja paulistana, observando que “a vitalidade da Igreja em São Paulo explicava-se não tanto

por sua mensagem espiritual, como pela correspondência entre suas imagens,

ritos e pompas e as necessidades seculares dos vários grupos da

saciedade”176. Ao que parece, era esse espírito que fazia a Igreja e todos os seus representantes agirem contra a construção de cemitérios públicos.

Os fortes laços que uniam o poder publico e a Igreja ficavam

aparentes em diversas situações. A decisão da comissão encarregada do local apropriado para o cemitério público em favor de um terreno contínuo ao

Recolhimento da Luz e ao lado do hospital dos lázaros, veio prolongar ainda

mais o início da construção do cemitério paulistano. As religiosas negavam-se a ceder um centímetro de seus terrenos e a Câmara insistia em que era aquele o local ideal para a construção. Este impasse percorreu os anos de 1832 a

1836 sem que nenhuma solução prática fosse tomada. A 10 de dezembro de 1836, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um parecer a ela enviado a 4 de março do mesmo ano, relativo ao cemitério que deveria ser feito no

terreno das religiosas da Luz. Este parecer demonstrou, mais uma vez, a importância das diversas entidades religiosas frente aos sepultamentos. Todas as Irmandades, Confrarias, Ordens Terceiras, o Recolhimento de Santa Thereza e a Santa Casa de Misericórdia seriam uma espécie de “associadas” ao novo cemitério, já que participariam com capital necessário para sua construção. Pagariam 10% de sua renda anual para a construção do 176

MORSE, Richard M. Op.cit. p. 67.

92

cemitério, com exceção da Santa Casa de Misericórdia, que por ser mais rica e contar com o apoio do Estado, pagaria 12% anualmente. Em troca deste “empréstimo”, cada uma daquelas entidades teria assegurado a todos seus irmãos uma sepultura grátis no local determinado a pertencer á cada uma delas. Ao final do “empréstimo”, elas não precisariam pagar mais nada para enterrarem seus filiados177. No entanto, aquelas entidades continuariam a receber deles as taxas relativas ao serviço funerário explicitadas em seus estatutos. Far-se-ia apenas uma espécie de transferência de local de sepulturas: de dentro das igrejas para esse cemitério a céu aberto.

As pessoas que não pertencessem a nenhuma entidade religiosa continuariam a pagar o mesmo que pagariam caso fossem enterradas em qualquer igreja da cidade. No entanto, esse parecer de nada adiantou, já que as Recolhidas da Luz continuaram a negar a cessão do terreno. Foi somente em 1845, por intervenção do Bispo D. Manoel Joaquim Gonçalves, que aquele terreno pode ser transformada em cemitério, embora tenha servido

apenas ao sepultamento das religiosas e de seus respectivas capelães que ali

viessem a falecer178. Deste modo, a Câmara Municipal estava novamente sem local ideal para o cemitério público.

Enquanto o cemitério público e geral não era construído, as diversas entidades religiosas da cidade, de certo modo pressionadas pela poder público, procuravam garantir-se e adaptar-se às novas medidas que o

progresso exigia. Foram obrigadas a criar cemitérios fora das igrejas para

abrigarem seus fiéis, porém continuavam sob suas direções e obedecendo às mesmas regras que regiam os sepultamentos “in sagrado”.

PARECER APROVADO PELA CÂMARA MUNICIPAL DESTA CIDADE EM SESSÃO DE 10 DE DEZEMBRO DE 1836. Jornal O Paulista Official. 24 dez 1836. 177

178

LOUREIRO, Maria Amélia Salgado. Origem Histórica dos Cemitérios Op.cit. p. 60.

93

A 20 de setembro de 1843 foi aprovada uma lei que em seu Artigo 1o dizia:

As Ordens Religiosas e Irmandades desta corte podem estabelecer cemitérios fora da cidade, havendo prévia licença do governo. Ficam suspensas as leis de amortização pana que as sobreditas corporações possam adquirir por qualquer título os terrenos que forem precisos para os seus cemitérios; e a aquisição destes terrenos não é sujeita ao pagamento da sisa179. Essa lei, ao mesmo tempo em que continuava a manter o “status quo”

da Igreja, aliviava as Câmaras Municipais do peso das despesas que esses serviços promoviam.

Ainda em 1850 eram tolerados os sepultamentos no interior das igrejas, pois só a 17 de maio daquele ano que a Câmara deu um prazo máximo de três meses para que as Fábricas das Freguesias da Sé, Santa

Ifigênia e Brás e as Irmandades, Ordens Terceiras e Ordens Religiosas

escolhessem os lugares adequados para seus cemitérios. Contudo, um aditamento a esse projeto que estipulava que após aquele prazo fossem proibidos os sepultamentos naquelas igrejas, não foi aprovado. Achou-se

melhor esperar que o cemitério público fosse inaugurado antes de tomarem tal atitude180. Permanecia então a questão: os que não compartilhassem da religião

oficial, quando mortos, não poderiam ser enterrados nos cemitérios existentes na cidade, a menos que se rebatizassem. Por ocasião do “rebatizado” do

Engenheiro Bresser, quando estava para morrer, em março de 1856, para que 179

MARTINS,Wilson. História da Inteligência Brasileira. V II, p. 271.

180

Atas da Câmara Municipal de São Paulo. 1850-1851. v. XXXVIII, p.45.

94

pudesse ser enterrado no solo de alguma igreja, um artigo de jornal comentava e recomendava “aos senhores protestantes que temos aqui pela cidade, vão já cuidando de se rebatizar, aliás irão para o campo quando

morrerem”181. Os que não desejassem, ou não tivessem tido oportunidade de se rebatizarem, seriam, como a famoso professor de História, Geografia e

Inglês do curso anexo à Faculdade de Direito, Júlio Frank, sepultados em local não apropriado. Esse professor, nascido na Saxônia e de religião

protestante, foi sepultado em 1841 no pátio da Faculdade de Direito, por

intervenção de seus alunos que muito o estimavam e que compartilhavam das idéias “liberais” desenvolvidas no século XIX e apregoadas por ele em suas aulas182 . Em 1851, através de um requerimento de Henrique Wimen e provisão

do vigário capitular, passada a 30 de janeiro, conseguiu-se que metade do

cemitério das Recolhidas da Luz fosse destinada ao sepultamento de

estrangeiros, sendo que uma metade ficou para os cató1icos - cemitério dos Alemães -,e a outra para os não católicos cemitério dos protestantes, Estes novos cemitérios, no entanto, continuaram sob a administração das religiosas do Campo da Luz183 No mesmo ano, o então presidente da Província de São Paulo,

Vicente Pires da Motta, relatava a urgência de se retirarem dos templos os cemitérios, pois “a saúde publica exigia que se acabasse com abuso tão nocivo, introduzido pela barbárie e ignorância...”184.

Jornal A União dos círculos. São Paulo, 6 abr 1856, n. 28, p. 2. MORSE, Richard M. Op.cit. p. 97-8. 183 LOUREIRO, Maria Amélia Salgado. Op.cit. p.60. 184 EGAS,Eugênio. Galeria dos Presidentes de São Paulo. v. 1, p. 193. 181 182

95

Foi somente durante o governo de José Antonio Saraiva, em 1854,

que se escolheu o local apropriado para o cemitério público de São Paulo e

só no ano seguinte tiveram inicio as obras daquele que é o atual cemitério da Consolação185 A construção foi lenta e os enterramentos nas igrejas continuaram por

mais alguns anos. Em 1855 o vigário da igreja da freguesia do Juquery pedia

à Câmara que providenciasse a construção do cemitério, já que a lei exigia e no entanto, por falta de verba, os enterramentos continuavam sendo feitos no pátio e dentro da igreja. A Câmara, por sua vez, pedia ao Presidente da Província que providenciasse os meios para essa e outras construções de cemitérios, pois além da Câmara não possuir recursos, não podiam “esperar

que os moradores das freguesias se [prestassem] a concorrer para uma obra dessa natureza, que [tendia] a extirpar uma pratica que [estava] muito em conformidade às crenças populares”186. Os políticos não acreditavam, portanto, poderem contar com a ajuda

financeira da população para a construção de cemitérios a céu aberto. Essas construções iam diretamente contra uma crença popular bastante antiga e que talvez pudesse proporcionar algum tipo de reação por parte da popu1ação.

Nos jornais paulistas da década de 1850 encontramos referências à

preocupação da população com as diversas epidemias que apareciam no país.

Por volta de 1856, a cólera atingia muitas cidades brasileiras, o que era noticiado diariamente nos jornais. “CORREIO DA BARCA” Atas da Câmara Municipal de São Paulo. 1853-1854. v. XL, p.231. ver tb. V. XLI.Idem. 1855. v. XLI, p.181. 186 Atas da Câmara Municipal de São Paulo. 1855. v.XLI, p.181. 185

96

Chegou hoje o Itambé. Resumimos o seguinte: - Extinguiu-se a cólera no Pará - Porto Alegre foi cruelmente flagelado: houve em um dia 120 mortes. Em Pelotas, Rio Grande e Jaguarão declinava; mas rebentara em Triumpho, Ria Pardo, São Leopoldo e Barra. - Pernambuco ainda não foi invadido - Na freguesia do Juiz de Fora (Minas) houve 12 casos fatais de cólera... - Em Santa Catarina apareceram muitos casos de cólera... - Ainda o obituário dá conta de três, quatro e cinco casos de cólera. - Em Sergipe grassa a moléstia com força.187

O medo da possível chegada do cólera em São Paulo fez com que

aumentassem os pedidos para que medidas sanitárias fossem tomadas. Os homens públicos encontrariam nos surtos epidêmicos um poderoso respaldo para reclamarem da Câmara “a urgência do cemitério” até então não concluído188. Por várias vezes a falta de dinheiro nos cofres públicos fez com que

os políticos paulistas pensassem em parar as abras do cemitério como forma de economizar, porém já tinham investido muito capital ali e não convinha perdê-lo189. Nessas ocasiões a Câmara salientava que o cemitério da Consolação só estava sendo construído por terem temido a invasão do cólera na cidade e também parque o governo provincial havia prometido fornecer a quantia necessária para as despesas com aquela obra190. Além disso, a população mostrava o seu desapreço pelo cemitério, depredando a obra iniciada. A 18 de agosto de 1856, a Câmara deliberou oficiar ao chefe de polícia para que protegesse as abras do cemitério, tendo em vista a destruição de cerca de cem telhas do muro na noite anterior191. Jornal A União dos círculos. São Paulo, l4 jan 1856, n. 5, p.4 Idem. Ver. 14 maio 1856, n.37, p.3 189 Atas da Câmara Municipal de São Paulo. 1856. v. XLII. Sessão Ordinária de 28 de Agosto de 1856 p. 90. Ver também 1857, v. XLIII, p. 95. 190 Idem.ver tb. V.XLIII, Sessão Ordinária de 4 fev. 1857,p.25. 191 Idem. p.87 187 188

97

Foi somente a 30 de junho de 1858 que o cemitério foi bento e no dia

10 de julho se deu a inauguração do mesmo que, apesar de administrado pela Câmara Municipal, dependia sempre da aprovação da Cúria para qualquer decisão192. Mesmo após a inauguração do cemitério público e da definitiva

proibição de enterramentos no interior das igrejas, boa parte da população

negava-se a aceitá-lo. No dia 28 de agosto de 1858, alguns moradores apresentaram à Câmara um documento assinado no qual pediam a extinção do novo cemitério e a conseqüente conservação

“das velhas tradições”.

Pretendiam continuar a enterrar seus cadáveres no interior das igrejas. A Câmara não se surpreendeu com tal requerimento, pois sabia que a população

dificilmente aceitaria de imediato uma mudança tão brutal em seus antigos hábitos. Contudo, admirou-se ao notar que a maior parte da população não a assinou, o que significava que estava “habilitada para dar mais esse passo na carreira da civilização”193. Deste modo, o parecer da Câmara a respeito foi conclusivo: Quanto ao cemitério que os peticionários denominaram - das velhas tradições - entende a Câmara Municipal que a sua conservação iria destruir os efeitos salutares que tiveram em vista os Legisladores da Província quando aprovaram a Postura de 3 de Maio de 1856, -visto estar ele dentro da cidade e nesta convicção já indeferiu uma petição que para esse fim lhe dirigiu a mesa da Santa Casa de Misericórdia. Se de outra forma procedesse para ser conseqüente deveria a Câmara consentir que as Irmandades e Confrarias continuassem a servir-se dos cemitérios descobertos que atualmente possuem; mas para assim obrar seria precisa postergar a artigo 39 da Postura citada que só permite às freiras da Luz e Santa Thereza a enterramento em seus jazigos. 192

Idem. v. XLIV, p.117-8 e 124. Atas da Câmara Municipal de São Paulo. 1856. v. XLII, p. 87. Sessão Ordinária de 9 de setembro de 1858, p. 156. O cemitério “das velhas tradições” citado é o dos Aflitos, desativado quando o da Consolação ficou pronto. 193

98

Continuava ainda o documento: ... o novo cemitério esta longe, é verdade, do estado da perfeição a que tem de ser levado, parque a falta de meios não tem permitido ainda construir-se os edifícios que constam do respectivo plano; mas a Câmara Municipal continua a empregar os de que dispõem e assegura a V.Exa. que sejam quais forem os tropeços que se lhe queira lançar na senda que segue, não desanimará. 194

Com relação à reclamação sobre a grande distância que separava o

cemitério público da cidade, a Câmara salientou que está não era tão grande assim, já que em 25 minutos se ia e voltava de carro, ao cemitério, “sendo

certo que os do Rio de Janeiro e de outros lugares são situados a maior distância”195. 194 195

Atas da Câmara Municipal de São Paulo. Sessão Ordinária de 9 set. 1858.p.156. Idem. Ibidem.

99

2.2.A Exp1oração da Morte: A Luta pela Secularização dos Cemitérios.

A partir do momento em que a morte passou a ser reverenciada196 ela tornou-se um empreendimento dispendioso. Enterrar uma pessoa dentro de uma igreja implicava, como já vimos, numa série de gastos que eram incorporados às “esmolas” para a igreja. A segregação social começava daí.

Muitas pessoas preferiam “esconder” os cadáveres de seus familiares do que exporem ao público sua pobreza. O costume de se oferecer cera àqueles que

acompanhassem um defunto à sepultura era uma das despesas mais comuns no século XVIII, como já vimos. Taunay salienta que muitas famílias “decadentes ou reduzidas à pobreza, e não podendo fazer despesas de tochas,

ocultavam com o maior cuidado o falecimento dos seus membros, fazendo-os sepultar furtivamente e conduzindo-lhes pela madrugada os cadáveres ao

túmulo em rede”197. Outras famílias preferiam vender tudo o que possuíam para poderem aparentar uma boa situação financeira por ocasião do velório de algum parente198. Esse problema foi ainda mais evidenciado com a construção de

cemitérios a céu aberto, pois passou a ser possível dar-se larga à vaidade humana, além de terem ficado mais claro os inconvenientes que o predomínio

eclesiástico nos sepultamentos ocasionava. Os mais ricos podiam ter enterros luxuosos, enquanto os pobres eram obrigados a se contentarem com os enterros simplíssimos destinados aos indigentes ou sem posses

Ver 2a parte deste Trabalho, p.29 “A acolhida do corpo”. TAUNAY,Affonso de E. Historia da Cidade de São Paulo no século XVIII (1735— 1765) v. 1, 2a parte, p.l32. 198 Id.p.133. 196 197

100

Os protestantes e seguidores de outras religiões continuavam sem

lugar próprio para serem enterrados. Ficaram proibidas as inumações no

antigo cemitério dos protestantes, situado no terreno das Recolhidas da Luz, após a conclusão do novo cemitério público199.

Foi separada uma pequena parte de terreno no cemitério da

Consolação para serem enterrados os estrangeiros não católicos romanos,

mas este anexo demorou ainda mais alguns anos até ser concluído e de ser

passível a receber sepultamentos. Em 1856 os estrangeiros católicos romanos pediram permissão à Câmara Municipal para também serem ali enterrados. Este pedido foi concedido com a condição de que todos estariam sujeitos ao

Regulamento do Cemitério Geral, o que implicava dizer que estariam sob as determinações da Igreja Católica Romana200. Em 1858 os alemães católicos solicitavam a concessão de terrenos no cemitério da Consolação para que seus mortos fossem sepultados naquele local201. Contudo, ao que parece, todos esses pedidos ficaram arquivados por mais algum tempo, pois ainda em 1859 a Comissão Permanente encarregada da construção do cemitério

público propunha à Câmara que construísse um cemitério para os protestantes, já que seus cadáveres não podiam ser inumados dentro do

cemitério da Consolação e que também não era descente que o fossem em campo aberto, em lugares que podiam servir de pasto aos animais202 Esse cemitério seria cercado de taipas a fim de continuar, mesmo no

cemitério público, a distinção entre “mortos católicos-romanos” e "mortos protestantes”203. Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1856. v.XLII, p. 31 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1856. v.XLII, p. 28. 201 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1858. v.XLIV, p.155.. 202 Id. V.XLV, p.41. 203 Id. p.49. 199 200

101

Em 1862 as obras encontravam-se praticamente abandonadas ainda não havia um caminho digno para serem transportados os cadáveres em carros, nem uma capela e nem contava com o serviço publico de manutenção204. Com exceção das valas destinadas aos indigentes ou muito pobres, todas as demais sepulturas eram vendidas ou alugadas. As primeiras eram concedidas aos cadáveres daqueles que fossem comprovadamente pobres ou

indigentes. Para isso, era necessário fazer uma “declaração de pobreza” a

qual justificaria o não pagamento das taxas do cemitério205. Para que se

pudesse “conhecer se a declaração de pobreza (era) exata”, nos livros dos

cemitérios deveriam estar registrados os parentescos das pessoas ali enterradas. Assim, na declaração dos escravos deveria haver os nomes de

seus senhores, e na dos menores o nome dos pais206. Do mesmo modo, a Câmara pedia aos párocos que escrevessem nos “bilhetes de enterros” a condição social dos indivíduos que passassem por suas paróquias, para facilitar o trabalho nos cemitérios207. No caso de alguém ter sido “indevidamente sepultado como pobre”,

caberia ao procurador da Câmara cobrar dos familiares ou responsáveis a quantia relativa àquele sepultamento. Ao que parece, a Câmara enfrentou por

várias vezes a negativa de se pagarem as sepulturas de soldados falecidos nas enfermarias, pois o próprio Ministério da Guerra afirmava que não era

possível provar que aqueles soldados fossem ricos208, o que, portanto, não os impedia de terem sepulturas grátis.

Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1862. v. XLVIII, p.77 e 82. Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1858. v. XLIV, p.211. 206 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1859. v. XLV, p.16. 207 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1858. v. XLIV, p.153. 208 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1859. v. XLV, p.110 e 1862, v. XLVIII, p.203. 204 205

102

As pessoas que não tivessem direito a sepulturas grátis podiam ou não

comprar jazigos particulares e vitalícios. Estes custavam, em 1857, antes portanto da inauguração oficial do cemitério da Consolação, cinqüenta reis de jóia por palmo quadrado mais um foro anual de dez réis por palmo quadrado.

Caso o jazigo fosse temporário, ou seja, utilizado até que os ossos pudessem ser removidos para um carneiro menor, o que geralmente era em torno de cinco anos, pagavam-se os mesmos cinqüenta réis de jóia e mais vinte reis anuais por palmo quadrado209 . As Irmandades e Confrarias, por sua vez, pagavam uma jóia de dois

mil réis por braça quadrada no ato do aforamento e mais cinqüenta reis anualmente por braça quadrada. Deste modo, podemos notar aqui, mais uma

proteção às entidades religiosas. As Irmandades e Confrarias pagavam bem menos por uma porção maior de terreno no cemitério do que os particulares.

Esta era uma maneira, acreditamos, de compensá-las do prejuízo que

passaram a ter a partir da proibição de enterrarem seus irmãos dentro de seus cemitérios. Entretanto, como já vimos, mesmo assim as Irmandades e Confrarias demoraram muitos anos até começarem a utilizar o cemitério público, desobedecendo às leis do Império.

209

Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1857. v. XLIII, p.56-7.

103

Persistiram os sepultamentos no interior das Ordens Terceiras e Irmandades. As Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco e a

Irmandade de São Benedito obtiveram através da Assembléia Legislativa Provincial, o direito de continuarem a enterrar seus irmãos em seus jazigos210. A Câmara Municipal tentou provar a ilegalidade dessa concessão, principalmente porque era de sua competência deliberar sobre os cemitérios,

de acordo com a autoridade eclesiástica do lugar, e não da Assembléia

Legislativa211. Enquanto essa ilegalidade não era provada, as Ordens Terceiras e Irmandades não tomavam posse dos terrenos a elas destinados no

cemitério publico212, ignorando, por assim dizer, a determinação que proibia as inumações fora daquele cemitério.

Por várias vezes a Assembléia Legislativa aprovou, através de

decreto-lei, sepultamentos no interior das igrejas ou Irmandades religiosas, não só da capital como também em outras localidades da Província213. Além disso, os religiosos pertencentes àquelas Ordens Religiosas que, por ventura fossem sepultados no cemitério público, geralmente eram, após o prazo previsto por lei, trasladados para os seus cemitérios particulares. Esse foi o

caso, por exemplo, do corpo de Frei Antonio Ignácio do Coração de Jesus e Mello, prior do Convento do Carmo, em l864214.

Foi somente em 1868 que a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo inaugurou a parte do cemitério público a ela reservada, quando sepultou uma mulher de 24 anos215.

210

Id. v. XLIII, p.71-80. Id.Ibid. 212 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1862. v. XLVIII. Sessão de 10 dez. 1862,p.221. 213 Ver Collecção de Leis e Posturas Municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa Provincipal de São Paulo. 214 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1864. v.L,p.31 e 1863, v.XLIX, p.277,285,286. 211

104

Em 1862 a Comissão de Contas alertava a Câmara para o fato de

estarem as sepulturas perpétuas muito baratas, já que praticamente não havia família que não pudesse pagar os 50$000 réis por elas. Deste modo, dentro

de três ou quatro anos todos os terrenos do cemitério estariam comprados,

tornando-se impossível o sepultamento de pessoas que não tivessem sepulturas próprias216. Previa-se, portanto, uma elitização do cemitério. Dentro de pouco tempo não haveria mais lugares para sepulturas gratuitas. Apesar da reclamação da Comissão de Contas para o fato de que as sepulturas estavam baratas demais, temos dados que nos permitem dizer que o cemitério municipal era uma empresa lucrativa. Examinando o balancete

oferecido pelo administrador daquela instituição, notamos que na grande maioria dos meses referentes aos anos de 1862 a l864, por exemplo, houve lucro. Apresentaremos aqui as cifras correspondentes aos meses de que possuímos dados, retirados das Atas da Câmara da Cidade de São Paulo, a título de ilustração:

ANO DE 1862

215 216

Jun/jul.

Ago./set.

Dez.

Receitas

494$000

506$000

264$000

Despesas

301$666

296$666

146$833

Lucro

192$334

209$334

117$167

Deficit

-----------

----------

----------

RIBEIRO, J.J.. Chronologia Paulista. São Paulo: s.ed, 1899.(V. 2, II Parte), p. 521 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1862. v. XLVIII, p.143.

105

Fonte: Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1862. v. XLVIII, p.143.

ANO DE 1863

Jan.

Fev.

Abr.*

Maio

Jul.

Ago.

Out.

Nov.

Receitas 236$000 84$000

330$000 340$000 436$000 318$000 347$300

Despesas 148$333 170$333

178$333 178$333 192$413 227$613 208$413

Lucro

87$667

-------

91$667 151$667 161$667 295$587 90$387

138$887

Deficit

-------

86$333

-------

-------

--------

---------

---------- ---------

Fonte: Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1863. v.XLIX, p.50-285. * Não possuímos os índices relativos às despesas e receitas do mês de abril.

ANO DE 1864

Fev.

Jul.

Ago.

Set.

Receita

184$000

320$000

328$000

318$000

Despesa

178$333

186$666

186$666

186$666

Lucro

5$667

141$334

133$334

131$334

Fonte: Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1864, v.L, p.137-142.

106

Com a transferência dos sepultamentos das igrejas para o cemitério

público e distante da cidade, tornou-se necessária a existência de carros para

o transporte dos corpos. A Câmara Municipal achou por bem estabelecer um contrato de privilégio para a empresa particular de condução de cadáveres que melhores condições oferecesse. Deste modo, seguiriam as normas

estabelecidas pelo governo e os preços seriam controlados217. Não seriam proibidos, no entanto, outros meios de condução de cadáveres utilizados por particulares. A 28 de abril de 1856, Joaquim Marcelino da Silva passou a contar com o apoio da Câmara para fazer o serviço do transporte de cadáveres para o cemitério da Consolação, até que houvesse alguém que oferecesse condições melhores do que as dele para executar tal serviço.

Ele deveria transportar cadáveres com carro decente de quatro rodas

por dez mil réis e o pároco por seis mil réis. Os escravos ou qualquer pessoa que quisesse ser transportada em carroça coberta de madeira pintada de preto pagaria apenas dois mil reis, enquanto que os indigentes receberiam o serviço gratuitamente218.Em caso do cortejo parar em alguma igreja no meio do caminho para o cemitério, o empresário teria o direito de aumentar uma quinta parte no preço estabelecido na tabela. Por outro lado, em caso de

epidemia, os preços seriam diminuídos em sua quarta parte e se os cadáveres

não fossem transportados no dia pedido, ele seria multado em trinta mil réis219. Tendo em vista os altos preços cobrados, a Santa Casa de

Misericórdia pediu a Câmara que permitisse que os pobres falecidos no

hospital de caridade fossem sepultados no cemitério da rua da Glória, mais perto do Hospital. Alegava, ainda, que a grande distancia que separava o Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1855. v. XLI, p.49. v. XLII,p.19-26 Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1856. v. XLII, p.19-20. 219 Idem. 1858, v. XLIV, p.144-5. 217 218

107

hospital do Cemitério da Consolação impedia que os corpos fossem carregados a pé até lá. Pedia-se uma redução para 2$000 réis para a condução de cada cadáver de pobre que falecesse no hospital de caridade220.

Permitiu-se, então, que a condução dos indigentes que falecessem na

capital, inclusive os do hospital da Santa Casa de Misericórdia, seria feita gratuitamente pelo empresário Marcelino221.

Vinte anos depois, o governo permitia que outra empresa particular obtivesse o privilégio da condução de cadáveres da capital, assim como para

os serviços de fornecimento de caixões, armações de salas mortuárias e mais objetos próprios para essas ocasiões222. Não temos notícias do que ocorreu

durante os cinco anos após a extinção do contrato de Joaquim Marcelino da Silva, pois não encontramos documentação desse período. Não obstante, é bem possível que aquele contrato tenha durado vinte anos e não quinze como

estava estipulado, já que o contrato seguinte foi feito em 1876, com a duração de vinte anos. Provavelmente, a não existência de uma firma que oferecesse melhores condições que a de Joaquim Marcelino da Silva anteriormente, tivesse promovido o adiamento do término daquele contrato.

220

Idem, p.136. Atas da Câmara da cidade de São Paulo. 1858. v. XLIV, p.146-7. 222 Collecção de Leis e Posturas Municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo no anno de 1876. p.71. 221

108

Nesse novo contrato, dava-se o privilégio à Santa Casa de

Misericórdia, que melhores condições ofereceu. Nota-se que, com o tempo, a

Câmara adquirira experiência suficiente para fazer um contrato bem mais detalhado, estabelecendo normas não só para a empresa contratada, como

também para os possíveis usuários de seus serviços. Todos os objetos pedidos pela família ou responsáveis do defunto, deveriam ser rigorosamente

cedidos, obedecendo-se o contrato feito entre as duas partes. Caso a empresa faltasse com o que prometera, alterando os objetos pedidos ou os preços, seria multada de l00$000 a 200$000 réis, sendo as multas impostas pelo chefe de polícia e revertendo à Câmara Municipal223.

223

Idem. Art. 2o , § 1o e 2o .

109

A reserva dos aparatos fúnebres deveria ser feita no mínimo 6 horas

antes do enterro, salvo em caso de epidemias ou moléstias contagiosas224.

Esse pedido seria registrado num “livro de talão” no qual deveriam ser

mencionados “os objetos pedidos e seus preços, e igualmente o nome e cognome do finado, sua naturalidade, condição civil, idade, estado e profissão, a moléstia de que faleceu e o lugar e o número da casa onde o

corpo estivesse depositado”225. Caso o falecido fosse “indígena engajado”,

escravo ou “ingênuo”, deveria vir registrada sua condição, a nação a que pertencia e o nome de seu senhor226 . A partir desse novo contrato, ficava “proibida a condução de cadáveres em redes, panos, esteiras ou caixões abertos e descobertos, dentro da demarcação desta capital, sob pena de multa

de 20$000 réis para a Câmara Municipal, paga da cadeia pelos condutores dos cadáveres”227. Procurava-se, portanto, racionalizar cada vez mais a prática funerária. A proibição do transporte de cadáveres em redes terminava

com um hábito bastante comum na sociedade colonial, como já tivemos oportunidade de ver. O fornecimento de caixões, veículos e dos demais aparatos

funerários era exclusivo da empresa que tivesse o privilégio municipal, sendo proibido a qualquer pessoa ou corporação fazer esses serviços228.

As tabelas que explicitavam os diversos tipos de paramentos funerários, quer fossem para homens, mulheres ou crianças e quer fossem de 1a, 2a ou 3a classe, são documentos riquíssimos que nos mostram a grande 224

Idem. Art. 3o. Idem. Art. 5o. 226 Collecção de Leis e Posturas Municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo no anno de 1876. Art. 5o . Ingênuo era o filho de escravo nascido depois da Lei do Ventre Livre. 227 Collecção de Leis e Posturas Municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo no anno de 1876. Art. 9o . 228 Idem. Art. 12o. 225

110

diferenciação social existente nos funerais. Por essa razão, também apresentaremos essas oito tabelas que fazem parte da Lei n.69 de 2 de abril de 1876, publicada na Collecção de Leis e Posturas Municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo no anno de 1876.

A primeira tabela regulava os preços e a qualidade dos caixões para adultos, sendo que eles poderiam ser de seis tipos diferentes.

Tabela N. 1 Caixões para Adultos N. 1 “Caixão de madeira coberta de seda preta bordada de ouro fino forrado de cetim branco superior, competentemente guarnecido de ga1ão de ouro fino de 214 linhas de largura, levando um travesseiro forrado da mesma seda com que é coberto o caixão, com grega229 de ouro entrefino para cobrir a costura e com seis argolas de metal lavrado e cadeado dourado, 300$000”.

N. 2 “Caixão de madeira coberto de veludo preto, forrado de cetim branco, guarnecido com doze tiras de galão de ouro entrefino de 32 a 36 linhas de largura, levando o travesseiro do mesmo veludo preto com uma grega de ouro entrefino para cobrir a costura, seis argolas douradas e cadeado também dourado, por 150$000”. N.3 “Caixão coberto de veludinho preto superior, forrado de cetim branco, guarnecido com dez tiras de galão de ouro entrefino de 24 a 26 linhas de largura, levando travesseiro de veludinho preto, guarnecida a costura com grega de ouro entrefino, com seis argolas douradas e cadeado, por 60$000”.

111

“Caixão coberto guarnecido com oito 26 a 32 linhas de belbutina guarnecido cadeado, 50$000.”

N. 4 de belbutina230 preta forrado de morim, tiras de galão palheta francês superior de largura, levando travesseiro da mesma de espeguilha, quatro argolas douradas e

N. 5 “Caixão coberto de belbutina preta, forrado de morim guarnecido com oito tiras de palheta de 18 linhas de largura, levando travesseiro de metim231 preto guarnecido de espeguilha, com quatro argolas pretas e cadeado, 25$000" N. 6 “Caixão coberto de metim preto, forrado de morim, guarnecido com seis tiras de galão palheta de 15 linhas de largura, levando travesseiro do mesmo metim preto, com quatro argolas pretas e cadeado, l5$000”.

A segunda tabela regulava o preço e qualidade dos caixões para donzelas:

TABELA N. 2 Caixão para Donzelas “Os caixões para donzelas é regulado pela mesma ordem, preços e condições como o dos adultos, com a diferença somente da cor, que é roxa e não preta”. E a terceira, os caixões para crianças, ou “Anjos”:

229

grega= galão. Belbutina = belbute fino = tecido de a1godão aveludado 231 Metim: espécie de cetineta ou algodão que se usa, geralmente, em forros de vestuário. 230

112

TABELA N. 3 Caixão para Anjos N. 1 “Caixão de madeira coberto de seda de cor bordada de ouro fino, forrado de cetim branco superior, competentemente guarnecido de galão de ouro fino de 18 a 21 linhas de largura, levando travesseiro da mesma seda bordada com grega de ouro cobrindo a costura, com quatro argolas, garras e cadeado dourado, por 80$000”. N. 2 “Caixão coberto de cetim Macau superior de cor, forrado de cetim branco, com 12 tiras de galão entrefino de fantasia de 18 a 21 linhas de largura, levando travesseiro do mesmo cetim com grega de ouro entrefino para cobrir a costura com quatro argolas, garras e cadeado dourado, por 50$000”. N3 “Caixão coberto de cetim Macau de cor, forrado de morim, guarnecido com 10 tiras de galão entrefino de 15 a 18 linhas de largura, levando travesseiro do mesmo cetim com grega entrefina para cobrir a costura, com quatro argolas, garras e cadeado por 35$000”. N.4 “Caixão coberto de belbutina de cor superior, forrado de morim, guarnecido com 10 tiras de galão palheta francês superior de 15 a 18 linhas de largura, levando travesseiro da mesma belbutina, com quatro argolas e cadeado, por 20$000”. N. 5 “Caixão coberto com belbutina de cor, forrado de morim, guarnecido com oito tiras de galão palheta de 15 linhas de largura, levando travesseiro da mesma belbutina com quatro argolas e cadeado, por 20$000”. N. 6 “Caixão coberto de metim de cor, forrado de morim, guarnecido com 6 tiras de galão palheta de 12 linhas de largura,

113

levando travesseiro do mesmo metim, com quatro argolas e cadeado, por l0$000”.

As tabelas 4 a 8 regulavam as características e os preços da

decoração da sala mortuária e dos veículos para condução de cadáveres: TABELA N 4 Armação de sala mortuária N. 1

“Altar com espaldar de seda preta bordada de ouro entrefino, frontal da mesma seda, guarnecidos de galão e franjas de ouro entrefino, e banqueta correspondente com crucifixo e seis castiçais com velas novas de 3/4. Eça forrada de seda preta bordada de ouro entrefino, guarnecida de ga1ão e franjas de ouro entrefino,com seis castiçais com velas novas de 3/4,” “Portadas232 e pilastras precisas, sanefas correspondentes para guarnecer a sala, tudo de damasco233 preto guarnecido de galão e franja de ouro entrefino. Chão forrado de baeta234 preta. Pano preto com emblema, portadas sanefa de seda preta bordada de ouro entrefino na porta da rua, 80$000”. N. 2 “Altar com espaldar de damasco preto, frontal do mesmo damasco, guarnecidos de galão e franjas de seda cor de ouro, e banqueta correspondente com crucifixo e seis castiçais com velas novas de meia libra. “Eça forrada de damasco preto guarnecida de galão e franjas de seda, com seis castiçais, com velas novas de meia libra. “Portadas e sanefas do mesmo damasco guarnecidas de galão e franja de seda, pano preto com emblema na porta da rua, 40$000”. 232

Portadas: grande porta, em geral com ornatos; portal, pórtico Damasco:Tecido de seda, com desenhos lavrados, que se fabricava em Damasco. 234 Baeta: Tecido felpudo de lã. 233

114

N. 3 “Altar com espaldar de belbutina preta, frontal da mesma belbutina, correspondente guarnecidos, crucifico e quatro castiçais, com velas de três em libra. “Eça com frontal de belbutina preta correspondente guarnecida com quatro castiçais com velas de três em libra, pano preto guarnecido de ga1ão entrefino na porta da rua, por 20$000”.

TABELA N.5 Veículos para a condução de cadáveres de adultos N. 1 “Carro de colunas com estrado dourado e tejadilho pela parte interna, coberto de veludo preto com uma cruz de ouro, almofada coberta de pano preto guarnecida com franjas e galão de ouro, puxado a quatro cavalos correspondentemente ajaezados, com o cocheiro vestido de pano preto, chapéu redondo de pelo, 80$000”. N. 2 “Carro de colunas pintado de preto com guarnições, filetes dourados e sanefas pretas, puxado a quatro bestas correspondentemente ajaezadas, com cocheiro fardado de preto, 40$000”. N. 3 “O mesmo carro n. 2, sem sanefas e puxado a duas bestas, 20$000”. N. 4 “Carro de duas rodas com quatro colunas pintado de preto, com filetes amarelos e puxado a duas bestas, 10$000”

TABELA N.6 Veículos para a condução de cadáveres de donzelas

115

São os mesmos carros, nas mesmas ordens, condições e preços, diferenciando-se as sanefas, coberta de almofadas, etc, que em vez de preto será de cor roxa”. TABELA N 7 Veículos para a condução de cadáveres de anjos N. 1 “Carruagem de vidro com almofada coberta de pano roxo com franja e galão de ouro, puxada a quatro cavalos, correspondentemente ajaezados, 80$000” N. 2 “Coupé com sanefa de seda, almofada coberta de pano roxo, puxado a quatro bestas, 140$000”. N. 3 235 “Meia ca1eça decorada com colcha de damasco encarnado, puxado a duas bestas, l0$000”.

TABELA N.8 Aluguel de caixões e condução de cadáveres na carrocinha “Caixão de madeira pintado de preto e condução na carrocinha de pessoa livre indigente, grátis. Sendo para pessoa não indigente ou escrava,5$000”. Veículos e vestimentas não incluídos nas tabelas “Carro para o pároco e sacristão, 10$000” N.B. É licito aos encarregados ou parentes do finado, fornecerem, se quiser, este veículo, ou por possuírem ou tomarem por si na praça”.236

O

fornecimento de vestimentas e mortalhas era livre, por isso

não havia uma remuneração pré -estabelecida para esse serviço. Contudo, se Caleça Caleche = Carruagem de quatro rodas e dois assentos, puxada por uma parelha de cavalos. 236 Lei n.69 de 2 de abril de 1876, publicada na Collecção de Leis e Posturas Municipais promulgadas pela Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo no anno de 1876. 235

116

alguém quisesse que a empresa vestisse o cadáver, deveria pagar 14$00 se ele estivesse em bom estado e l0$000 se estivesse “em estado de putrefação,

dissolução”, ou se a morte fosse “proveniente de moléstia epidêmica ou contagiosa”237. A luta pela secularização dos cemitérios no Brasil veio de encontro

a um processo político que estava se desenvolvendo em diversos países da Europa e que tinha por objetivo diminuir os poderes da Igreja frente ao Estado. Na França, Inglaterra e Bélgica, por exemplo, o “liberalismo” político superou os poderes da Igreja ultramontana. No Brasil, esta tomada de consciência e de soberania política do

Estado sobre o pontificado foi muito mais lenta. A força exercida pela Igreja frente à . população, já demonstrada, em parte, neste trabalho, era muito grande para poder ser destruída em curto espaço de tempo.

A fundação da Academia de Direito de São Paulo, em 1828, foi um

marco importante para a penetração dos ideais “liberais” no país e em especial em São Paulo. A luta contra os poderes ilimitados da Igreja tornouse cada vez mais intensa. Procurava-se fazer valer a Constituição de 1824,

que era livremente burlada pelo pontificado. A supremacia da Igreja no Brasil era evidente e os políticos atacavam por todos os meios possíveis o ultramontanismo católico. A secu1arização dos cemitérios púb1icos, o

estabelecimento do casamento civil, a instituciona1ização do registro civil, eram alguns dos itens que formavam a plataforma dos políticos “liberais" do século XIX.

Depois da construção dos cemitérios públicos a Igreja perdeu uma

série de privilégios. As “esmolas” recebidas pelos sepultamentos no interior

dos templos e todas as multas aplicadas aos infratores das leis sobre 237

Idem.Ibidem.

117

sepultamentos e sepulturas, deixaram de ir para os cofres das Igrejas. No entanto, sua 1igação com o Estado, desde a Constituição de l824, dava-lhe poder para continuar a deliberar sobre os sepultamentos em geral, permanecendo um entrave na luta pela “libertação dos cadáveres” iniciada pelos políticos liberais.

Um dos mais importantes contestadores dos poderes que a Igreja usufruiu no Brasil, no século XIX, foi o republicano Saldanha Marinho, líder

da campanha contra o chamado “ultramontanismo”. A 19 de fevereiro de 1879, apresentou à

Câmara um projeto sobre a secu1arização dos

cemitérios: Art. 1o - A polícia, direção e administração dos cemitérios é de exclusiva competência das Câmaras Municipais, sem intervenção ou dependência de qualquer autoridade eclesiástica. Art. 2o No exercício dessa atribuição, as Câmaras Municipais não poderão direta ou indiretamente estabelecer distinção em favor ou detrimento de nenhuma seita, crença, Igreja ou profissão de fé religiosa. Art. 3o — Revogam-se as disposições em contrário.238 Em síntese, esse projeto pretendia, conforme replicou seu autor libertar o cadáver da ação do padre romano, [pois] o poder ec1esiástico, pretende, com instancia, persuadir que sua ação se limita ao espiritual. Entretanto, no Brasil, como em outros países católicos, os padres se apossam do cadáver, do qual fazem matéria prima para sua obra espiritual... Do arbítrio do bispo ou do vigário estão dependentes os enterramentos. 239

Annaes da Câmara dos Senhores Deputados. fev a maio de 1879. Sessão de 19 de fevereiro de 1879. Tomo III, p. 20 e 22. 239 Idem Ibidem. 238

118

Procurava-se fazer a Igreja conter seus poderes ao nível puramente

espiritual. A Constituição deveria ter mais força do que o clero, o que não

ocorria. A Igreja era soberana em nosso país, não havia limites para seus poderes. O Estado estava totalmente submisso a ela240. Saldanha Marinho, assim como a maioria dos políticos “liberais”,

dizia-se maçom e, como tal, se defendia corajosamente dos freqüentes ataques que a Igreja Romana lhe conferia, já que não se submetia a nenhuma autoridade religiosa. Respondendo acerca de sua excomunhão, declarou:

[...] sou religioso comigo, em minha consciência. Adoro a Deus como me parece, não faço ostentação da minha religiosidade perante quem quer que seja, e menos obedeço cegamente a qualquer autoridade em mataria religiosa. Entendo que [...]colocando as coisas como se acham pelo mais infrene abuso papal, não somos nós os excomungados, e sim é a improvisada pela Igreja da infalibilidade e do Syllabus a excomungada pela civilização moderna e por tantos quantos não admitem mistérios, repelem milagres e não acreditam em águas de Lourdes e outros quejantes embustes.241 A negativa da Igreja em permitir que maçons fossem enterrados nos

cemitérios públicos aumentou, portanto, a ira e o descontentamento dos liberais, conforme percebemos nesse dialogo ocorrido durante um discurso de Saldanha Marinho: O Sr. Saldanha Marinho: - Na província do Rio de Janeiro, tem sido proibida a sepultura nos cemitérios públicos, sob pretexto de que os corpos dos maçons não podem ali ser recebidos. O Sr. Correa Rabelo: - Na Diamantina têm-se dado muitos destes fatos. “A questão religiosa no Brasil”. Discurso proferido na Câmara dos Senhores Deputados em 16 de julho de 1880 pelo deputado Joaquim Saldanha Marinho, Annaes da Câmara dos Senhores Deputados. p. 10. 241 Idem.p.27 240

119

O Sr. Saldanha Marinho: - Acabo de ouvir de uma autoridade insuspeita, que na Diamantina dão-se destes fatos; este estado de coisas portanto não pode continuar242 Por todo o ano de 1879 prosseguiram as discussões a respeito do projeto de Saldanha Marinho. A 20 de julho de 1880, Rodolfo Dantas apresentou o seguinte substitutivo: Art. 1o - As Câmaras Municipais, no exercício das atribuições que lhe são conferidas pela lei de 19 de outubro de 1828, não permitirão o estabelecimento de cemitérios dentro das cidades, Vilas ou povoações. As mesmas Câmaras providenciarão para que sejam removidos, para fora dos povoados, os cemitérios aí existentes. Art. 2o - Nos cemitérios públicos, ninguém poderá deixar de ser enterrado por motivo de crença que tenha professado, cumprindo as Câmaras Municipais, em relação aos cemitérios por elas construídos e àqueles que daqui por diante criarem, providenciar para a perfeita efetividade desta disposição. Rodolpho Dantas-Affonso Penna.243 ANNAES DO PARLAMENTO BRASILEIRO. Câmara dos Senhores Deputados. Tomo III. Fev./maio, 1879, v. 3. 243 BARBOSA, Rui. Obras Completas. Discursos Parlamentares da Câmara dos Deputados, 1880, Tomo 1, v, VII, p. 94-5. 242

120

Um dos mais fervorosos seguidores de Saldanha Marinho, Rui Barbosa, criticou veementemente este substitutivo, alegando que nada de novo trazia, pois não era nas leis que estavam os poderes da Igreja com relação aos cemitérios, mas sim num plano muito superior, ou seja, na sua

ligação com o Estado. “Não conheço lei nossa, que imponha aos cemitérios

públicos o exclusivismo religioso. O arbítrio da autoridade civil, portanto, em eliminá-lo ou mantê-lo, figura-se-me superior a interpretações que o neguem” Declarou ainda que tanto o substitutivo como o projeto de Saldanha Marinho concordavam num ponto fundamental: “que cada município tenha seu

cemitério secular”. Mas, apesar disso, o projeto ainda era vantajoso, na

medida em que proibia a inumação em cemitérios particulares, evitando assim a concorrência aos cemitérios públicos244.

Os cemitérios administrados pelas diversas entidades religiosas

constituíam uma grave concorrência aos cemitérios públicos administrados pelas autoridades civis, pois a Igreja atribuía valores maiores àqueles do que a esses. Além disso, a existência de tais cemitérios era uma maneira da Igreja continuar a receber grandes esmolas por realizar enterros. Criticando essa situação, Rui Barbosa declarou: [...]enquanto houver cemitérios exclusivistas, o cemitério municipal será uma instituição inútil, uma agravação da morte, um lugar de desprezo, o exílio das cinzas caras ao coração dos vivos: cada um dentre seus raros sepulcros constituirá objeto, não de veneração,oblações e respeito, mas de compaixão, curiosidade, ou opróbrio; será uma lição, muda como a morte, mas terrível como ela, da terrível influência do clero, impondo aos vivos a submissão a essa tirania que nos pune das rebeldias da consciência, estendendo até além túmu1o a vindita religiosa”. Disse ainda que: 244

Idem. p.101-9 e segs.

121

a intolerância é essa, a superna intolerância, onde sente-se palpitar o espírito dessa dominação clerical, que ainda não se arrepende, até hoje, de ter desenterrado cadáveres, arrastando-os do silêncio do seu aniquilamento aos tribunais teológicos.. 245.

Como podemos perceber, a luta pelo fim das sepulturas de dentro das igrejas não terminou após a construção de cemitérios públicos, pois estes também estavam sob o controle eclesiástico. A secularização dos cemitérios seria uma espécie de “hábeas corpus” aos defuntos. Procurava-se extinguir as distinções entre seitas, crenças e raças. Nos cemitérios seculares todos poderiam ser sepultados com os mesmos direitos. Este objetivo só foi alcançado com o advento da República e com a

Constituição de 1891, quando se deu definitivamente a separação entre Estado e Igreja. 245

Idem.p.115.

122

2.3. A Visão da Morte na Literatura.

Paralelamente ao dinamismo político promovido com a criação da Academia de Direito, desenvolveu-se uma nova maneira de se encarar a vida e a morte. A necessidade de viver intensamente, exaltar todos os sentimentos, levava os acadêmicos Tanto a se dedicarem ferrenhamente a seus ideais políticos como aos morais, religiosos e econômicos. Enquadravam-se no movimento romântico que se desenvolvia na Europa já em finais do século XVIII e chegava ao Brasil em princípios do XIX. Representavam um misto

de realidade e fantasia. Eram eternos insatisfeitos e críticos de todos os padrões pré-estabelecidos. Agora o coração era a medida para todas as

coisas. Sua vida pessoal, as misérias e grandezas de seus dramas eram relatados em suas obras que, por isso, podem ser importantes documentos para a história das mentalidades246. Alguns desses românticos da academia seguiram apaixonadamente os ideais preconizados por Byron. Deste modo, deixavam-se levar pelo extremismo e “Exacerbação de sua sentimentalidade e mesmo as fantasias da imaginação mórbida”. As obras de Álvares de Azevedo, 1831-1852 são exemplos típicos desse tipo de atitude. Noite na Taverna revela todo o narcisismo que cercava a vida do autor. Como um reflexo típico do

byronismo, Álvares de Azevedo demonstra nessa obra como todas as “suas paixões amorosas são macabras e demoníacas, ou mórbidas e incestuosas, de qualquer maneira cínicas”247.

Conferir CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira. - I. Das Origens do Romantismo. São Paulo:DIFEL, 1968. p. 245 e seguintes. 247 Idem. P251. 246

123

A palidez de uma defunta causa-lhe paixão e delírio, sendo capaz de amar perdidamente uma mulher que pensou estar morta: Era uma defunta: ... Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo... Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela...248 Apesar daquela mulher ter, pouco depois, despertado de uma catalepsia, chegou a falecer horas depois, após alguns momentos de amor. O amante, como que não querendo separar-se dela, enterrou-a sob o piso de seu quarto, logo abaixo de sua cama. Antes, porém, teve o cuidado de chamar um estatuário para fazer uma estatua da amante morta. Guardou também a grinalda de flores, parte da mortalha, como recordação249.

248

AZEVEDO, Álvares de. Noite na Taverna. Rio de Janeiro: Univ. Popular, 1963. p. 51-

2. 249

Idem,ibdem.

124

A ficção de Álvares de Azevedo atesta o já observado por Philippe Ariés, tornou-se comum as pessoas apegarem-se aos restos mortais de seus entes queridos . Conservar o túmulo bem perto de casa ou guardar algum objeto que pertencesse ao cadáver amado era uma maneira de tê-lo pela

eternidade250. Reunir num só ponto do cemitério os restos mortais dos familiares também passou a ser importante251. Um dos personagens de

Álvares de Azevedo em Noite na Taverna revelou só ter duas únicas boas lembranças de sua vida: uma rosa murcha e a fita que prendia os cabelos de sua amada falecida, e a caveira de um poeta252 .Essa re1ação entre morte e

amor, freqüentemente registrada nas obras de Álvares de Azevedo, foi também constatada por Jamil Almansur Haddad em O Romantismo Brasileiro e as Sociedades Secretas do Tempo, quando descreve o famoso

caso da “Rainha dos Mortos” ocorrido em meados do século XIX, numa noite, quando um grupo de estudantes declamava Byron em cima dos túmulos do cemitério: Dirigiram-se a uma loja maçônica onde apanharam vestimentas e mantos de tétrica aparência e, em seguida, a casa de uma mundana débil mental. Pegaram-na, envolveram-na em um lençol, colocaramna em um esquife e rumaram para o cemitério. No caminho, um jovem que estudara em Heidelberg, declamava Goethe no original. No cemitério outro foi escolhido para amante da rainha. Arrancou a tampa do caixão, agarrou a moça e viu que ela tinha morrido de pavor. “Osculei um cadáver”! Gritou, entre horrorizado e triunfante253. ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.p.46-7 251 Ver. Atas. 1864. v.L. p.129. 252 AZEVEDO, Álvares de.op.cit. p.51-2. 253 Apud MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo (de comunidade à Metrópole) São Paulo: DIFEL, 1970. p.l25 250

125

Segundo Ariés, “do século XVI ao XVIII, cenas ou motivos

inumeráveis, na arte e na literatura, associam a morte ao amor”. A morte era,

por vezes, um objeto de desejos sexuais. A época caracterizou-se por uma grande quantidade de “temas erótico-macabros ou temas simplesmente

mórbidos, que testemunham uma extrema complacência para com os espetáculos da morte, do sofrimento, dos suplícios”254. É exatamente esse tipo de conduta que encontramos nas obras de Álvares de Azevedo e no

episódio narrado por Jamil A. Haddad, o que significa um reflexo, na literatura brasileira de temas macabros, reflexo este, tardio se comparado ao que se verificou nos países ocidentais estudados por Ariés. Ao mesmo tempo, uma outra maneira de encarar a morte, também registrada por Ariés, é encontrada nos romances e poesias brasileiros: o sentimento da morte como sendo uma ruptura entre a vida presente e a que viria depois da morte. A morte em si não é mais “desejável”, mas sim desejada. Morrer significava terminar os tormentos e problemas de uma existência conturbada e dar inicio a uma vida nova. A morte passa a ser bela.

A beleza da morte e sua “doçura narcótica” fora evidenciada pelos iluministas através da “Encyclopédie” e essas características foram bravamente

defendidas pelo romantismo. Pretendia-se criticar a Igreja e clero pela imagem terrível e assustadora que imprimiam da morte. Porém, o que era para ser crítica passou a ser uma volta cada vez mais ardorosa à religiosidade255.

Junqueira Freire (1832-1855)

demonstrou

em poesia, esse

sentimento controvertido a respeito da morte. Num momento de “desespero ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Op.cit. p.41-2. A idéia de ruptura aparece nas obras de Philippe Aries. História da Morte no Ocidente, p.42 e também O Homem Diante da Morte,v.II., p. 446 e segs. 254 255

126

interior” escreveu um poema dedicado à morte, onde revela seu profundo apreço por ela, a ponto de chamá-la a de “amiga”.

MORTE (Hora de delírio) Pensamento gentil de paz eterna Amiga morte, vem. Tu és o termo De dois fantasmas que a existência formam, -Dessa alma vã e desse corpo enfermo. Pensamento gentil de paz eterna Amiga morte, vem. Tu és o nada, Tu és a ausência das moções da vida, Do prazer que nos custa a dor passada. [...] Amiga morte, vem. Tu és apenas A visão mais real das que nos cercam, Que nos extingues as visões terrenas. Nunca temi tua destra, Não sou o vulgo profano: Nunca pensei que teu braço Brande um punhal sobr’humano. Nunca julguei-te em meus sonhos Um esqueleto mirrado: Nunca dei-te, pra voares Terrível ginete alado Nunca te dei uma foice Dura, fina e recurvada; Nunca chamei-te inimiga, ímpia, cruel, ou culpada. Amei-te sempre: - e pertencer-te quero Para sempre também, amiga morte. Quero o chão, quero a terra, - esse elemento Que não se sente dos vaivens da sorte. Para tua hecatombe de um segundo

127

Não falta alguém? - Preenche-a comigo Leva—me a regido da paz horrenda, Leva-me ao nada, leva-me contido. Miríadas de vermes lá me esperam Para nascer de teu fermento ainda. Para nutrir-se de meus suco impuro, Talvez me espera uma plantinha linda. Vermes que sobre podridões refervem, Plantinha que a raiz meus ossos ferra, Em vós minha alma e sentimento e corpo Irão em partes agregar-se a terra. E depois nada mais. Já não há tempo, Nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto. Agora o nada,-esse real tão belo Só nas terrenas vísceras deposto. Facho que a morte ao lumiar apaga, Foi essa alma fatal que nos aterra. Consciência, razão, que nos afligem, Deram em nada ao banquear em terra. Única idéia mais real dos homens, Morte feliz,- eu quero-te comigo. Leva-me a região da paz horrenda, Leva-me ao nada, leva-me contigo. Também desta vida à campa Não transporto uma saudade. Cerro meus olhos contente Sem um ai de ansiedade. E como autômato infante Que inda não sabe sentir, Ao pé da morte querida Hei de insensato sorrir. Por minha face sinistra Meu pranto não correra. Em meus olhos moribundos Terrores ninguém lerá.

128

Não achei na terra amores Que merecessem os meus. Não tenho um ente no mundo A quem diga o meu - Adeus. Não posso da vida à campa Transportar uma saudade. Cerro meus olhos contente Sem um ai de ansiedade. Por isso, ò morte, eu amo-te, e não temo: Por isso, ó morte, eu quero-te comigo. Leva-me a região da paz horrenda, Leva-me ao nada, leva-me contigo.256

Para os Românticos a morte era o final dos problemas e das

tristezas, era a salvação e não a perdição. Assim se expressou Fagundes Varela (l84l-l875) a respeito: Livre dos vícios, livre dos pecados, Sobe à eterna morada, revestido de formas luminosas. Mas a essência imortal, aquece-a oh! Ágnis E leva-a docemente à clara estância onde os justos habitam. Para que aí receba um novo corpo E banhada em teu hálito celeste outra vida comece... Desce à terra materna, tão fecunda, Tão meiga para os bons que a fronte encostam em seu úmido seio. Ela não te acolhera terna e amorosa Junqueira FREIRE. Morte. IN: CÂNDIDO, A.e CASTELLO, A. Presença da Literatura Brasileira,op.cit. v. II, p. 40-3. 256

129

Como em seus braços uma mãe querida Acolhe o filho amado.257

É comum encontrarmos em diversas poesias românticas

sentimentos de carência como esses acima descritos. Gonçalves Dias (l823l864) também invejou em “Se se morre de amor” aqueles que encontram o fim de todos os seus males na morte: “Esse, que à dor tamanha não sucumbe, Inveja a quem na sepultura encontra Dos males seus o desejado termo!”258

A morte também podia ser a salvação daqueles que tivessem seus

sentimentos muito feridos. Desejar morrer e mesmo alcançar a morte por

causa de um amor frustrado, tornou-se lugar comum entre os românticos oitocentistas. Em Noite na Taverna, por exemplo, Gennaro conta que Laura apaixonara-se por ele e engravidara. Contudo, como ele negara casar-se com ela, logo a amante não correspondida começou a morrer a cada dia: Seu sorriso era frio: cada dia tornava-se mais pálida, mas a gravidez não crescia, uma noite.., foi horrível.., vieram chamar-me: Laura morria. Na febre murmurava meu nome... Apertou minha mão nas suas mãos frias e murmurou em meus ouvidos: -Gennaro, eu te perdôo, eu te perdôo tudo... Eras um infame... Morrerei... Fui louca... Morrerei por tua causa.., teu filho.., o meu.., vou vê-lo ainda.., mas no céu... meu filho que matei.., antes de nascer....259 VARELA, Fagundes. Oração Fúnebre. IN CÂNDIDO, A.e CASTELLO, A. Presença da Literatura Brasileira,op.cit. v. II, p. 70-1 258 “Se se morre de amor” IN. DIAS, Gonçalves. Poesia. 5 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1969. 259 AZEVEDO, Álvares de. Noite na Taverna. p.66. 257

130

Não só na ficção se morria de amor: um livro de memórias da época relata que uma outra mulher, também chamada Laura, levou um estudante da

Faculdade de Direito ao suicídio: ela trocara o seu amor pelo do outro, mais rico do que ele. O então aluno, Francisco Ferreira de Rezende, registrou a morte e sepultamento deste moço, Feliciano, que se envenenou com arsênico,

chocando toda a cidade de São Paulo. “A mocidade de Feliciario, o ano em que se achava (5o ano), as suas qualidades pessoais, o repentino do acontecimento, e todas estas cousas combinadas com o fato tão excepcional da morte de um estudante, explicam da maneira a mais perfeita o grande abalo que um tal fato produziu”260 Enquadra-se nesse assunto, uma realidade social que começava a se

modificar a partir de 1850, data aproximada deste suicídio. Segundo o autor,

foi a partir dessa época que a morte de jovens estudantes tornou-se cada vez mais numerosa261, fato que, em parte, pode ser explicado pela própria exacerbação do romantismo desenvolvido na Academia. Um romântico,

geralmente, não dava muito valor à própria vida, deixando que qualquer doença o consumisse ou mesmo se matando por causa de um grande amor.

Kidder e Fletcher haviam observado, na primeira metade do século, a raridade de suicídios no Brasil. Atribuíram este fato aos rígidos preceitos da Igreja, que negava sepultura eclesiástica aqueles que se matassem. Essa influência católica, “envolvendo o suicídio numa justa atmosfera de horror e

abominação”, segundo os autores, deveria recair também “sobre outros atos duma comunidade tão pouco fiscalizada”262.

REZENDE, Francisco de P.F.de. Minhas Recordações. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. p. 254. 261 Idem. P.253. 262 KIDDER, D.P., FLETCHER, J.C. O Brasil e os Brasileiros. São Paulo: Cia ed.Nacional, 1941. p. 95. 260

131

Possivelmente, essa modificação nas atitudes perante o suicídio, além

da influência do romantismo, como já salientamos, pode ter sido motivada também, pelo próprio fato de ter a Igreja, em parte, perdido o controle sobre

os sepultamentos na segunda metade do sécu1o XIX, ou mesmo pela negligência que os estudantes dedicavam àquela instituição, procurando contemporanizar cada vez mais seus antigos valores. Embora essas idéias com relação à morte, tentassem permanecer no

seio da sociedade paulista, elas não frutificaram realmente. As manifestações macabras dos estudantes de Direito de formação byroniana tiveram o seu tempo, mas não conseguiram atingir grandes proporções através do século. Elas foram inseridas num contexto religioso que predominou no sécu1o XIX,

não só paulista como também de todo o Ocidente Cristão, como salientou

Ariés. As “fantasias erótico-macabras” passaram a ser expressas por um “fascínio mórbido da morte” sob uma forma religiosa”263 Foram nas

poesias

de

Castro

Alves

(1847-1871)

que

encontramos muitos exemplos dessa tendência à religiosidade. Além disso, elas revelam um lado que pouco aparece na documentação da época e que, por isso, tornou-se importante exemplo para este trabalho: a morte do negro. Apesar de Castro Alves pertencer à sociedade baiana e não paulistana, foco

de nosso interesse, suas obras mostram com esplendor tanto o apego à religião como o ideal de liberdade que a morte inspirava.

Para os negros, a morte era sinônimo de liberdade total,ou seja,

fim não só das amarguras da vida, como diziam os “românticos-brancos”, mas, principalmente, o fim do cativeiro. Em “Mater Dolorosa” (1865), o

grande poeta descreve o sofrimento pelo qual passa a mãe escrava que

132

prefere matar seu filho a vê-lo escravo como ela. Sofreria com sua morte, mas, ao mesmo tempo, ficaria feliz tendo a certeza que ele estaria livre e ao lado de Deus.

[...] Não me maldigas... Num amor sem termo Bebi a força de matar-te.., a mim... Viva eu cativa a soluçar num ermo... Filho, sê livre.., sou feliz assim... Perdão, meu filho.., se matar-te é crime... Deus me perdoa.., me perdoa já A fera enchente quebraria o vime... Velem-te os anjos e te cuidem lá. 264

A mesma atitude de mãe matando o filho para que pelo menos ele

alcançasse a liberdade, aparece em “A mãe do cativo” (1868).

Ó mãe do cativo que fias a noite A rede que ataste nos galhos da selva! Melhor tu farias se à pobre criança Cavasses a cova por baixo da relva. Ó mãe do cativo! que fias à noite As roupas do filho na choça de palha! Melhor tu farias se ao pobre pequeno Tecesses o pano da branca mortalha265 ARIÉS, P. O Homem Diante da Morte v.II, p. 448 e segs e História da Morte no Ocidente, p.43. 264 Castro Alves, Apud. AMORA, Antonio Soares. Grandes Poetas Românticos Brasileiros. São Paulo: s.ed. 1952. v. 1, p. 167-8. 265 Idem.p.189-91 263

133

“A cruz na estrada”, outra poesia de Castro Alves, datada de 1865, revela que apenas em sua sepultura, abandonada num campo qualquer266, o negro tem liberdade. Só ali, de encontro com a natureza e com Deus, ele é feliz e ninguém tem o direito de o molestar mais:

Caminheiro que passas pela estrada, Seguindo pelo rumo do sertão, Quando vires a cruz abandonada, Deixa-a em paz dormir na solidão. Que vale o ramo do alecrim cheiroso Que lhe atiras nos braços ao passar? Vai espantar o bando buliçoso Das borboletas, que lá vão pousar. É de um escravo humilde sepultura, Foi-lhe a vida a velar de insônia atroz. Deixa-o dormir no leito de verdura. Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs. Quando, à noite, o silêncio habita as matas, A sepultura fala a sós com Deus. Prende-se a voz na boca das cascatas, E as asas de ouro aos astros lá nos céus. Caminheiro do escravo desgraçado O sono agora mesmo começou. Não lhe toques no leito de noivado, A pouco a liberdade o desposou 267

O próprio Álvares de Azevedo, nos últimos anos de sua vida, talvez

sentindo a doença consumir-lhe, transformou suas fantasias erótico-macabras 266

ver, sobre esse assunto, p. Dessa dissertação. Castro Alves, Apud. AMORA, Antonio Soares. Grandes Poetas Românticos Brasileiros. Op. Cit. p. 176. 267

134

em reflexões sobre sua própria morte. Pede perdão a Deus por sua vida pecadora, dizendo que na morte encontrará descanso. Ao pé das aras no c1arão dos círios Eu te devera consagrar meus dias; Perdão meu Deus! perdão. Se neguei meu Senhor nos meus delírios E um canto de enganosas melodias Levou meu coração! De meus dias a lâmpada se apaga: Roeram meu viver mortais venenos: Curvo-me ao vento forte. Teu fúnebre clarão que a noite alaga, Como a estrela oriental me guie ao menos Te o vale da morte! Morrer! morrer! É a voz das sepulturas! Como a lua nas salas festivais A morte em nós se estampa! E os pobres sonhadores de venturas Roxeiam amanhã nos funerais E vão rolar na campa! Que vale a Glória, a saudação que enleva Dos hinos triunfais na ardente nota, E as turbas devaneia? Tudo isso é vão, e cala-se na treva Tudo é vão, como em lábios de idiota Cantiga sem idéia. •Que importa? quando a morte se descarna, A esperança do céu flutua e brilha Do tumulo no leito: O sepulcro e o ventre onde se encarna Um verbo divinal que Deus perfilha E abisma no seu peito! Não chorem que essa lágrima profunda Ao cadáver sem luz não dá conforto... Não o acorda um momento! Quando a treva redonda o peito inunda,

135

Derrama-se nas pálpebras do morto Luar de esquecimento!268 Nesse momento, o poeta apresenta um atestado da educação religiosa recebida no seio da família declarando acreditar no grande julgamento final, quando todos os mortos comparecerão frente a Deus para serem julgados, conforme diziam os testamentos analisados: Quando o trovão romper as sepulturas, Os crânios confundidos acordando No lodo tremerão. No lodo pelas tênebras impuras Os ossos estalados tiritando Dos vales surgirão. Como rugindo a chama encarcerada Dos negros flancos do vulcão rebenta Golfejando nos céus. Entre nuvem ardente e trovejada. Minh’alma se erguerá, fria, sangrenta, Ao trono de meu Deus... Perdoa, meu Senhor! O errante crente Nos desesperos em que a mente abrasas Não a arrojes p’lo crime! Se eu fui um anjo que descreu demente E no oceano do mal rompeu as asas, Perdão arrependi-me!269

A beleza da morte tornou-se cristã na medida em que o defunto atingiria uma vida muito melhor junto a Deus. A morte seria boa para os que morressem, mas terrível para os que ficassem, pois a separação passaria a ser intolerável. AZEVEDO, Álvares. Apud. AMORA, Antonio Soares. Grandes Poetas Românticos Brasileiros. Op.cit.v. II p. 206. 269 Id. Ibid. 268

136

O grande abalo causado por um falecimento só poderia ser

diminuído pela apego à re1igião. A extrema-unção, a presença do padre ao

lado do moribundo e as numerosas rezas pela salvação da alma, adquirem uma nova força com o romantismo. O apego à família e aos entes queridos, já assinalados, também produto da época romântica, garantia os sufrágios que

antes eram pedidos através dos testamentos. A falta destes sufrágios

implicaria numa morte intranqüila e temerosa. Em 1856, um artigo de jornal criticou severamente o bispo de São Paulo D. Antonio Joaquim de Mello que,

por estar brigado com o cônego Manoel Teixeira d’Almeida, não foi dar-lhe a

extrema-unção nem compareceu a seus funerais. Este artigo reproduz as ultimas palavras de sofrimento do cônego, devida à falta de atenção que o bispo lhe prestou: -Serei tão mau filho - meus pecados serão tão monstruosos que me tornem indigno de sua benção na hora da agonia? Onde seu báculo para beijar com minhas lágrimas de arrependimento, onde sua mão para estreitá-la à meu peito - ande ele para lhe pedir perdão de meus agravos? —Oh! porque meu pastar não veio consolar minha alma tímida neste instante solene - e fortalecer meu espírito que combate com os espectros da dúvida —onde o pão da piedade e da igreja para nutrir e avigorar minhas crenças e avivar a fé do humilde filho de Deus?270 As orações e a fé fariam os vivos conformarem-se com a morte, perceberem que existe outra vida melhor do que essa.

Avivemos a nossa luz, a fé, e veremos o nosso amigo na bem aventurança gozando o prêmio prometido ao justo, manso e pio. 270

Jornal A União dos círculos. São Paulo, 17 jul. l856, n.52, p.2

137

Seus consternados irmãos e sobrinhas refletiam para o seu consolo que a morte não leva tudo, que ficam as lembranças das boas afeições e das virtudes e que no seio da religião pela súp1ica e pelas esmolas, esta linguagem do céu podem os vivos comunicar-se permanentemente com os mortos e saciar suas saudades... Felizes os que morrem no Senhor!271

Os necrológios, coma o citado acima, estão repletos de declarações

de religiosidade. O consolo dos vivos só seria encontrado na fé. Um dos discursos apresentadas nas exéquias do Príncipe D. Afonso em l847 revelanos, ao mesmo tempo, a importância do choro e comoção numa hora tão triste e, por outro lado, a resignação pela religião.

Em tanta calamidade, Senhores, eu vi o dedo de Deus, conheci o efeito da cólera celeste, não pude refrear a pranto: e qual seria o brasileiro que pudesse tanto? Maldito seja o homem que em transe tão apertado se envergonha de chorar; que em deixar correr as lágrimas não se avilta ninguém! Se o nascimento dos príncipes é um acontecimento fausto...; não pode deixar de ter-se por sinistro acontecimento, e por castigo de Deus a morte dos príncipes; seja qual for a idade em que ela sobrevenha; embora nossa religião santa nos ofereça a consolação de que os anos da inocência os colocam desde logo na mansão dos justos.272 Além do povo inteiro ter sido castigado, explicava o autor, também o pai sofria, só achando “consolação na resignação evangélica”273. RIBEIRO, J.Jacintho.Chronologia Paulista. São Paulo: s.ed., 1899. v.II, II Parte. RIBEIRO, J.Jacintho.Chronologia Paulista. São Paulo: s.ed., 1899. v.II, II Parte. 273 Idem.Ibidem. 271 272

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Segundo Ariés, a grande “expressão da dor dos sobreviventes é

devida a uma intolerância com a separação”274. O romantismo ensinou as

pessoas a chorarem, suplicarem e se desesperarem de emoção frente a um cadáver. É a época dos grandes funerais, dos desmaios e lutos prolongados.

Tornou-se bonito e elegante ter um grande funeral, com muita gente chorando e demonstrando dor e pesar. Quanto maiores fossem essas demonstrações, maior teria sido a popularidade e importância do falecido. O luxo das salas mortuárias de pessoas de destaque ou que pretendiam tê-lo mesmo depois de martas, tornou-se, no decorrer do século XIX, cada vez mais notória. A “abertura” para a vaidade proporcionada a

partir da secularização da morte deixou os paulistanos com muitas opções para exibir sua riqueza, como podemos notar pela descrição da decoração da sala mortuária para abrigar o corpo do falecido Conselheiro José Bonifácio, o moço, no Teatro São José a 10 de dezembro de 1886:

No saguão da entrada achavam-se três grandes sanefões negros, terminados em ciprestes presos por cordões de bordas brancas e roxas, encimados o do meio pelo busto de José Bonifácio e os laterais pelo monograma J.B. em prata e fundo de veludo. A entrada para as cadeiras, platéia e poltronas estava ornada de sanefas, sendo a entrada do meio encimada por um escudo de veludo onde em letras de prata se lia “Saudade imensa, imensa solidão”. Os camarotes e galerias eram todos revestidos de negro com sanefas da mesma cor, presas por cordões de bordas brancas e roxas, tendo os de primeira ordem o monograma J.B. em ouro, dentro de uma coroa cívica; aos lados da coroa via-se um escudo de prata onde em letras negras liam-se as nomes de abolicionistas e homens de letras de todos os matizes políticos; os camarotes da segunda ordem tinham três grandes folhas de ouro, pendentes de laços verdes, tendo a folha do centro o monograma J.B. em prata e os dos lados nomes de abolicionistas, assim coma os de 274

ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Op.cit., p.43.

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primeira ordem, os da terceira ordem coroas de rosas brancas e roxas, tendo no centro o monograma J.B. em oura, e nas colunas meias luas de prata, ocupadas por nomes de abolicionistas, coma nas outras ordens, escritas em cor azul. A galeria continha no centro um grande livro de prata, representando o livro de honra da Câmara Municipal de São Paulo, tendo em baixo o nome do vereador Casta Moreira, iniciador deste livro. O camarote central da terceira ordem tinha no centro a coroa imperial. O camarote do presidente apresentava na frente um grande escudo de oura onde se lia: - Gabinete 6 de junho de 1884. No arco do proscenio havia uma grande sanefa negra apanhada por cordões e borlas brancas e roxas, havendo no centro da sanefa o monograma J.B. em prata sabre escudo de veludo e aos lados as datas memoráveis da vida de J. Bonifácio também em letra de prata sobre fundo negro. A sena compunha-se de uma grande apoteose dividida nos quatro planos seguintes: primeiro plano - um grande catafalco com o corpo do falecida deitado e coberto com a bandeira nacional, tendo ao lado da cabeça a estátua da saudade e aos pés a gênio do Brasil. Ao lado esquerda do catafalco, embaixo, via-se representada a Musa da poesia tendo gravadas na lira as palavras, Saudade imensa; no centro a Musa da Historia, burilando a nome de José Bonifácio; aos pés, a estátua da Eloqüência tendo na mão um papel ande se lia: ‘O tempo dará razão a quem tiver’, ú1timas palavras do derradeiro discurso pronunciado no senado pelo imortal cidadão.275 Somente o fato de o autor dessa descrição ter se preocupado em

apenas minuciar a riqueza da decoração do teatro que abrigou os restos mortais de José Bonifácio, sem sequer dizer uma palavra sabre a importância do

“ilustre morto”, revela-nos o valor que uma “imponente morte” tinha na época. Uma pessoa que pudesse ter, após sua morte, semelhante 275

RIBEIRO, J.Jacintho.Chronologia Paulista. Op.cit.v.II, 2a Parte, p.623..

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suntuosidade, certamente era uma pessoa muito importante, querida e, sem dúvida, merecedora de muitas lágrimas. Mais um exemplo apenas bastará para justificarmos nosso ponto

de vista. Por ocasião da morte do Príncipe Imperial Dom Afonso, a Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro organizou uma sessão solene em sua homenagem, no dia 19 de julho de 1847, “a primeira de tal natureza celebrada no Império”. A sala de sessões achava-se “decentemente decorada para aquela solenidade”... “Fronteiro à porta da entrada, sob um magnífico docel de cortinas de veludo verde orladas de ouro, e regaçadas por grossos cordões do mesmo, pendia entre grinaldas de flores artificiais o retrato do Príncipe Imperial em rica moldura; tinha o docel por friso larga guarnição dourada, a qual rematava com as armas imperiais, e logo por baixo o precioso estandarte da independência, meio desenrolado como em funeral; aquele mesmo primorosamente boroado que há servido na aclamação dos imperadores do Brasil. Aos lados do docel descansavam dois grandes vasos de mármore pentelico com finíssimos lavores sabre colunas troncadas e debruçavam-se deles coroamomos e dracenas elegantes aparadores com candelabros de prata, e jarras de feitio esquisito cheias de flores naturais, e linhas de cadeiras guarneciam as paredes laterais, cujas portas estavam adornadas de reposteiros de damasco verde: e sobre a mesa da presidência notavam-se dois soberbos candelabros de ouro entre vasos de cristal com enfeites do mesma, e um tinteiro de prata com as armas da rainha D. Maria I a quem pertencera”.276

O luxo, o choro e a comoção deveriam continuar durante o enterro

também. O enterro de Feliciano, descrito por Francisca de Paula Ferreira de Rezende, é uma expressão da importância social que um funeral adquirira. “... 276

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.Tomo IV, p. 7.

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o seu enterro foi um desses acontecimentos que por muito tempo e por diferentes motivos nunca deixaram de se conservar na memória daqueles que o assistiram”. Ele não havia visto nenhum antes que tivesse sido “tão solene” e “tão triste”,”fosse por fim e por uma tal forma concorrido; pois, que ficando a casa do morto... quase que mesmo a sair no campo dos curros, o préstimo fúnebre, no entanto, pode-se dizer que ocupava toda ou quase toda aquela extensa rua”277. A literatura da época faz questão de salientar a grandeza dos funerais

“dos grandes homens”. O do brigadeiro Luis Antonio de Souza foi um desses grandes funerais: Luis Antonio Neves de Carvalho disse a seu amigo Estevão Ribeiro de Rezende que o tempo todo em que esteve em São Paulo não tinha visto “enterro mais luzido e de maior concurso”278.

Do mesmo modo, o funeral do brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar foi noticiado de maneira a demonstrar sua importância e popularidade, pois a ele “concorreu muita gente de ambos os partidos políticos, não sendo por isso possível a todos a entrada” na igreja da Ordem Terceira de São Francisco (sic)279. O período que duravam os sufrágios e o enterro, geralmente era

longo. Após 24 horas de velório, começava o ritual religioso que durava aproximadamente quatro horas e em seguida tinha início o funeral com todo o acompanhamento até o cemitério.280

REZENDE, Francisco de P.F.de. Minhas Recordações.op.cit. p.253. Carta de Luis Antonio Neves de Carvalho a Estevão Ribeiro de Rezende. 1819. São Paulo, 13 de maio. IN: Notícias do Falecimento do Brigadeiro Luis Antonio de Souza e do processo de inventário de seus bens. Setor de documentação do Museu Paulista. 1 fl. MPIAMV 795(26). 279 Jornal. A Lei. São Paulo, 29 de out. 1857, n. 15, p. 4. 277 278

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A popularidade do Cônego José Custódio de Siqueira Bueno era tão

grande que seu funeral, “feito com a maior pompa”, foi acompanhado por um grande número de “amigos consternados”, que compareceram mesmo sem “prévio convite”281. Demonstrar dor e sofrimento pela morte de alguém era

uma forma de “atenção” e “delicadeza” para com o falecido e, portanto, uma obrigação social, moral e religiosa. Quanto mais choro e tristeza, mais amado

era o defunto. Ter atitudes piedosas frente um cadáver era ter caridade cristã.

Nas cerimônias fúnebres do Cônego Siqueira Bueno viam-se “todas as fisionomias dos circunstantes contraídas de real tristeza e muitos olhos marejavam lágrimas”282 (281). Os sinos das igrejas avisavam a todos a presença da morte e o inicio

do luto. Os fiéis deveriam se lembrar de “encomendar suas almas a Deus Nosso Senhor” e de reprimirem-se e absterem-se de seus pecados. As badaladas deviam ser em número de três “breves e distintas” quando o

defunto fosse homem. Quando fossem mulheres seriam apenas duas e para os menores de quatorze anos, apenas uma. O mesmo número de badaladas seriam dadas quando o acompanhamento saísse rumo à sepultura e quando o

cadáver estivesse, sendo sepultado283. Contudo, nem todos respeitavam estas determinações da Igreja. A vaidade levava as pessoas a exagerarem a número

de badaladas por ocasião da morte de algum parente. Com gorjetas,

conseguiam que o sacristão ou sineiro das igrejas aumentassem as dobres dos sinos284 .

RIBEIRO, J.Jacintho.Chronologia Paulista op.cit.v.2, II Parte., p.237. REZENDE, Francisco de P.F.de. Minhas Recordações. Op.cit. 282 Idem, Ibidem. 283 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA. Título XLVIII 284 Registro Geral.22,90 e 25,121. 280 281

143

Quanto mais longas e constantes as badaladas, mais rico era o defunto. Era o sinal do início do luto, da tristeza, da despedida. Quando se

soube do falecimento de D.José I em 1777, as sinos tocaram “durante três dias, dia e noite, às horas que os da catedral dessem seus sinais”285.

Cyro dos Anjos, no romance A Menina do Sobrado, relatou com

exemplar beleza a importância sentimental do toque dos sinos:

eu nem mesmo distinguia, pelo significado, os diferentes toques, a não ser o dobre a finados, que esse fora impossível não o identificar, tão tristemente soava o dia inteiro, quando o defunto tinha posses e se permitia, também o luxo da encomendação e do ofício de corpo presente. Então, a sino grande enviava a toda Santana uma queixa doida, persistente, que, produzia impressão muito mais executada nos enterros pela Lira Santanaense.286

O luto era, até o início do século XIX, “extremamente rigoroso”,

havendo “casos em que não durava menos de um ano”287. Por ocasião da morte de D. José I (1714-1777), foi determinado luto geral por um ano. “No

primeiro semestre fechado, e no outro aliviado”. Além disso, por três dias todos os cidadãos deveriam “abster-se de qualquer comunicação e trato, tendo as portas e janelas rigorosamente fechadas”288. Já em 1853, quando faleceu a Rainha de Portugal, o Imperador D. Pedro II tomou luto fechado por três meses e três meses aliviado. A Câmara Municipal de São Paulo seguiu-o em tal ato.289

TAUNAY, A. de E. História da Cidade de São Paulo no Século a XVIII (1765— 1801), v. II, 1a Parte. 286 ANJOS, Cyro dos. A Menina do Sobrado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 85. 287 REZENDE, Francisco de P.F.de. Minhas Recordações. Op.cit. p.203. 288 TAUNAY, A. de E. História da Cidade de São Paulo no Século a XVIII(1765—1801), v. II, 1a Parte. 289 ATAS DA CÂMARA DA CIDADE DE S. PAULO 1853-4, v. XL, p. 125 285

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O luto também poderia ser motivo para uma pessoa se afastar

temporariamente de seu trabalho. Podemos encontrar, nas Atas da Câmara de São Paulo, pedidos de afastamento por motivo de morte na família: “por

achar-se anojado em conseqüência do falecimento de pessoa de sua família”290. Por volta de 1843, a vestimenta que se usava por ocasião de luto, conforme descreve Ferreira de Rezende, era

para os pobres de roupa tinta de barauna, campeche, ou outras espécies vegetais que possuímos e cuja cor se consolidava ou fixava por meio do tijuco; e para as ricos das diferentes fazendas de lã que então existiam. De todas essas fazendas, porém, a que parecia gozar de um certo privilégio para esse fim, era uma baeta congeste291. Contudo, o século XIX também transformou o luto em “uma coisa

inteiramente banal”, não sendo, “para as mulheres mais do que um novo pretexto para novas modas”292.

Essas mudanças de comportamento deixavam muitas pessoas

constrangidas e transtornadas. Os mais católicos demoravam a aceitar a

futilidade que tomava conta das pessoas em ocasiões que mereciam o mais severo respeito. Esperava-se dos enlutados, como já foi dito, uma aparência de tristeza e sofrimento. Por isso, D.Virgínia, personagem de Camilo Penna em A Menina Morta ficou indignada ao ver a Senhora, mãe da menina morta,

290

Idem. 1858, v.XLIV, p.92. REZENDE, Francisco de P.F.de. Minhas Recordações. Op.cit. p.203. 292 Idem, Ibidem. 291

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severamente vestida de preto, com a cabeça coberta por véu de rendas também negras a ensombrar-lhe o rosto tornando-lhe as feições quase indistintas, pois puxava com uma das mãos a sua ponta para que ele viesse até a colo onde fulgurava um pendente de ônix com monograma de brilhantes.Dir-se-ia que estava ali para receber uma visita imperial, em plena corte e não naquele recanto distante do vale da Paraíba... . Ela pensava encontrá-la enlutada, como de hábito, “... em

musselinas de interior, presa ao leito por enxaqueca, com ar de vítima altiva mas enternecedora...”293 Além da importância nos funerais e nas cerimônias pós-

sepultamento, procurava-se demonstrar poder e prestígio social através de

determinados privilégios no cemitério. A família ou a própria pessoa, antes de falecer, por meio de testamento ou mesmo verbalmente, deixava grandes donativos (as “esmolas” transformavam-se em “doações”) ao cemitério e, em troca, geralmente recebiam algum tipo de destaque por ocasião de seu enterro, ou, de maneira mais permanente, como uma placa comemorativa ou a obtenção de um ou mais terrenos no cemitério. Deste modo, quando a Marquesa de Santos deixou, em testamento, quatro contos de réis (4:000$000) à capela do cemitério da Consolação294, obteve a concessão de três sepulturas para ela e sua família, além de uma placa em agradecimento que se encontra ainda hoje naquele cemitério295 . PENNA,Camilo. A Menina Morta, p. 869-70. Testamento da Marquesa de Santos. (Manuscr.) Divisão de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior. 295 ATAS, 1859. v. XLV, p. 198. 293 294

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As grandes construções acima das tumbas também eram uma forma

de demonstrar prestígio social. Em 1863, Antonio Teixeira de Carvalho pedia permissão à Câmara para construir um “mausoléu de mármore” ao redor da

sepultura de sua esposa296. No entanto, essas construções, acreditamos, eram também uma forma de ostentar e, por que não dizer, preservar, a

religiosidade pessoal. As capelas, anjos e santos colocados acima das sepulturas traziam a um ambiente pretensamente secular, os ares das igrejas onde foram enterrados seus ancestrais. Em fins do século XIX (1875), contudo, foi possível encontrar o

testamento de uma pessoa que afirmasse ser contrária a todas essas atitudes com relação à morte, apresentando uma posição completamente inédita. para a época e que em muito se parece com o que presenciamos hoje em dia. Por

essas razões, consideramos interessante findarmos este trabalho com esta posição que, certamente foi de uma pessoa que não temia a morte nem o inferno: Quero ser sepultado sem pompa alguma e enterrado nu sem lençol, caso seja proibido queimarem o meu cadáver, como desejo, lançadas as minhas cinzas em terreno de cultura agrícola. Proíbo que se digam missas por minha alma e que se me façam encomendações ou obséquios religiosos em que não creio e que condeno como superstição ímpia e esbanjamento de dinheiro que se pode aproveitar em esmolas que peça aos que se lembrarem de mim depois de minha morte, as façam em meu nome ou intenção coma se diz vulgarmente297.

ATAS, 1863, v. XLIX, Sessão de 14 de setembro. Testamento do Dr. Luiz Barbosa da Silva, 30 out. 1840,. RIBEIRO J.J. Chronologia Paulista, v. 2, II parte, p. 281. 296 297

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As aná1ises feitas com relação às atitudes dos paulistas perante a morte comprovam sua harmonia ao nível do mundo ocidental apresentada pelos historiadores franceses. Encontramos em São Paulo atitudes tremendamente semelhantes às encontradas em Paris, Anjou ou outras cidades européias. Esta harmonia de mentalidade decorre, como pudemos notar, da existência de um fator de transmissão também universal, ou seja, a Igreja Católica Apostólica Romana. A Igreja, possuidora de grande domínio espiritual em todo o mundo cristão, dominou as atitudes frente à morte através de seus dogmas e preceitos. A Legislação eclesiástica difundiu a todos os povos cristãos as mesmas idéias a respeito da vida e da morte. O temor e a submissão a Deus e o medo da morte devem fazer parte da mentalidade de todo cristão. O Brasil, colonizado sob a égide do catolicismo, não poderia ficar alheio a este tipo de mentalidade. A Igreja Católica Apostólica Romana, como é sabido, sempre possuiu aqui amplos poderes, chegando, muitas vezes, a sobrepujar a legislação civil. Os costumes funerários que chegaram ao Brasil com os primeiros povoadores era o mesmo existente na Europa cristã e em especial na Península Ibérica. Esses costumes prevaleceram com maior ou menor intensidade, quanto fosse maior ou menor a influência da religião. O medo da morte, inerente a todos os vivos e reforçado pela Igreja, sempre determinou as atitudes dos Homens perante a morte. O medo do desconhecido, do sobrenatural e ao mesmo tempo do inevitável levou as pessoas a procurarem explicações, respostas para suas dúvidas e alento para o acontecido. De alguma forma elas encontram tudo isto na religião.

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A religião Católica Romana, oficial no Brasil até 1891, impunha as regras para o desconhecido, o que não acontecia no âmbito secular. Deste modo, cercar-se de todas as “proteções” que a Igreja apresentava era a “única saída” para salvar-se do inferno ou do purgatório. Apesar da palavra “inferno” praticamente não aparecer na maioria da documentação estudada, ela fica subentendida atrás da incerteza, do remorso dos pecados cometidos durante uma vida conturbada. Na hora da morte todos se preocupavam com o seu passado, com as maldades e faltas cometidas durante a vida e, naquele momento, a única salvação era a absolvição dos pecados. Essa absolvição dependia de “uma boa morte”, uma morte cristã em todos os sentidos. O testamento, nos séculos passados, foi o principal instrumento, imposto pela Igreja e utilizado pelos cristãos, para garantir a absolvição dos pecados. As esmolas, missas e sufrágios deixados em testamento “pagavam” a absolvição dos pecados, muitos dos quais confessados no próprio documento. Deste modo, ao mesmo tempo em que o moribundo se arrependia de seus pecados, forçava os vivos a se lembrarem da presença da morte ao serem responsabilizados pelos funerais e execução dos demais sufrágios fúnebres. Para garantir o cumprimento destas determinações existia a excomunhão, que era dada a todos que não fizessem testamento e também àqueles que não cumprissem as disposições testamentárias. A excomunhão era “o passaporte para o inferno”, já que a Igreja difundia a idéia de que os não cristãos não teriam o direito ao reino de Deus. Por isso, ao sentirem a proximidade da morte, geralmente durante alguma doença, rapidamente o testamento era feito. Com isto o moribundo procurava cercar-se de todas as proteções possíveis para escapar do purgatório. A encomendação da alma e a sepultura em lugar santo eram instrumentos importantíssimos para uma “boa morte”. Além disso, um cortejo repleto de pobres e de muitas pessoas chorando e se lastimando pela perda de tão cara pessoa, certamente

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comoveriam o Todo Poderoso na hora em que fosse julgar os atos do falecido. Nesse sentido, compreende-se o valor de participação nas Irmandades e Confrarias que garantiam a presença de muitas pessoas nos funerais de seus irmãos e Confrades. O julgamento após a morte, presente na mentalidade crista até o fim do sécu1o XIX, pelo menos, como vimos nos testamentos e nas poesias românticas, era o símbolo do medo. A acusação, a não absolvição dos pecados dirigia todos ao encontro da religião. A fé, por si mesma, não parecia ser tão grande, como vimos nas críticas feitas pelos jornais paulistas com relação à participação do povo nas procissões e atos religiosos, porém ela aparecia com toda a força em presença da morte. Podemos dizer que até certo ponto a Igreja sempre se aproveitou deste medo da morte, inerente a todos os vivos, para atraí-los à religião. A jurisdição cristã promovia o medo quando afirmava que o sepultamento dentro de seus templos fazia os vivos lembrarem-se da morte e a temerem, devendo rezar muito pela salvação de todos os pecadores. Além disso, somente os católicos tinham direito àquela proteção, já que os seguidores de outras crenças eram proibidos de serem enterrados nas igrejas. A perda deste “subterfúgio” por parte da Igreja e, ao mesmo tempo, a perda de uma das maiores proteções da alma na hora da morte, fez com que tanto esta poderosa instituição como o povo negassem por algum tempo os cemitérios a céu aberto. Com o afastamento dos cadáveres de dentro dos templos, a Igreja perdeu um grande baluarte. No século XIX, grandes mudanças ocorreram com relação às atitudes perante a morte e estas mudanças foram provocadas, em grande parte, pela proibição dos sepultamentos dentro das igrejas. Tornou-se dispensável determinar o local exato da sepultura através de Testamento, já que nos cemitérios públicos esses locais estavam determinados através de numeração quando comprados os lotes. Além disso, todos teriam direito à sepultura nos cemitérios, o que incluía todos os

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rejeitados pela Igreja, caindo por terra grande parte do “medo social” implícito na negativa de uma sepultura eclesiástica. Do mesmo modo, as observações a respeito dos funerais deixaram de aparecer nos Testamentos para serem transmitidas ou confiadas aos familiares mais próximos. O apego à família, comum no século XIX, transformou às relações familiares com relação à morte. Não era mais necessário obrigar alguém a tomar precauções sobre os funerais de um parente. Esse encargo passou a ser um dever natural de todo cristão. Assim, o Testamento deixou de ser um documento católico para tornar-se um simples documento civil de partilha de bens. A secularização dos cemitérios e o Romantismo transformaram os rituais pós-morte na medida em que afastaram, cada qual a seu modo, a Igreja do domínio total que possuía nesse aspecto. A substituição dos sepultamentos da administração religiosa para a administração secular, permitiu uma crescente secularização das atitudes frente à morte. Apesar do medo sempre existir e levar as pessoas ao encontro da religião ao sentirem a proximidade da morte, o domínio religioso decresceu e em decorrência diminuíram as preocupações com as proteções divinas. Enquanto o racionalismo sobrepujava o medo à morte, os românticos atacavam a Igreja e até mesmo enfrentavam-na. Contudo, ao sentirem a presença da morte suas atitudes transformavam-se, alguns chegaram a se converter ao cristianismo, como pudemos observar nas poesias de Álvares de Azevedo. Aqueles que não temiam a Igreja e seus dogmas a enfrentaram e conseguiram diminuir em grande parte seus poderes, como foi o caso dos maçons e dos imigrantes não católicos que chegaram em grande número ao Brasil, principalmente durante o século XIX. Os políticos, interessados em diminuir os poderes da Igreja com relação aos assuntos públicos também contribuíram para que houvesse uma mudança de mentalidade a respeito da morte no século passado.

151

Deste modo, podemos concluir que as atitudes perante a morte em São Paulo, estiveram intimamente relacionadas com o poder exercido pela Igreja Católica frente à popu1ação. Esta ultima aprendia a pensar de acordo com os preceitos religiosos predominantes. Obedecer à Igreja significava obedecer à Deus e portanto, livrar-se do fogo do inferno após a morte. Acreditamos que no sécu1o XX as atitudes apontadas sofreram significativas transformações devido ao aparecimento de inúmeras e diversificadas seitas, principalmente numa grande cidade como São Paulo. Podemos sugerir como objeto de futuras pesquisas, a análise dessas transformações, assim como a presença da morte na arte. Os monumentos erguidos sobre as tumbas nos cemitérios, as gravuras, quadros e imagens fúnebres podem apresentar valiosas informações para o estudo das mentalidades. Do mesmo modo, evidenciamos ainda, a necessidade de enquadrar no panorama ora apresentado, as atitudes do negro e do índio perante a morte numa perspectiva de história das mentalidades. Nesse sentido, o contato com outras ciências afins, tais como a Antropologia, Sociologia, Psicologia e Demografia, são essenciais.

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Anexos Testamento do século XVII 

Jesus Maria

Em nome de Deus e da Santíssima Trindade padre Filho e Espírito Santo três pessoas e um só Deus Todo Poderoso, que de todos é verdadeiro remédio e salvação e da Santíssima Virgem gloriosa Maria Nossa Senhora sua Mãe e advogada nossa diante do mesmo Deus. Saibam quantos esta cédula de testamento virem como no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e seiscentos e um anos em os treze dias do mês de dezembro da sobredita era no termo desta vila de São Paulo aonde chamam os Pinheiros nas minhas casas e moradas de mim Fernão Dias estando eu são com todos os meus cinco sentidos que Deus Nosso Senhor me deu achei que para bem de minha alma é bem fazer testamento não sabendo o tempo nem hora em que o mesmo Deus será servido levar-me desta presente vida para o qual efeito todo o fiel cristão é necessário estar aparelhado. Primeiramente encomendo minha alma a Deus Nosso Senhor que a criou de nada a sua imagem e semelhança e à Virgem gloriosa sua Mãe peço e rogo com todos os Santos e Santas da corte do céu queiram rogar às três pessoas da Santíssima Trindade Padre Filho e Espírito Santo três pessoas e um só Deus ...Misericórdia com minha alma e recebei-a em sua santa glória quando desta vida partir amém. Digo que sou casado com Lucrecia Leme(...) E quando Deus Nosso Senhor for servido levar-me da vida presente deixo a minha mulher Lucrecia Leme por minha testamenteira e curadora de meus filhos(...) e mando que de minha terça me dirão vinte missas rezadas as quais se dirão por diversos padres para que logo sejam ditas e das primeiras.., seja cantada com Inventários e Testamentos. Secretaria de Estado da Cultura. Arquivo do Estado de São Paulo, v.1, p.408-13. 

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a oferta que a dita minha mulher parecer e como forem ditas as pagarão e se poderão dizer algumas em Nossa Senhora do Carmo e o restante delas deixo a minha mulher e rogo a todas as justiças que... todo e por todo a favoreçam por que ela o merece e porque esta é minha vontade pelo bom tratamento que por sua virtude sempre me fez o que se entenderá não se... (...)

Declaro mais que sou confrade da Confraria de Nossa Senhora de It..... e prometi à dita Confraria um vintém...um ano e fui daqui lá com minha mulher.......e levei cera e depois mandei vejam os mordomos pelos livros o que tenho pago e o que dever se pagará de minha fazenda e o mesmo se faça..... confrarias desta vila e não pago em nenhuma......um vintém em cada um ano.(...) FERNÃO DIAS - SIMÃO BORGES.

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Testamento do século XVIII “Em nome da Santíssima Trindade Padre Filho, Espírito Santo,

três pessoas e um só Deus Verdadeiro.

Eu, Maria de Sidy estando em meu perfeito juízo e entendimento, quer N.Sr. me deu temendo-me da morte e desejando por minha alma no caminho da salvação por não saber o q. Deus N.Sr. de mim quer fazer e

quando será servido de me levar para si faço este testamento na forma seguinte. Primeiramente encomendo minha alma a santíssima Trindade, que

a criou, e rogo ao Padre Eterno pela morte, e paixão de seu Unigênito Filho,

a queira receber como recebeu a sua estando para morrer na arvore da vera cruz, e a meu Sr. Jesus Cristo peço por suas divinas Chagas q. já q. nesta vida me (....) de dar seu precioso sangue, e merecimentos de seus trabalhos me façam também mercê na vida q. esperamos dar o premio deles q. é a gloria, e

peço, e rogo à gloriosa Virgem Maria N.Senhora madre de Deus e a todos os Santos da Corte Celestial particularmente ao meu Anjo da Guarda e ao Arcanjo S. Miguel e S.Bartolomeu, e S.Pedro a quem tenho devoção queiram por mim rogar interceder a meu Jesus Cristo, agora e quando minha alma sair deste corpo porque como verdadeira cristã protesto de viver, e morrer em a Santa fé católica, e crer o que (tem) e crê a Santa Madre Igreja de Roma e 

Testamento de Maria de Sidy. 1708. Secretaria do Estado da Cultura. Arquivo do estado de São Paulo. manuscr. citado. Obs: a grafia do documento foi atualizada para os padrões atuais.

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Nesta fé espero salvar minha alma não por meus merecimentos mas pelos da Santíssima paixão do Unigênito Filho de Deus.

“Meu corpo será sepultado na Igreja de N.Sra. do Carmo (...) seu

habito e na sepultura de meu pai e minha mãe (...) Igreja (...) não (...) sou

Irmã Terceira da Venerável ordem Terceira da dita Sra pelo q. também tinha sepultura na capela mais é minha ultima vontade seja no lugar (....) acompanharam meu corpo os religiosos (...) N.Sra. do Carmo e o Pároco, com os Clérigos, q. na vila (...) com as cruzes (...) N.Sra. do Monserrate, e

(...) e N.Sra. do Amparo, e N.Sra.do Rosário dos brancos das quais confrarias sou irmã perpetua e as mais q. meu genro (testamenteiro) quiser mandar, (...) se dará a esmola acostumada.

Rogo e peço ao Provedor da Santa Casa de Misericórdia me

mande enterrar o meu corpo com a tumba dos Pobres de q. dará a esmola acostumada. Por minha alma deixo se me digam quatro missas de corpo presente ou no outro dia seguinte depois de morta, e assim deixo mais me diga ao meu Anjo da Guarda e outra a N.Sra. da Piedade a qual se lhe dará a esmola acostumada”.

156

Testamento do século XIX “Em nome de Deus Amém. Eu a Marquesa de Santos, em estado de saúde e em meu perfeito

juízo e entendimento, certa de que um dia hei de vir a morrer, por ser causa natural, resolvi fazer o meu testamento e disposição de minha última vontade pelo modo seguinte. Declaro que sou Católica Apostólica Romana, em cuja fé sempre

tenho vivido e portanto morrer, convencida de que não poderei salvar-me senão pelos merecimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Declaro que sou natural desta Imperial cidade de São Paulo(...) Declaro que é minha vontade, que, depois de minha morte, o meu

corpo seja dado à sepultura no lugar que for designado pelo meu

testamenteiro; e ao arbítrio disso também o meu funeral, recomendo-lhe somente que o fará (direito) mas sem ostentação.

Declaro que é minha vontade, que no dia do meu falecimento, ou

quando puder ser, se digam cinqüenta missas de corpo presente por bem de

minha alma; e que além d’estas se digam mais quatro capelas de Missas em sufrágio pela minha alma; uma capela pela de meu finado pai; uma capela pela 

TESTAMENTO DA MARQUEZA DE SANTOS, Departamento de Arquivo do Fórum Dr. João Mendes Junior, manuscr. 23 fev 1862.

157

alma de minha finada mãe, e outra capela pela alma de meu marido; e vinte missas pelas almas de meus escravos falecidos. Declaro que deixo para edificação ou alfaias da Capela do

cemitério, que se está erigindo na Freguesia de S.Iphigenia, com a invocação de Nossa Senhora dos Aflitos, quatro contos de reis 4:000$000/; e se acontecer que mude-se o Cemitério para outro lugar, antes de ser empregada esta quantia, o meu testamenteiro não deixará de aplicar este legado na capela que for (aberta) em outro Cemitério que se construir, ainda que seja em outra Freguesia e com outra invocação. Declaro que deixo quatrocentos mil réis 400$000 para serem

repartidos por famílias pobres e honestas, que não vivam de pedir esmolas. (...) S. Paulo, 23 de fevereiro de 1862.

Marquesa de Santos.

Obs: Este testamento foi aberto em 3 de novembro de 1867.

158

LEIS PROVINCIAIS Capitulo V - Dos Cemitérios e Enterros

Art. 96 - É proibido enterro dentro das igrejas nas sacristias ou

em roda das mesmas; os infratores, os párocos ou sacristãos, que o consentirem, serão multados em trinta mil reis.

Art. 97 - Enquanto se não designar outro local para cemitério

mais distante da povoação, ficará servindo o atual, dentro do qual o seu

zelador, ou individuo encarregado da sua guarda e administração, será obrigado a plantar arvoredo em linha ou simetricamente. Art. 98 - As sepulturas deverão ter pelo menos oito palmos de

profundidade, e deverão ser bem socadas; multa de dez mil reis contra os sacristãos, ou encarregados dos cemitérios.

Art. 99 - As catacumbas deverão ser feitas de pedra e cal, ou de

tijolos e cal, e terão de grossura dois palmos pelo menos, rebocadas e caiadas: multa de trinta mil reis contra quem as fizer, ou quem as mandar fazer sem ser de conformidade com esta disposição, e reformar a obra.

Art.100 - Os párocos, curas, ou capelães do município serão

obrigados a dar sepultura gratuitamente aos pobres. Art.10l - É proibido cantar ou rezar em voz alta por ocasião de

guardar-se cadáveres de noite em casa mortuária; assim como fica proibido o

acompanhamento à sepultura com cantos fúnebres pelas ruas, e expô-los em paradas para recomendação a qual só deverá ser feita na igreja ou cemitérios: os contraventores em ambas as hipóteses sofrerão a multa de vinte mil réis. 

Publicada em 14, 20 e 21 de agosto de 1868 no jornal O Imparcial. São Paulo.

159

Art. 102 – É proibido queimar-se rojões, ou dar-se tiros por

ocasião dos enterros de menores ou anjinhos: multa de dez mil réis. Capítulo IV - Da Comodidade, Segurança e Sossego da Povoação

Art. 60 - Fica também proibido o uso até agora tolerado:

1o- De cantar ou rezar em voz alta por ocasião de guardar-se

cadáveres de noite em casa mortuária.

2o- De acompanhá-los a sepultura com cantos fúnebres pelas ruas,

e expô-los em paradas para recomendação, a qual só deverá ser feita na igreja ou cemitério. 3o- De dar-se repetidos dobres de sinos por ocasião das mortes e enterros, e no dia de finados, sendo prometido somente; um para dar sinal de morte; outro para sinal da reunião do clero e convidados para o enterro. E por ocasião da solenidade dos finados; um na véspera, ao toque de meio-dia, outro ao toque das Ave-Marias, outro ao toque das matinas do dia da solenidade e outro finalmente para sinal da reunião dos fiéis, que quiserem assistir ao oficio solene do dia. Os contraventores de cada um destes parágrafos serão multados em 4$000.

Art. 61 - Fica absolutamente proibido o enterramento de

cadáveres dentro dos templos da cidade, povoação e pátios respectivos; multa de 30$000 ao fabriqueiro, sacristão, vigário ou administrador encarregado do templo.

Capítulo VIII - Do Cemitério e Enterramentos

160

Art. 77 - O enterramento de corpos ou cadáveres é nos cemitérios

extra-muros em lugares designados pela câmara e aprovados pelo ordinário; os infratores serão multados em 30$000.

Art. 78 - As sepulturas terão seis palmos de profundidade pelo

menos, e os cadáveres logo que para ai forem conduzidos serão sepultados repondo-se e socando-se toda a terra na sepultura. Os infratores serão multados, a saber: pela falta da profundidade da sepultura e soque da terra, em quatro dias de prisão, e pela demora do enterramento por mais de três horas, em dois dias de prisão; se os infratores forem escravos ficam seus senhores, ou quem os tiver mandado abrir as sepulturas e fazer o enterramento sujeitos à multa de l0$000.

Art. 79 - Ficam proibidas as catacumbas de qualquer natureza em

todos os cemitérios. Os infratores serão multados em 20$000 e obrigados à demolição a sua custa.

É extensiva esta pena às Irmandades e quaisquer pessoas que

promoverem a fatura das ditas catacumbas. Art. 80 – É permitido no solo dos cemitérios o enterramento em carneiras de pedra cobertas de laje com a profundidade marcada para as sepulturas ordinárias. Serão multados na forma de Art. 78 os que fizerem enterramentos em carneiras que não tiverem a profundidade marcada no dito artigo. Art. 81 - As pessoas que quiserem levantar carneiras nos

cemitérios públicos o farão em lugares designados pela câmara, e pagarão a

taxa de 10$000 por dois anos, e 100$000 vitaliciamente, paga antes da edificação. Servirá de título ao proprietário da sepultura o recibo do procurador da câmara, sendo este direito intransmissível. Os infratores serão multados em 20$000 e obrigados a demolição. Art. 82 - Aqueles que forem tocados de raios, atacados de

síncopes, afogados, asfixiados, ou quaisquer outros ataques que pareçam

161

mortos não serão conduzidos ao cemitério e nem amortalhados senão vinte e quatro horas depois do ataque, afim de que não haja dúvida alguma sobre a

morte. Os contraventores serão multados em l0$000 e 20$000, além das penas do código criminal em que possa incorrer.

Art. 83 - Nenhum cadáver será dado a sepultura se mostrar

vestígios de homicídio, ofensas físicas, envenenamentos ou outro qualquer indicio que possa induzir à suspeita de crime.

O sacristão, empregado do cemitério e os que conduzirem os

cadáveres nestas circunstâncias para o enterramento, e os coveiros que o

fizerem sem participar a autoridade policial, juiz de paz ou inspetor de quarteirão que mais próximo se achar, sofrerão a pena de oito dias de prisão.

Art. 84 - A câmara nomeará uma pessoa de sua confiança em cada

lugar em que houver cemitério particular para vigiar sobre a execução fiel do

que se acha prescrito nos artigos precedentes sobre os enterramentos; e essas são obrigadas a lavrar assento em um livro que para isso terão, pelo qual conste o dia do falecimento, o nome, sexo, cor, idade, estado, condição e enfermidade ao menos presumível de que a pessoa sucumbir, remetendo mensalmente cópia desses assentos ao pároco da freguesia.

Art. 85 - Todas as pessoas em cujas casas falecer alguém, ficam

obrigadas a remeter, vinte e quatro horas depois de falecimento, as notas do assento de óbito do pároco ou coadjutor na cidade ou ao encarregado da câmara fora da cidade, sob pena de l0$000 de multa.

162

FONTES 1. Fontes Manuscritas SÃO PAULO. ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA. - COMPROMISSO DA IRMANDADE DO GLORIOSO PRINCIPE DOS APÓSTOLOS SÃO PEDRO. 1762-18611.

- COMPROMISSO

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SENHORA DOS HOMENS PRETOS. 1778. - COMPROMISSO DA IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO. 1736. - COMPROMISSO DA VENERÁVEL ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO DA PENITENCIA DA CIDADE

DE SANTOS. Organizado pelo Ministro Antonio Plácido de Guimarães Cova em 1890.

- ESTATUTOS DA SÉ DE SÃO PAULO, l794

- REGISTRO DE ESTATUTOS E COMPROMISSOS DAS IRMANDADES E HOSPITAIS. 1889—1891. SÃO PAULO. DIRETORIA

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MICROFILMAGEM MENDES JUNIOR

SERVIÇO DO

DE

FORUM

ARQUIVO DR.

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- TESTAMENTO DE MARIA DOMITILA DE CASTRO. MARQUEZA DE SAN TOS, 1862 (manuscrito em exposição). SÃO PAULO. SECRETARIA

DE

ESTADO

ARQUIVO DO ESTADO.

Testamentos Paulistas.

DA

CULTURA

-

163

- Salvador Nunes, 1706, Lata 24, Ordem 501. - Joana Simoa, 1706, Idem, Ibid. - Izabel de Souza Muniz, 1706, Idem, Ibid. - Maria Francisca, 1707, Idem, Ibid.

- Anna Fernandes de Oliveira, 1707. Idem, Ibid. - Maria Cid, 1708, Idem, Ibid. - Bento de Siqueira de Mendonça, 1708, Idem, Ibid. - Maria de Camargo, 1708, Idem, Ibid. - João Maciel Rodrigues, 1710, Idem, Ibid. - Luzia Buena, 1711, Lata 24, Ordem 501.

- João Santanger Bentancor, 1712, Idem, Ibid - Maria Antunes, 1712, Idem, Ibid - Maria Fernandes, 1712, Idem, Ibid

- André Gomes da Cruz, 1750, Lata 46, ordem 523. - Domingos Antunes Fialho, 1750, Idem, Ibid - Braz Leme de Prado, 1746, Lata 48, Ordem 525. - Maria Gomes Corrêa, 1751, Idem, Ibid - Justina Pedroso, 1750, Idem, Ibid

- Gaspar da Cunha, 1777, Lata 1, Ordem 599. - Joanna Pomella da Luz, 1777, Idem, Ibid - Maria Conceição, 1778, Idem, Ibid

- João de Almeida Lara, 1778, Idem, Ibid

- José de Souza Quintanilha, 1778, Idem, Ibid - Faustino Nunes Nogueira, 1778, Idem, Ibid - Simão Alves Rodrigues, 1778, Idem, Ibid - Liberato Leme da Silva, 1779, Idem, Ibid

- Manoel Monteiro de Carvalho,1781 Idem, Ibid - Manoel da Costa Pais, 1781, Idem, Ibid - Agudo de Jesus, 1781, Idem, Ibid

164

- Joaquim Paulo Silveira, 1782, Idem, Ibid

- João Machado da Silva, 1782, Idem, Ibid

- Antonio Leme de Anhaia, 1782, Idem, Ibid - Gaspar Cubas, 1782, Idem, Ibid - Maria de Godoy de Almeida,1784, Idem, Ibid - Antonio Pereira, 1785, Idem, Ibid - Salvador Cardoso de Tavora,1756, Lata 55, Ordem 532 - Manoel Mendes de Almeida, 1756, Idem, Ibid - Ana Maria de Jesus, 1755, Idem, Ibid - Suzana Rodrigues de Arzão, 1755, Idem, Ibid - Manoel do Amparo, 1755, Idem, Ibid - Antonia Luzia de Jesus, 1755, Idem, Ibid

- Padre Ignacio de Almeida Lara, 1755, Idem, Ibid -

Maria Leme da Silva, 1755, Idem, Ibid

- Manoel Bueno de Moraes, 1755, Idem, Ibid - Maria das Neves, 1755, Idem, Ibid

- José da Costa Lima, 1756, Idem, Ibid

- João de Souza Pereira, 1756, Idem, Ibid SÃO

PAULO.

PAULISTA.

SETOR

DE

DOCUMENTAÇÃO

DO

MUSEU

CARTA DE LUIS ANTONIO NEVES DE CARVALHO a ESTEVÃO RIBEIRO DE REZENDE. 1819. São Paulo, 13 de maio. 1 fl. MPIAMV 795 (26).

- TESTAMENTO E CODICILHO DO BRIGADEIRO LUIS ANTONIO DE SOUZA. 24 de maio de 1819 (AMV 1089).

165

2. Fontes em Microfilmes.

SÃO PAULO. DIRETORIA

DE

MICROFILMAGEM MENDES JUNIOR.

SERVIÇO DO

DE

FORUM

ARQUIVO DR.

JOÃO

Testamentos Paulistas. Filme n. 1, Rolo n. 1. - Padre Marcello de Almeida Ramos, 1767, Proc. n. 953. - Antonio Valente Porto, 1791, Proc. n. 999.

- Simão da Costa Junqueira, 1793, Proc. n.1039. - Antonio Vieira dos Santos, 1796, Proc. n.1001 - José Caetano da Cruz, 1799, Proc. n.1020

- Escolástica Eufrozina Velloza,1799, Proc. n.1012 - Mathias Teixeira Chaves, 1800, Proc. n.1035

- Roza Maria de Barros, 1806, Proc. n.955 - Alferes Carlos Pais da Costa, 1811, Proc. n.1010. - Ana Maria de Jesus, 1812, Proc. n.1007.

- Efigenia Maria do Rozario, 1812, Proc. n.1011 - Clara de Souza, 1812, Proc. n.935 - Bernardino da Costa Filgueiraz, l814. Proc. n.933 - Escolástica Maria de Matos, 1814, Proc. n.938 - Manoel Joaquim Roza, 1815, Proc. n.1032

- José Antonio da Silva Paulista,1816, Proc. n.1019.

- Escolástica Thereza de Jesus, 1817, Proc. n.937 - Josefa Maria de Oliveira, 1818, Proc. n.949

- Brig.Luiz Antonio de Souza, 1819, Proc. n.907 - Thereza Maria Angelica de Noronha,1819, Proc. n.1042 - Luiz José de Athaide Rocha, 1821, Proc. n.1024 - Ignácio Mendes, 1823, Proc. n.941

E

166

- Custodia de Arruda, 1824, Proc. n.936 - Gertrudes Maria da Silva, 1825, Proc. n.900

- Maria das Dores, 1826, Proc. n.1029

- Antonio Lopes Nunes, 1827, Proc. n.930 - Ana de Oliveira, 1827, Proc. n.1004

- Ana Maria de Jesus, 1850, Proc. n.1005 - Policena Thereza de Jesus Bueno,1850, Proc. n.954 - Gertrudes Maria do Espírito Santo,1850. Proc. n.1014 - Antonio Corrêa Caldas, 1850, Proc. n.643

- Francisca Roza de Jesus Peixoto,l850, Proc. n. 583 - Joaquim José da Silva, 1850, Proc. n.595 - Florinda Roza Claudina, 1850, Proc. n.973 - Anna Francisca de Brito,1850, Proc. n.648 - Gertrudes Angelica de Toledo, 1850, Proc. n.687

- Maria Antonia Soares, 1850, Proc. n.700

- Francisco Comes Netto, 1850, Proc. n.612 - Anna Thereza de Jesus, l850, Proc. n.966

- Miguel Antonio de Miranda e sua mulher Gertrudes Rodrigues Freire, 1851, Proc. n.n/c - Antonio Jozé Gonçalves Soares,185l, Proc. n.932 - Maria Antonia Guilhermina de Mattos, 1851, Proc. n.986 - José Joaquim da Rocha Penteado, l851, Proc. n.978

- Gertrudes Maria d’Assunção, 1852, Proc. n.748 - Ana das Dores de Oliveira, 1852, Proc. n.1003 - João Antonio Cunha Lima, 1852, Proc. n.1021 - Anna Maria da Luz, 1852, Proc. n.575 - Jogo Sertorio, 1852, Proc. n.n/c IDEM, Microfilme n. 4, Rolo n.4.

167

- Ana Felicia de Castro Oliva ,1880, Proc. n.1426 - Delfina Maria d’Andrade , l880, Proc. n.1477

- Raphaela Eugenia da Silva Pereira,1880. Proc. n.1359 - Major Luiz Pacheco de Toledo, l880, Proc. n.1375 - Luiz Pinto, 1880, Proc. n.1333 - Joanna Pinto Tavares, 1880, Proc. n.1330 - Maria da Conceição de Andrade, 1880, Proc. n.1335 - Candido Gabriel da Silveira Cintra,1880, Proc. n.1325 - Candido Fernandes, 1881, Proc. n.1395 -

Comendador Francisco Martins de Almeida, 1881, Proc.n.1363

-

Maria Helena Correia da Silva,1882, Proc.n. 1378

-

Theodoro Xavier dos Santos, 1882, Proc.n.1382

-

Ana Benedita, 1882, Proc.n. 1385

-

Gertrudes Maria da Conceição, 1882,

-

Adão José de Souza, 1882,

Proc.n. 1366

Proc. n.1389

Manoel Bernardo de Mello, 1882, Proc.n.1380

IDEM, Microfilme n. 5, Rolo n. 5.

-Mathilde Emilia de Carvalho.1885, Proc.n.l469

- Joaquim Machado Ferreira Bastos,1885, Proc.n.1463 - Joaquim Braulio, 1886, Proc.n.l5l4 - Anastacio Maciel, 1886, Proc.n.l498 - Bento José Comes, 1886,Proc.n.1539

- Capitão Joaquim Antonio Mariano, l887, Proc.n.1516 - Maria do Carmo Bertholina de Souza,1887, Proc.n. 1533

3.

Fontes Impressas.

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ACTAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1831-2, São Paulo, Typ. Piratininga, 1923. v. XXVI.

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Paulo.Departamento de Cultura, 19141. v. XLIV. ____________________________________ 1859 .v.XLV. ____________________________________

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Paulo.Departamento de Cultura, 19145. v. XLVIII. ____________________________________ 1863. v. XLIX. ____________________________________

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PROVINCIAL DE SÃO PAULO NO ANNO DE 1876. São Paulo, Typ de “Diário”, 1876.

- COLLECÇÃO DE LEIS E POSTURAS MUNICIPAIS PROMULGADAS PELA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DE SÃO PAULO NO ANNO DE 1877. São Paulo, Typ. do “Diário”, 1877.

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MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora. 2 ed. São Paulo: Martins, 1943. MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Typ. da Costa Silveira, 1923. PRADO, Paulo. Província e Nação. Paulística Retrato do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. (col. Documentos Brasileiros, 152). TAUNAY, A. de E. A História Seiscentista da Villa de São Paulo.São Paulo: Ideal, 1972. t. II. ________A. de E. História da Cidade de São Paulo no Século XVIII(1735-1765). São Paulo: Div. do Arquivo Histórico, 1949. v. 1, 2 Partes. ________1765-1801). São Paulo: Div. do Arquivo Histórico, 1951. v. II, 2 Partes. ____________ História da Cidade de São Paulo sob o Império (18221831). São Paulo: Divisão do Arquivo Histórico, 1961, v. IV. __________(1831-1842). São Paulo: Divisão do Arquivo Histórico, 1961. v. V. __________(1842-1854). São Paulo: Divisão do Arquivo Histórico, 1977, v. VI. _______________ Piratininga: Aspectos Sociais de São Seiscentista. São Paulo: Ideal, 1923.

2 - Outros Estudos. 2.1

- Artigos.

Paulo

174

FURET, François. O quantitativo em História. LE GOFF, J, NORA, P. História: novos problemas. 2 ed. Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1979. LE G0FF, J. As Mentalidades; uma História ambígua. LE GOFF, J.. NORA, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Fr. Alves, 1976.

2.2 - Livros. ANJOS, Cyro dos. A Menina da Sobrado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. AMORA, Antonio Soares (pref.). Grandes Poetas Românticos Brasileiros. São Paulo: s. ed., 1952. AZEVEDO, Álvares. Obras Completas. 8 ed. São Paulo: Cia. ed. Nacional, 1942, 2 v. _________________ Noite na Taverna. Rio de Janeiro: Univ. Popular, 1963. BARROS, Roque Spencer Maciel de. A Ilustração Brasileira e a Idéia de Universidade. São Paulo: F.F.C. L., 1959. Boletim n. 241. BOSCHI, Caio César. Estado e Irmandade em Minas Gerajs no Século XVIII. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da F.F.L.C.H. da USP. São Paulo,1982. CANDIDO, A. & CASTELLO, J.Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira. Das origens do Romantismo. São Paulo: DIFEL, 1968, v. I. DIAS, Gonçalves. Poesias. 5 ed. Rio de Janeiro: Agir,1969.

HADDAD, J. Al Mansur. O Romantismo Brasileiro e as Saciedades Secretas do Tempo. São Paulo: Arqueira, 1945.

175

HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. A época colonial. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. v. 1-2, t. 1. HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo/EDUSP, 1978. LADURIE, Emmanuel. Le Roy. Le Territoire de L’historien. Paris: Galimard, 1973. MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira.São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1977-8. v. II (1794-1855).

PENNA, Cornélio. A Menina Morta. (Rio de Janeiro): s.ed.(1954). POETAS ROMÂNTICOS BRASILEIROS. São Paulo: Amadio, s.d. 2v. SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Cia. ed. Nacional, 1975. (Brasiliana, v. 357).

3 - Modelos Historiográficos 3.1 -Artigos.

CHARTIER, R. Les arts de mourir, 1450-1600. ANNALES. Paris: Armand Colin. jan-fev, 1976. CROUZET, M. Michelet, les morts et l’anné 1842. ANNALES. Paris: Armand Colin, 1976. n 1.

176

DELUMEAU, J. Démographie et mentalités: la mort en Anjou (XVIIe – XVIIIe siécle). ANNALES. Paris: Armand Colin, 1972.n.6. HERZLICH, C. Le travail de la mort. ANNALES. Paris: Armand Colin, 1976. n. 1. MARCÍLIO, Maria Luiza. A Morte de Nossos Ancestrais. In:MARTINS, J. de S. (org.). A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983. 3.2 - Livros. ARIÉS, Philipe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. _____________ O Homem Diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, 2v. CHAUNU, Pierre. La Morte à Paris. 16e, l7e, l8e siécles. Paris:, Fayard, 1978. _____________ A História como Ciência Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. LEBRUN, François. Les Hommes et la mort en Anjou aux XVII et XVIII siecles. Essai de demographie et psycology historique. Paris: La Haye/Mouton, 1971. LOUREIRO, Maria Amélia Salgado. Origem Histérica dos Cemitérios. São Paulo: Secretaria de Serviços e Obras, 1977. MARTINS, J. de Souza (org.). A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1983. VOVELLE, Michel. Idéologies FM/Fondations, 1982.

&

Mentalités.

Paris:

______________Mourir Autrefois: Attitudes Collectives devant la mort aux XVIIe et XVIIIe siécles. Paris : Gallimard/Julliard, 1974.

177

________________ Pieté Baroque et Déchnistianisation

en

Provence au XVIII siéc1e: les attitudes devant la mort d’aprés la Clause des Testaments. Paris: Plon, 1973.

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