ATIVIDADE SENSÍVEL E EMANCIPAÇÃO HUMANA NOS GRUNDRISSE DE KARL MARX Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre

June 2, 2017 | Autor: Zaira Vieira | Categoria: Karl Marx, Trabalho, Grundrisse, Emancipação
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ZAIRA RODRIGUES VIEIRA

ATIVIDADE SENSÍVEL E EMANCIPAÇÃO HUMANA NOS GRUNDRISSE DE KARL MARX

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Linha de Pesquisa: Filosofia Social e Política Orientadora: Profª. Drª. Ester Vaisman

BELO HORIZONTE UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 2004

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA E APROVADA COM LOUVOR E NOTA __100_ PELA BANCA EXAMINADORA CONSTITUÍDA PELOS PROFESSORES:

PROF. DR. MÁRIO DUAYER / UFF

PROF. DR. FRANCISCO DE PAULA ANTUNES LIMA / UFMG

____________________________________________________________________ PROFª. DRª. ESTER VAISMAN / UFMG ( ORIENTADORA)

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

BELO HORIZONTE, 05 DE MARÇO DE 2004.

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FICHA CATALOGRÁFICA

Vieira, Zaira Rodrigues Atividade Sensível e Emancipação Humana nos Grundrisse de Karl Marx. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 2004. 148 p. (Dissertação de Mestrado) 1. Filosofia; 2. Marxologia; 3. Ontologia; 4. Trabalho ; 5.Produção; 6. Emancipação;

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ÍNDICE

RESUMO........................................................................................................................................... 05

INTRODUÇÃO .........................................................................................................07

CAP. I - DETERMINAÇÕES GERAIS DA ATIVIDADE SENSÍVEL..............18 A- Sociabilidade......................................................................................................... 24 B- Transitividade entre sujeito e objeto......................................................................34 C- Produção de objetividades sociais.......................................................................39 D- Efetivação de potencialidades humanas.................................................................43 CAP. II – A ATIVIDADE SENSÍVEL NA SOCIABILIDADE MODERNA..... 50

A- Caráter universal....................................................................................................50 B - Produção sob a forma do estranhamento...............................................................59 C - Atividade como negação de vida...........................................................................78

CAP. III- A EMANCIPAÇÃO HUMANO-SOCIETÁRIA...................................93

A- Superação da atividade sensível estranhada..........................................................93 B- A livre individualidade efetiva............................................................................114

CONCLUSÃO.........................................................................................................121

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................143

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RESUMO

Objetivando apreender o significado e o modo como a emancipação humana é entendida por Marx nos Grundrisse (1857-1858), este trabalho empreende a tarefa de, em primeiro lugar, explicitar o significado da categoria atividade sensível neste mesmo texto. Isto porque, de um lado, esta categoria é central no entendimento do autor acerca do ser social. De outro lado, porque, entendida como complexo categorial ou conjunto de múltiplas determinações, ela é precisamente o objeto dos manuscritos em foco. Termina-se por concluir que a atividade sensível, o trabalho, está, em todas as suas formas – seja enquanto complexo de determinações mais gerais, presente, de alguma maneira, nas várias formas sociais; seja enquanto configuração específica à sociabilidade moderna; seja, sobretudo, numa possível forma superior, livre do estranhamento – diretamente relacionada com a auto-efetivação e emancipação humana. Mesmo que de maneira contraditória, é pelo trabalho que os homens se constituem como seres sociais mais ou menos livres em seu processo histórico efetivo de engendramento de si e de seu mundo.

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ABSTRACT

The purpose of this work is understanding human emancipation through Marx’s approach in Grundrisse (1857-1858). First of all, it consists of scrutinizing the significance of the category defined as sensitive activity in Marx’s text. This category, on one hand, is of central importance to the author’s understanding about the social being. On the other hand, as a complex of categories or set of multiple determinations, it is precisely the object of the manuscripts in question. In conclusion, the sensitive activity, the work itself, is present in all its forms - as a complex of more general determinations found somehow in various social forms; as a specific configuration to modern society or, above all, as a possible superior form, free from strangeness - closely related to self-effectiveness and human emancipation. Even though it may seem contradictory, work is what makes men social beings and, to some degree, free in their historic effective process of engenderment of themselves and of the world as well.

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INTRODUÇÃO

O trabalho que se apresenta tem por objetivo percorrer as malhas determinativas que perfazem o complexo categorial da atividade sensível nos Grundrisse, tendo em vista a dilucidação deste complexo e da forma como, no interior mesmo dele, se engendra a perspectiva de emancipação humana presente neste texto. Os Grundrisse, que assim tornaram-se conhecidos pelo título que lhes foi dado em sua primeira publicação – Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (Rohentwurf) 1857-18581 – foram redigidos por Marx entre julho de 1857 e junho de 1858 e constituem um grande balanço das conquistas de quinze anos de estudos deste autor. Balanço ou síntese com a qual visava à publicação, que acreditava podê-lo fazer logo em seguida, da obra Economia − como era, então, designado o que veio a ser O Capital e todo o inconcluso plano de sua obra madura. A forma rápida como são escritos, sobretudo se se tem em conta as condições física e financeiramente deploráveis em que Marx se encontra naquele momento, e a decisão de fazê-lo explicam-se, em grande medida, pela crise econômica que se abate sobre os Estados Unidos e o mundo em 1857 − pois, nunca é demais lembrar que, em 1853, Marx interrompera, a contragosto, seus estudos econômicos e adiara a decisão de elaborar uma obra em vários volumes. Assim, dirá o mesmo, numa carta de dezembro de 1857, a Lassalle: "A crise comercial atual me incitou a me pôr, enfim, seriamente a

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Título da edição publicada pelo Instituto Marx-Engels-Lenin (IMEL) de Moscou, em 1939, que, por sua vez, adota o termo usado por Marx - Grundrisse - para referir tais manuscritos em suas cartas. 7

elaborar meus traços fundamentais da economia política e a preparar também alguma coisa sobre a crise presente."2 A crise prevista e aguardada por Marx, como também por Engels – que estava fortemente au courant e profissionalmente envolvido com o que se passava à Bolsa − faz renascer, em ambos, as esperanças de um grande evento na Europa: "Trabalho como um louco, noites inteiras, fazendo a síntese de meus estudos econômicos para ter ao claro ao menos os lineamentos essenciais [ Grundrisse ] antes do dilúvio."3 Numa sucinta descrição do momento, dirá Rubel: "O jornalismo o desgosta e, durante o outono de 1857, a ameaça de crise financeira reanima suas esperanças revolucionárias (...) além disso, ele sente como uma nova provocação o Manual do Especulador na Bolsa de Proudhon e o escrito do proudoniano Darimon sobre a Reforma dos Bancos. (...) Alguns meses mais tarde, ele prevê a crise e suas manifestações prováveis."4 Entretanto, mais que o momento ou contexto histórico em que foi escrito, o texto, ele próprio, faz aflorar a temática da emancipação, mesmo não sendo este o seu mote principal. É preciso ressaltar que, embora tais "esperanças revolucionárias" pudessem efetivamente ter servido de pretexto ou motivação imediata para que Marx finalmente começasse a pôr no papel sua antiga promessa de uma "Economia", o objetivo desta última e de seus escritos preparatórios era, não uma análise ou prospectiva da revolução, mas o desvelamento e a crítica das categorias da economia. Mesmo estando, isto, patente nos Grundrisse e, inclusive, declarado por seu autor quando

diz,

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MARX, K. Correspondance - K. Marx, F. Engels, tomo V, p. 90 Id., p. 78 4 In MARX, K., Oeuvres, Vol. II, p. LXXXVI 3

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logo no início da introdução conhecida como Introdução de 1857 que "O objeto deste estudo é, antes de tudo, a produção material"5, vale mencionar, ainda, a seguinte passagem do epistolário do período: "O trabalho de que se trata é uma crítica das categorias econômicas ou, if you like, o sistema da economia burguesa apresentado sob uma forma crítica. É uma descrição do sistema e, ao mesmo tempo, sua crítica." 6 Publicados pela primeira vez apenas às vésperas da segunda guerra mundial, ou seja, quase um século após terem sido escritos, os Grundrisse permanecem senão desconhecidos - como foi o caso para muitas das gerações posteriores a Marx grandemente inexplorados por parte dos estudiosos deste autor da segunda metade do século XX. Martin Nicolaus, em seu prólogo à primeira edição em espanhol, intitulado "El Marx Desconocido", é quem atenta para o fato de que tais manuscritos apontavam para uma questão que teria sido objeto de muitas dúvidas e polêmicas ao longo de todo o século XX: o tema da emancipação ou revolução nos escritos de maturidade de Marx. Segundo ele, as polêmicas em torno deste tema 7 dever-se-iam precisamente ao alheamento de seus personagens em relação aos Grundrisse, já que muito do que Marx aí aponta não teria sido retomado no que pôde concluir para publicação. O tema da "revolução", que constará de uma passagem do Prefácio de 1859, não fica, segundo Nicolaus, totalmente elucidado nos volumes do Capital nem

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MARX, K., Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse", tomo I, p. 17 Carta de Marx a Lassalle, de 22 de fevereiro de 1858, in BADIA, G., op. cit., p. 143 7 Veja-se, por exemplo, o livro A Acumulação do Capital, no qual Rosa Luxemburgo busca "preencher esta importante lacuna nos escritos inconclusos de Marx e conseguiu, com isto, avivar a fogueira de uma inflamada disputa que, todavia, hoje, arde dentro do partido." (NICOLAUS, M. Elementos Fundamentales..., p. XII) 6

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tampouco nos dois capítulos que chegaram ao público da Crítica da Economia Política. Assim, « O problema de como é possível esperar que seja precisamente esta contradição [o fato de que a "relação social de produção fundamental" no capital seja a troca de equivalentes e a "força fundamental da produção", a extração de nãoequivalentes] o que conduz à queda do sistema capitalista tem obcecado os estudiosos de Marx durante pelo menos meio século. Os volumes d'O Capital não proporcionam uma resposta clara. Esta deficiência está na raiz da controvérsia sobre a queda [ derrumbe ] que inquietou a social-democracia alemã e que, ainda hoje, continua se pondo intermitentemente. [...]. Porém, a lacuna existe não devido a que o problema fosse insolúvel para Marx, não porque não houvesse encontrado sua resposta, mas porque as conclusões a que havia chegado nos Grundrisse se mantiveram soterradas e inacessíveis para os eruditos até 20 anos após a primeira guerra mundial »8. As questões que se buscará tratar e que constituem, por assim dizer, o objetivo último do presente trabalho não vêm sendo, portanto, descobertas e debatidas, pelos estudiosos de Marx em geral, senão nos últimos anos. Naquele que é talvez o mais clássico estudo sobre os Grundrisse, o livro de Rosdolsky intitulado Génesis y Estructura de El Capital de Marx (estudios sobre los Grundrisse), o tratamento deste tema pauta-se por uma leitura de forte influência hegeliana, como veremos no final deste trabalho. Atente-se sucintamente que a análise de Marx possui um caráter peculiar que a difere radicalmente tanto da filosofia de Hegel, quanto da economia de Ricardo, muito embora ambos tenham sido, mesmo aí, grandes mestres para ele. Se Marx voltara a folhear a Lógica de Hegel, que casualmente caíra em suas mãos no momento em que escrevia os Grundrisse, e se efetivamente há, como ele

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NICOLAUS, M., Elementos Fundamentales..., p. XXXI 10

próprio o confessa, a contribuição de Hegel no "método de elaboração"9, tal contribuição não desfigura, porém, a determinação central de seu pensamento, originária já do rompimento juvenil com aquele autor. O fato de que tal reencontro ocasional o tenha ajudado muito "no método de elaboração do tema" não significa que Marx tenha aderido ao método de Hegel. Tanto assim que ele explicitará, aí, pela primeira vez, o seu próprio método e o porá em obra na consecução de sua Economia. Ao recusar a tese do vínculo lógico entre Marx e Hegel, não se quer, aqui, negar as influências ou «assimilações de maior ou menor monta». Estas últimas estão, «porém, sempre integradas à ruptura de fundo levada a cabo na própria instauração do pensamento marxiano e jamais reconsiderada. (...) A diferença − “meu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta” (Posfácio da segunda edição de O Capital, 1873) – sabemos qual é: no mesmo lugar é declarado que o processo do pensamento é hegelianamente transformado num demiurgo do real, enquanto que na concepção marxiana o ideal não é nada mais do que o material transposto e traduzido na cabeça do homem"10. Para que não se delongue mais do que o necessário e cabível numa introdução – mesmo porque o método de Marx será exposto a seguir, no início do primeiro capítulo – deixemos para retornar a este tema quando a exposição dos resultados desta pesquisa já houver sido feita. Por outro lado, é preciso observar, ainda, que, embora se trate, nos Grundrisse, de uma análise das categorias econômicas, estas últimas não são entendidas, por Marx, como uma ordem de categorias cindidas em relação aos demais aspectos da realidade humana. Tal análise foge, portanto, ao padrão de cientificidade tradicional, mesmo daquele que Marx reconhece como sendo o "economista por 9

Cf. a carta a Engels, de 16 de janeiro de 1858, in BADIA, G., Op. Cit., p. 116 CHASIN, J. Estatuto Ontológico..., in TEIXEIRA, F.S. Pensando com Marx, p. 502

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excelência da produção"11: Ricardo. Como tivemos oportunidade de mostrar em outro trabalho, as categorias econômicas marxianas expressam não uma dada ordem de efetividades cindidas que caracterizariam o ser social e em cujo seio a economia seria fator preponderante. Ao contrário, a abstração e unilateralização dos conceitos é exatamente o que Marx ferrenhamente combateu em sua crítica à economia política. «Já nos Manuscritos de 1844, [ele] mostra que os economistas que, como Smith, reconheceram o trabalho como princípio, como essência da propriedade privada − superando, pois, a visão de exterioridade desta última – deixaram, no entanto, de ver a outra metade da realidade: a essência do homem transmudada em propriedade privada, ou seja, o fato da alienação. (...) E isto porque “A economia política parte do fato da propriedade privada. Ela não o explica-nos. Ela exprime o processo material que descreve, em realidade, a propriedade privada em fórmulas gerais e abstratas, que, em seguida, têm para ela valor de leis. Ela não compreende estas leis, isto é, ela não mostra como elas resultam da essência da propriedade privada”. Marx, portanto, denuncia na economia política o fato de que ela oblitera não apenas “a questão das origens históricas da formação do capital, mas também o caráter histórico e transitório das próprias categorias econômicas. Já em A Miséria da Filosofia, Marx se posicionara a respeito, afirmando que: 'As categorias econômicas são expressões teóricas das relações sociais de produção /.../ Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem também os princípios, as idéias, as categorias, de acordo com suas relações sociais. Assim estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem” »12.

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MARX, K., Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse", tomo I, p. 31 VIEIRA, Z.R., Perspectiva Sociológica...., monografia defendida no depto. de Sociologia e Antropologia da Fafich, UFMG, 1999, p. 38 12

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A análise e crítica marxiana do modo de produção capitalista alcança, nos Grundrisse, não uma forma definitiva – já que ainda se continuaria aperfeiçoando em Para a crítica da economia política, nas Teorias da Mais-Valia e mesmo até a morte de Marx – mas grandemente burilada em seus pontos fundamentais. É nestes manuscritos que sua crítica ganha definitivamente a forma de uma crítica a um modo de produção que possui como determinação intrínseca a não-troca ou exploração. O pensamento de Marx até então ainda muito voltado para as relações de troca ou de mercado, isto é, ainda muito influenciado pela teoria da oferta e da procura, perfaz, aí, como resultado de um longo percurso, a alteração pela qual a produção vem a ser efetivamente o centro de sua análise. É precisamente neste momento que ele faz a descoberta da diferença fundamental entre trabalho e força de trabalho. Em outros termos, verifica-se, nos Grundrisse, a descoberta da categoria Arbeitskraft – força de trabalho –, uma mercadoria especial, produtora de valor. Descoberta que permitirá, de uma vez por todas, a compreensão da questão do excedente no interior do processo de produção do capital e a completa elaboração da teoria da mais-valia. Sob a forma de sua descoberta considerada mais importante no plano da economia, a mais-valia passa a ocupar, então, aquele que será o seu lugar em todas as demais obras de Marx. Sendo, como fica genuinamente demonstrado nos Grundrisse, a determinação central, o eixo sobre o qual efetiva-se a produção capitalista, ela terá, papel central também na análise desta última por Marx. É importante observar, neste ponto, que, segundo Rosdolsky, muito embora na etapa anterior aos Grundrisse, constituída pela obra A Miséria da Filosofia, pelo Manifesto do Partido Comunista e pelo escrito intitulado Trabalho Assalariado e Capital, não tivesse Marx efetivamente, ainda, elaborado « sua teoria específica do

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lucro, 'até 1848 estavam traçadas as linhas fundamentais de sua teoria da mais-valia', pedra angular de sua doutrina econômica, e só restava a tarefa de desenvolver tal teoria em detalhe – processo que podemos estudar minuciosamente nos Grundrisse.»13 Efetivamente, a importante descoberta de Marx não se deu num apagar ou acender das luzes ou entre uma crise e outra de fígado que lhe acomete no momento em que escreve os manuscritos em questão. De forma não diferente de todas as descobertas importantes no plano da ciência, sua apreensão da categoria da mais-valia resulta de vários anos de labuta intelectual voltados para a crítica da economia política e, por conseguinte, para a dilucidação das determinações fundamentais do modo de produção do capital. Trabalho este que, segundo Nicolaus, enfrentara, de maneiras diversas, a cada etapa da construção deste pensamento, a teoria ricardiana do excedente, para vir a desaguar nesta sua elaboração própria. O que se quer ressaltar, pois, é que, embora os Grundrisse representem um salto qualitativo fundamental na elaboração do pensamento maduro de Marx, não apresentam, porém, uma ruptura com a trajetória anterior deste pensamento. Muito ao contrário, como o diz Chasin, "a ontologia dos Grundrisse adensa e ultrapassa, mas não nega a ontologia composta ao longo do período 1842-47; mais do que isso, adensamento e ultrapassagem são precisamente demanda e virtualidade postas pela antecedente."14 Demanda, esta, concreta se se considera, sobretudo, a afirmação dos editores russos dos Grundrisse de que "até 1848 estavam traçadas as linhas fundamentais de sua teoria da mais-valia"15 - o que, embora fuja à presente pesquisa

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ROSDOLSKY, R. Génesis y Estructura de El Capital de Marx, p. 28 CHASIN, J. "Marx no Tempo da Nova Gazeta Renana" in MARX, K. A Burguesia e a ContraRevolução, p. 27. 15 IMEL, "Prólogo da Primeira Edição em Alemão", in MARX, K. Elementos Fundamentales...,vol. I, p XLI 14

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confirmar ou não, é, neste particular, respaldado por outros autores, como transluz, por exemplo, da passagem de Rosdolsky acima aludida.

Com o objetivo de trazer à luz o texto mesmo de Marx, com todas as suas possíveis lacunas ou irresoluções e de poder, assim, contribuir na redescoberta deste autor, esta dissertação concentra-se de forma praticamente exclusiva sobre os Grundrisse. Com esparsas referências a outros textos de Marx ou de comentadores – que se fazem apenas no intuito de apoio, quando necessário e plenamente cabível –, procede-se a uma análise imanente dos referidos manuscritos no que diz respeito ao tema proposto. Trata-se, em outras palavras, de uma escavação por meio da qual se busca apreender, no texto de Marx, o complexo da atividade sensível em suas determinações centrais e a relação intrínseca deste com o tema da emancipação. Em consonância com este objetivo, o cotejamento dos resultados alcançados com a análise de outros autores que trataram do tema perfaz-se somente à conclusão. Tal confronto analítico possui, portanto, um caráter inicial. Longe de pretender proceder a uma crítica a tais autores, o recurso a eles tem o propósito único de trazer para o trabalho, ainda que de forma incipiente, algumas das discussões existentes sobre o assunto.

Nossa dissertação estrutura-se em três capítulos. No primeiro deles, o complexo da atividade sensível ou, em outras palavras, a produção ou produção material é analisada em suas determinações gerais, ou seja, naquelas presentes em toda formação social: a sociabilidade, a transitividade entre sujeito e objeto, a produção de objetividades sociais e a efetivação de potencialidades humanas.

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Ressalte-se de antemão, porém, que as determinações gerais ou "abstrações razoáveis" não constituem, em Marx, um conjunto ou sistema estanque de conceitos, mas tratam-se, ao contrário, de traços gerais, eles próprios, complexos: "Esse Universal, contudo, ou este caráter comum, que se destaca através da comparação, é, ele próprio, um conjunto articulado complexo, cujos membros divergem em determinações diferentes. Alguns destes elementos pertencem a todas as épocas, outros são comuns apenas a algumas. [Outras] determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Sem elas, não se pode conceber nenhuma produção." 16 No segundo capítulo, o mesmo complexo é perquirido em suas particularidades modernas da universalidade, do estranhamento e do aspecto de negação ou desapropriação de vida; as quais constituem, por sua vez, as determinações mais gerais que caracterizam a atividade na sociabilidade burguesa. Traços ou determinações que se depreende do entrelaçamento de categorias ainda mais abstratas ou precisas. As quais, por sua vez, apenas articuladas entre si permitem o delineamento efetivo do "complexo de complexos" que é a atividade sensível em sua forma moderna. Se o primeiro capítulo encontra-se justificado a seguir, logo no seu início - o que nos exime de fazê-lo aqui - digamos, entretanto, antes de prosseguir, as razões pelas quais nosso segundo capítulo volta-se para a produção específica da sociabilidade moderna. Se, de um lado, a forma assumida pelo trabalho nesta última é aquela que traz em si os componentes de uma nova forma de sociabilidade, isto é, de uma forma emancipada do trabalho – o que, por si só, já justificaria, portanto, sua análise –, por outro lado, segundo Marx, a "produção em geral" – esta "abstração razoável" que destaca os traços comuns à produção material nas diferentes formas 16

MARX, K. Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse", tomo I, p. 19 16

históricas por ela assumidas – apenas nos poupa da repetição destes mesmos traços, mas "as pretensas condições universais de toda produção não são nada mais que estes momentos abstratos que não apreendem nenhum estágio histórico real da produção."17 Motivo pelo qual Marx, ele próprio, nos Grundrisse, se volta primordialmente para a produção em sua forma moderna, isto é, para o desvelamento de suas determinações específicas nesta sociabilidade. No terceiro capítulo, traceja-se, por fim, aquilo que é entendido, por Marx, no texto em questão, como sendo a emancipação humano-societária: a superação da atividade sensível estranhada e o que corresponderia, para ele, à livre individualidade efetiva. Como último aspecto a aclarar nesta introdução, mencionemos, pois, a edição dos Grundrisse por nós adotada. Tendo em vista não existir, no momento em que realizamos a pesquisa, uma tradução deste texto em língua portuguesa - à exceção da passagem intitulada Formas Anteriores [Vorhergehen] à Produção Capitalista"18 adotamos a tradução francesa publicada, em dois volumes, pelas Editions Sociales de Paris, em 1980, com o título Manuscrit de 1857-1858, "Grundrisse" - à qual todas as citações estão referidas. Apenas quando estritamente necessário, para precisar melhor alguns termos ou expressões, recorremos ao cotejamento desta com o original alemão publicado pela Dietz Verlag de Berlim.

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Idem, p. 22 A tradução de E. Hobsbawm desta pequena passagem dos Grundrisse foi vertida para o português e publicada, com o mesmo título - Formações Econômicas Pré-Capitalistas, pela editora Paz e Terra. Texto que, no entanto, não utilizamos, nesta pesquisa, devido a sua incompletude. 18

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CAPÍTULO I DETERMINAÇÕES GERAIS DA ATIVIDADE SENSÍVEL

Para tratar da produção ou atividade humana sensível nos Grundrisse é preciso, em primeiro lugar, destacar – como Marx o faz, embora mais no sentido negativo, isto é, para ressaltar aquilo que há de específico na forma de produção moderna – as determinações gerais deste complexo categorial. E isto, por duas razões principais. De um lado, porque não apenas os economistas da época de nosso autor, mas toda uma série de interlocutores posteriores do marxismo também, representam a produção "diferentemente da distribuição, etc., como fechada em leis naturais eternas, independentes da história (...). [Sendo que] Na distribuição, ao contrário, os homens se permitiriam, efetivamente, agir com todo tipo de arbitrariedade"19. Neste sentido, a exposição científica, para usar uma expressão de Marx, das determinações gerais ou universais da produção é necessária para que a unidade não oculte o que há de específico, isto é, para que as determinações específicas da produção na sociabilidade moderna não sejam obnubiladas em suas particularidades ontológicas – procedimento do qual decorre a generalização abstrata de tais determinações para todo tipo de sociedade. De outro lado − o que se coloca apenas como complemento ou apêndice do objetivo anterior − tal exposição faz-se necessária no sentido mesmo do objetivo final desta dissertação, o qual consiste precisamente no desvelamento daquilo que corresponderia, neste texto, a um metabolismo humano societário emancipado. Neste sentido, a compreensão daquilo que há de específico ao complexo da produção na sociabilidade do capital − e, portanto, daquilo que é particular a este metabolismo 19

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 , “Grundrisse”, Tomo I, p. 21.

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social e não, determinação a-histórica da produção enquanto tal − é de fundamental interesse na medida em que seja efetivamente compreendido como traço histórico da produção e, portanto, sujeito a alterações. É preciso inicialmente salientar que mesmo as determinações gerais ou abstratas (como Marx também as nomeia) não são entendidas por este autor como determinações a-históricas. Para Marx, "a produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável na medida em que ela destaca e precisa efetivamente os traços comuns, nos poupando, assim, da repetição. No entanto, este Universal, ou este caractere comum, isolado por comparação é, ele próprio, um conjunto articulado complexo cujos membros divergem em determinações diferentes. Certos elementos pertencem a todas as épocas, outros são comuns apenas a algumas. Certas determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Sem elas não podemos conceber nenhuma produção". 20 As determinações gerais da produção não são concebidas como sendo uma substância ou essência única. Ao contrário, enquanto complexo, são diversas. Encontram-se diversamente articuladas e algumas delas, às vezes, mesmo ausentes, em cada forma particular da produção. Embora concebida por Marx como sendo uma abstração razoável − isto é, como uma categoria ou complexo de determinações que reflete, sob a forma de pensamento, a síntese de determinações diversas, o concreto enquanto tal − a produção em geral é sempre uma abstração, serve apenas para efeito da coerente apreensão intelectiva das formas de produção. É preciso ter sempre presente que tais determinações não existem, enquanto tais, articuladas num mesmo conjunto. Por outro lado, ressalta Marx, "a produção também não é unicamente uma produção particular: não é nunca apenas um certo corpo social, um sujeito social que

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exerce sua atividade numa totalidade de ramos da produção, mais ou menos grande ou rica".21 O que deve, portanto, ser apreendido, e que Marx nos deixa apontado em suas anotações, é que se, por um lado, a produção universal em si não existe senão como complexo de determinações que o pensamento apreende como universais, como válidas, no sentido já assinalado, para todas as formas da produção; por outro lado, a produção também não é apenas a pura empiria, ou seja, uma produção particular no interior de uma certa totalidade da produção ou, ainda, uma totalidade concreta de ramos da produção. Depreende-se, pois, o caráter ontológico da análise marxiana. A análise da produção levada a cabo por Marx e reconhecida por ele como sendo o objeto de tais manuscritos, não é nem um estudo de caráter sociológico ou econômico, no sentido tradicional − que tome a produção apenas em seu aspecto particular ou enquanto totalidade específica de ramos da produção − nem tampouco desenvolvimento abstrato de determinações concretas tendo como veio determinativo uma dialética concebida in mente. Não sendo nosso objeto específico discorrer sobre a questão, é preciso, porém, salientar que o trabalho empreendido pelo autor, no texto do qual tratamos, tem o caráter de um reconhecimento do ser-precisamente-assim da forma de produção do capital. Sem a pretensão de esgotar em poucas linhas o assunto, invocamos, aqui, a própria definição de categoria dada por ele neste mesmo texto: "as categorias são, pois, formas de existência [Daseinformen], determinações da existência [Existenzbestimmungen]"22. São, portanto, determinações concretas, muitas vezes, aspectos determinados de uma determinada realidade.

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Id., Tomo I, p.19. Id., Tomo I, p. 20. 22 Id., Tomo I, p. 40. 21

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Marx entende as determinações gerais as mais abstratas como resultado de relações históricas. Tais determinações ou categorias mais abstratas são, elas próprias, produzidas no interior de

relações sociais determinadas, são frutos de

desenvolvimentos específicos ao longo da história concreta dos homens. Não se trata, portanto, de determinações abstratas no sentido de originadas de um autodesenvolvimento de conceitos ou que dão origem a um tal desenvolvimento, mas de forma totalmente autônoma em relação ao movimento real. Ou seja, nem como ponto de partida, nem como ponto de chegada, em nenhuma modalidade de desenvolvimento, tratam-se de categorias abstratas no sentido de descoladas da realidade efetiva das coisas, formas autônomas do pensamento, que se engendrariam por si mesmas. Ao contrário, para Marx, tais determinações são "formas de existência", são formas abstraídas, pelo pensamento, de uma determinada realidade social, para que, em seguida, este mesmo pensamento possa reproduzir, em conceitos, tal realidade como um todo. Pois, segundo Marx, esta é a única forma que possui o pensamento de se apropriar do mundo, qual seja: aquela que vai das abstrações mais simples à reprodução do mais complexo - isto é, do concreto - no pensamento. Esta é a forma que o pensamento tem de se apropriar do concreto, "de reproduzi-lo enquanto concreto do espírito. Mas, não é, de forma alguma, o processo de gênese do próprio concreto. (...)A totalidade concreta, enquanto totalidade de pensamento, enquanto concreto de pensamento, é, de fato, um produto do ato de pensar, de conceber; não é, porém, de forma alguma, o produto do conceito que se engendraria a si mesmo e pensaria fora e acima da intuição e da representação"23. As abstrações são, para Marx, o ponto de partida da elaboração teorética. No entanto, este mesmo ponto de partida é, ele também, Daseinformen, ou seja, é, ele 23

Id., tomo I, p. 35. 21

também, aspecto desta mesma realidade que ele pretende explicar. Não se tratam, pois, de abstrações produzidas pelo cérebro de forma totalmente independente, descolada, do todo mais complexo ao qual elas se referem. Mas, é deste todo que elas se originam. São desenvolvimentos alcançados a partir de abstrações parciais deste todo - o que Marx chama de abstrações razoáveis. O trabalho científico é entendido, por Marx, como sendo a apreensão mental e o desvelamento da concretude em sua multiplicidade e articulação efetivas. Desta forma, "a categoria é (...) complexo ideal que exprime o complexo real (...) A complexidade do real, apreendida numa categoria, é, para Marx, expressão das determinações ontológicas do próprio real, real este que permanece sendo o que é independente, fora, do pensar"24. A categoria ou o trabalho categorial não é, em Marx, mera repetição da forma imediata pela qual a realidade se nos apresenta nem, por outro lado, articulação autônoma do pensar que não tem como fundamento próprio e constantemente presente tal articulação sob a forma do ser. Que uma categoria ou abstração razoável seja, ela mesma, um complexo de determinações que apreende, na forma do pensar, a realidade em sua articulação efetiva e não como abstração, isto fica ainda mais claro quando Marx refere-se ao método da economia política, que parte também do concreto mas, exatamente por não apreender e esgotar este concreto em seus nexos efetivos, acaba por incorrer numa apreensão caótica desta mesma realidade. Após este longo, mas necessário esclarecimento quanto ao caráter das determinações abstratas nos Grundrisse, passemos, pois, à análise daquelas que dizem respeito ao trabalho ou produção em geral. Antes, porém, é preciso atentar que, neste texto de Marx, tal categoria é referida tanto como atividade, quanto como

22

produção ou produção material, como também sob a denominação de trabalho. Sendo a atividade ou atividade sensível referida sempre como sinônimo de trabalho, é preciso observar que já o termo produção significa trabalho - neste sentido de atividade - apenas numa de suas acepções. Produção é trabalho apenas enquanto produção estrito senso, ou seja, a produção pode ser entendida tanto como atividade do indivíduo singular - tal qual a definimos, a partir de Marx, como sendo trabalho como também num sentido mais amplo de metabolismo social que englobaria em si o trabalho, bem como as demais relações travadas pelos indivíduos produtores no interior de seu processo de produção e reprodução de suas vidas. O termo produção pode ter, pois, tanto esta acepção mais geral - a qual não deixa de corresponder à atividade sensível dos indivíduos mas, antes, engloba, no interior desta, todo o processo global da produção societária (como, por exemplo, no sistema metabólico do capital, englobando como próprio a si todo o processo da circulação do capital, todo este processo como aspecto mesmo do processo de produção estrito senso). Como pode, também, produção referir, no texto de Marx, estritamente atividade sensível, o que denominamos "produção estrito senso".

Tal diferenciação será,

entretanto, dispensável, nesta dissertação, na medida em que se objetiva apreender a atividade sensível enquanto totalidade, ou seja, precisamente enquanto complexo de nexos e relações travadas pelos indivíduos sociais em seu metabolismo vital - mesmo porque é também esta a forma pela qual Marx apreende tal categoria no presente texto, não deixando, para isso, de reconhecer a diversidade com a qual ela se apresenta no plano real. Desta forma, embora todas estas denominações, acima referidas, sejam também usadas, aqui, para referir o mesmo complexo categorial, será justamente 24

ALVES, A. L., "A Individualidade nos Grundrisse de Karl Marx", p. 10. 23

aquela que é mais ampla em sua denotação - ou seja, produção - a que predominará como ocorre, também, nos Grundrisse precisamente pelo motivo que viemos de referir, qual seja, a própria concepção abrangente que se tem da categoria atividade sensível.

A) SOCIABILIDADE

A produção humana é um complexo que tem por determinação fundamental, ineliminável, seu caráter social. A sociabilidade é característica inseparável do ato humano de produzir, do trabalho, não só pela natureza em si deste ato, mas pela própria constituição do indivíduo que o leva a cabo. Para Marx, o ser do homem é um ser social. "O viver em comum dos indivíduos é, em Marx, não um momento ou um elemento, o qual definiria a humanidade dos indivíduos ao lado de outros mas, diferentemente, constitui-se como a substância concreta dos indivíduos, a qual delimita, como o dissemos, toda a série de expressões e atividades dos indivíduos." 25 O conjunto específico de relações pretéritas e presentes travadas pelos indivíduos ativos é aquilo que eles são, ou seja, é precisamente o que configura o conjunto de determinações que estes mesmos indivíduos possuem enquanto tais. A sociabilidade é determinação fundamental do ser dos indivíduos humanos porque é aquela que dá forma específica ao modo de ser destes como um todo, isto é, tanto ao modo de ser objetivo dos indivíduos - ao conjunto de suas manifestações e criações como, também, àquele de sua subjetividade - às potencialidades, capacidades e desejos dos indivíduos enquanto tais. Como o diz Marx, os indivíduos só são escravos ou cidadãos porque e enquanto estão em sociedade e não enquanto indivíduos

24

tomados abstratamente. Esta disjunção entre indivíduo e sociedade não só é estranha ao pensamento de Marx, como é precisamente combatida por ele como sendo um dos equívocos em que incorrem, de um lado, Proudhon mas, por outro lado, também, as filosofias do séc. XVIII chamadas por ele de "robinsonadas" - ou seja, que tinham como ponto de partida o indivíduo isolado - e que acabaram por influenciar A. Smith. O fato de que o modo de existência, a forma de ser, particular dos indivíduos só possa configurar-se na e pela sociedade, ou seja, no interior das relações estabelecidas por eles enquanto indivíduos ativos não tem, em Marx, o sentido de uma sobredeterminação de uma esfera sobre outra. Sociedade e indivíduo não se constituem em elementos externos, um em relação ao outro, mas em momentos distintos de uma mesma realidade, qual seja, aquela dos nexos e interações que os homens mantêm entre si na produção e manifestação de suas vidas. O primeiro - a sociedade - consistindo no momento mais geral ou universal daquele modo de ser configurado pelas interações dos indivíduos entre si e o segundo - o indivíduo consistindo neste mesmo modo de ser, mas em sua expressão particular, "como síntese concreta, empírica, material, do conjunto da sociabilidade como entificação relacional".26 Assim é que Marx, refutando a concepção abstrata de sociedade apresentada por Proudhon, nos deixa inequívoca sua concepção de sociedade: "A sociedade não é constituída de indivíduos, mas exprime a soma dos nexos, das relações nas quais estes indivíduos situam-se uns em relação aos outros. É como se alguém dissesse: do ponto de vista da sociedade, não há nem escravos, nem cidadãos, são todos homens. É, ao contrário, fora da sociedade que eles o são. Ser escravo e cidadão são determinações 25 26

ALVES, A. L., op. cit., p. 21. Grifos nossos. Id., p. 22. 25

sociais, relações que implicam os homens A e B. O homem A não é, enquanto tal, escravo. Ele é escravo na e pela sociedade."27 A sociabilidade é, portanto, determinação especificadora, delimitante, como vimos. Mas, ela só o é enquanto uma série de relações estabelecidas e renovadas por estes mesmos indivíduos em seus atos particulares. Como o diz Alves, a partir de Marx, "Os indivíduos, então, realizariam e renovariam, através de cada um de seus atos produtivos, toda a malha societária que os define e os faz humanos"28. São os indivíduos mesmo que estabelecem - mantendo e renovando cada um de seus elos tal ou tal forma de sociabilidade entre si. Não sendo esta última, portanto, uma essência que paira acima deles, por mais cindida e externa que ela possa lhes parecer e que o seja efetivamente. Chegamos, assim, por meio da exposição do caráter fundante da determinação da sociabilidade, àquela que, juntamente com esta última, é determinação constitutiva do ser dos indivíduos: a atividade sensível. A nosso ver, o reconhecimento, em Marx, do caráter fundante da sociabilidade no ser dos homens passa precisamente pelo - isto é, é simultâneo ao - reconhecimento do homem como ser ativo. Extrapolando, porém, nosso intento apontar a gênese deste reconhecimento neste autor, o que deve ficar claro é a relação intrínseca entre estas duas determinações essenciais do ser concreto dos indivíduos. Para Marx, o homem é ser social precisamente porque se auto-constitui, produzindo sua vida própria ao produzir outros seres, e, ainda, porque o faz sempre por meio e no interior de uma dada sociabilidade: "Toda produção é apropriação da natureza pelos indivíduos por intermédio e de dentro de uma sociedade 27 28

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 , “Grundrisse”, tomo I, p. 205. ALVES, A. L., op. cit., p. 20. 26

determinada"29. A sociedade é o conjunto de interações que necessariamente se posiciona na relação entre o homem e o mundo, possibilitando que esta última se efetive e, ao mesmo tempo, lhe dando sua forma específica. Ou seja, ela é a condição de possibilidade da produção e auto-produção dos homens e, portanto, da própria existência humana - já que esta última só é, para Marx, enquanto vida de indivíduos ativos. Por outro lado, os indivíduos se realizam enquanto seres sociais, são seres humanos, pelo próprio fato de se efetivarem como seres ativos, que produzem suas próprias condições de vida. É sempre útil lembrar que, segundo Marx, "Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas, eles próprios começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida (...) Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material"30. A determinação da atividade sensível é exatamente aquela que constitui os indivíduos humanos como indivíduos genéricos. Pelo trabalho, o homem se reproduz e produz outros seres se auto-superando em sua particularidade. Ou seja, não apenas produz e reproduz a si mesmo enquanto individualidade, produzindo sua própria vida material ( o que já seria, por si só, um avanço considerável sobre outras formas de ser, na medida em que esta produção tem como base a superação crescente das determinações naturais, como o veremos), como também, e pelo mesmo ato, produz e reproduz sua própria espécie. A produção humana tem como uma de suas características fundamentais o fato de ser produção para outro. Como o diz Marx, em aditamento ao reconhecimento da reciprocidade como sendo uma característica da produção humana, não se vê em nenhuma outra modalidade de ser que um indivíduo 29 30

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p.21. MARX, K., A Ideologia Alemã I, p. 19. 27

X produza para um outro indivíduo diferente dele. "Que esta necessidade de um possa ser satisfeita pelo produto do outro e vice-versa, que um seja capaz de produzir o objeto da necessidade do outro e que cada um se apresente ao outro como o proprietário do objeto de sua necessidade, isto prova que cada um supera, enquanto homem, sua própria necessidade particular, etc. e que eles se comportam, um em relação ao outro, como homens (...). Aliás, não acontece que elefantes produzam para tigres, ou que animais produzam para outros animais. Um exemplo. Um enxame de abelhas forma, no fundo, apenas uma só abelha e todos produzem a mesma coisa". 31 A diversidade de necessidades e produção revela-se, por sua vez, condição fundamental da existência sob a forma de reciprocidade. É exatamente devido a suas diferenças ou singularidades que os indivíduos sociais são capazes de se porem em relação. Como bem o expressa Marx, a igualdade natural de necessidades - como a necessidade de respirar, por exemplo - não cria entre eles nenhum tipo de relação. É enquanto diversos que os indivíduos têm necessidade uns dos outros. Diversidade, esta, que, assim como todas as demais determinações humanas, é produzida e ampliada pelo próprio intercâmbio produtivo na medida em que ocorre, de forma simultânea e como resultado deste, o afastamento cada vez maior em relação às determinações naturais e a ampliação dos objetos e necessidades sociais produzidos o que veremos nas próximas seções. O que deve ficar claro, aqui, quanto à reciprocidade intrínseca ao agir humano - quanto ao fato de que um indivíduo possa satisfazer a necessidade do outro e de que também possa ter satisfeita a sua necessidade própria com o objeto da produção do outro - é que a especificidade do homem é dada em sua prática, em seu agir próprio.

31

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 184. 28

Para Marx, o homem só se constitui efetivamente como ser genérico, como ser social, com o desenvolvimento histórico real de sua atividade. Os homens, como vimos, são e sempre foram seres sociais. Nas formações sociais que antecedem aquela da modernidade - e, segundo Marx, quanto mais se afasta desta, mais isto se patenteia - a sociabilidade não só é pressuposto fundamental da produção dos indivíduos, como ela aparece mesmo como um dado natural e imediato, no interior e exclusivamente no interior do qual é possível a existência do indivíduo ativo. "Quanto mais voltamos no curso da história, mais o indivíduo - e, em seguida, o indivíduo produtor também - aparece num estado de dependência, membro de um conjunto maior: este estado se manifesta, primeiro, de forma natural, na família e na família ampliada em tribo, em seguida, nas diferentes formas da comunidade que resulta da oposição e da fusão das tribos."32 Quanto mais se afasta do período moderno, menos o indivíduo existe enquanto tal - com relativa autonomia mais ele é elemento de um todo maior e mais ele está imediatamente a este subsumido. A individualização é resultado de todo um desenvolvimento do modo de produção dos homens. Desenvolvimento este que permite certa desvinculação do indivíduo singular com as condições originárias de existência, as quais, por sua vez, estão, neste momento, ainda vinculadas à comunidade. O surgimento do indivíduo, tal como o conhecemos na modernidade, resulta da distinção do homem em relação às demais condições objetivas do trabalho. O indivíduo deixa de ser mero elemento do processo de produção, para tornar-se trabalhador livre, fim em si do trabalho - o que veremos melhor em outro momento. Enquanto, nas formas anteriores da produção, o indivíduo ativo não só dependia para sua produção de uma comunidade natural, como só existia como

29

indivíduo ativo exclusivamente no interior daquela comunidade - em relação à qual ele não tinha a menor chance de escolha - na forma moderna da produção, este indivíduo encontra-se desprendido em relação a todos os laços de propriedade natural anteriores. Encontra-se livre em relação a todas as condições inorgânicas de existência consideradas como condição natural de produção - por exemplo, a terra - e, ao mesmo tempo, em relação à forma de comunidade pressuposta por todas estas relações de propriedade anteriores. O processo pelo qual o homem deixa de ser apenas uma dentre as demais condições objetivas de produção, consiste, portanto, na dissolução de todas estas formas sociais em que tal existência subjetiva - enquanto condição objetiva de produção - supõe as comunidades como condição de produção. "O homem começa a individualizar-se apenas pelo processo histórico. Ele aparece, originalmente, como ser genérico, ser tribal, animal de rebanho (...). A própria troca é um meio essencial desta individualização. Ela torna supérfluo o sistema de rebanho e o dissolve. Desde que a coisa tomou uma tal configuração, que o homem, enquanto indivíduo singularizado, se relaciona apenas consigo mesmo, mas que, ao mesmo tempo, os meios de se pôr como indivíduo singularizado tornaram-se o ato pelo qual ele se torna universal e comum".33 Muito embora os homens sempre tenham sido seres sociais e a sociabilidade seja uma característica intrínseca a sua existência e, portanto, a sua atividade. Muito embora, de outro lado, a produção, sob sua forma moderna, seja aquela onde os indivíduos apareçam, como vimos, da forma a mais livre em relação à comunidade e apareçam mesmo como indivíduos isolados − indiferentes e independentes em relação à sociedade; a forma moderna da produção é aquela na qual a determinação 32 33

Id., Tomo I, p. 18. Id., Tomo I, p. 434. 30

humana da sociabilidade ganha traços ainda mais efetivos. Este modo de produção possui como um de seus traços fundamentais aquele pelo qual necessariamente o indivíduo não produz visando à satisfação de suas necessidades pessoais, mas unicamente visando satisfazer necessidades sociais. O valor de troca sendo o que, aí, predomina, não se tem em vista outra coisa que não a realização social do objeto produzido, ou seja, sua realização para outro, sua trocabilidade. Esta forma assumida pelo trabalho possui como mediação necessária a sociedade em geral. Portanto, a forma moderna da produção humana sendo, ao mesmo tempo, aquela em que os indivíduos ativos encontram-se mais isolados uns em relação aos outros e possuindo, como o veremos, suas relações e modos de interdependência como algo que lhes é externo - apenas como meio para realizarem seus próprios fins é, na verdade, aquela em que tais formas de interdependência desenvolveram-se, intensa e extensivamente, mais que nas formas históricas antecedentes do trabalho. Ou seja, mesmo na sociabilidade do capital, onde os indivíduos produtores são trabalhadores livres e aparecem como indivíduos à busca exclusivamente de seus interesses privados, tais indivíduos são, ao contrário, aí mesmo, mais dependentes uns dos outros que nas formas antecedentes de produção. A interdependência é a base mesmo de sua atividade. "Esta dependência recíproca se exprime na necessidade constante da troca e no valor de troca enquanto mediador multilateral"34. A produção e o próprio ser ativo não se realizam aí sem a mediação da troca. O indivíduo produtor é totalmente dependente do outro, das relações cada vez mais universais, para a realização de si mesmo - tanto em sua produção, quanto em seu consumo. Marx mostra que o que aparece aos economistas como interesses unicamente privados - de cujo confronto resultaria, como num passe mágico ou por obra do acaso,

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o interesse coletivo - que tais interesses são, na verdade, postos, definidos, pela sociedade - pelos indivíduos, sim, mas em determinadas relações, em determinada forma do agir: "A astúcia suprema é, ao contrário, que o interesse privado, ele próprio, já é um interesse determinado socialmente e que só podemos alcançá-lo no quadro das condições postas pela sociedade e com os meios que ela dá; portanto, está ligado à reprodução destas condições e meios. É o interesse dos indivíduos privados, mas seu conteúdo, bem como a forma e os meios de sua realização são dados por condições sociais independentes de todos"35. A sociedade, a forma como os indivíduos encontram-se relacionados - a qual possui certa independência em relação a cada um deles, ao mesmo tempo que é o produto de sua interação com os demais - é que fornece a estes últimos as condições, os meios e os próprios fins de sua atividade. Como vimos, a interatividade é a condição de possibilidade do ser dos homens precisamente porque é a condição de possibilidade de sua efetivação, de sua autoposição como ser efetivo, concreto. Ela circunscreve, dá forma específica a todos os elementos da atividade sensível: seus objetos e meios, como, também, ao trabalho do indivíduo enquanto tal, ou seja, enquanto atividade com vistas a um fim. Daí porque "Quando falamos, pois, de produção, trata-se sempre da produção em um estágio determinado do desenvolvimento social, da produção de indivíduos sociais". 36 A decorrência necessária do reconhecimento da produção humana como sendo, antes de mais nada, atividade social é o fato de que tal relação, a relação de produção, só pode ser corretamente apreendida, para Marx, no interior de sua gênese histórica, de sua particularidade social. E a apreensão das determinações gerais da produção - denominadas, por Marx, quando subjacentes ao processo de produção do 34 35

Id., Tomo I, p. 91. Idem 32

capital, como "determinidade material do processo" ou, ainda, "simples processo de produção" (em oposição ao processo enquanto "processo de auto-valorização", ou seja, enquanto posto em sua determinidade formal) - confirma-se como apoio necessário, como já começamos a testemunhar, no sentido de permitir o desvelamento concreto da formação social moderna em suas determinações específicas.

B) TRANSITIVIDADE ENTRE SUJEITO E OBJETO

Como antecipamos no final da seção anterior, os elementos essenciais, constitutivos da atividade sensível ou, ainda, seus "elementos simples", como Marx os nomeia em O Capital, são a atividade direcionada a um fim, seu objeto e seus meios. "O trabalho supõe a existência de um instrumento que facilita o trabalho e de um material que o trabalho forma, no qual ele se representa."37 Matéria e instrumento são os modos de existência material do trabalho vivo: seus meio e objeto de efetivação. O trabalho, enquanto atividade formadora, de apropriação humana da natureza, se utiliza desta natureza tanto como objeto - sobre o qual inscreverá seus objetivos - quanto sob a forma de meio - ele próprio, já natureza formatada, como veremos - que lhe facilita alcançar tais resultados. Ou seja, no que diz respeito a suas

36 37

Id., Tomo I, p. 19. Id., Tomo I, p. 294. 33

condições objetivas, o trabalho possui, de um lado, a matéria ou objeto sobre o qual realiza seus fins e, de outro lado, a matéria sob a forma de instrumento facilitador. Mas, além de objetos e meios, o trabalho constitui-se, também, de um fim. Marx entende o trabalho como sendo atividade orientada e adequada a um fim: "O trabalho é uma atividade adaptada a um fim e é por isto que, do lado material, pressupõe-se que, no processo de produção, o instrumento de trabalho foi efetivamente utilizado como meio em vista de um fim e que o material bruto recebeu, enquanto produto, (...) um valor de uso superior àquele que ele possuía antes." 38 A determinação do sujeito aparece fundamentalmente como teleologia e atividade adequada a ela. Como aparecerá nas seções seguintes, uma série de outras determinações são envolvidas e desenvolvidas neste complexo categorial. Trata-se, porém, aqui, de considerar este último, em seus elementos básicos, em seu ponto de partida e não ainda em toda sua processualidade. Para Marx, a teleologia - o fato do sujeito ativo possuir em mente o que deve alcançar com sua ação - é característica distintiva da atividade humana, é aquilo que, juntamente com a reciprocidade, a distingue da atividade dos animais. Mas, o que deve ser apreendido, neste ponto, é que o trabalho, enquanto atividade adequada a um fim, é apenas um dos elementos da atividade sensível. Ou seja, que esta última não é simplesmente atividade subjetiva: "a atividade sem objeto não é nada ou, no melhor dos casos, é atividade intelectual, da qual não nos ocupamos aqui."39 Não se trata, pois, de exteriorização do sujeito a qual ocorreria independentemente do mundo objetivo. Ao contrário, este último é condição intrínseca desta exteriorização. Não apenas os sujeitos ativos são, eles próprios, seres objetivos, concretos, como também 38 39

Id., Tomo I, p. 250. Id., tomo I, p. 34

a manifestação de suas vidas é manifestação efetiva, que ocorre em e por meio de condições objetivas. O desvelamento, por Marx, do complexo categorial da atividade sensível pressupõe sua crítica primeva à filosofia hegeliana e a instauração de seu pensamento próprio. Pressupõe o reconhecimento, por ele, da objetividade como determinação fundamental do homem e de suas condições de vida. "O discurso marxiano reconhece o multiverso sensível enquanto fato objetivo, pois, trata-se de uma reflexão que visa estabelecer o núcleo substancial dos seres enquanto objetividade sensível, em oposição às determinações especulativas da abstração enquanto ser." Em decorrência, continua o mesmo autor, "quando Marx demanda o reconhecimento do ato histórico fundamental que é a produção da própria vida, é necessário compreender que esta se manifesta no interior das articulações e interações dinâmicas da objetividade." 40 A produção da própria vida - ou seja, o trabalho - é, para Marx, produção efetiva de seres objetivos a partir de sujeitos e objetos eles próprios objetivos. Isto porque "O ser objetivo cria e põe apenas objetos porque ele próprio é posto por objetos, porque é originariamente natureza. No ato de pôr, não cai, pois, de sua atividade pura em criação do objeto, senão que seu produto objetivo apenas confirma sua atividade objetiva, sua atividade como atividade de um ser natural e objetivo."41 Feita esta consideração que, embora não seja mais objeto de tratamento específico nos Grundrisse - na medida em que a determinação da objetividade é, como o dissemos, já pressuposta como ponto de partida mesmo de tais manuscritos julgamos prudente reforçá-la aqui, voltemos a nos moutons. Os elementos essenciais da produção, presentes em todas as formas sociais desta são, em suma, o sujeito que 40 41

CHASIN, M. "O Complexo Categorial da Objetividade...", p. 107. MARX, K., Manuscritos Econômico-Filosóficos, Col. Os Pensadores, p. 46. 35

produz - a humanidade - e o objeto que sofre as alterações na produção - a natureza. Tais elementos não aparecem, porém, cada qual de forma isolada: como pura subjetividade ou subjetividade dada, de um lado, e pura objetividade ou objetividade dada, de outro. Pois, sujeito e objeto são configurados na atividade sensível, isto é, resultam da interação que ocorre a partir da relação apropriativa. A transitividade entre subjetividade e objetividade é a segunda característica fundamental de toda atividade sensível e de seus resultados objetivos e subjetivos. Nem o sujeito da ação, suas potencialidades e fins, é subjetividade no recesso de toda e qualquer determinação concreta e objetiva, nem seu objeto, a natureza, é pura objetividade ou natureza inerte. Para Marx, o homem apenas parte, "originalmente", de condições naturais inorgânicas não produzidas ou modificadas por ele; já que "As condições originais da produção (...) não podem, originalmente, ser elas mesmas produzidas, ser resultados da produção."42 O homem parte de uma base que, assim como ele próprio, não é resultado de sua ação. Mas, no momento mesmo em que começa a se reproduzir, é acionado ou desencadeado, por ele, todo um processo de produção / transformação de seres, o qual se inicia pela produção daqueles que lhe servem de meios de ação. Desde o momento em que ele inicia seu processo de produção propriamente dito, qual seja, aquele descrito por estas determinações gerais; desde o momento em que ele não se reproduz mais apenas sob a forma da caça, da coleta e da criação de animais - as quais se constituem, segundo Marx, como situações transitórias "e, em nenhum caso, como situações normais e ainda menos como situações primitivas normais" 43 rapidamente superadas na medida em que vai se tornando necessária a elaboração de 42 43

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 426. Id., Tomo I, p. 430. 36

instrumentos para mediar a relação do homem com tais condições originais de existência. Desde este momento muito tenro da existência humana, as condições da auto-produção desta tornam-se, mais e mais, condições sociais de existência, resultados da elaboração humana. "As formas de objetividade do ser social se desenvolvem à medida que surge e se explicita a praxis social, a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais claramente sociais"44, como precisa Lukács a este respeito. Embora o homem parta de condições não postas por ele, é preciso lembrar, porém, que mesmo a habilidade adquirida pela mão do primitivo é, também ela, num certo sentido, instrumento, meio de produção. "Não há produção possível sem

44

LUKÁCS, G., Ontologia do Ser Social - Os Princípios.., p. 17. 37

trabalho passado, acumulado - seja ele a habilidade que o exercício repetido armazenou e concentrou na mão do selvagem."45 As formas as mais primitivas de produção são, portanto, elas próprias, produção ou modelagem de suas próprias condições de produção, sejam, estas, as habilidades ou capacidades do sujeito. O que Marx pretende explicar não são as condições ou base original encontradas pelo homem, mas, ao contrário, a forma pela qual ele se reproduz a partir desta base: "Não é a unidade dos homens vivos e ativos com as condições naturais inorgânicas de sua troca de substância (Stoffwechsel) com a natureza nem, por conseguinte, sua apropriação da natureza que pede para ser explicada ou que é o resultado de um processo histórico, mas a separação entre estas condições inorgânicas da existência humana e esta existência ativa." 46 De outro lado, não se trata, também, de percorrer o processo de desenvolvimento histórico em suas diferentes etapas - procedimento explicitamente refutado, já no início dos Grundrisse, como não sendo o adotado por ele. O que interessa a Marx é, ao contrário do estabelecimento de uma genealogia dos modos de produção, esclarecer as determinações mais desenvolvidas do complexo da produção humana, quais sejam, aquelas que se nos apresentam em sua forma mais abstrata porque resultadas do desenvolvimento último; unicamente a partir das quais, inclusive, é possível, segundo este autor, delinear aquelas mais gerais, de que tratamos neste capítulo. Em outras palavras, concordamos com Lukács quando ele diz que Marx não está olhando "para trás (...) mas, sim, para a frente, para uma sociedade na qual tem lugar uma divisão do trabalho desenvolvida (...)"47.

45

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 19. Id., tomo I, p. 426. 47 LUKÁCS, G., op. cit., p. 141. 46

38

Voltando, pois, novamente a nos moutons, sujeito e objeto estão em permanente simbiose em todos os momentos da produção, tanto naqueles subjetivos, quanto nos objetivos. As condições objetivas da atividade só vêm a ser o que são quando correspondem aos desejos e objetivos do ser ativo e são efetivamente acionadas por ele. Por outro lado, o próprio sujeito da ação se efetiva enquanto sujeito apenas na medida em que dá vida a suas potencialidades e desejos na relação apropriativa que estabelece com sua mundaneidade. Aspectos que examinamos nas seções que seguem.

C) PRODUÇÃO DE OBJETIVIDADES SOCIAIS

A atividade humana sensível não é apenas ato pelo qual os sujeitos se reproduzem na medida em que se mantêm vivos pela apropriação, pela incorporação em si, da objetividade demandada por sua constituição física objetiva. Ela é, também, ato de formatação, ato pelo qual o homem torna apropriado a si seu mundo objetivo. Através dela, os indivíduos não apenas tomam para si a natureza - a qual, justamente pelas razões que se tenta demonstrar aqui, nunca é, para Marx, natureza pura, em oposição ao mundo humano - mas, a transformam, adequando-a a si mesmos. O material ou objeto recebe, no trabalho, "um valor de uso superior àquele que ele possuía antes"48, isto é, torna-se ainda mais útil ou adequado aos homens que em sua forma anterior. A atividade de trabalho é precisamente aquela da valorização, do aumento do valor das coisas, pela dação de forma nova e criação de objetividades adaptadas a fins humanos.

48

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 250. 39

A terceira característica da categoria 'trabalho' em geral é, portanto, a de ser atividade produtora de objetividade social. Como vimos, o homem faz-se ser social na medida em que é capaz de produzir para outro e de satisfazer sua necessidade com o objeto da produção de outrem. E, isto, na exata medida em que, em sua produção, é capaz não apenas de transcender sua necessidade particular, produzindo o objeto da necessidade de outro, mas também e, antes de tudo, porque é capaz de produzir objetos da necessidade humana. Ele parte da materialidade sensível, de objetos existentes, para dar a estes objetos uma forma previamente idealizada por ele. "É importante destacar que, conforme Marx, graças ao aspecto subjetivo do trabalho, a teleologia, é possível chegar à condição de seres determinados objetos que não poderiam ser produzidos pela natureza, sendo esta uma das propriedades objetivas do trabalho humano: criar novas objetividades, objetividades não-naturais, portanto, objetividades humano-sociais"49. A prévia ideação, no entanto, traz consigo, também, a atividade cognitiva pela qual o sujeito, por sua vez, se apropria idealmente do ser dos objetos respeitando sua legalidade material, para só então poder afeiçoá-los a sua vontade. Como atesta Alves, a partir dos Grundrisse, "Não é a atividade humana uma realização autosuficiente, uma criação de coisas ex-nihilo, mas, ao contrário, é um ato no qual os indivíduos plasmam a matéria determinados pela realidade da matéria mesma." 50 A finalidade que orienta as ações do indivíduo ativo não é estabelecida a partir do nada ou de um atributo exclusivo do sujeito. Também em seu momento ideal, a atividade sensível é pautada pela transitividade entre sujeito e objeto. Ela só se realiza enquanto

49 50

VILASSANTI, E. C., "O Complexo Categorial da `Atividade Humana` na Obra Marxiana", p. 93. ALVES, A.L., op. cit., p. 31. 40

pôr teleológico na medida em que toma em consideração as características intrínsecas à objetividade com a qual se relaciona, na medida em que a conhece. A atividade cognitiva é condição mesmo para o estabelecimento, pelo sujeito, dos objetivos adequados e factíveis na condução de sua ação. Ela não implica, portanto, uma subsunção passiva do sujeito ao objeto de sua ação: "a apropriação dos objetos pelos sujeitos, aparece da mesma forma, de outro lado, como modelagem, submissão dos objetos a um fim subjetivo; transformação dos objetos em resultados e reservatórios da atividade subjetiva"51. O conhecimento da conformação material específica do objeto da ação é importante justamente no sentido de conduzir a bom termo a "atividade formadora e conforme a um fim"52. Para Marx, trabalho é atividade que dá forma, aquela pela qual é promovida a humanização da natureza pelos indivíduos: "A natureza não constrói nem máquinas, nem locomotivas, nem caminhos de ferro, nem telégrafos elétricos, nem máquinas de fiar automáticas, etc. Trata-se de produtos da indústria humana: material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de seu exercício na natureza."53 Resultado da ação humana sobre a natureza, é a sociabilidade que se estabelece, ela mesma, como objetividade, como realidade cada vez mais concreta. E como, para Marx, tal objetividade posta pelo homem, a partir da objetividade pré-existente, não é objetividade abstrata - "O objeto não é um objeto em geral, mas um objeto determinado, que deve ser consumido de uma maneira determinada"54 - da criação de objetos cada vez mais sociais, cada vez mais afastados da legalidade objetiva natural, resulta, por sua vez, a ampliação, também, das

51

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), Tomo I, p. 426. Id., tomo I, p. 237. 53 Id., tomo II, p. 194. 54 Id., tomo I, p. 26. 52

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necessidades. Estas tornam-se, simultaneamente, cada vez mais diversas e determinadas. Pois, produção e consumo - assim como os demais momentos da produção social - estão em relação de recíproca determinação. Em termos bastante sintéticos55, a produção determina o consumo - o objeto e a forma específica deste - e o consumo determina a produção - o objeto desta sob a forma de representação. Mas, a produção também põe o consumo enquanto tal (e não apenas seu objeto): "Por outro lado, a produção produz o consumo criando o modo determinado do consumo e, em seguida, fazendo nascer o apetite do consumo, a faculdade de consumo, sob a forma de necessidade" 56. As necessidades dos indivíduos resultam, são postas por sua própria produção. Aquilo que eles produzem delimita a forma de seu consumo: "a fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com garfo e faca, não é a mesma que engole carne crua com a ajuda das mãos, das unhas e dos dentes."57 Forma, esta, que define o próprio consumo enquanto tal, aquilo que ele é enquanto apetite, enquanto carência. Ou seja, a produção determina não apenas materialmente o consumo mas, também, idealmente, produzindo tais objetos também sob a forma de necessidade nos indivíduos. "A produção não fornece, portanto, apenas um material à necessidade, ela fornece, também, uma necessidade a este material. Quando o consumo se afasta de sua rusticidade natural e perde seu caráter imediato - e o fato mesmo de nela se deter seria ainda o resultado de uma produção assentada na rusticidade natural - tem, ele mesmo, enquanto pulsão, o objeto por mediador."58

55

Não se trata, aqui, de expor todas as determinações em que cada momento da produção em geral - no caso, o da produção propriamente dita e o do consumo - aparece frente ao outro, mas de enfocar sucintamente a relação entre eles no que diz respeito especialmente à determinação da necessidade. 56 Id., tomo I, p. 28. 57 Id., tomo I, p. 26. 58 Idem. 42

Através do trabalho, portanto, os indivíduos não somente adequam às suas necessidades a objetividade existente, como também modificam e ampliam o gradiente destas necessidades. Resultando de sua produção objetividades e necessidades cada vez mais específicas e diversas em relação às anteriormente postas.

D) EFETIVAÇÃO DE POTENCIALIDADES HUMANAS

Se, por um lado, trabalho é subjetivação de objetividades - no sentido que acabamos de ver, qual seja, de "submissão dos objetos a um fim subjetivo" 59 - por outro, ele é, também, objetivação de potencialidades humanas, expressão de vida. A relação apropriativa que os indivíduos estabelecem com a natureza é aquela mesma que promove entre eles sua humanização, ou seja, que os constitui efetivamente como seres sociais. Isto porque, nesta relação, eles não só se diferenciam objetivamente das demais ordens de seres por se mostrarem capazes de produzir para outro e de realizar, com sua produção, um progressivo afastamento em relação às determinações naturais objetivas - construindo um mundo que lhes é próprio - como, também, é por ela, por sua relação com a natureza, que os indivíduos se objetivam, tornando efetivas suas forças essenciais. A relação do homem com a natureza, em Marx, está muito longe de ser aquela de uma oposição ou de um compartilhar indiferente de cadeias causais (de ordem biológica) ou de mero proveito físico para o homem. O indivíduo social não apenas é natureza objetiva orgânica e inorgânica - sendo, a natureza exterior a ele, sua própria natureza inorgânica, resultado mesmo de sua ação - como só existe e se desenvolve

59

Id., tomo I, p. 426 43

objetivando-se por meio de sua exteriorização. Para Marx, "Toda produção é uma objetivação do indivíduo". 60 A exteriorização humana por meio da atividade vital não é apenas negação ou consumo de forças. Para Marx, ela é, sobretudo, ato positivo, consumo produtivo. Consumo objetivo e subjetivo mas, acima de tudo, criação, produção do novo, através da efetivação de potencialidades. "Assim, pois, a matéria-prima é consumida sendo modificada, formatada pelo trabalho; e o instrumento é consumido por seu uso, sendo usado neste processo. De um outro lado, o trabalho também é consumido na medida em que ele é empregado, posto em movimento e na medida em que, assim, é despendida uma certa quantidade de força muscular, etc. do trabalhador - dispêndio no qual ele se esgota. No entanto, o trabalho não é apenas consumido, mas ele passa, ao mesmo tempo, da forma de atividade àquela de objeto, de repouso, em que ele é fixado, materializado; modificação inscrita no objeto, ele modifica sua própria configuração e, de atividade, torna-se ser."61 A modificação que aparece como modificação do objeto é, também, alteração na ordem do próprio sujeito. Objetivando-se, por meio da atividade, este último resulta, ele próprio, transformado. Aquilo que, antes, nele, se configurava apenas como potência, mera possibilidade, torna-se realidade efetiva. "No próprio ato da reprodução, não são apenas as condições objetivas que mudam - por exemplo, o vilarejo torna-se uma cidade, a natureza selvagem, terra destrinchada, etc. - mas, os produtores também mudam, extraindo de si mesmos qualidades novas, se desenvolvendo, se transformando a si mesmos por meio da produção, constituindo forças novas e idéias, novos meios de comunicação, novas 60 61

Id., tomo I, p.164. Id., tomo I, p. 239. 44

necessidades e uma nova linguagem."62 É na relação que os indivíduos estabelecem entre si, em sua atividade apropriativa em relação à natureza, que estes mesmos indivíduos se desenvolvem como seres diferenciados, portadores de capacidades e potencialidades específicas. Manifestando suas vidas, ou seja, produzindo de uma determinada forma, vêem se desenvolverem a si mesmos como sujeitos específicos, determinados - capazes ou não de determinada linguagem, de expressar e desenvolver determinados sentimentos ou valores, etc. Subjetividade e objetividade configuramse, pois, efetivamente, como dois lados de um mesmo ser - diferenças no interior de uma mesma unidade - que se desenvolve objetivamente por meio da atividade. Sobretudo, o que é importante apreender, quanto a esta determinação do trabalho, é que a relação do indivíduo com suas próprias disposições dá-se, para Marx, exatamente através desta exteriorização, através de sua relação com o mundo pela atividade. A relação do sujeito com suas capacidades e potências não ocorre no recesso de uma subjetividade interior, isolada, mas, ao contrário, na relação que ele estabelece, enquanto sujeito ativo, com o mundo, com as propriedades da objetividade com a qual ele interage. Relação na qual ele terá ou não realizados seus fins. Marx explicita isto numa de suas críticas a Smith: "É verdade que a medida do trabalho aparece dada pelo exterior, pela finalidade proposta e pelos estorvos que o trabalho deve suplantar para a sua consecução. Mas, A. Smith, assim, não suspeita que superar obstáculos possa ser, em si, uma atividade de liberdade e que, por outro lado, de resto, as finalidades exteriores mantêm, sob uma forma desnudada, a aparência de uma necessidade natural simplesmente externa, mas são postas como finalidades que o indivíduo fixa, ele mesmo, de antemão - possa ser, pois, a auto62

Id., tomo I, p. 431. 45

efetivação, a objetivação do sujeito e, por aí mesmo, a liberdade real cuja ação é precisamente o trabalho."63 Há, para Marx, uma relação intrínseca entre o esforço, o dispêndio de energia por parte do sujeito e o desenvolvimento de suas capacidades e potencialidades. Como referimos acima, pelo ato de apropriação da natureza, ele não apenas se objetiva como, também, se consome: "o indivíduo que desenvolve suas faculdades produzindo, também as despende, as consome, no ato de produção."64 A produção é, também, consumo de forças, de vitalidade. Ela só se confirma como objetivação, como pôr teleológico do sujeito, na relação deste com os obstáculos postos pela materialidade65. Portanto, um dos aspectos da crítica de Marx a Smith é o fato de que, para o primeiro, a atividade de superar, na efetividade, obstáculos concretos, reais - o trabalho - é, em si, uma "atividade de liberdade". É por ela que pode ou não se verificar a realização dos fins pretendidos pelos indivíduos ativos. A finalidade e medida do trabalho, os parâmetros que definem a forma e o conteúdo deste, aparecem como postos pelo exterior, ou seja, como algo que coage unilateralmente o indivíduo e a que ele deve necessariamente se submeter em sua ação. Isto se deve, em primeiro lugar, ao fato de que se tratam de finalidade e medida adequadas, conformes, a uma objetividade efetivamente externa, independente do indivíduo enquanto tal. Como vimos, tratam-se de fins estabelecidos pelos próprios sujeitos da ação, os quais devem, porém, para serem efetivados, se adequar à

63

Id., tomo II, p. 101. Id., tomo I, p. 24. 65 É importante observar que, ao revelar a produção como sendo, em todos os seus momentos, também consumo, Marx refuta a concepção corrente entre os economistas pela qual a cada momento do processo global da produção - produção stricto sensu, distribuição, troca e consumo - corresponderia um aspecto totalmente distinto e específico. No interior do silogismo estabelecido por tal concepção, o consumo estaria posicionado apenas no final do processo, quando a produção entra como insumo para cada indivíduo singular. A análise de Marx revela, ao contrário, que todos estes momentos 64

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materialidade a ser trabalhada. Marx revela, no entanto, que o fato de tal teleologia não ser estabelecida sobre parâmetros exclusivamente ideais, não se mostrar como finalidade estabelecida única e exclusivamente pela cabeça do sujeito, não anula mas, antes, confirma o caráter de auto-efetivação do sujeito. Superar obstáculos reais é precisamente o que constitui a liberdade real. Mesmo porque a necessidade de superálos é, na verdade, estabelecida pelos próprios sujeitos da ação. Por meio desta ação na qual se estabelece, portanto, uma dialética efetiva entre os objetivos do agente e a legalidade material que os coage numa certa direção - eles se põem como sujeitos reais, efetivos, capazes de terem seus fins efetivados. Desta importante passagem dos Grundrisse, concluímos, assim, que: 1) os estorvos a serem superados pela ação não são estorvos que recaem inexoravelmente, do exterior, sobre os sujeitos, mas só se põem como obstáculos ou limites a serem superados por decisão dos próprios sujeitos; 2) liberdade não significa absoluta independência ou oposição à materialidade ou natureza externa, mas, ao contrário, é liberdade real precisamente quando se realiza na ação. Mas, isto não é tudo. Além das barreiras ou limites externos intrínsecos à atividade sensível, pode haver, ainda, aqueles postos pela sociabilidade específica em que a mesma se situa. As condições sociais, o modo como estão organizadas as relações sociais, podem configurar-se como coações ou limites impostos à atividade humana sensível. Tratam-se, porém, de constrangimentos estabelecidos, fixados, pela forma apropriativa vigente em cada formação social específica. São, pois, limites contingentes, diferentemente daqueles que viemos de referir, os quais são parte constitutiva, são intrínsecos ao trabalho em geral. Assim, se, nas sociabilidades

objetivação do sujeito e subjetivação de objetos - estão postos no interior da própria produção, são momentos desta. 47

primitivas, o indivíduo tinha sua vida ativa contida no interior de uma relação de dependência imediata tanto com a comunidade, quanto com a natureza, a sociabilidade moderna circunscreve a atividade sensível dos indivíduos no interior de limites que lhe são próprios. E desta forma é que Smith vê o trabalho não como atividade de efetivação do indivíduo mas, ao contrário, como submissão total deste a condições e finalidades externas e hostis a ele. Smith confunde, pois, aquilo que Marx distingue: a coação intrínseca ao trabalho - posta na forma de um auto-controle do sujeito em relação a uma legalidade dada, objetiva, que opõe àquele limites concretos a serem suplantados, subvertidos e, de outro lado, a forma social sob a qual o trabalho se apresenta, ele próprio, como estorvo ao indivíduo. Segundo Marx, olhando-se apenas o aspecto da negatividade do trabalho, não se alcança o ser-precisamente-assim - fazendo nossa uma expressão lukacsiana - desta atividade nem mesmo sob o modo de produção do capital - que, segundo ele, é o único em que Smith está pensando. Pois, aí também, ele é positividade, é posição / produção de ser: "Considerar o trabalho unicamente como sacrifício e como instância que põe valores porque é sacrifício; como preço que é pago pelos objetos e lhes dá, por sua vez, preço, segundo eles custem mais ou menos trabalho, é uma determinação puramente negativa. (...) Uma coisa puramente negativa não produz nada."66 A distinção destas duas formas de limite ou coação é fundamental em Marx. Como se sabe, trabalho não é, para ele, necessariamente trabalho alienado. Seu texto releva, a todo momento, considerações que não dizem respeito apenas a uma ou outra forma histórica assumida pelo trabalho, mas que enfocam suas características gerais, essenciais. Características, estas, que se, por um lado, não foram plenamente

48

realizadas nas formas efetivas assumidas pelo trabalho - precisamente devido às contradições que as marcam em cada um destes momentos históricos - por outro lado, encontram-se pontualmente, em maior ou menor grau, subjacentes a todas estas formas históricas. Continuando a passagem em que critica Smith, Marx diz: "Sem dúvida, ele tem razão de dizer que o trabalho, em suas formas históricas: escravidão, servidão, assalariado, aparece sempre como um trabalho repulsivo,

como um

trabalho forçado, imposto pelo exterior, frente ao qual o não-trabalho representa a liberdade e a felicidade. Isto vale duplamente: para este trabalho contraditório e, o que a ele está ligado, para o trabalho que ainda não se deu as condições, subjetivas e objetivas, (ou, ainda, que as perdeu em relação ao estado pastoril ou a outros, etc.) para que o trabalho seja travail attractif, auto-efetivação do indivíduo - o que não significa, de forma alguma, que ele seja puro prazer, pura diversão, como o pensa Fourier, com suas concepções ingênuas e suas visões embriagadas. Trabalhos efetivamente livres - a composição de uma obra musical, por exemplo - requerem justamente, ao mesmo tempo, uma enorme seriedade e o esforço o mais intenso."67 Assim, mesmo as formas "efetivamente livres" do trabalho não são sinônimas de entretenimento ou puro prazer, ou seja, não estão livres de limites externos e, portanto, da atenção e do esforço necessários a toda atividade sensível. Como vimos, disciplina e esforço são, para Marx, a condição mesmo da auto-efetivação humana. Como bem o observa Alves: "(...) este momento de negação de si está compreendido como afirmação de uma necessidade exterior à volição ou à afetividade do indivíduo

66 67

Id., tomo II, p. 102. Id., tomo II, p. 101. 49

ativo. (...) Este preço, a negação de certas dimensões de si, aparece como um tributo que os indivíduos pagam na exata medida em que se afirmam no mundo."68

CAPÍTULO II A ATIVIDADE SENSÍVEL NA SOCIABILIDADE MODERNA

A) CARÁTER UNIVERSAL

Se, para Marx, a sociabilidade é determinação fundamental da vida ativa, não se trata, porém, digamo-lo novamente, de uma essência única que, de forma imutável, subsistisse em todas as formas assumidas pela atividade humana. Tal determinação possui, ao contrário, a forma de relações historicamente suscitadas com o evolver da atividade sensível dos indivíduos. A sociabilidade é, como vimos no capítulo anterior, resultado deste processo de apropriação humana do mundo, ela só assume o aspecto de relações efetivas de interdependência entre os indivíduos sociais com o desenvolvimento destas formas de apropriação. Na primígena de tais formas - aquela que tem como pressuposto a relação dos indivíduos com a terra como seu laboratório natural - tais indivíduos encontram-se no interior de laços de dependência pessoais. Tratam-se de sociabilidades nas quais não se tem desenvolvida a independência relativa dos indivíduos, ou seja, em que estes não se constituem efetivamente como indivíduos, mas são meros elementos, elos naturais, do todo social ao qual pertencem. Os laços de dependência do indivíduo, aí, são tanto em relação a este todo como, enquanto membro do todo, em relação às 68

ALVES, A. L., op. cit., p. 38. 50

condições naturais de produção sobre as quais este último se sustenta. Tratam-se de relações naturais de dependência, que não têm como base o desenvolvimento ou a produção humana enquanto tal, mas que são, ao contrário, pressupostas à produção: "essa relação ao terreno - à terra considerada como propriedade do indivíduo que trabalha - passa por uma mediação: o indivíduo não aparece a priori como simples indivíduo trabalhando, nesta abstração, mas ele tem, por sua propriedade da terra, um modo objetivo de existência pressuposto a sua atividade e que não aparece como um simples resultado desta última, mas é, igualmente, um pressuposto de sua atividade (...). Sua relação com a terra passa, pois, também pela mediação da existência natural (mais ou menos desenvolvida historicamente, mais ou menos modificada) do indivíduo enquanto membro de uma comuna; de sua existência natural enquanto membro de uma tribo, etc. Um indivíduo isolado não poderia ser proprietário de uma terra, não mais que falar."69 Tal aspecto diz respeito não apenas a estas formações sociais com base na propriedade fundiária, mas encontra-se, em maior ou menor grau, difundido em todas as demais formas de apropriação que antecedem aquela da modernidade. Em todas estas formações sociais tem-se a dependência do indivíduo ativo em relação a determinado grupo ou pessoa como pressuposto básico da atividade. Os trabalhadores têm, de um lado, uma relação de proprietário ou possuidor com suas condições objetivas de trabalho, relaciona-se com estas - em parte ou em sua totalidade, a depender da forma histórica assumida por sua atividade - como sendo suas. E, em contrapartida e como condição mesmo de sua relação de apropriação com as condições inorgânicas de produção, pertencem, eles próprios, a uma determinada comunidade ou chefe. Encontram-se, sob diversas formas, inseridos numa relação de 69

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), tomo I, p. 422 51

dependência pessoal. Relações, estas, que - tanto no que diz respeito às condições objetivas de trabalho, quanto aos vínculos pessoais - embora mantidas e mesmo desenvolvidas pela atividade, se posicionam como condições que subjazem, que precedem a atividade e não como relações que dela resultam. "As formas primitivas da propriedade reduzem-se necessariamente na relação com os diferentes momentos objetivos que condicionam a produção enquanto objetos de propriedade; eles tanto formam a base econômica de diferentes formas de comunidade, como têm, por seu lado, como pressuposto, formas determinadas de comunidade."70 Do progressivo desenvolvimento pelo homem de seus próprios meios de produção, resulta, porém, que a própria comunidade - suas inter-relações enquanto indivíduo social - passa a ser, também ela, engendrada, produzida e não mais comunidade natural, com fulcro em laços de consangüinidade ou autoridade. Como vimos no capítulo anterior, o homem apenas parte de condições não postas por ele "Apenas começa-se a trabalhar a partir de uma certa base inicialmente natural, a qual torna-se, porém, em seguida, um dado histórico."71. Na medida mesmo em que começa a produzir - ou seja, já nos primeiros momentos de sua existência enquanto caçador ou na própria coleta de frutos - aciona, com sua produção, um processo que dará origem à criação de suas próprias condições de produção. Processo, este, que consiste em alterar a ordem de todo o multiverso sensível e, portanto, da totalidade das determinações da existência humano-societária. "Dado que o instrumento, ele próprio, é já produto do trabalho, portanto, que o elemento que constitui a propriedade é já posto pelo trabalho, a comunidade não pode mais aparecer, aqui, sob sua forma natural, como no primeiro caso (a comunidade sobre a qual está fundado 70 71

Id., tomo I, p. 438 Id., tomo I, p. 434 52

este tipo de propriedade), mas enquanto comunidade ela própria já produzida, engendrada, segunda - já produzida pelo próprio trabalhador."72 A produção com base na propriedade privada é o desenvolvimento deste processo propulsionado, sobretudo, pelo desenvolvimento artesanal e urbano do trabalho - o qual é, porém, elevado a processo de desenvolvimento universal de forças objetivas e subjetivas e não mais desenvolvimento adstringido de habilidades do produtor enquanto sujeito singular. As relações engendradas com a forma moderna da produção implicam não "uma supressão das 'relações de dependência', elas são, aliás, apenas a resolução destas mesmas relações em uma forma universal; elas são, ao contrário, a elaboração do fundamento universal das relações pessoais de dependência."73 A sociabilidade do capital tem como característica fundamental o engendramento de relações multilaterais de dependência entre os indivíduos através de uma produção voltada exclusivamente para a troca. Relações estas que são, de um lado, produto exclusivo do ato de produção e, em decorrência, um produto cada vez mais universal ou geral na medida em que não possui como limites formas naturais ou pré-estabelecidas, mas se fundamenta exclusivamente sobre si mesmo enquanto processo que põe suas próprias condições. Vejamos, pois, inicialmente, o primeiro destes aspectos. "No mundo moderno, as relações pessoais surgem como uma simples emanação das relações de produção e de troca"74 e não mais - como nas formas anteriores de propriedade - as relações de produção como derivadas relações 72 73

pessoais.

das

A produção é, agora, central, é ela que determina as demais

Id., tomo I, p. 437. Id., tomo I, p. 100. 53

relações dos indivíduos. As relações pessoais - ou melhor, o que eram, antes, laços pessoais - são, agora, relações sociais; têm como mediação as relações de produção e de troca. Não se tratam de laços unilaterais de dependência, mas de relações múltiplas, de laços de interdependência necessariamente estabelecidos pelos indivíduos, ou seja, no interior e apenas no interior dos quais os indivíduos se reproduzem. É a atividade produtiva, ela própria, que coloca os indivíduos em relação uns com os outros e não, ao contrário, os indivíduos já dependentes de determinado grupo ou senhor que, apenas e exclusivamente nesta condição, se poriam em condições de produzir. "Para que todos os produtos e atividades se reduzam a valores de troca é necessário que todas as relações fixas (históricas) - as relações de dependência pessoal - se reduzam à produção, bem como a dependência multilateral dos produtores entre eles. A produção de cada indivíduo singular é dependente da produção de todos os outros, assim como a transformação de seu produto em meios de subsistência para si mesmo tornou-se dependente do consumo de todos os outros."75 Na modernidade, a produção é posta sob a égide do valor de troca. O que predomina é não a produção voltada para atender às necessidades do indivíduo produtor ou de sua família, mas aquela que tem em vista precisamente a superação destas. A mais-valia, do lado do capital, ou mais-trabalho, do lado do trabalhador, é, como o diz Marx, o grande fato histórico do capital na medida em que ele é a existência necessária deste mais-trabalho. Sob esta forma, a produção tem como objetivo não mais a subsistência ou outro limite qualquer baseado no valor de uso. Trata-se de um trabalho voltado para uma produção que supere as simples 74 75

Id., tomo I, p. 101. Id., tomo I, p. 91. 54

necessidades do trabalhador singular, para uma produção de excedente - o qual acaba por se transformar em necessidade universal. O capital - apreendido, de forma sumaríssima, aqui, como "dinheiro que se produz a si mesmo"76 ou valor que gera valor - constitui a base de uma produção sem limite, de uma produção universal, que só tem a si mesma como limite. Nas palavras de Marx, "O capital, enquanto representa a forma universal da riqueza, o dinheiro, é a tendência sem limites, nem medida, a ultrapassar seu próprio limite. Todo limite é e só pode ser limitado por ele."77 Os limites da forma social moderna são aqueles postos pela produção mesma e não mais parâmetros pré-estabelecidos, pré-existentes. Tratam-se de limites genuinamente sociais, postos e renovados exclusivamente pelas relações que os indivíduos estabelecem entre si no evolver de sua atividade vital. A sociabilidade moderna tem como ponto de partida precisamente a liberação do homem em relação às suas condições objetivas de ação, bem como em relação aos laços sociais aos quais o indivíduo estava submetido e reduzido a meio para a realização de fins que lhe eram externos. Nesta nova formação social, o indivíduo e sua atividade têm frente a si tais condições e não estão a elas submetidos numa determinação natural. Os indivíduos ativos não são mais apenas um elemento dentre outros da produção material mas, ao contrário, tornam-se fim em si desta atividade. É, portanto, uma forma de atividade através da qual ocorre a criação de nexos sociais efetivos, livres de toda determinação natural e, por conseguinte, a possibilidade de ligações efetivas mais amplas entre os indivíduos, de modos de interdependência mais desenvolvidos. Daí porque, para Marx, a sociabilidade moderna, dada pela nova forma alcançada pela atividade sensível, é aquela na qual as relações entre os 76 77

Id., tomo I, p. 273. Idem 55

indivíduos atingem uma universalidade até então desconhecida. Universalidade entendida, porém, "não como universalidade pensada ou imaginada, mas como universalidade de suas relações reais e ideais". 78 A forma de produção do capital possui como característica própria uma preponderância da troca sobre todas as relações de produção. A dependência recíproca entre os indivíduos é expressa na necessidade constante da troca e do valor de troca como mediador das relações entre eles e as determinações de seu trabalho. Esta preponderância da troca sobre as demais relações possui, segundo Marx, dois aspectos; sendo, o primeiro deles, o fato de que: "é apenas no valor de troca que a atividade própria de cada indivíduo ou seu produto tornam-se uma atividade e um produto para ele."79 Embora, nesta forma social, o indivíduo pareça encontrar-se livre e independente em relação aos demais indivíduos singulares - já que "os laços de dependência pessoal, as diferenças do sangue, as diferenças de cultura, etc. são, na verdade, rompidos, dilacerados"80 e o trabalho do indivíduo singular é posto como trabalho autônomo, independente dos demais - esta independência é, segundo Marx,

78

Id., tomo II, p. 34. Id., tomo I, p. 92. 80 Id., tomo I, p. 100 79

56

mera "ilusão". Os indivíduos são, aí, indiferentes entre si mas, de forma alguma, independentes. A conexão social tendo tomado a forma de uma conexão entre valores de troca ou, mais precisamente, a forma do dinheiro, não se trata de uma independência do indivíduo singular em relação ao todo social mas, sim, que esta dependência recíproca dos indivíduos produtores e de sua produção entre si é posta como algo externo e abstrato em relação aos indivíduos singulares - como o veremos na próxima seção. Nas palavras de Marx: "esta relação objetiva de dependência, esta relação de coisas, não é outra coisa senão o conjunto das relações sociais que fazem face, de forma autônoma, aos indivíduos aparentemente independentes, isto é, o conjunto de suas relações de produção recíprocas, promovidas à autonomia face a eles mesmos."81 Na realidade, a produção é, aqui, efetivamente uma produção social. Não apenas a troca enquanto momento específico - isto é, enquanto circulação de mercadorias - traz em si o aspecto da reciprocidade, como tal aspecto resulta de determinações postas pela produção stricto sensu. A produção é já em si mesma uma produção social, muito embora o seja apenas em si e não para si, isto é, muito embora, aos indivíduos singulares, esta conexão só apareça na troca, já que, como o veremos, eles não têm o controle sobre tal produção enquanto indivíduos sociais e estão postos como indivíduos isolados e submissos ao processo como um todo. O mundo das mercadorias - que, na sociedade capitalista, se apresenta como sendo o próprio mundo das coisas, o mundo real - tem, no entanto, como fundamento, como base de si mesmo, relações de produção. Não se trata de simples troca entre coisas. A troca entre mercadorias é um aspecto ou uma forma do processo social de produção –

81

Idem. 57

aquele que é mais visível, que aparece à superfície. "A circulação, que aparece, pois, como dado imediato à superfície da sociedade burguesa, existe apenas na medida em que ela é, sem cessar, mediatizada. Considerada nela mesma, ela é a mediação de dois extremos pressupostos. Mas, não é ela que põe estes extremos."82 O trabalho é, aqui, "universalmente produtor de valores de troca". Não se trata mais, como na idade média, do trabalho como privilégio, voltado ao atendimento de determinadas necessidades, "realizado com vistas a uma comunidade que se apresenta como uma entidade superior (corporações)"

83

. Ele deixa de ser trabalho para

determinado grupo, deixa de ser trabalho particular, para tornar-se trabalho produtor de objetividade social. O segundo aspecto, portanto, deste modo de produção calcado sobre a troca de valores de troca é o de que a atividade e seu produto não estão mais ligados a uma forma determinada. Sendo, ambos, valores de troca, são "algo universal no qual é negada e apagada toda individualidade, toda propriedade particular." 84 O trabalho assalariado, que é a base universal deste modo de produção, ou seja, o trabalho que é, em si mesmo, valor de troca, é aquele que também produz valor de troca, isto é, riqueza universal: “A indústria universal só é possível lá onde qualquer trabalho produz a riqueza universal (...) e, portanto, lá onde o salário do indivíduo é dinheiro”85. A indústria universal, a universalidade das relações reais, significa precisamente a liberação da atividade com relação a suas formas particulares. O dinheiro – que, enquanto equivalente geral, ou seja, mercadoria à qual os produtos do trabalho, enquanto mercadorias particulares, são equiparados antes de serem trocados e que, com o desenvolvimento social, torna-se autônoma frente a tais

82

Id., tomo I, p. 195 Id., tomo I, p. 185 84 Id., tomo I, p. 92 85 Id, tomo I, p. 62. 83

58

mercadorias específicas - é que vem a ser a comunidade, as relações sociais, que, nesta sociabilidade, possuem um aspecto ampliado, universal. O dinheiro é precisamente a forma universal da riqueza. E é apenas nele que, segundo Marx, a riqueza deixa de ser somente uma forma para ser o próprio conteúdo. Nele, “o conceito de riqueza é, por assim dizer, realizado, ‘individualizado’ em um objeto particular”. Ou seja, deixa de ser apenas forma ideal, não efetivada - como quando tal riqueza está posta apenas nas coisas particulares: “na medida em que a mercadoria tem um valor de uso determinado, ela representa apenas um aspecto bem singularizado da riqueza” 86. Nesta formação social, portanto, a universalidade das relações entre os indivíduos ativos e entre os resultados objetivos de sua atividade alcança uma efetividade real. Mas, para Marx, tal universalidade da riqueza em sua forma concreta não se realiza plenamente nesta sociabilidade na medida em que esta riqueza universal encontra-se, aí, estranhada em relação aos indivíduos particulares.

B) PRODUÇÃO SOB A FORMA DO ESTRANHAMENTO

A produção efetiva-se, assim, como produção sob a forma de reciprocidade, de relações de interdependência entre os indivíduos produtores. No entanto, esta reciprocidade, a posição de si como meio para outro tendo em vista a realização de seu próprio fim ou a posição do outro como meio para si apenas enquanto este outro assim também se realiza como fim para si mesmo - "O indivíduo A serve à necessidade do indivíduo B por meio da mercadoria a apenas na medida em que e

86

Id., tomo I, p. 159. 59

porque o indivíduo B serve à necessidade do indivíduo A por meio da mercadoria b e vice-versa. Cada um serve ao outro para se servir a si mesmo; cada um se serve do outro reciprocamente como de seu meio."87 - esta relação social, tornada efetiva e necessária, não se apresenta a cada um dos indivíduos singulares enquanto tal. Os indivíduos encontram-se, contraditoriamente, postos, aí, como indiferentes uns em relação aos outros e voltados, cada qual, exclusivamente para seus interesses egoístas: "(...) esta reciprocidade é um fato necessário, pressuposto como condição natural da troca, mas (...) ela é, enquanto tal, indiferente a cada um dos dois sujeitos da troca e (...) esta reciprocidade tem interesse para ele apenas na medida em que ela satisfaz seu interesse enquanto, este, exclui aquele do outro e não o leva em conta. O que quer dizer que o interesse coletivo - que aparece como motivo do ato de conjunto - é, certo, reconhecido, pelas duas partes, como um fato, mas não é, enquanto tal, motivo; faz, por assim dizer, seu caminho às costas dos interesses particulares refletidos sobre si mesmos, às costas do interesse individual que se opõe àquele de outro."88 Este modo de produção - produção sob a forma da troca - é, portanto, aquele que realiza efetivamente a atividade sensível como atividade social, mas que o faz de forma estranhada em relação aos indivíduos singulares, às suas costas - como o expressa Marx. E esta é a segunda característica mais geral da atividade sensível na sociabilidade moderna, qual seja: a objetividade social dela resultante confronta-selhe, ou seja, termina por ganhar uma força que se defronta com os próprios indivíduos enquanto potência que lhes é estranha. Isto porque, tanto a objetividade resultante, quanto a própria atividade enquanto tal, apenas adquirem este caráter 87 88

Id., tomo I, p. 185 Idem 60

social ou de universalidade ao se submeterem a uma relação de troca que lhes é exterior, ou seja, que independe do trabalho individual. O trabalho do indivíduo não é imediatamente trabalho social, assim como seu produto também não é imediatamente um produto universal. Ao contrário, imediatamente o trabalho do indivíduo singular é trabalho autônomo, independente dos demais. A troca é o médium que permite sua participação à produção universal. Seu trabalho compra imediatamente o produto - "o objeto de sua atividade particular" - mas compra apenas este produto determinado, particular; "seu tempo de trabalho particular não pode ser trocado imediatamente por qualquer outro tempo de trabalho particular; a trocabilidade universal deste tempo de trabalho deve, primeiro, ser mediatizada, tomar uma forma de objeto diferente dele para que ele acesse esta trocabilidade universal."89 Na modernidade, a produção só se efetiva como produção para o indivíduo ativo singular quando assume a forma universal do valor de troca, como referimos, "é apenas no valor de troca que a atividade própria de cada indivíduo singular ou seu produto tornam-se uma atividade e um produto para ele."90 A atividade só é efetivada por um ato de perda, de alienação, isto é, de troca; apenas quando transformada em algo distinto dela própria. Troca esta que se põe, como veremos, no próprio ato da produção e não apenas na circulação de mercadorias enquanto tal. "O caráter social da atividade, a forma social do produto, bem como a parte que o indivíduo toma na produção, aparecem, aqui [no dinheiro], frente aos indivíduos, como algo estranho (Fremdes), como coisa objetiva (Sachliches); não como seu comportamento recíproco, mas como submissão a relações existentes independente deles e nascidas 89 90

Id., tomo I, p. 108 Id., tomo I, p. 92 61

dos embates dos indivíduos indiferentes entre si. A troca universal das atividades e produtos torna-se condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca lhes aparece como estranha, independente, como uma coisa. No valor de troca, a relação social é transformada em relação de coisas”91. A atividade característica da formação social capitalista é fundamentalmente, portanto, atividade estranhada. Suas condições objetivas e, portanto, também, seu resultado, estão não apenas cindidos em relação aos indivíduos, numa relação de exterioridade, mas, também, de oposição. Os indivíduos e suas atividades encontramse subordinados às determinações do valor, nas palavras de Alves, "passam a ter plena existência apenas na medida em que se coloquem como momento deste processo de produção e troca de valores”92. As determinações materiais resultantes de sua objetivação ativa e esta mesma objetivação enquanto processo estão subsumidas, todas, à formatação própria do valor. Estão subsumidas a uma universalidade ou generalidade objetiva que subsiste por si, fora delas enquanto determinações e atividades de indivíduos singulares. A produção sob a forma moderna possui, assim, estes dois aspectos contraditórios: ao mesmo tempo em que universaliza a atividade dos indivíduos, em que a coloca numa relação de dependência recíproca, ela, por outro lado, não conclui efetivamente esta transformação já que o aspecto social ou universal desta atividade situa-se estranhado com relação aos indivíduos ativos efetivos, em outras palavras, já que o resultado de suas próprias atividades – a riqueza universal concretamente posta – não é imediatamente um resultado para eles. Os indivíduos produtores não são, aí, indivíduos sociais genéricos 91 92

que possuem poder efetivo sobre sua produção

Id., Tomo I, p. 93 e 94. ALVES, A. L., op. cit., p. 99. 62

universal.

Sua dependência multilateral e recíproca é, ao mesmo tempo, "o

isolamento completo de seus interesses privados."93 A produção efetiva-se pela cisão concreta, real, de suas determinações universais em relação às particulares. Cisão, esta, que possui sua forma primígena na contradição da mercadoria particular com o valor de troca enquanto existência singular, ou seja, enquanto forma universal do dinheiro. Quanto a este ponto, é importante observar, mesmo que de forma sucinta, a gênese do dinheiro, reiterada várias vezes por Marx. É de necessidades engendradas pela produção que tem origem a troca e de necessidades próprias a esta última, que tem origem o valor de troca e, portanto, o dinheiro. E não o contrário: "Não é o dinheiro que suscita estas oposições e estas contradições mas, ao contrário, é o desenvolvimento destas contradições e destas oposições que suscita o poder aparentemente transcendental do dinheiro."94 O dinheiro, assim como a troca que lhe suscita, é resultado de necessidades engendradas no interior

do processo de

produção. Ele não é senão resultado de contradições postas pelo e no evolver histórico deste último. Na medida mesmo em que progride o caráter social da produção, em que esta última se desenvolve cada vez mais enquanto relação social não mais submetida a qualquer forma pré-estabelecida, amplia-se também o poder do dinheiro: o poder das mercadorias colocadas enquanto terceiro elemento, enquanto valor de troca tornado autônomo. "A relação de troca se fixa enquanto poder externo em relação aos produtores e independente deles"95, ganha uma força que submete os indivíduos produtores a ela. É ela que passa a dirigir, a dar forma `a produção. "O

93

MARX, K., Manuscrit de 1857-58 (“Grundrisse”), tomo I, p. 94 Id., tomo I, p. 81 95 Idem 94

63

produto torna-se mercadoria; a mercadoria torna-se valor de troca; o valor de troca da mercadoria é sua qualidade monetária imanente; esta qualidade monetária se destaca dela enquanto dinheiro, adquire uma existência social universal, distinta de todas as mercadorias particulares e de seu modo de existência natural. A relação do produto a si mesmo enquanto valor de troca torna-se sua relação a um dinheiro que existe ao lado dele ou, ainda, relação de todos os produtos ao dinheiro que existe fora de todos eles. Assim como a troca efetiva dos produtos engendra o valor de troca deles, assim também o valor de troca deles engendra o dinheiro."96 A contradição entre a forma particular da mercadoria e sua forma universal coloca-se, pois, de imediato, ou seja, no momento mesmo da cisão entre a mercadoria e seu valor de troca ou, o que vem a ser o mesmo, no momento mesmo do surgimento do valor de troca como existência efetiva, como "coisa exterior ao lado da mercadoria"97. Pois, esta cisão implica em que "estas duas formas de existência da mercadoria não sejam conversíveis uma na outra (...). Desde que o dinheiro é uma coisa exterior ao lado da mercadoria, a trocabilidade da mercadoria por dinheiro está também ligada a condições externas, que podem intervir ou não; está submetida a condições externas"98, a condições que não dizem respeito à mercadoria enquanto existência particular, não dependem de suas propriedades naturais. A forma universal ou valor de troca é a mercadoria enquanto relação social, são suas propriedades sociais, não naturais. O valor de troca da mercadoria é a expressão de sua trocabilidade por qualquer outra mercadoria. No capital, o trabalho universal, esta propriedade social do trabalho, aparece apenas no valor de troca. O

96

Ibidem Id., tomo I, p. 82 98 Idem 97

64

valor de troca é a determinação principal da mercadoria, é aquela que representa trabalho universal, o trabalho enquanto tal. Daí porque Marx diz que trabalho universal, neste modo de produção, é "trabalho apenas privado transmitido à coletividade"99 e, portanto, trabalho universal apenas em si, em potência; trabalho universal abstrato, realizado apenas parcialmente como trabalho universal: apenas na troca. Esta cisão entre as determinações universais ou sociais do trabalho e aquelas particulares diz, portanto, respeito não apenas à relação do trabalho enquanto trabalho objetivado, ou seja, à relação entre as mercadorias mas, também, à relação do indivíduo ativo com sua própria produção. Esta última encontra-se parcialmente incluída naquela primeira na medida em que a relação do trabalhador com sua atividade, nesta forma social da produção, é também uma relação de troca - muito embora, como será visto, não se trate, aqui, de uma troca de equivalentes. O trabalhador oferece, em troca do quantum de mercadorias necessário à reposição de sua força de trabalho, o uso desta última durante certo período de tempo. Troca, esta, também intermediada pelo dinheiro. Mas, a cisão ou contradição aparece, aqui, de forma ainda mais clara na medida em que não apenas a atividade do indivíduo só se torna atividade para ele quando transformada, como vimos, na forma universal do dinheiro, como também sua relação ou poder social - ou seja, sua relação com a atividade ou o produto dos outros - se expressa de forma cindida, como propriedade de algo que lhe é externo. O meio de troca é quem possui o poder sobre todas as atividades e bens. Como vimos, é ele quem possui a força social. Todo este rico evolver da produtividade humana - com tudo o que ele implica em desenvolvimento objetivo e subjetivo - é propriedade apenas do dinheiro. Apenas o dinheiro é capaz de 99

Id., tomo I, p. 154 65

dele se apropriar, apenas ele tem este poder consigo. "O poder que todo indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais existe, nele, enquanto ele possui valores de troca, dinheiro. Seu poder social, bem como sua conexão com a sociedade, ele os traz consigo em seu bolso."100 A relação do indivíduo tanto com sua própria produção, quanto com a produção alheia - objetivada ou não - é relação ou poder do indivíduo apenas enquanto mediada pelo dinheiro. A produção não consiste, porém, aqui, num processo de troca simples - como a entendem, segundo Marx, os socialistas - nem tampouco no que ele chama de processo de produção simples ou produção material. Esta última subjaz, bem entendido, todo o processo. A produção, no capital, pressupõe, como toda forma social de produção, aquelas determinações gerais: o instrumento, como algo que faz a mediação entre o sujeito ativo e os fins por ele almejados; o trabalho, como atividade adaptada a um fim e o material sobre o qual ele se realiza. Instrumento, trabalho e matéria são, também, elementos ou componentes do valor do capital - pois, como veremos à frente, "do ponto de vista da forma, o capital não consiste em objetos de trabalho e em trabalho, mas em valores"101 e, enquanto valores, suas respectivas substâncias, bem como aquela substância alterada que consiste no produto, lhes são indiferentes. O que não significa, porém, que tal processo de transformação material não ocorra aqui. Ao contrário, ele não apenas está pressuposto, como "O processo de valorização do capital efetua-se pelo e no processo de produção simples - no fato de que o trabalho vivo, nele, é posto em sua relação natural com seus momentos materiais de existência"102.

100

Id., tomo I, p. 92 Id., tomo I, p. 251 102 Id., tomo I, p. 304 101

66

Mas, para além desta propriedade do trabalho que Marx chama, aqui, de 'natural', de conservar e mesmo objetivar ainda mais tempo de trabalho em seus momentos objetivos; para além deste primeiro aspecto da relação intrínseca e necessária da produção simples com o processo de valorização, é preciso atentar que a produção material ou simples subsiste, também, em todos os seus aspectos gerais de produção de valor de uso. O material recebe, pela transformação sofrida com o trabalho, "um valor de uso superior àquele que ele possuía antes." 103 A atividade ainda é atividade sensível e confirma-se também, aqui, como sendo atividade de impressão de forma nova, de criação de objetividades adaptadas a fins humanos. Para Marx, o valor de uso - embora esteja posto como determinação secundária, subjugada pelo valor de troca - não deixa de subsistir como determinação material sobre a qual se sustenta a relação econômica específica da modernidade. O valor de uso não deixa de subsistir na mercadoria, mas passa a ser valor de uso para outros. O que passa a interessar é não o valor de uso que a mercadoria tem para o indivíduo produtor, mas seu valor de uso para a sociedade. Mudança esta que não implica, de forma alguma, porém, um atestado de óbito ao valor de uso, sua colocação como simples base sem importância. Muito embora ele deixe de existir no produto, ou melhor, na mercadoria - na medida em que o produto não é mais posto como produto, mas como mercadoria - enquanto valor de uso para o indivíduo ativo, ele não apenas está sempre presente: " já vimos que a diferença entre valor de uso e valor de troca faz parte da própria economia e que, contrariamente ao que faz Ricardo, o valor de uso não se encontra morto como simples pressuposto"104, como constitui-se, como pode ser visto ao longo deste capítulo, em todos os momentos deste modo de produção, num ponto 103 104

Id., tomo I, p. 250 Id., tomo I, p. 259 67

de tensão fundamental. "Embora imediatamente reunidos na mercadoria, valor de uso e valor de troca se dissociam de forma também imediata. Não apenas o valor de troca não aparece determinado pelo valor de uso, como também, ao contrário, a mercadoria só se torna mercadoria, só se realiza enquanto valor de troca na medida em que aquele que a possui não se relaciona com ela como um valor de uso. É apenas alienando-os, trocando-os por outras mercadorias, que ele se apropria dos valores de uso. A apropriação pela alienação é a forma fundamental do sistema social de produção cujo valor de troca se apresenta como a expressão mais simples e mais abstrata. O valor de uso da mercadoria é, certo, pressuposto, mas não por seu proprietário: ele o é apenas para a sociedade em geral."105 Como dizíamos anteriormente, a produção sob sua forma moderna não consiste nem em um processo de troca simples nem, por outro lado, exclusivamente no que Marx chama de produção material. A esta última se sobrepõe o processo de valorização, a determinação formal, ou seja, aquilo que constitui precisamente a forma determinada deste modo de produção. É preciso dilucidar melhor, portanto, a categoria que perfaz a espinha dorsal da forma moderna da produção: o valor. Para tanto, partamos da determinação mais simples do valor de troca, o qual assim como o valor - é, antes de mais nada, "produto do trabalho, é tempo de trabalho objetivado, materializado."106 Se, na circulação simples, o valor de troca das mercadorias encontra-se numa relação de estranhamento com relação às mercadorias

105 106

Id., tomo II, p. 376 Id., tomo I, p. 204 68

mesmas, ou seja, encontra-se sob a forma dinheiro; da mesma maneira, sob a forma de capital - ou seja, de valor reinserido no processo como condição objetiva de produção e que se põe de forma independente frente ao trabalhador - relaciona-se, ele, com o trabalho vivo, com o trabalho enquanto valor de uso. "Se, na moeda, o valor de troca - isto é, todas as relações das mercadorias enquanto valores de troca - aparece como uma coisa, o mesmo acontece, no capital, com todas as determinações da atividade criadora de valores de troca, com o trabalho."107 Pois, o capital não é a simples circulação de dinheiro, não é apenas moeda. Esta é apenas uma de suas formas e, como vimos, aquela que se apresenta à superfície ou na qual ele ainda não se tornou a base da produção, mas é apenas capital comercial. Por outro lado, o capital também não é apenas trabalho objetivado que serve de base a uma nova produção, como o concebe Ricardo: "Quando se diz que o capital 'é trabalho acumulado (realizado) (melhor dizendo, trabalho objetivado) que serve de meio a um trabalho novo (produção)', se considera apenas a matéria do capital, fazendo abstração da determinação formal sem a qual ele não é capital." 108 Se o capital é trabalho objetivado, isto é apenas uma de suas determinações - não menor, mas que deve ser analisada no interior do processo de valorização e, portanto, no interior da determinação pela qual ele é uma relação social determinada: "A diferença entre produto e capital é justamente que o produto tomado enquanto capital exprime uma relação característica de uma certa forma histórica de sociedade."109 O produto do trabalho só é valor de troca sob certas condições sociais: aquelas pelas quais o trabalhador encontra-se separado de suas condições de trabalho e que,

107

Id., tomo I, p. 194 Id., tomo I, p. 197 109 Id., tomo I, p. 205 108

69

por outro lado, o produto de seu trabalho não tem nenhum valor para ele, mas possui apenas um valor para outros, um valor de troca. O modo de produção do capital possui como pressuposto ontológico - como pressuposto que se põe como condição histórica fundamental de seu surgimento, mas que permanece necessariamente presente, isto é, que constitui o ser-precisamente-assim deste modo de produção - a existência cindida do trabalho vivo em relação a suas condições objetivas de efetivação ou, o que é o mesmo, a existência meramente subjetiva da potência de trabalho. Nas formas anteriores de produção e, portanto, de apropriação, o trabalhador possuía, em geral, uma relação de propriedade com tais condições, relacionava-se com elas como constituindo parte de si mesmo: "Propriedade significa, pois, na origem (e, isto, sob sua forma asiática, eslava, antiga, germânica) que o sujeito que trabalha (que produz) (ou se reproduz) se relaciona com as condições de sua produção ou de sua reprodução como com condições que são as suas. A propriedade terá, portanto, também, formas diferentes segundo as condições desta produção. A produção, ela mesma, tem por objetivo a reprodução do produtor em e com suas próprias condições objetivas de existência."110 A existência do trabalhador, nestas formações sociais, possui, assim, a forma de uma existência objetiva, que se põe juntamente com a reprodução de suas condições inorgânicas de atividade - na maioria dos casos; ou que se põe como existência meramente objetiva, como existência ou condição, ela própria, inorgânica da produção - nos regimes de escravidão ou servidão. Mas, em todos estes casos, a reprodução do indivíduo que trabalha é posta como reprodução "em e com suas próprias condições objetivas de existência". Tais

110

Id., tomo I, p. 433 70

formas de produção pressupõem, portanto, a apropriação efetiva e prévia à própria produção, pelo trabalhador, de suas condições de produção - seja destas sob a forma de laboratório natural, isto é, sob a forma da terra, que representava, nos diferentes tipos de propriedade fundiária, em si mesma todas as condições inorgânicas necessárias à produção; seja na forma do instrumento, no trabalho artesanal urbano; seja sob a forma de meios de subsistência, a qual subsiste em todas estas formas de apropriação, inclusive na escravidão e na servidão. "O comportamento do trabalho em relação ao capital, ou às condições objetivas do trabalho enquanto capital, pressupõe um processo histórico que dissolve as diferentes formas nas quais o trabalhador é proprietário ou o proprietário, trabalhador."111 A relação do trabalhador com suas condições objetivas de trabalho enquanto capital, ou seja, enquanto valor autônomo frente a ele, pressupõe, pois, a dissolução de todas estas formas anteriores de propriedade. As condições históricas pré-burguesas foram condições que conduziram progressivamente a esta separação onde o trabalhador - posto como trabalhador livre - será totalmente desprovido de suas condições de produção. "No capital, a associação dos operários não é obtida pela coação da violência física direta, do trabalho forçado, das corvéias, da escravidão, mas por esta outra coação que se apoia no fato de que as condições da produção sejam propriedade de outrem e estejam presentes, elas próprias, como associação objetiva - que é a mesma coisa que a acumulação e a concentração das condições de produção."112 O modo de produção burguês tem suas formas iniciais com o desenvolvimento do comércio, da troca. Esta, no entanto, não é suficiente para fazer surgir o capital. 111 112

Id., tomo I, p. 434 Id., tomo II, p. 81 71

Para que este surja enquanto tal - enquanto valor auto-subsistente, posto pela mas, também, pressuposto à circulação - todo um processo sócio-histórico é pressuposto. Processo, este, que consiste no progressivo afastamento do produtor em relação a suas condições de produção, de um lado e, de outro lado, na existência destas condições objetivas de produção como apropriáveis pelo dinheiro, isto é, como condições não mais atadas àqueles que com elas trabalham. Da mesma forma que os indivíduos encontram-se "potencialmente" livres de suas condições de produção e dos laços políticos que os ligava a elas, também estas encontram-se, agora, como "fundo livre" frente a tais indivíduos ativos: "elas só fazem face a estes indivíduos separados e privados de propriedade sob a forma de valores, de valores fielmente ligados a si mesmos. O mesmo processo que opõe a massa, isto é, os trabalhadores livres às condições objetivas do trabalho opôs, igualmente, aos trabalhadores livres estas mesmas condições sob a forma de capital."113 A acumulação primitiva não se dá pelo simples meio da troca de equivalentes. O

dinheiro acumulado através desta não se põe como riqueza a ponto de se

transformar em condições de produção: "Vimos que o dinheiro pode se acumular parcialmente pelo simples meio da troca de equivalentes; no entanto, isto constitui uma fonte tão insignificante que ela não é digna historicamente de ser mencionada, uma vez pressuposto que o dinheiro é ganho pelo homem por meio da troca de seu próprio trabalho."114 Como faz questão de enfatizar Marx, o capital é resultado de um processo histórico envolvendo vários fatores, dentre os quais, o desenvolvimento da fortuna em dinheiro, o acúmulo de dinheiro pelo corpo de comerciantes, é apenas um deles. Visivelmente não se trata de uma criação, pelo dinheiro, das condições 113 114

Id., tomo I, p. 441 Id., tomo I, p. 442 72

objetivas do trabalho, tais quais estas são oferecidas ao trabalhador que delas está desprovido para a efetivação do processo de trabalho. Mas, ao contrário, "a fortuna em dinheiro contribuiu em parte para desprover as forças de trabalho dos indivíduos aptos a trabalhar destas condições de trabalho."115 O que o capital, enquanto sujeito, faz é "comprar umas por meio das outras", isto é, forças de trabalho já objetivadas ou condições objetivas de trabalho por meio de força de trabalho viva e vice-versa. Forças ou existências, estas, que se encontravam, naquele momento, já divorciadas ou divorciando-se umas das outras. "Nada tinha mudado, não fosse o fato de que, agora, estes meios de subsistência estavam lançados no mercado de troca, estavam cortados de suas relações diretas com as bocas dos retainers, etc. e transformados - de valores de uso que eram - em valores de troca; caindo, assim, no domínio e sob a soberania da fortuna em dinheiro. O mesmo ocorrendo com os instrumentos de trabalho. A fortuna em dinheiro não inventou, nem fabricou a roldana e a máquina de tecer. Mas, separados de seu terreno, os fiandeiros e os tecelões caíram sob seu domínio com suas máquinas e suas roldanas, etc. O que é próprio do capital é, simplesmente, unir as massas de braços e de instrumentos que ele encontra tais quais. Ele as aglomera sob seu comando [Botmässigkeit]. Aí está sua verdadeira forma de acumular; ele acumula trabalhadores em certos pontos com seus instrumentos."116 Tal processo de surgimento do capital possui, assim, também, a forma de um progressivo afastamento em relação às propriedades naturais das coisas e à utilidade imediata destas para o indivíduo produtor: "O desenvolvimento do valor de troca (favorecido pelo dinheiro existente sob a forma do corpo de comerciantes) dissolve a 115 116

Id., tomo I, p. 447 Id., tomo I, p. 446 73

produção orientada de preferência para o valor de uso imediato e as formas de propriedade que lhe correspondem (relações do trabalho com suas condições objetivas) e impele, assim, ao estabelecimento do mercado de trabalho."

117

Com o

afastamento do trabalhador em relação à terra como fonte principal de apropriação e reprodução tem-se, de outro lado, o estabelecimento de uma relação de dependência daquele em relação à troca, ou seja, em relação à apropriação por outrem do produto de seu trabalho. O divórcio do trabalhador em relação às suas condições de produção assume, do lado do trabalhador, em primeiro lugar, a forma da venda do produto de seu trabalho, ou seja, a forma da troca de equivalentes. Troca esta, que mostra, progressivamente, sua face principal, qual seja: a da venda do próprio trabalho. A troca compulsória de seu produto, por um lado, e a apropriação de maistrabalho pelo capitalista, por outro, dá a este último o poder de se apropriar não mais apenas do produto mas, também, dos próprios meios de produção, de colocar também estes sob seu comando e não apenas os trabalhadores artesãos enquanto tais. O que já era venda de trabalho - mascarada de venda de produto e, portanto, de troca de equivalentes: de trabalho objetivado por trabalho objetivado, do valor de troca da mercadoria pelo valor de troca correspondente - passa a ser, pois, cessão necessária de trabalho vivo por trabalho objetivado: "Originalmente, ele comprou o trabalho deles apenas pela compra de seu produto; desde que eles se limitam à produção deste valor de troca - e são obrigados, consequentemente, a produzir imediatamente valores de troca, a trocar completamente seu trabalho por dinheiro para poderem continuar a existir - eles caem sob sua dominação e, finalmente, vê-se desaparecer até a aparência que levava a crer que eles lhe vendiam produtos. Ele compra o trabalho deles e lhes

117

Id., tomo I, p. 447 74

retira, primeiro, a propriedade sobre o produto, logo, também sobre o instrumento (...)"118. A relação do trabalho com seus pressupostos materiais tornados valores autônomos, tornados capital, passa, assim, de uma relação de troca de equivalentes – a qual permanece enquanto relação superficial neste novo modo de produção – para uma apropriação sem troca do trabalho de outro, do lado do capital, e uma cessão da propriedade do trabalho - tanto como atividade presente no tempo, quanto como trabalho objetivado - pelo trabalhador. "O fato, por exemplo, de que o mais-trabalho seja posto como mais-valia do capital significa que o operário não se apropria do produto de seu próprio trabalho; que ele lhe aparece como propriedade de outro e, ao contrário, que o trabalho de outro aparece como a propriedade do capital. Esta segunda lei da propriedade burguesa, na qual a primeira se torna (e à qual o direito de herança, etc., dá uma existência independente do acaso e da caduquez dos capitalistas tomados individualmente) é erigida em lei, assim como a primeira. A primeira é a identidade entre o trabalho e a propriedade; a segunda é o trabalho como propriedade negada ou negação do caráter estranho do trabalho de outro."119 A produção de mais-valia - condição ou pressuposto sobre o qual a produção moderna se funda - implica que o trabalhador necessariamente não se aproprie do valor de uso de seu trabalho, mas apenas de seu valor de troca. O valor efetivamente produzido por ele, ou seja, aquilo que o uso efetivo de sua força proporciona ou produz não é apropriado por ele próprio mas, sim, pelo trabalho objetivado já apropriado por outrem e que se põe, agora, frente a ele, como outro, como determinação ou domínio de outrem. O mais-trabalho aparece no capital enquanto tal 118 119

Id., tomo I, p. 448 Id., tomo I, p. 409 75

- ou seja, no capital já acabado e se realizando enquanto processo que põe suas próprias condições e, portanto, enquanto processo de valorização que se realiza não apenas na produção propriamente dita mas, também, na circulação e na troca - como mais-produto, isto é, como capital - seja em sua forma de meios de produção, seja como meios de subsistência do trabalhador. No entanto, afirma Marx, "A mais-valia ou mais-produto não é senão uma soma determinada de trabalho vivo objetivado - a soma do mais-trabalho. Este valor novo - que faz face ao trabalho vivo enquanto valor autônomo, trocando-se por ele enquanto capital - é o produto do trabalho. Ele não é outra coisa senão o excedente de trabalho em geral em relação ao trabalho necessário e, isto, sob forma objetiva e, portanto, enquanto valor"120. Antes de prosseguir, é imperioso esclarecer que, tendo em vista os limites de uma dissertação de mestrado e o recorte que se objetiva com esta, não será tal assunto abordado enquanto desenvolvimento preciso do conceito de capital com tudo o que isto implicaria, como, por exemplo, a diferenciação detalhada do valor de troca em sua determinação de capital em relação ao valor de troca posto na circulação simples. Neste novo modo de produção - no qual, as condições objetivas da atividade sensível encontram-se, portanto, totalmente cindidas em relação aos indivíduos ativos - o trabalhador produz, pois, para além daquilo que é necessário a sua reposição enquanto potência de trabalho viva, ou seja, ele produz necessariamente um surplus ou mais-valia da qual ele, porém, não se apropria. Melhor dizendo, o indivíduo que trabalha apropria-se, aí, apenas daquilo que Marx denomina de "trabalho necessário" por oposição a este excedente. A ele é pago o valor de troca efetivo de seu trabalho, ou seja, o tempo de trabalho necessário a sua reposição como trabalho vivo, o que ele efetivamente a apporté à produção, mas não, seu valor de uso, aquilo que ele 120

Id., tomo I, p. 390 76

efetivamente produziu. O trabalhador não recebe uma parte determinada do produto nem, muito menos, o produto integral de seu trabalho, mas uma parte do tempo que trabalhou sob a forma de dinheiro - o que veremos de forma mais detalhada na seção seguinte. Por outro lado, o excedente produzido do qual o indivíduo ativo não se apropria põe-se, aí, como condições ou valores para si, como valores que se mantêm multiplicando-se por meio da troca sempre renovada com o trabalhador, como "O serpara-si autônomo do valor frente à potência de trabalho viva - e, portanto, sua existência enquanto capital - a indiferença objetiva (sustentando-se em si) das condições objetivas do trabalho em relação à potência de trabalho viva, esta estranheza que chega ao ponto em que estas condições se apresentam, frente ao operário, na pessoa do capitalista (enquanto personificação que possui uma vontade e um interesse próprios), esta dissociação, separação, absolutas entre a propriedade isto é, as condições de trabalho que dizem respeito ao domínio das coisas - e a potência de trabalho viva ou, ainda, o fato de que estas condições se põem frente a elas [às potências de trabalho vivas] como propriedade de outro, como a realidade de uma outra pessoa jurídica, o domínio absoluto da vontade desta pessoa e que, consequentemente, o trabalho aparece como trabalho de outro, em relação ao valor personificado na pessoa do capitalista ou em relação às condições de trabalho; (...) donde, aliás, o caráter estranho do conteúdo do trabalho para o próprio trabalhador (...)."121 O capitalista representa, pois, a máxima separação, alienação, do produto do trabalho e das condições objetivas deste em relação ao trabalho enquanto sujeito vivo e ativo. Separação da qual resulta a autonomia máxima de tais condições na medida

77

em que estas ganham a forma de sujeito, de "personificação que possui uma vontade e um interesse próprios", ou seja, na medida em que ganham a forma do sujeito que se contrapõe enquanto tal ao trabalho vivo e que o domina.

C) ATIVIDADE COMO NEGAÇÃO DE VIDA

Na sociabilidade do capital, a riqueza está posta não sob a forma de um ou outro valor de uso particular, mas sob a forma de todos os valores de uso existentes, sob a forma de dinheiro. O resultado objetivo da atividade sensível - aquele que é posto, como também o refere Marx, sob a forma parada de objeto - é, neste modo de produção, uma riqueza universal, vem a ser, valor de troca, trabalho universal e, sobretudo, este em sua forma autônoma e concreta de dinheiro. O dinheiro incorpora em si mesmo a forma universal da riqueza. Na medida em que ele não é mais apenas meio de troca, mas representa, como vimos na seção A do presente capítulo, o próprio conteúdo da riqueza, a riqueza enquanto tal - tanto em sua abstração, quanto em sua totalidade - ele encarna não apenas a forma e o conteúdo da riqueza, ou seja, ele não apenas é, ele próprio, a riqueza posta, concreta, realizada - riqueza que se põe não enquanto forma apenas, enquanto abstração, como nas mercadorias particulares - mas o dinheiro é também o representante universal da riqueza. E, enquanto tal, ele também é a riqueza de forma geral, a riqueza que se põe como forma universal, acima de suas substâncias particulares. Ele é "a forma encarnada da riqueza frente a todas as substâncias particulares de que ela se compõe. E, portanto, se, de um lado, forma e conteúdo da riqueza são idênticos no dinheiro - na medida em que o consideramos por si mesmo - de um outro lado, ele é - em oposição a todas as outras mercadorias, 121

Id., tomo I, p. 391 78

frente a elas - a forma universal da riqueza, enquanto

a totalidade destas

particularidades forma sua substância. Se o dinheiro, segundo a primeira determinação, é a própria riqueza, ele é, de acordo com a segunda, o representante material universal dela. No dinheiro mesmo, esta totalidade existe como quintessência imaginária das mercadorias. (...) O dinheiro é, pois, o Deus entre as mercadorias."122 Neste sentido, o dinheiro assume a forma da riqueza por excelência. Ele, sim, é a riqueza e não sua substância concreta: as mercadorias particulares. Pois, ele é que é "1) o preço realizado"; enquanto, nas mercadorias, o preço - o valor de troca ainda não realizado, posto como valor de troca na mercadoria mesma - é apenas enquanto forma, abstração, depende, para se realizar, da realização efetiva da mercadoria na circulação enquanto valor de troca, isto é, depende de sua venda; e, ainda, o dinheiro "2) satisfaz toda necessidade na medida em que pode ser trocado pelo objeto de qualquer necessidade, na medida em que é totalmente indiferente à particularidade, qualquer que seja esta"; enquanto que "a mercadoria possui esta propriedade apenas pelo intermédio do dinheiro."123 A mercadoria representa, ela mesma, apenas um aspecto bem singularizado da riqueza - aquele relacionado com o valor de uso específico dela, com a necessidade específica que ela satisfaz. Daí porque é, o dinheiro, a realidade celeste das mercadorias, a realização mais perfeita da riqueza: a riqueza universal enquanto existência efetiva e, ao mesmo tempo, o representante material universal dela. Disto decorre que a posse da riqueza não é mais, como nas formas precedentes da produção, desenvolvimento determinado da individualidade. A produção 122 123

Id., tomo I, p. 159 Idem 79

permanece sendo processo pelo qual ocorre a subjetivação de objetividades - por meio da impressão de forma nova à materialidade existente - de um lado, e a objetivação de potencialidades humanas, de outro. O sujeito que trabalha continua sendo sujeito que, na relação que estabelece com a objetividade social, exterioriza, objetiva e desenvolve suas próprias forças. Assumindo a produção, aqui, uma forma cada vez mais social, trata-se, é verdade, de uma objetivação de forças sociais, de objetivação e desenvolvimento da individualidade social, com todas as determinações próprias a esta no momento da produção. A produção, mesmo sob a forma do estranhamento - na qual, seus sujeitos não se reconhecem enquanto tais - permanece sendo objetivação de forças e potencialidades humanas, só que, agora, destas efetivamente desenvolvidas como potencialidades e forças sociais. "Toda produção é uma objetivação do indivíduo. Mas, no dinheiro (valor de troca), a objetivação do indivíduo não é aquela do indivíduo em sua determinidade natural, mas dele enquanto posto em uma determinação (em uma relação) social que lhe é, ao mesmo tempo, exterior."124 Se a produção permanece sendo ato pelo qual os indivíduos sociais se põem no mundo, se objetivam, tornam efetivas e desenvolvem suas faculdades, há, entretanto, nesta sua forma específica de ser, uma desvinculação entre apropriação e atividade, entre propriedade e trabalho. De um lado, como vimos, a relação do indivíduo enquanto indivíduo ativo pressupõe justamente que ele não se aproprie de seu trabalho, de outro lado, a relação com esta riqueza torna-se fortuita, contingente, torna-se relação que não diz respeito à apropriação pelo trabalho. A relação com a riqueza enquanto dinheiro não supõe uma relação intrínseca do indivíduo com seu objeto de exteriorização, de ação. Ao contrário, a posse do dinheiro é uma posse em 124

Id., tomo I, p. 164 80

que tal relação é apagada. Assim o explica Marx: "Toda forma da riqueza natural, antes de ser relegada e substituída pelo valor de troca, supõe uma relação essencial do indivíduo com o objeto: o indivíduo se objetiva ele mesmo, por um de seus lados, na coisa [Sache] e, ao mesmo tempo, sua posse da coisa aparece como um desenvolvimento determinado de sua individualidade - a riqueza em carneiros, como desenvolvimento do indivíduo enquanto pastor; a riqueza em grãos, como desenvolvimento enquanto agricultor, etc. Já o dinheiro - enquanto indivíduo da riqueza universal, enquanto resultando, ele mesmo, da circulação e representando apenas o universal, enquanto ele não é senão resultado social - não pressupõe absolutamente nenhuma relação individual a seu possuidor. Sua posse não é o desenvolvimento de nenhum dos lados essenciais de sua individualidade, mas, ao contrário, é posse do que é sem individualidade, dado que esta relação social existe, ao mesmo tempo, como objeto sensível, exterior, do qual se pode apoderar mecanicamente e que pode também ser perdido."125 É importante ressaltar, porém, que, embora a posse do dinheiro, da forma social da riqueza, não seja, ela própria, desenvolvimento determinado da individualidade, isto não implica, seja dito novamente, que a produção não se efetive enquanto objetivação e desenvolvimento do indivíduo social. O que queremos enfatizar, e que fica claro da penúltima passagem de Marx citada por nós, é que o estranhamento do indivíduo em relação à objetividade social posta por sua atividade não nega ou anula o caráter efetivo de objetivação de tal atividade. Muito ao contrário, não só este caráter é afirmado pelo fato mesmo de que o estranhamento resulta, é posto, ele próprio, pela atividade: "esta separação absoluta entre propriedade e trabalho; entre a potência de trabalho viva e as condições de sua 125

Id., tomo I, p. 160 81

realização; entre trabalho objetivado e trabalho vivo; entre o valor e a atividade criadora de valor - donde, aliás, o caráter estranho do conteúdo do trabalho para o próprio trabalhador - aparece, no presente, igualmente como produto do próprio trabalho, como passagem ao estado objetivo, como objetivação de seus próprios momentos"126. Como, também, o caráter de objetivação se afirma na medida em que a relação do indivíduo com sua atividade é, somente aqui, posta como relação na qual a determinação social, própria à forma de ser dos homens, torna-se efetiva e pode se pôr plenamente, desenvolvendo-se como ciência e domínio total sobre a natureza. Muito embora a riqueza produzida não apareça aos indivíduos como este rico evolver de potencialidades sociais, mas esteja posta sob a forma abstrata de dinheiro, como algo no qual eles não se reconhecem, a apropriação da riqueza torna-se, aí, uma apropriação de forças sociais objetivadas, de universalidade posta sob forma objetiva, concreta, ou seja, uma relação do indivíduo não apenas com suas próprias forças essenciais objetivadas ou com as forças essenciais de um determinado grupo humano, mas com todo o universo da riqueza social produzida. Neste sentido, significa a possibilidade do desenvolvimento universal da individualidade humano-societária, a possibilidade de que tal desenvolvimento se coloque como desenvolvimento para si e não apenas em si. No entanto, a relação do indivíduo social com o produto total de sua atividade não depende, aqui, desta mesma relação enquanto atividade criadora, atividade que põe ser. O fato de que o trabalhador possa, numa medida limitada, mas possa, ao menos potencialmente, gozar da riqueza enquanto tal - e não apenas de uma determinada forma da riqueza - ou seja, o fato de que seu círculo de fruições esteja limitado apenas quantitativamente é um fato que "lhes dá, inclusive enquanto 126

Id., tomo I, p. 391 82

consumidores, (...) uma outra importância, enquanto agentes da produção, que aquela que eles têm ou que eles tinham na antigüidade ou na idade média, ou, ainda, na Ásia."127 O trabalhador recebe, em sua troca com o capitalista, o equivalente sob a forma da riqueza universal, isto é, sob a forma de dinheiro. Neste sentido, encontra-se em condições de igualdade com ele: não é, enquanto tal, sua propriedade, não é mais propriedade de outrem - como na relação de escravidão - ou mero objeto, dentre outros, na produção - como na servidão. O trabalhador encontra-se posto, frente ao capitalista, como proprietário de sua potência de trabalho. Ele lha vende, ele próprio: "Para o trabalhador livre, a potência de trabalho aparece, em sua totalidade mesmo, como sua propriedade, como um de seus momentos sobre o qual ele tem influência enquanto sujeito e que ele conserva alienando."128 No entanto, este equivalente do qual ele se apropria aparece, em suas mãos, apenas como numerário, como meio de troca em vista de bens de consumo. O trabalhador não recebe riqueza. Ele recebe, na verdade, apenas valor de uso, apenas o estritamente necessário a sua manutenção enquanto capacidade viva de trabalho. "Por mais que os trabalhadores economizem, eles não podem obter riqueza"129, pois, seus salários certamente cairiam e eles voltariam a sua condição normal, qual seja, a do uso do salário exclusivamente para a sobrevivência. Marx não nega que tenham existido formas sociais em que os proprietários trabalham e trocam, eles próprios, entres eles. Apenas quer mostrar que o capital é exatamente o aniquilamento destas formas, pois, para ele se pôr enquanto capital, "ele só pode se pôr como tal, pondo o trabalho como não-capital, como puro valor de uso. (Enquanto escravo, o trabalhador tem um valor de troca, um valor; como trabalhador 127 128

Id., tomo I, p. 226 Id., tomo I, p. 403 83

livre ele não tem valor, tem um valor apenas a disposição de seu trabalho, obtida graças à troca com ele. Não é ele que faz face ao capitalista como valor de troca, mas o inverso. Sua falta de valor e sua desvalorização são o pressuposto do capital e a condição sine qua non do trabalho livre."130 O capital é a relação do trabalho objetivado, do trabalho passado, com o trabalho existente no tempo, com o trabalho vivo. Uma relação pela qual o primeiro se põe, enquanto valor, de forma autônoma em relação a este último, mas não só. Tal relação pressupõe, como vimos, a produção deste mesmo valor através da troca entre um e outro, entre capital e trabalho. O trabalho vivo só tem existência efetiva, só se objetiva, quando se põe, como atividade concreta, em relação com a materialidade objetiva de suas condições - nesta forma social, quando se põe em relação de troca com o trabalho enquanto capital. Troca, esta, que é exatamente a base deste modo de produção que tem, como resultado, uma mais-valia, um valor superior àquele posto inicialmente no processo. A mais-valia resulta precisamente desta troca que o trabalho - enquanto valor de uso, enquanto atividade - realiza consigo mesmo enquanto capital - isto é, enquanto valor de troca que tornou-se autônomo. Daí porque, segundo Marx, a igualdade só é base desta relação num certo sentido. A troca entre capital e trabalho é formalmente, economicamente, igual, pois, o trabalhador recebe, em valor de troca, aquilo que corresponde precisamente ao valor de sua mercadoria, ao custo de produção de sua força de trabalho. Neste sentido, encontra-se numa relação de troca simples, onde cada um recebe o equivalente daquilo que pôs na relação. Tal igualdade é, porém, exclusivamente formal na medida em que se encontra assentada sobre uma base essencialmente desigual: a ampliação do valor do 129 130

Id., tomo I, p. 228 Id., tomo I, p. 230 84

capital com base no uso da força de trabalho. Trata-se de uma igualdade aparente porque o valor de uso do trabalho, o uso que o capitalista dele faz, não é indiferente nesta relação. A mercadoria trabalho131 possui como determinação própria, e que lhe é exclusiva, ser mercadoria que cria valor. Portanto, a relação que se encontra na superfície, aquela da troca de equivalentes, repousa sobre esta outra, pela qual se paga, ao trabalhador, o valor de troca de seu trabalho, mas se obtém, em contrapartida, seu uso e, pois, um valor ampliado. Daí porque a troca entre capital e trabalho não é uma troca simples. Se o primeiro ato em que ela se desdobra - a troca do trabalho por salário - constitui-se, enquanto tal, numa troca simples, onde a mercadoria trabalho é trocada, como qualquer outra, por seu preço; seu segundo momento - aquele pelo qual o capitalista, então, se apropria do valor de uso do trabalho, da atividade que põe valor - não pode, no entender de Marx, nem mesmo ser chamado de troca, sob pena de se descaracterizar completamente tal relação: "Na troca entre o capital e o trabalho, o primeiro ato é uma troca, ele entra totalmente na circulação ordinária; o segundo, é um processo qualitativamente diferente da troca e é apenas abusivamente que poderíamos qualificá-lo de troca de uma espécie qualquer. Ele é diretamente oposto à troca, é uma categoria fundamentalmente diferente."132 Na circulação simples, o que caracteriza a troca entre as mercadorias, a troca de equivalentes, é, segundo Marx, que a mercadoria objetivada em cada ato de troca, aquela pela qual se efetua a transação, não possui nenhum interesse para a

131

Muito embora os Grundrisse inaugurem, segundo Chasin, nova fase na trajetória de Marx, precisamente devido à "distinção entre trabalho e força de trabalho" (CHASIN, J. "Marx no Tempo da Nova Gazeta Renana" in A Burguesia e a Contra-Revolução, p. 25); tal distinção não é necessariamente explicitada por Marx em todos os momentos - como não o é neste ao qual nos referimos. E, isto, provavelmente, pelo fato mesmo de que se trata do momento de gestação, do reconhecimento primeiro dela. Esta autora ficaria, por necessidade de precisão, naturalmente tentada a referir, nesta frase e nas que a ela seguem neste parágrafo, não à categoria trabalho, mas à de força de trabalho. Tendo em vista, porém, a proposta metodológica desta dissertação, houvemos por bem manter o termo usado por Marx no caso específico. 85

determinação formal da relação; tanto assim que ela sai, ao final, desta para entrar para o âmbito da satisfação das necessidades do indivíduo singular. A mercadoria pela qual se realiza, aí, a troca possui, pois, interesse apenas enquanto valor de uso, o valor de troca dela está presente como determinação meramente formal. Já, na troca do capital com o trabalho, a mercadoria trabalho - pela qual é trocado o valor ou dinheiro - não possui um interesse apenas material. Ela é parte fundamental na relação econômica. O valor de uso desta mercadoria não apenas não é algo indiferente ou alheio à transação, como, na verdade, é o fim visado por ela. "No caso presente, diz Marx, inversamente, o valor de uso do que foi trocado por dinheiro aparece como relação econômica particular e é o uso determinado do que foi trocado por dinheiro que constitui o objetivo último dos dois processos. Isto já distingue, pois, de um ponto de vista formal, a troca entre o capital e o trabalho da troca simples: são dois processos diferentes."133 Não sendo nosso objetivo, porém, a dilucidação específica da diferença entre a troca que realizam entre si capital e trabalho e a troca simples, mas apenas apreender, no momento, as razões fundamentais pelas quais o trabalho aparece, no processo, como valor de uso - e não em condições de igualdade - não entraremos nas demais determinações da diferença entre ambas as relações. Assim, se, de um lado, o trabalhador não se põe em condições de igualdade com o valor que se apresenta, frente a ele, como sujeito pelo fato de que este último se apropria, sem troca, sem igual contrapartida, de um sobrevalor, por outro lado, nem mesmo aquilo que o trabalhador recebe - a fração diminuída de sua força de trabalho - configura-se, para ele, como sendo riqueza universal. O trabalhador recebe seu equivalente em dinheiro, na forma da riqueza universal. Ele recebe, em potência, 132 133

Id., tomo I, p. 216 Idem 86

riqueza universal, assim como o capitalista. No entanto, ele recebe tal riqueza apenas em potência, já que, na realidade, o mesmo equivalente converte-se imediatamente, para ele, apenas em meios de satisfazer suas necessidades. Na verdade, portanto, o trabalhador não recebe riqueza, não participa da troca em condições efetivas de igualdade, já que produz riqueza universal, valor, mas recebe, em troca, apenas valor de uso. E esta é, segundo Marx, precisamente a condição para que o capital se ponha como capital, como valor para si: "Enquanto o trabalhador, enquanto tal, tem um valor de troca, o capital industrial não pode existir enquanto tal e, portanto, menos ainda, a fortiori, o capital desenvolvido. Frente a este último, é preciso que o trabalho exista unicamente como puro valor de uso que seu proprietário oferece, ele mesmo, como mercadoria, em troca de capital, isto é, em troca de seu valor de troca (ou de numerário) - o qual, de resto, torna-se efetivo, nas mãos do trabalhador, apenas em sua determinação de meio de troca universal e que, senão, desaparece." 134. O valor de troca torna-se efetivo, para o trabalhador, apenas enquanto moeda - valor de troca posto sob forma ideal, que se realiza na relação apenas quando desaparece, quando deixa de ser valor de troca - e, portanto, não enquanto capital, enquanto valor de troca objetivo, concreto. "A separação entre a propriedade e o trabalho aparece como lei necessária desta troca entre capital e trabalho."135 O trabalho é posto, aí, exatamente como a não riqueza efetiva, como a produção ou riqueza negada. Ele aparece, no processo, como sendo precisamente aquilo que ele é: um não-valor; enquanto o capital, com quem ele troca, é que se apresenta como valor, como incorporação de tempo de trabalho.

134 135

Id., tomo I, p. 231 Id., tomo I, p. 234 87

Se, nos modos de produção em que os indivíduos possuem uma relação de apropriação efetiva com suas condições objetivas de existência - nas diferentes formas da propriedade fundiária - "independentemente do trabalho, o trabalhador tem uma existência objetiva"136, possui domínio sobre as condições de sua realidade; no capital, o indivíduo ativo é existência objetiva negada. O trabalhador existe, aí, de forma abstrata, abstraída de seus momentos efetivos. É posto como não-capital, ou seja, como não-instrumento, não-matéria-prima, enfim, como não-riqueza em geral. Ele existe apenas de forma separada, cindida, em relação à objetividade posta por ele e é trabalho apenas enquanto trabalho não-objetivado. Na sociabilidade em que todas as determinações da “atividade criadora do valor de troca” aparecem coisificadas, o indivíduo que trabalha aparece, frente a estas determinações, como mera faculdade: como potência de trabalho. Ele possui uma existência meramente subjetiva frente ao processo de produção. A existência ativa é, aqui, uma existência unilateral, que não pode efetivar-se por si mesma. A individualidade ativa só pode efetivar-se como ser que se auto-põe desde que intervenham, do exterior, as condições objetivas de sua atividade. “O valor de uso que pode oferecer o trabalhador frente ao capital, portanto, aquilo que ele pode oferecer aos outros de uma forma geral, não está materializado num produto, não existe simplesmente fora dele, não existe realmente mas, apenas, potencialmente, como faculdade. Ele só torna-se realidade efetiva a partir do momento em que é solicitado, posto em movimento pelo capital – pois, uma atividade sem objeto nada é (...)”.137 O trabalho presente como trabalho vivo só é presente como sujeito vivo, ou seja, como possibilidade, como trabalhador. O indivíduo não se põe como momento 136 137

Id., tomo I, p. 411 Id., tomo I, p. 207. 88

efetivo de um complexo de determinações que define a existência do ser social de sua época, como momento singularizado, concreto, desta riqueza, mas única e exclusivamente como valor de uso para o capital, como existência que só tem valor como força de trabalho. Força esta, ela própria, desprovida – enquanto manifestação singular – de qualificações particulares, isto é, que só interessa enquanto dispêndio de certo quantum de tempo de trabalho. Para Marx, como não poderia ser diferente, mesmo esta forma puramente subjetiva do trabalho é, em si, objetividade, é concreta, existe de forma independente do pensamento, como objetividade real: O “trabalho não objetivado [Nicht vergegenständlichte Arbeit] apreendido negativamente (ele mesmo ainda objetivo; o não-objetivo, ele mesmo, sob forma objetiva) (...). O trabalho como a pobreza absoluta: a pobreza não como falta, mas como exclusão total da riqueza objetiva. Ou, ainda, enquanto ela é o não-valor existente – e, pois, o valor de uso puramente objetivo, existindo sem mediação – esta objetividade só pode ser uma objetividade coincidindo com a corporeidade imediata desta última. Sendo puramente imediata, a objetividade é, de forma tão imediata quanto, não-objetividade. Em outros termos, ela não é uma objetividade que sai para fora da existência imediata do indivíduo ele mesmo.”138 O trabalho existe, aqui, exclusivamente como trabalhador, como riqueza em potência, como possibilidade universal da riqueza “se verificando como tal na ação”139 e não como riqueza efetiva. A forma moderna da sociabilidade revela-se, contudo, superior àquelas nas quais o trabalho é mero objeto. Nela, o trabalhador encontra-se formalmente como pessoa – “’fora de seu trabalho’ ele é, ainda, algo para si mesmo” – ou seja, ele não é, 138 139

Id., tomo I, p. 234 Idem 89

ele próprio, um valor de troca ou objeto de outrem, mas encontra-se livre para poder alienar ou não sua atividade; a qual, esta, sim, é que é, aqui, apenas valor: “a alienação das manifestações exteriores de seu ser vivo é apenas um meio de sua própria vida”140. Ser potência de trabalho para si é ser proprietário da totalidade de sua manifestação própria de força, ser proprietário de si mesmo enquanto potência de trabalho; é ser sujeito em relação às manifestações exteriores de seu ser vivo - o que constitui um avanço em relação às formas inferiores do trabalho vivo, como Marx denomina o trabalho servil e o trabalho escravo: “Na relação de escravidão, ele pertence ao proprietário singular, particular; ele é sua máquina de trabalho. Enquanto totalidade de manifestação de força, enquanto potência de trabalho, ele é uma coisa que pertence a outro e, portanto, não se comporta como sujeito em relação à manifestação de sua força particular ou a seu ato de trabalho vivo. Na relação de servidão, ele aparece como momento da propriedade fundiária, ele é um acessório da

140

Id., tomo I, p. 231. 90

terra, assim como o gado de lavoura. Na relação de escravidão, o trabalhador não é outra coisa que não uma máquina de trabalho viva, que tem, por aí mesmo, um valor para outros, ou melhor, é um valor. Para o trabalhador livre, a potência de trabalho aparece, em sua totalidade mesmo, como sua propriedade, como um de seus momentos sobre o qual ele tem influência enquanto sujeito e que ele conserva alienando.”141 A forma moderna da produção possui, assim, este aspecto positivo no que diz respeito à condição do trabalho vivo. Marx diz ser preciso distinguir o mercado de trabalho do mercado de escravos justamente porque se trata, no presente caso, não da compra do trabalhador enquanto tal – como no mercado de escravos – mas, sim, da compra, por dinheiro, do trabalho, da atividade. O que o trabalhador vende ao capitalista não é sua pessoa, mas a manifestação de sua força de trabalho. Muito embora o indivíduo que trabalha seja, na verdade, mera potência de trabalho, seja algo que é desprovido de toda e qualquer condição de subsistência fora, independentemente, do trabalho, ele possui, neste modo de produção, uma liberdade formal. Apresenta-se, frente ao capitalista, como pessoa, como ser que possui certa liberdade de escolha. Liberdade que se revela, porém, uma liberdade aparente, já que, se o indivíduo, enquanto tal, não é mais mero objeto, dentre outros, do processo de trabalho, se ele não é mais, enquanto indivíduo singular, escravo ou servo, suas condições sociais de existência o atam necessariamente ao capital. O trabalhador moderno está, como vimos, necessariamente atado, não livre, em relação às condições de trabalho postas sob a forma objetiva de capital. Trata-se, portanto, de um avanço que - na medida em que o trabalhador só se efetiva, se objetiva, se alienando – não significa, porém, a verdadeira realização do trabalho livre. 141

Id., tomo I, p. 403 91

A sociabilidade engendrada pelos indivíduos ativos, suas condições objetivas de vida, não são “realizadas como condições de sua realização no processo de produção, mas, ao contrário, a potência de trabalho sai desse processo como uma simples condição da valorização e conservação delas enquanto valor para si em face dela”142. Os trabalhadores vêm a ser, portanto, meras condições de valorização de suas condições objetivas de trabalho, tornando-se, desta forma, totalmente dependente delas, já que não se auto-sustentam nem enquanto seres vivos, enquanto força de trabalho viva, muito menos em sua manifestação de vida. Dependem tanto de meios de subsistência – aqueles que mantêm acesa sua chama de vida enquanto potência de trabalho – como de condições objetivas para a realização de si enquanto atividade, os quais lhe são, ambos, externos, independentes deles. Nesta forma social da produção, os valores que resultam da própria atividade dos indivíduos é que são seres para si. Eles é que são efetividades postas, que se auto-sustentam. Para os indivíduos ativos, o resultado desta forma de apropriação de mundo é, ao mesmo tempo, uma desapropriação na medida em que se põe por um ato de negação mesmo de suas potencialidades: “Este processo de realização do trabalho é, ao mesmo tempo, processo de sua desrealização. Ele se põe objetivamente, mas põe sua objetividade como seu próprio não-ser ou como o ser de seu não-ser: capital"143. A atividade estranhada configura-se como processo de efetivação e, ao mesmo tempo, desefetivação, negação, do sujeito que a pratica porque, embora constituindo-se em objetivação - em ato pelo qual um ser se põe no mundo a partir da criação de uma nova materialidade, toda esta objetivação é "regulada, medida e dirigida por algo que se coloca ante ao indivíduo ativo e sua 142 143

Id., tomo I, p. 401. Id., tomo I, p. 393. 92

própria atividade enquanto uma potência alheia"144. Potência esta que é, na verdade, sua própria despotencialização, sua própria potência voltada contra si. Pois, o trabalho aparece "como um simples meio de valorizar o trabalho morto, objetivado, para impregná-lo de uma lama vivificante e para perder sua alma em proveito daquele (tendo por resultado ter produzido a riqueza criada como algo estranho, e de produzir para si apenas a indigência da força de trabalho viva)" 145. Ele deveio atividade, por um lado, produtora de uma riqueza que lhe é estranha e que a submete a si enquanto valor e, por outro lado, reduz-se a mero meio de reprodução da capacidade produtiva dos indivíduos. A atividade estranhada é, portanto, apropriação humana na sua forma mais universal e autônoma e, ao mesmo tempo, desapropriação ou desefetivação de vida.

CAPÍTULO III A EMANCIPAÇÃO HUMANO-SOCIETÁRIA

A) SUPERAÇÃO DA ATIVIDADE SENSÍVEL ESTRANHADA

O tornar-se estranho não é, em Marx, porém, uma necessidade absoluta do processo de objetivação dos homens. A atividade sensível é atividade estranhada na forma social moderna porque, nesta, "O acento está colocado não sobre o fato de ser objetivado, mas no de ser estranhado (Entfremdet), alienado (Entäuert), ser vendável (Veräu ertsein), de não ser do trabalhador, mas ser das condições de

144

ALVES, A., Op. Cit., p. 109. 93

produção personificadas, isto é, sobre o pertencimento ao capital desta prodigiosa potência objetiva, a qual confronta o trabalhador como um dos seus momentos"146. Ao entender a atividade estranhada e a inversão ou desefetivação humana por ela estabelecida como objetividades, Marx não deixa de entender seu caráter finito e, portanto, superável, dado ser, segundo o mesmo autor, uma necessidade ‘histórica’ e não uma necessidade ‘absoluta’ do devir da atividade147. Junto à identificação das necessidades históricas colocadas à atividade humano-sensível, Marx identifica, também, as possibilidades do seu devir real. Os elementos presentes nos Grundrisse que apontam para a possibilidade de uma emancipação humana

são

precisamente

aqueles

que

dão

forma

à

sociabilidade moderna. Tal afirmação não possui um sentido puramente lógico ou cronológico, mas está calcada no desvelamento da legalidade ontológica intrínseca a esta formação sócio-histórica. Segundo Marx, esta última traz em si mesma os componentes de uma forma superior de atividade. A forma social da atividade humana sensível em seu grau extremo de estranhamento “representa um ponto de passagem necessário; e isto porque esta forma invertida simplesmente apresenta em si a dissolução de todos os pressupostos limitados da produção e, mesmo, ao contrário, cria e produz os pressupostos não-condicionados da produção e, portanto, as condições materiais plenas para o desenvolvimento total, universal, das forças produtivas do indivíduo”148. O conjunto das possibilidades/necessidades de uma emancipação humanosocietária está calcado, para Marx, fundamentalmente no desenvolvimento livre das

145

MARX, K., Manuscrit de 1857-58, tomo I, p. 225. Id., tomo II, p. 323. 147 Idem 148 Id., tomo II, p. 8 146

94

potencialidades

humano-produtivas.

Desenvolvimento

este

possibilitado

na

modernidade porque, nela, tais potencialidades constituem-se em pressupostos ilimitados da produção, livres de toda determinação natural. Segundo o mesmo autor, "(...) em todas as formas anteriores da produção, não é o desenvolvimento das forças produtivas que constitui a base da apropriação, mas uma relação determinada com as condições de produção (formas de propriedade) que aparece como limite previamente posto pelas forças produtivas; relação que só deve ser reproduzida (...)"149 Muito embora os modos de produção com base no valor de uso estivessem sempre assentados sobre o desenvolvimento das forças produtivas, este último constituía-se, neles, em fator problematizante. A partir de determinado limite - aquele que definia precisamente a forma específica da produção - o desenvolvimento das forças produtivas dos indivíduos colocava em risco os pilares fundamentais do modo de apropriação vigente e o suplantava, na efetividade, para dar origem a uma nova forma apropriativa mais adequada a si. Assim, "Todas as formas anteriores de sociedade são mortas com o desenvolvimento da riqueza ou, o que dá no mesmo, das forças produtivas sociais. Fato pelo qual, entre os antigos, que disto tinham consciência, a riqueza é diretamente denunciada como o que dissolve a comunidade. A constituição feudal, quanto a ela, é morta pela indústria urbana, pelo comércio, pela agricultura moderna (e, ainda, pelas invenções isoladas, como a pólvora e a imprensa tipográfica). Com o desenvolvimento da riqueza - e, pois, ao mesmo tempo, de forças novas e de um tráfico ampliado entre os indivíduos - houve dissolução das condições econômicas sobre as quais repousava a comunidade e dissolução das

149

Id., tomo II, p. 96 95

relações políticas dos diferentes componentes da comunidade que correspondiam a esta última"150. A produção com base na criação de mais-valia, de mais-tempo de trabalho, implica, ao contrário, um desenvolvimento cada vez mais pujante das forças produtivas. O pleno desenvolvimento destas últimas é, aqui, a própria condição da valorização e, portanto, do modo de produção. A produção não é mais limitada por condições específicas que lhe antecedem, mas se pôs precisamente como processo de constante e contínuo superar de condições. O livre desenvolvimento das forças apropriativas, da riqueza social, é que se constitui como sendo o pressuposto do capital. O pressuposto deste é seu próprio produto e não algo que lhe antecede e determina a priori: "O capital põe como pressuposto de sua reprodução a própria produção da riqueza e, pois, o desenvolvimento universal das forças produtivas, o transtorno constante de seus pressupostos existentes. O valor não exclui nenhum valor de uso; ele não inclui, portanto, nenhum tipo particular de consumo, etc., de tráfico, etc., como condição absoluta. (...) Seu pressuposto, ele próprio - o valor - é posto como produto e não como um pressuposto superior que pairaria sobre a produção."151 Pela primeira vez, o desenvolvimento da riqueza e da potência social vem a ser a condição e o fator determinante da produção - posto não como desenvolvimento adstringido à reprodução de determinadas relações, mas, ao contrário, como desenvolvimento que é e deve ser ilimitado e que se supera continuamente a si próprio. No entanto, como vimos, tais pressupostos ilimitados da produção tornam-se, aí, forças ou potências coisificadas, autônomas em relação aos indivíduos ativos. Daí 150 151

Id., tomo II, p. 33 Id., tomo II, p. 34 96

porque Marx diz ser esta forma assumida pela atividade uma forma a ser superada, pois, a mesma tendência que possui de uma constante auto-superação de limites – na medida em que se tratam de limites postos por ela própria – esta mesma tendência a leva, enquanto forma de apropriação ou produção limitada, a sua própria dissolução. Pois, constitui-se ela própria - a atividade estranhada - num obstáculo à plena efetivação do desenvolvimento livre das capacidades apropriativas dos indivíduos. A emancipação humana consiste precisamente na superação do estranhamento ao qual encontram-se submetidos os indivíduos ativos na sociabilidade moderna. Significa, pois, que o aspecto predominante da interatividade social não seja o pertencimento a outrem – ao próprio não-ser dos homens – das condições de produção, “desta prodigiosa potência objetiva”, mas que esta última seja recobrada como potência própria aos sujeitos da objetivação. Uma tal configuração da atividade sensível, não calcada no estranhamento, pressupõe que os meios de objetivação, todos os resultados objetivos e subjetivos desta, percam, portanto, seu caráter de potência dominadora e que existam, na verdade, enquanto extensão efetiva das potências sociais dos indivíduos mesmos. As potências sociais objetivadas pela atividade sensível seriam, elas próprias, o pressuposto da atividade. Enquanto, no mundo do capital, é na alienação de tais potências que se encontra assentada a atividade, nesta sociabilidade por vir, “é o caráter social da produção que está pressuposto; e a participação no mundo dos produtos, no consumo, não é mediatizada pela troca de trabalhos ou de produtos do trabalho independentes uns dos outros. Ela é mediatizada pelas condições sociais de produção no quadro das quais o indivíduo exerce sua atividade”. “O trabalho do indivíduo singular é posto, de início, como

97

trabalho social”152 e não mais como trabalho isolado e estranhamento em relação à sociabilidade. A malha societária é sua própria substância, apropriada e reposta por ele num processo infinito de transformação no qual ele está inserido como indivíduo social ativo. Como vimos, na forma de produção moderna, o processo universalizado das relações entre os homens a partir de suas interações efetivas é apenas inicializado, ou seja, trata-se de uma universalização unilateral, na medida em que tal determinação da atividade permanece posta de forma estranhada em relação aos indivíduos ativos singulares. O trabalho emancipado consistiria, para Marx, na efetiva realização deste processo pelo qual a universalização ou autonomização das relações humanas se efetivasse como sendo para os indivíduos no interior mesmo do ato pelo qual eles se auto-põem. O trabalho viria a ser, em si mesmo, trabalho universal, não mais dependendo de uma mediação externa para o pôr enquanto tal. A reconciliação entre as forças sociais objetivadas e os indivíduos ativos singulares; entre as determinações do trabalho postas, de um lado, sob a forma de valores de troca e, de outro, como valores de uso; a superação desta imensa cissura ou estranhamento que caracteriza todas as determinações do trabalho na sociabilidade moderna, é vista, por Marx, como processo que desponta no interior do próprio modo de produção atual. Como forma de produção de riqueza baseada na quantidade de tempo de

152

Id., tomo I, p. 109. 98

trabalho

imediato

extorquida

ao

trabalhador153,

o

capital

desenvolve-se

progressivamente como processo contraditório, que se põe e que, por este mesmo ato, põe, também, aquilo que o nega. Pois, o desenvolvimento das forças produtivas posto como uma sua necessidade - se faz como desenvolvimento de forças produtivas cada vez mais sociais ou gerais, frente às quais, o tempo de trabalho vivo ou imediato aparece como algo cada vez mais ínfimo e sem importância. O desenvolvimento do capital perfaz-se sob condições nas quais sua valorização torna-se crescentemente dificultada já que "à medida em que se desenvolve a grande indústria, a criação da riqueza real depende menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado do que da potência dos agentes postos em movimento no curso do tempo de trabalho - a qual, por sua vez, (a potência eficaz deles) não tem, ela mesma, nenhuma relação com o tempo de trabalho imediatamente dispensado para produzilos, mas depende, sim, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou seja, da aplicação desta ciência na produção. ( O desenvolvimento desta ciência (...) está, ele mesmo, por sua vez, em relação com o desenvolvimento da produção material)"154. O processo de trabalho ganha, na indústria, uma feição automatizada. E, isto, como resultado do próprio desenvolvimento do modo de produção moderno. Como o diz Marx, a divisão do trabalho chegou a um ponto tal de mecanização que pôde ser substituída por um sistema automatizado de seus elementos. O processo de trabalho, enquanto aplicação e desenvolvimento da ciência natural - a qual se volta, a partir de então, mais e mais para o desenvolvimento da produção material - enquanto

153

Muito embora se trate de uma 'extorsão' consentida e entendida exclusivamente desta forma, como visto no capítulo anterior, julgamos perfeitamente cabível e coerente com o pensamento de Marx, o uso deste termo, que, ademais, tem o mérito de evidenciar o aspecto fundamental sobre o qual repousa tal relação: o aspecto de não-troca ou troca sem contrapartida para o trabalhador. 99

desenvolvimento das forças sociais gerais, aparece, assim, como processo autômato, como processo natural frente aos indivíduos. "Não é mais o operário que intercala um objeto natural modificado como meio termo entre o objeto e ele, mas é o processo natural - processo que ele transforma em um processo industrial - que ele intercala como meio entre ele e a natureza inorgânica da qual ele se torna mestre. Ele acaba por se pôr ao lado do processo de produção, ao invés de ser seu agente essencial. Nesta mutação, não é nem o trabalho imediato efetuado pelo homem, nem seu tempo de trabalho, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e sua dominação da natureza por sua existência enquanto corpo social ou, numa palavra, o desenvolvimento do indivíduo social que aparece como o grande pilar fundamental da produção e da riqueza. O roubo do tempo de trabalho de outrem, sobre o qual repousa a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparada àquela, recentemente desenvolvida, que foi criada pela grande indústria ela mesma."155 Na indústria moderna, a base principal da produção da riqueza, dos valores de uso, não é o trabalho imediato nela dispendido. A base e medida da riqueza deixa de ser o tempo de trabalho excedente sobre o tempo de trabalho necessário à reposição da potência de trabalho para tornar-se a própria desproporção entre a riqueza e o poderio das forças produtivas objetivadas e aquela potência. Em outras palavras, o parâmetro da riqueza não é mais a pobreza do tempo dispendido em trabalho imediato, mas a própria potência e pujança de toda a força e ciência humanas objetivadas. Não é mais o trabalho vivo aquilo que fundamentalmente produz, o sujeito efetivo, neste novo modo de produção, mas, sim, toda a força produtiva dos 154 155

Id, tomo II, p. 192 Id., tomo II, p. 193 100

indivíduos já objetivada, esta imensa potência concreta tornada, em grande medida mas não totalmente - autônoma em relação ao trabalho do indivíduo singular. É, esta potência social, aquilo que deveio a força produtiva principal do processo de produção. Desta forma, "Na exata medida em que o tempo de trabalho - o simples quantum de trabalho - é posto, pelo capital, como o único elemento determinante, o trabalho imediato e sua quantidade desaparecem enquanto princípio determinante da produção - da criação de valores de uso - e encontram-se rebaixados tanto quantitativamente a uma proporção reduzida, quanto qualitativamente a um momento certamente indispensável, mas subalterno em relação ao trabalho científico em geral de aplicação tecnológica das ciências físicas e matemáticas - de um lado, assim como em relação à força produtiva geral que se libera da articulação social na produção global (...)"156. Tal fato não abole ou descaracteriza, portanto, a condição geral e necessária da existência do capital: o tempo de trabalho imediato não pago ao trabalhador. Este último permanece sendo a única fonte da mais-valia. O capital, por si mesmo, não cria valor. Como reitera Marx, em várias oportunidades ao longo dos Grundrisse, valor é tempo de trabalho objetivado. Desta forma, se as condições objetivas de trabalho são, elas próprias, valores - tempo de trabalho objetivado, materializado, não pago aos trabalhadores - não são, tais condições, porém, fonte de valor, elas não põem valor: "A transformação da mais-valia na forma de lucro - esta forma que o

156

Id., tomo II, p. 188. Grifos nossos. 101

capital tem de calcular a mais-valia157 - repousa sobre uma ilusão quanto à natureza da mais-valia e, mais ainda, oculta, de alguma forma, esta última. No entanto, isto não impede que, do ponto de vista do capital, ela seja necessária. (É fácil imaginar que a máquina enquanto tal, pelo fato de que ela age como força produtiva do trabalho, põe valor. Ora, se a máquina não tivesse necessidade de trabalho algum, ela poderia aumentar o valor de uso, mas o valor de troca que ela criaria não seria nunca maior que seu próprio custo de produção, seu próprio valor - o trabalho objetivado nela. Não é porque ela substitui trabalho que ela cria valor, mas apenas na medida em que ela é um meio de aumentar o mais-trabalho; e apenas este mais-trabalho é, ao mesmo tempo, a medida e a substância da mais-valia que é posta com a ajuda da máquina e, portanto, do trabalho)"158. O tempo de trabalho imediato não pago ao trabalhador ou, em outras palavras, o trabalho excedente dos indivíduos, embora não seja mais o parâmetro ou fator determinante da riqueza produzida, continua sendo, porém, aquele do valor. As máquinas agem na produção do valor apenas na medida em que são, elas próprias, valores, trabalho objetivado, e na medida em que contribuem para o aumento do tempo de trabalho excedente ou não pago. A produção do valor pressupõe, como vimos no capítulo II, a troca do capital, do valor objetivado, com o trabalho vivo. Tal relação foi, entretanto, restringida a uma parte insignificante do capital existente, já que o trabalho vivo ocupa, agora, lugar periférico e desprezível na forma automatizada da produção. A extinção do trabalho vivo como força predominante na produção de objetividades coincidiria, 157

Nota desta autora: Não sendo nosso objetivo entrar na diferenciação pormenorizada entre taxa de lucro e mais-valia, se faz premente ressaltar, no entanto, que, nos Grundrisse, tal diferença é consideravelmente tratada por Marx e que, de forma extremamente sucinta, consiste em explicar que o capital - os vários e diferentes capitais postos na circulação - ao atingir certo desenvolvimento, toma a si mesmo como referência para o cálculo do valor novo posto e não mais sua troca efetiva com o trabalho vivo. O lucro é precisamente esta diferença entre o valor novo produzido e aquele pressuposto à produção. 102

para Marx, com o fim da produção com base no valor de troca. A fonte e medida da riqueza não sendo mais o tempo de trabalho imediato, mas a potência social concreta, é a própria condição de existência do capital, da produção de valor, que se põe como condição ameaçada e em processo de extinção. Descreve, nosso autor, este processo como sendo aquele do "livre desenvolvimento das individualidades; no qual, não se reduz, portanto, o tempo de trabalho necessário para se pôr mais-trabalho, mas se reduz o trabalho necessário da sociedade a um mínimo, ao qual corresponde a formação artística, científica, etc., dos indivíduos, graças ao tempo liberado e aos meios criados por todos eles." 159 O modo pelo qual o capital mantém acesa sua chama, aquele pelo qual ele é capaz de não ver secar sua fonte de valor, ou seja, a contínua e crescente redução do tempo de trabalho necessário, tal mecanismo torna-se cada vez mais ineficaz. A redução do tempo de trabalho necessário implica, como conseqüência, a posição de mais capital sob a forma de capital fixo e, portanto, a diminuição do próprio tempo de trabalho vivo necessário. E quanto mais reduzido o tempo de trabalho vivo aplicado no processo de produção, mais reduzido torna-se, também, o montante de valor criado em relação àquele já existente. O ponto alcançado com este processo, seu resultado último, é que a redução do tempo de trabalho necessário não implica mais seu antigo par: a criação de maistempo ou trabalho excedente para outrem, mas, simplesmente, redução do tempo de trabalho necessário. De mecanismo ou mecanismo para, a redução do tempo de trabalho necessário torna-se fim. Redução do tempo de trabalho necessário tout court ou, ainda, criação de tempo social livre. Se, por um lado, tal redução não dá mais 158 159

Id., tomo II, p. 256 Id., tomo II, p. 193 103

origem ao valor, por outro, ela também não implica redução do tempo necessário apenas para produzir as condições absolutas de existência do indivíduo ativo. O que se tem como resultado é a redução do tempo de trabalho necessário em geral, do tempo de trabalho necessário à produção do próprio indivíduo social. Extintas as condições de existência e de reprodução do capital, o que surge são aquelas para um trabalho emancipado, pois, a redução do trabalho, do "dispêndio de força, a um mínimo (...) é a condição de sua emancipação."160 Ao pôr o tempo de trabalho supérfluo ou excedente como condição cada vez mais fundamental e necessária da produção, o capital, ao mesmo tempo em que cavou sua própria ruína, criou, por outro lado, as condições para o desenvolvimento geral do indivíduo social. E assim é que Marx descreve tal fenômeno: "A criação de muito tempo disponível, para além do tempo necessário, para a sociedade em geral e para cada um de seus membros (isto é, de lazer, para que se desenvolvam plenamente as forças produtivas dos indivíduos e, portanto, também, da sociedade) (...). Ele [ o capital ] contribui, assim, malgrado ele, ativamente para a criação dos meios do tempo social disponível, tendendo a reduzir o tempo de trabalho para a sociedade inteira a um mínimo decrescente e a liberar, assim, o tempo de todos para os fins do desenvolvimento deles próprios."161 O que foi reduzido, em geral, foi não apenas o tempo de trabalho necessário à reprodução da capacidade viva de trabalho, mas aquele pelo qual se reproduz o indivíduo ativo e todas as suas capacidades e necessidades postas pelo estágio efetivo do desenvolvimento de suas forças objetivas. Resultam postas, por conseguinte, as condições de uma reapropriação, pelos indivíduos ativos, de toda a riqueza criada, 160 161

Id., tomo II, p. 190 Id., tomo II, p. 195 104

pois, a produção desta, o desenvolvimento pleno da individualidade humanosocietária, não depende mais da existência destes indivíduos como meras potências de trabalho cindidas em relação a sua existência objetiva, concreta. A contradição engendrada pelo capital, pela atividade sensível dos indivíduos, não implicaria, entretanto, uma supressão imediata do modo de produção. Marx não deixou de entrever certos desenvolvimentos pelos quais o capital buscaria, entrementes, se manter como processo de valorização. Para não falar, aqui, das crises e convulsões - as quais agiriam como mecanismos subversivos sobre a tendência de desvalorização do capital, ou seja, como mecanismos pelos quais tal tendência seria, até certo ponto, contida no interior mesmo da circulação do capital - Marx reconhece que "o capital porá em obra tudo para emperrar a atrofia da relação do trabalho vivo com a grandeza do capital em geral (e, portanto, também, da relação da mais-valia quando expressa como lucro - ao capital pressuposto)." Para manter o desenvolvimento das forças produtivas no interior dos marcos da produção do valor, mecanismos diversos seriam engendrados pelo capital, tais como processos em que parte dele se desvalorize. Mecanismos dos quais, porém, o único efetivamente coerente com sua lógica reprodutora é, continuando a passagem anterior, "reduzindo a parte do trabalho necessário e desenvolvendo ainda mais a quantidade de maistrabalho em relação ao conjunto do trabalho empregado. O estado supremo de desenvolvimento da potência produtiva, bem como o maior aumento de riqueza jamais conhecido, coincidirão, pois, conclui Marx, com a depreciação do capital, a degradação do trabalhador e o esgotamento sistemático de suas capacidades vitais."162

162

Id., tomo II, p. 237 105

O processo pelo qual as condições da reprodução do capital tornam-se cada vez mais inexistentes é - assim como o foram todos aqueles que, na história humana, negavam as relações de produção já estabelecidas e reproduzidas por longos períodos - entendido, pelo autor dos Grundrisse, como um longo e difícil processo. Ao longo do qual, crises, cataclismas ou catástrofes são postos como inevitáveis no interior da insistente persistência de uma produção que se debate com suas contradições: "Estas contradições conduzem certamente a explosões, a crises nas quais a supressão momentânea de todo trabalho e a destruição de uma grande parte de capital conduzem, este último, pela violência, a um ponto em que ele estará em condições de explorar ao máximo suas capacidades produtivas sem ser conduzido ao suicídio. No entanto, estas catástrofes periódicas são condenadas a se repetirem numa escala maior e conduzem, finalmente, à derrubada violenta do capital."163 O que Marx mostra, nos manuscritos em questão, não é uma trajetória de cunho epistêmico ou político que devesse ser ou que seria necessariamente seguida pela ação dos homens visando alcançar uma existência efetivamente livre. O que resulta de seus estudos sobre o capital é que este realiza, na prática, sua autosupressão na medida em que alcança, em seu desenvolvimento, a superação efetiva posta em suas próprias determinações constitutivas - da cisão entre o indivíduo singular e as determinações de sua vida ativa. O capital, enquanto sendo, ele mesmo, tais determinações, alcança uma forma tal em que a supressão do estranhamento se põe como realidade, pois, "no processo de produção da grande indústria, assim como, de um lado - na força produtiva do meio de trabalho desenvolvido em processo automático - a sujeição das forças naturais ao entendimento social é uma condição prévia, assim também, de um outro lado, o trabalho do indivíduo singular é posto, em 163

Id., tomo II, p. 238 106

sua existência imediata, como trabalho abolido em sua singularidade, isto é, como trabalho social. Assim, desaba a outra base deste modo de produção." 164 A forma alcançada pelas forças produtivas objetivadas, na grande indústria, é uma forma que se, de um lado, adestrou e sujeitou definitivamente - isto é, da forma a mais elaborada e rica até então já vista - a natureza à sociabilidade; de outro lado, pôs esta sociabilidade como pressuposto efetivo da produção. O indivíduo ativo não aparece mais, aí, de forma autônoma ou independente no processo de trabalho, mas sob a forma de forças combinadas e entendimento social objetivado. Daí porque "A concentração de provisões em uma só mão não é mais necessária."165 Pois, já foram criadas as condições de total emancipação destas provisões tanto em relação à natureza, quanto em relação à propriedade privada. As condições de produção são, agora, condições sociais gerais e científicas de produção e não necessitam mais da subsunção do trabalho a um capital para criá-las, ou seja, não precisam mais da exploração de mais-trabalho para existirem. Pelo movimento próprio da ação dos homens, o acento que se encontrava no estranhamento, na apropriação por outrem das condições de produção, encontra-se, agora, sobre a produção mesma, sobre o valor de uso criado e não mais no valor de troca. Este último deixa de ser, pois, aquilo que determina a produção, o que fundamentalmente lhe dá forma. A forma específica da produção desloca-se do valor de troca desta para situar-se em seu caráter de produção de riqueza e potência social universal. A produção e apropriação de riqueza não tem mais como condição precípua a expropriação; pode aparecer sem esta mediação. A apropriação pode se dar, agora, por meio de si mesma, ou seja, por meio da própria produção, da relação 164 165

Id., tomo II, p. 197 Id., tomo II, p. 106 107

dos indivíduos com seu mundo efetivo. Para Marx, o vir-a-ser efetivo das condições e do modo de produção é, ele próprio, um processo de auto-supressão, um processo que, em suas próprias condições de reprodução, põe aquelas que são, ao mesmo tempo, também, as condições de sua superação. "A bem da verdade, o desenvolvimento não se produziu apenas sobre a antiga base, mas houve desenvolvimento desta mesma base. O desenvolvimento máximo desta base mesma (o desabrochar no qual ela se transforma, mas é sempre esta base, esta mesma planta enquanto floração - daí porque ela murcha após e na seqüência de seu desabrochar) é o ponto em que ela foi, ela própria, elaborada até tomar a forma na qual ela é compatível com o desenvolvimento máximo das forças produtivas e, portanto, também, com o desenvolvimento mais rico dos indivíduos. Desde que este ponto é alcançado, a seqüência do desenvolvimento aparece como um declínio e o novo desenvolvimento começa sobre uma nova base (...)"166. Nesta passagem, Marx está se referindo ao desenvolvimento da base societária que deu origem à sociedade moderna. Tal forma de desenvolvimento é, no entanto, perfeitamente condizente com seu entendimento sobre o declínio desta última. O modo de produção do capital também tenderia, a seu ver, a se desenvolver, a se adaptar ao máximo às forças produtivas novas, crescentemente ampliadas. Mas, o que vem a se constituir em entrave ou impedimento efetivo ao desenvolvimento das forças produtivas universais ou gerais e, pois, ao desenvolvimento da própria individualidade, neste modo de produção, é sua determinação mais fundamental, aquela sem a qual ele deixa de ser o que é: o valor. Tudo o que vemos ratifica, pois, a crítica de Marx aos economistas que, como J. S. Mill, vêem a produção como pertencendo ao âmbito das verdades eternas,

108

imutáveis, e exclusivamente a distribuição da riqueza como passível de mudança pela mão humana. Segundo Marx, "As 'leis e condições' da produção da riqueza e as leis da 'distribuição da riqueza' são as mesmas leis sob uma forma diferente e estas duas séries alternam e se fundem no mesmo processo histórico. São simplesmente momentos de um processo histórico."167 Embora a produção prevaleça sobre seus demais momentos ou aspectos específicos - o consumo, a troca e a distribuição; embora seja, ela, o ponto de partida ontológico, aquele a partir do qual retomam os demais, a cada novo processo168; distribuição e produção são, na verdade, momentos distintos de um mesmo processo, "diferenças no seio de uma unidade" 169. A distribuição não é momento independente, autônomo, em relação à produção, em relação ao resultado ou à forma como esta se encontra organizada. Muito ao contrário, seja enquanto distribuição do produto, seja enquanto distribuição das condições de produção - que são, também, produto do trabalho - seja, ainda, enquanto distribuição dos sujeitos no interior da produção, em qualquer uma de suas modalidades, a distribuição é resultante e parte do processo de produção. Assim como o consumo e a troca, ela não se identifica com a produção, mas, por outro lado, não subsiste senão enquanto momento desta, como distribuição determinada, de acordo tanto com a produção passada, quanto com a presente. O que implica em dizer

166

Id., tomo II, p. 33 Id., tomo II, p. 324 168 Cf. MARX, op. cit., tomo I, p. 28 169 Id., tomo I, p. 33 167

109

que a mudança, o desenvolvimento, no quadro das forças produtivas dos indivíduos aparece progressivamente como mudança também no interior dos demais momentos da produção. Pois, a fonte, o loco, da mudança na vida social é precisamente a produção, a organização do trabalho. A ação humana transformadora e radicalmente transformadora, ou seja, aquela que faz mudar as coisas na própria raiz destas, é, como transparece no decorrer mesmo desta dissertação, o trabalho. Sendo a distribuição da riqueza regida pelas mesmas leis e condições que regem a produção desta mesma riqueza, uma mudança naquela só pode existir enquanto seja mudança também nesta última. Tendo, por outro lado, a produção, prioridade ontológica sobre seus demais momentos, as mudanças ou transformações teriam, para Marx, sua origem ou gênese precisamente na forma da produção. Pois, "A articulação da distribuição é inteiramente determinada pela da produção. A distribuição, ela própria, é um produto da produção; não apenas no que concerne o objeto (...), mas, também, no que concerne a forma, o modo determinado de participação na produção determinando as formas particulares da distribuição, a forma de participação na distribuição."170 A mudança na distribuição só se põe como condição e resultado de um novo modo de produção e, de forma alguma, como resultado de leis ou instituições humanas autônomas, dissociadas da produção, como chega a explicitá-lo nosso autor: "(...) a distribuição modificada proviria de uma base nova de produção, 'modificada', oriunda apenas do processo histórico."171 Assim, as condições de reapropriação da riqueza produzida pelos indivíduos ativos singulares são condições que surgem no interior do quadro mesmo da produção, da forma alcançada pelas forças produtivas modernas. O fim do 170 171

Id., tomo I, p. 30 Id., tomo II, p. 324 110

estranhamento como resultado do mesmo modo de produção que o originou e não como algo advindo ou imposto do exterior. A forma genérica e científica da produção resulta precisamente deste estranhamento - do modo como encontra-se organizada a produção e, portanto, também, a distribuição, a troca e o consumo, na modernidade mas conduz, por outro lado, à sua abolição. O modo de produção do capital teria criado as condições do desenvolvimento universal das forças e relações dos indivíduos e este próprio desenvolvimento como realidade: "Mas, com a abolição do caráter 'imediato' do trabalho vivo como pura 'singularidade' ou como universalidade apenas interior ou exterior, pondo a atividade dos indivíduos como imediatamente universal ou 'social', os momentos objetivos da produção são despojados desta forma de alienação [Entfremdung], eles são, então, postos como propriedade, como corpo social orgânico no qual os indivíduos se reproduzem enquanto indivíduos singulares, mas indivíduos singulares sociais. As condições que os fazem o que são na reprodução de sua vida, em seu processo vital produtivo, não foram postas senão pelo próprio processo econômico histórico - tanto as condições objetivas, quanto as subjetivas (as quais são apenas as duas formas diferentes destas mesmas condições)."172 Na superação do estranhamento, da forma específica das relações sociais modernas de produção, Marx não deixa de perceber o lugar da subjetividade. Este lugar é, porém, como acabamos de ver, indissociável daquele da objetividade. Condições objetivas e subjetivas "são apenas as duas formas diferentes destas mesmas condições "postas"pelo processo econômico histórico". O primado da objetividade, em Marx, não implica num entendimento unilateral deste processo mas, ao contrário, na apreensão de que os aspectos ou momentos diferentes não são 172

Id., tomo II, p. 323 111

aspectos ou momentos dissociáveis, independentes um em relação ao outro e, sim, aspectos de um mesmo processo histórico objetivo. Tal entendimento, se reconhece o primado da objetividade - e, portanto, das condições objetivas de existência do indivíduo social - só o faz apreendendo o processo em toda a sua complexidade. Senão, vejamos a passagem seguinte na qual isto se patenteia: "(...) no quadro da sociedade burguesa, da sociedade fundada sobre o valor de troca, criam-se relações de troca e de produção que são, também, minas para fazê-la explodir. (Uma massa de formas contraditórias da unidade social das quais não se pode, porém, jamais fazer explodir o caráter contraditório por meio de uma metamorfose silenciosa. De um outro lado, se, na sociedade tal como ela é, não encontramos dissimuladas as condições materiais de produção de uma sociedade sem classes e as relações de troca que lhes correspondam, todas as tentativas de fazê-la explodir seriam apenas donquichotismo)"173. O autor não deixa de atentar para a necessidade de uma explosão ou revolução – embora não utilize esta expressão como desfecho efetivo no processo de superação das relações sociais modernas. O que o preocupa, nestes manuscritos, porém, é precisamente a urgência de mostrar que tal explosão não ocorreria fora de condições objetivas e subjetivas muito concretas que a possibilitasse. Mesmo porque são estas as condições que lhe dão origem enquanto momento ideal. São as condições efetivas de superação das relações estabelecidas que dão origem à consciência da necessidade desta superação. O ato final do processo pelo qual a livre individualidade torna-se efetiva não se diferencia da atividade sensível no parâmetro ou "media pela qual a objetivação do sujeito se cifra". Como bem observa Alves a este respeito, tal parâmetro "não é, em princípio, a qualidade de per se de sua idealização, do plano previamente traçado,

112

etc., mas as condições efetivas existentes ou não para a sua realização. A Donquichoterie da subjetividade residiria exatamente na proposição de um fim ou de um ato que não levem em consideração aquelas condições efetivamente existentes."174 A atividade que tem como objeto a materialidade ou realidade sensível possui, em qualquer uma de suas formas, um caráter objetivante. A relação transitiva entre objetividade e subjetividade tem como momento preponderante, aí, aquele da objetividade: "Reconhecer os produtos como sendo seus produtos e julgar esta separação em relação às condições de sua realização como algo inaceitável e imposto pela força representa uma imensa consciência que é, ela própria, o produto do modo de produção fundado sobre o capital e que anuncia o funeral de seu falecimento - da mesma maneira que, quando o escravo tomou consciência de que ele não podia ser a propriedade de um terceiro, quando ele tomou sua consciência de pessoa, a escravidão viveu apenas parca e artificialmente e deixou de poder perdurar como base da produção."175 O que é fortemente tematizado por Marx, nestes manuscritos, não é, porém, tal momento necessariamente explosivo de superação do modo de produção moderno, mas o fato de que as condições objetivas da superação do capital são, também, as condições subjetivas de uma nova forma social. Tais condições objetivas são apenas a forma mais concreta e visível do desenvolvimento do indivíduo social.

173 174

Id., tomo I, p. 95 ALVES, A. L., Op. Cit., p. 42. 113

B) A LIVRE INDIVIDUALIDADE EFETIVA

A tessitura da sociabilidade, o desenvolvimento desta de modo geral - "isto é, do próprio homem em suas relações sociais"176 - é o resultado efetivo de todo este processo. Ao focar seus estudos sobre a produção, Marx não está tratando exclusivamente das condições imediatas e do resultado, do produto objetivo imediato do trabalho. Como ele mesmo o diz, "Se considerarmos a sociedade burguesa em seu conjunto, há sempre, como resultado último do processo de produção social, a aparição da sociedade, isto é, do próprio homem em suas relações sociais. Tudo o que tem forma fixa - como o produto, etc. - aparece apenas como momento, momento evanescente deste movimento. O próprio processo de produção imediato aparece, aqui, apenas como momento. As condições [ Bedingungen ] e as objetivações [ Vergegenständlichungen ]

do processo são, elas mesmas,

uniformemente

momentos deste processo e aparecem como sujeitos deste processo apenas os indivíduos, mas os indivíduos nas relações mútuas que eles reproduzem, assim como nas relações novas que eles produzem. É o processo de seu próprio movimento perpétuo, processo no curso do qual eles se renovam, assim como renovam o mundo da riqueza criado por eles."177 O processo de produção imediato é, ele próprio, processo de produção e desenvolvimento dos indivíduos - os quais aparecem, agora, sobretudo nas relações efetivas por eles estabelecidas. As condições objetivas, os meios de produção desenvolvidos como meios sociais e científicos de produção, são, em si mesmos, desenvolvimento objetivo e subjetivo dos indivíduos sociais. As forças produtivas 175 176

MARX, K., Op. Cit., tomo I, p. 402 Id., tomo II, p. 200 114

não são, no entender de Marx, objetividade distinta destes últimos, mas, ao contrário, são suas próprias relações existindo de forma concreta, objetiva. Elas são objetivação de tempo de trabalho excedente, "desenvolvimento de potência, de capacidades de produção e, pois, tanto das capacidades, quanto dos meios de fruição. A capacidade de fruição é a condição desta última - portanto, seu primeiro meio - e esta capacidade é desenvolvimento de uma disposição individual, é força produtiva. Economia de tempo de trabalho igual a aumento de tempo livre, isto é, de tempo para o pleno desenvolvimento do indivíduo; desenvolvimento que age, por sua vez, como a maior das forças produtivas sobre a força produtiva do trabalho."178 O desenvolvimento das forças produtivas é, em si mesmo, um ampliar das forças e capacidades dos indivíduos e significa, também, liberação de tempo para o desenvolvimento mais amplo destes últimos. Implica, pois, num desenvolvimento geral da individualidade na medida em que é ampliação das capacidades produtivas como, também, das capacidades de fruição (que são, elas próprias, capacidades produtivas) e das próprias necessidades dos indivíduos. Sendo a individualidade entendida por Marx como individualidade social, como as relações pelas e nas quais os indivíduos são o que são - sobretudo e de forma ainda mais efetiva no modo de produção do capital - ela vem a ser, aí, este rico evolver de potencialidades e necessidades. O indivíduo que resulta deste processo é, destarte, ele mesmo, um indivíduo alterado, rico em suas determinações. Como disséramos anteriormente, a mudança ou desenvolvimento nas forças produtivas é mudança em todos os momentos da produção e não apenas naquele da produção imediata ou stricto sensu. Ela aparece como desenvolvimento também do consumo, 177 178

Idem Id., tomo II, p. 199 115

do conteúdo deste, bem como de sua forma e daquilo que ele é enquanto necessidade, enquanto demanda. À nova materialidade produzida corresponde, assim, novos indivíduos, novas necessidades, que são, por sua vez, os sujeitos de uma nova produção num processo em que se parte de determinações cada vez mais gerais ou universais. Não se tratando mais da produção de valor, a produção de riqueza universal que se põe, desde o início, como produção social e que se efetiva enquanto tal numa forma de apropriação também, esta, social, coletiva - dá lugar, pois, a uma alteração do conceito mesmo de riqueza. Esta última não é mais algo externo ou posto como externo em relação aos indivíduos, mas vem a ser a própria individualidade rica. A riqueza é, então, uma multiplicidade de determinações que delimita, que dá forma à nova individualidade em permanente processo de vir a ser. Antes da superação do capital, "Em todas as suas formas, ela [a riqueza] aparece como figura reificada - seja como coisa ou como relação mediada pela coisa que se encontra fora do indivíduo e, por acaso, ao lado dele. (...) Mas, na verdade, uma vez que a forma burguesa limitada desapareceu, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas dos indivíduos; universalidade engendrada na troca universal? Senão o pleno desenvolvimento da dominação humana sobre as forças da natureza - tanto sobre aquelas do que se chama de natureza, quanto sobre aquelas de sua própria natureza ? Senão a elaboração absoluta de suas aptidões criadoras, sem outro pressuposto que aquele do desenvolvimento histórico anterior que faz um fim em si desta totalidade do desenvolvimento, do desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, sem que elas sejam medidas por uma escala previamente fixada ? Senão um estado de coisas em que o

116

homem não se reproduz segundo uma determinidade particular, mas em que ele produz sua totalidade; em que ele não procure permanecer como algo que tem seu futuro atrás de si, mas onde ele é tomado no movimento absoluto do futuro ?" 179 A riqueza produzida veio a ser o pleno desenvolvimento das necessidades, capacidades e potencialidades dos indivíduos. O desenvolvimento livre de todas as determinações do indivíduo social, na medida em que tal desenvolvimento tem a si próprio como fundamento e não algo externo. Desenvolvimento auto-sustentado do ser social e, portanto, aberto, não mais limitado por nenhuma outra força ou forma de ser. O ser da nova forma social - forma posta, engendrada, pela produção moderna - é entendido, por Marx, como sendo fundamentalmente um ser que, de um lado, se auto-engendra - sem que, para isso, tenha que se submeter a nenhum poder (social ou natural) que lhe faça face - que tomou para si suas condições de produção, de criação e que, por outro lado e como conseqüência, se caracteriza por ter precisamente uma forma aberta, não acabada. Uma forma social em contínua e permanente transformação. "Enfim, a individualidade fundada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos e a subordinação da produtividade coletiva, social, destes, enquanto esta última é seu poder social, é o terceiro estágio. O segundo [ o "metabolismo social" do capital ] cria as condições do terceiro."180 Marx chama de primeiras formas sociais da produtividade humana aquelas formações caracterizadas, sobretudo, por relações pessoais de dependência - "naturais [Naturwüchsig] num primeiro momento" - e "nas quais a produtividade humana se desenvolve 179 180

apenas

debilmente

e

em

pontos

isolados.

Id., tomo I, p. 424 Id., tomo I, p. 94 117

Em seguida, independência pessoal fundada sobre uma dependência objetiva [Sachlich]: é a segunda grande forma na qual se constitui, pela primeira vez, um sistema de metabolismo social universal, de relações universais, de necessidades múltiplas e de capacidades universais."181 Na terceira forma da produtividade humana, os indivíduos incorporaram em si estas relações, este desenvolvimento universal. Possuem, eles próprios, estas necessidades múltiplas e capacidades universais. Se apropriaram deste desenvolvimento na medida em que são eles, enquanto indivíduos, que o dominam e não o contrário. Os indivíduos subordinaram a si sua produtividade coletiva e esta última é, agora, seu poder social. Apropriação, esta, que não poderia se dar em outro momento já que "os indivíduos não podem submeter a si seus próprios laços sociais antes de lhes terem criado."182 Apenas com a forma moderna da produção torna-se possível a apropriação, pelo homem, de si mesmo, de sua objetivação e de seu desenvolvimento enquanto desenvolvimento livre, pois, apenas aí este desenvolvimento social efetivo torna-se possível. Na terceira forma social da produtividade humana, a dependência em relação a uma produção tornada autônoma é abolida e o poder social, reapropriado pelos indivíduos de uma produção coletiva. Não se trata mais do poder pessoal ou natural nem tampouco do poder social estranhado, mas, sim, do poder efetivo dos indivíduos sociais sobre si mesmos, sobre sua produção. Os indivíduos tornaram-se, aí, efetivamente, indivíduos sociais. Constituem-se, cada um deles, numa multiplicidade de necessidades e capacidades, ou seja, em momentos essenciais desta riqueza sóciohumana construída.

181 182

Id., tomo I, p. 93 Id., tomo I, p. 98 118

Por último, last but not least, é preciso assinalar que, nesta possível forma social do trabalho, este último resulta, também ele, alterado. O leque ampliado de necessidades a serem satisfeitas e a forma cada vez mais social e cientificizada da produção conduzem a que o trabalho deixe de ser, ele próprio, trabalho para dar lugar a uma forma mais rica e ampla de atividade: "Mas, aspirando, sem trégua, à forma universal da riqueza, o capital impulsiona o trabalho para além das fronteiras de suas necessidades naturais e cria, assim, os elementos materiais do desenvolvimento desta rica individualidade, que é tão polivalente em sua produção, quanto em seu consumo e cujo trabalho, conseqüentemente, também não aparece mais como trabalho, mas como pleno desenvolvimento da própria atividade; onde a necessidade natural, sob sua forma imediata, desapareceu, pois, uma necessidade produzida pela história veio substituir uma necessidade natural."183 Livre desenvolvimento de aptidões e habilidades, desenvolvimento material e espiritual184, esta é a nova forma de atividade engendrada pela economia de tempo proporcionada pelo desenvolvimento das forças do trabalho. Economia, esta, que se incorpora ao patrimônio social do ser ativo, pois, "Economia de tempo e distribuição planificada do tempo de trabalho entre os diferentes ramos da produção permanecem a primeira lei econômica sobre a base da produção coletiva. É mesmo uma lei que se impõe a um grau bem mais alto"185. A atividade deixa de pautar-se sobre a produção de tempo excedente para outrem e de tempo de mais-trabalho para si mesmo, para vir a ser tempo de atividade livre para os indivíduos ativos. Desenvolve-se como tempo

183

Id., tomo I, p. 264 "Quanto mais o tempo que a sociedade necessita para produzir trigo, gado, etc. é reduzido, mais ela ganha tempo para outras produções materiais ou espirituais." (Id., tomo I, p. 110) 185 Id., tomo I, p. 110 184

119

para o livre desenvolvimento deste indivíduo social rico em determinações. Daí porque não se trata de mero ócio ou lazer, pois, a multiplicidade de necessidades e capacidades desenvolvidas e a satisfação das necessidades de todos são, agora, as novas bases da produção.

120

CONCLUSÃO

Encaminhando-nos para o desfecho deste trabalho, impõe-se como uma de suas conclusões o fato de que, seja em suas determinações mais gerais, seja naquelas específicas, mais concretas, a categoria trabalho é efetivamente apreendida por Marx como complexo no interior do qual interage uma multiplicidade de determinações. Determinações das quais não se pode fazer abstração a não ser no pensamento. Neste sentido, dentro dos limites também concretos das condições próprias a uma dissertação de mestrado, buscou-se identificar as principais destas determinações e interações, com a consciência prévia da impossibilidade de uma abordagem que as abarcasse em sua totalidade efetiva. Assim, se o objeto, sobretudo do capítulo II − que diz respeito a uma forma de produção, por excelência, complexa − não pode ser exaurido em todos os seus nexos, é porque houvemos por bem nos concentrar naqueles que nos eram prioritários e indispensáveis tendo em vista o tema desta dissertação. Cientes de que o tratamento de tais resultados só pode se dar, aqui, de forma aproximativa, vejamos, pois, alguns de seus pontos fundamentais e a problemática a eles atinente. Um dos pontos a se destacar como resultado desta pesquisa diz respeito ao papel da sociabilidade. Trabalho é, para Marx, relação social, vale dizer, a categoria trabalho implica as relações efetivas que os indivíduos estabelecem entre si e entre eles e seu mundo. Em relação a esse importantíssimo ponto, vale aduzir que a sociabilidade é posta, sobretudo na modernidade, pelo próprio trabalho, tornando-se, como vimos, indissociável deste último. Por via de conseqüência, as categorias econômicas de Marx não são categorias unilaterais ou conceitos abstratos, que dizem

121

respeito apenas a um aspecto específico ou restrito da sociabilidade, cindido em relação aos demais. Tratam-se de categorias que, historicamente engendradas, refletem relações sociais de produção nas quais tal cisão inexiste - a não ser na imaginação. Mas, se assim o é, o mérito de Marx consiste precisamente em tê-las apreendido enquanto tais. Pois, não apenas os economistas clássicos e os socialistas que ele criticara demonstraram-se incapazes de tal reconhecimento como, também, autores contemporâneos − dentre os quais, citemos Habermas, que se interessara pelo tema − das mais diversas matizes, dele permanecem distantes. Não se tem, aqui, nenhuma pretensão de abordar tais interpretações em seu conjunto. Ao contrário, trataremos apenas de indicar alguns limites do tratamento habermasiano da questão, em obra determinada, tendo em vista as repercussões que a abordagem do referido autor tem conquistado em nossos tempos. Para Habermas, o mundo do trabalho é regido por normas e por uma "racionalidade" que o afasta quase que diametralmente daquilo que ele entende como sendo o plano da interação ou o mundo da prática. Como o reconhece o prefaciador de uma de suas obras publicadas entre fins da década de 60 e princípio da de 70, "A articulação antropológica opondo 'trabalho' e 'interação' está no princípio mesmo da reflexão de J. Habermas: é ela que comanda a distinção entre atividade instrumental e atividade comunicacional (...); esta dicotomia permite compreender porque J. Habermas opõe o domínio da 'prática' - o qual corresponde muito proximamente ao que podemos chamar de fator humano - à técnica. Este par está, pois, em ação por toda parte e não apenas nem principalmente no artigo que o leva como título ('Trabalho e Interação', in A Técnica..., op. cit., p. 163 sqq.) (...)"186. 186

LADMIRAL, Jean-René, "Le Programme Épistémologique de Jürgen Habermas" in HABERMAS, J. , Connaissance e Intérêt, p. 19. 122

A categoria prática remete, em Habermas, a um plano do agir livre de coerções "externas" ao mundo do homem, que tem como referência não a correspondência com uma realidade empírica dada, mas a relação com normas subjetivas interiorizadas. A Bildung [formação] racional tendo sido transferida, por Marx, do plano da abstração, como era concebida até então, para o da prática concreta, objetiva, é precisamente aí que residirá a divergência de Habermas: "Habermas não aceita esta aproximação entre Bildung e trabalho alegando que tal aproximação levou Marx a igualar a racionalização com o progresso científico e tecnológico (...) e se volta para a filosofia do espírito do Hegel da fase de Iena, na qual Geist [espírito, vida social] é visto como a interseção de família, língua e trabalho."187 No entender de Habermas, as mudanças promovidas pelo desenvolvimento das forças produtivas são "simples mudanças de legitimação", simples adequação do quadro institucional às transformações dos "subsistemas de ação racional com relação a um fim", ou seja, às transformações do mundo do trabalho. As mudanças propugnáveis, passíveis de serem apreendidas como processo de racionalização, iriam para além de tais mudanças adaptativas na medida em que seriam objeto de discussão, de decisão, de escolhas políticas. Este autor entende a política como a esfera da autonomia e, portanto, a única passível de possibilitar uma emancipação humana. Pois, "o quadro institucional, enquanto conjunto de interações mediatizadas pela linguagem corrente" é a dimensão "que é a única essencial porque suscetível de humanização."188

187 188

INGRAM, D., Habermas e a Dialética da Razão, p. 26. HABERMAS, J., La Technique et la Science comme Idéologie, p. 68. 123

Deste ponto de vista, verdadeiras mudanças nas instituições, no plano da sociabilidade propriamente dita, não podem provir de transformações no mundo do trabalho. Este último encontra-se, aí, cindido - como esfera fechada sobre si mesma em relação aos demais aspectos da sociabilidade. É regido por uma lógica que é, por definição, diferente e incompatível com aquela que comanda as interações do quadro institucional. Habermas promove, pois, esta delimitação das esferas do agir humano de acordo com "lógicas" incompatíveis e, assim, a "racionalização própria aos sistemas racionais com relação a um fim [conduz] a um aumento do poder de dispor tecnicamente dos processos objetivados da natureza e da sociedade; ela não conduz, nela mesma, a um melhor funcionamento dos sistemas sociais".

Apenas uma

racionalização das "normas sociais", ou seja, no plano da interação comunicativa, é que, prossegue ele, "daria aos membros da sociedade as possibilidades de uma emancipação mais abrangente e de uma individuação crescente." 189 Não sendo nosso propósito promover, nestas poucas linhas, uma crítica a este autor, mas apenas principiar o confronto de alguns dos resultados alcançados nesta pesquisa com o tratamento dado ao assunto por alguns dos intérpretes de Marx, retornemos, pois, ao autor dos Grundrisse. Uma das maiores divergências que subjazem as referências de Habermas a Marx, sobretudo no texto Técnica e Ciência como Ideologia, está na compreensão peculiar de Marx no que diz respeito à categoria prática, bem como no que diz respeito a outros aspectos que se podem concluir desta dissertação, como seu ponto de partida não epistemológico de análise e sua compreensão da relação entre sujeito e objeto sempre a partir das interações existentes na vida efetiva e nunca do interior de uma teoria do conhecimento ou de um ponto de vista epistêmico. Habermas, por sua vez, parece oscilar, em sua análise, 189

Idem 124

entre um ponto de partida gnosiológico − em que a subjetividade é tomada isoladamente e, a partir deste suposto isolamento, seu mundo próprio posto – e o fato de que tal mundo, entendido como aquele especificamente humano, tenha suas fronteiras construídas em torno da vida política, elevada à condição estruturante da vida social. Marx reconhece a práxis social como sendo exatamente a práxis do trabalho, atividade sensível, determinação humana essencial e inseparável de seu momento ideal, ou seja, da produção de idéias. Com o objetivo de esclarecer essa importante questão, vale a pena referir, aqui, mais um argumento em que fica patente esta unidade prática do ser social: "Não apenas, pois, a igualdade e a liberdade são respeitadas, na troca que repousa sobre valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base real que produz toda igualdade e toda liberdade. Enquanto idéias puras, elas são apenas expressões idealizadas daquela; enquanto se desenvolvem em relações jurídicas, políticas e sociais, elas são apenas esta base elevada a uma outra potência"190. Igualdade e liberdade, expressões que assumem, na modernidade, uma conotação eminentemente política − a ponto de autores, como Habermas, entenderem o princípio da equivalência, que ele chama, também, de reciprocidade, como "uma relação própria à atividade de tipo comunicacional", um princípio de legitimação do poder político, que, é bem verdade, no capitalismo, é subvertido em "princípio de organização do processo social de produção e reprodução"191 − são, enquanto tais, expressões das relações concretas que as engendram. Pois, nas palavras de Marx, "a abstração ou idéia não é senão a expressão teórica destas relações materiais que [no capital] são mestres dos indivíduos. Relações, naturalmente, só podem exprimir-se 190 191

MARX, K., op. cit, tomo I, p. 185 HABERMAS, J. op. cit., p. 30 125

em idéias e é assim que filósofos conceberam a dominação por idéias como sendo o caráter específico dos tempos modernos e identificaram o estabelecimento da individualidade livre com a subversão desta dominação pelas idéias." 192 A igualdade ou equivalência é desvelada, por Marx, como sendo um dos fundamentos concretos – embora determinado, sobrepujado, pela sua antítese direta – de uma forma social da produção que coloca os indivíduos, entre eles, bem como suas objetivações, como indivíduos e objetivações equivalentes entre si, de igual valor. Ele não a toma, portanto, como mera “ideologia” − que deixaria de existir a partir do momento em que se deixasse de, nela, acreditar ou que seria abalada por mudanças na ordem da distribuição da riqueza no capital. Trata-se, porém, de um aspecto efetivo da organização social que também é transposto para o plano igualmente real das idéias. Igualmente real, muito embora desigualmente determinante e coercitivo, como fica claro na passagem em questão. Da mesma forma, Marx entende o campo da liberdade enquanto relações mais ou menos livres dos indivíduos frente às determinações naturais e aos obstáculos concretos postos em sua atividade sensível, bem como em relação aos limites sociais impostos a esta última. O campo definitório da autonomia dos indivíduos ou da maior ou menor negação desta não é senão este mesmo em que tais relações se estabelecem e objetivam. Como é evidente, liberdade não significa, aqui, independência ou oposição em relação à materialidade ou natureza “externa”, mas é, ao contrário, liberdade real precisamente na relação com ela. Pois, como vimos, é em e através de sua atividade que os indivíduos sociais se desenvolvem, no conjunto de suas determinações objetivas e subjetivas, enquanto seres efetivos, capazes ou não de realizarem seus próprios fins. 192

MARX, K., op. cit., tomo I, p. 100 126

Assim, vimos que, para o autor dos Grundrisse, a liberação das forças produtivas dos indivíduos em relação às formas de produção que as aprisionava no interior de uma reprodução dada das relações foi precisamente aquilo que possibilitou o avanço do modo de produção moderno em relação a uma emancipação humana. Habermas, embora reconheça que a dominação, no plano da sociabilidade moderna, não está mais relacionada à autoridade ou tradição (social ou de sangue) e que as forças produtivas encontram-se, aí, não apenas livres como impulsionadas a se desenvolverem contínua (se possível) e crescentemente, vê, nisso, não um fator emancipatório, mas, ao contrário, uma descaracterização daquilo que constituiria, para ele, tal fator. A dominação pela tradição, fundada precisamente sobre idéias míticas, religiosas ou metafísicas, é que se constituiria numa “relação típica entre o quadro institucional e os sub-sistemas de atividade racional com relação a um fim.” Para o autor em tela, tal “relação típica” é aquela sustentada por uma racionalidade própria à ação discursiva e, portanto, ao quadro institucional: “A expressão sociedade tradicional refere-se ao fato de que o quadro institucional repousa sobre o fundamento incontestado da legitimação dada por certas interpretações míticas, religiosas ou metafísicas da realidade no seu conjunto, seja ela do cosmos ou da sociedade. As sociedades tradicionais existem enquanto o desenvolvimento dos subsistemas da atividade racional com relação a um fim se mantém no interior dos limites da eficácia legitimadora das tradições culturais. Resulta disto uma proeminência do quadro institucional (...). O que é próprio das instituições em questão é que a validade, culturalmente determinada, de tradições que são objeto de um acordo intersubjetivo (e que legitimam o estatuto existente da dominação) não é explícita e sistematicamente posta em questão segundo os critérios de racionalidade

127

universal das relações, de natureza instrumental ou estratégica, entre o fim e os meios”193. O que é referência emancipatória, para Habermas, é justamente aquilo que a sociedade moderna supera: “os limites tradicionais ao desenvolvimento das forças produtivas”194. Superação, esta, sim, que constitui, em Marx, as condições de possibilidade de uma efetiva emancipação humana na medida em que, apenas aí, o ser social ativo ganha, enquanto tal, independência, adquirindo − enquanto forças e relações sociais de produção − a condição de possuir exclusivamente a si próprio como limite. Tal referência de Habermas já fora, de alguma maneira, criticada por Marx na seguinte passagem em que trata do “infantil mundo antigo” em contraposição ao mundo moderno: “Nunca encontraremos, entre os antigos, o menor estudo procurando saber que forma de propriedade fundiária é a mais produtiva, cria a maior riqueza. A riqueza não aparece como o objetivo da produção – ainda que Catão saiba muito bem investigar que cultivo do campo é o mais lucrativo ou que Brutus saiba emprestar seu dinheiro às melhores taxas. O que se investiga, sempre, é o modo de propriedade que cria os melhores cidadãos.” 195 Muito distinto é o que acontece no mundo moderno. Neste, a riqueza, “Em todas as suas formas, aparece como figura reificada – seja como coisa ou como relação mediatizada pela coisa que se encontra fora do indivíduo e, por acaso, ao lado dele. É assim que a opinião antiga, segundo a qual o homem aparece sempre como a finalidade da produção − qualquer que seja o caráter limitado de suas determinações nacionais, religiosas, políticas – parece muito elevada frente ao mundo moderno, no qual a produção é que aparece como finalidade 193 194

HABERMAS, J., op. cit., p. 27 Idem 128

do homem e a riqueza, como finalidade da produção. Mas, na verdade, uma vez desaparecida a forma burguesa limitada, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas dos indivíduos – universalidade engendrada na troca universal? Senão o pleno desenvolvimento da dominação humana sobre as forças da natureza – tanto sobre aquelas do que chamamos por natureza, quanto sobre aquelas de sua própria natureza? Senão a elaboração absoluta de suas aptidões criadoras, sem outro pressuposto que não o desenvolvimento histórico anterior (...) ?”196. Devido à alienação de toda esta objetivação universal dos indivíduos, o “infantil mundo antigo aparece, por um lado, como superior. Por outro, ele o é efetivamente em todos os domínios em que se busque uma figura, uma forma fechada e uma delimitação acabada. O mundo antigo é satisfatório se se atém a um ponto de vista limitado; enquanto que, tudo o que é moderno deixa insatisfeito ou, ali onde aparece satisfeito consigo mesmo, é vulgar.”197 Ao tomar os diferentes âmbitos da sociabilidade como separados e opostos pelo tipo de racionalidade que, em cada um deles, prevaleceria, Habermas, a nosso ver, deixa como secundário, ou não percebe, o fato de que a dominação estabelecida a partir do que ele nomeia sub-sistemas de ação racional com relação a um fim, ou seja, a dominação social − e sua legitimação – de tipo moderno, também é estabelecida não só a partir da interação dos indivíduos, como é, ela própria, uma dominação destas mesmas relações ou interações efetivas, tornadas universais e autônomas, sobre os indivíduos singulares. Pois, o que é mais importante, para ele, nas formas sociais pré-capitalistas “evoluídas”, é que, nestas, não são tais sub195 196

MARX, K., op. cit., tomo I, p. 424 Idem 129

sistemas de ação que produzem ou sustentam a legitimação do quadro da dominação, mas as relações inter-subjetivas com base numa racionalidade de tipo não instrumental. Em outros termos, ao se deter numa perspectiva epistêmica, que toma o tipo de “racionalidade” como fator preponderante na análise da vida social, Habermas não apreende a transitividade efetiva entre sujeito e objeto, também efetivos, presente em todas as determinações constitutivas do ser social ativo, e localiza, desta forma, “o quadro institucional, enquanto conjunto de interações mediatizadas pela linguagem corrente”, como “a única [dimensão] essencial porque suscetível de humanização.”198 Deixando de apreender, assim, que a atividade sensível longe de ser apenas uma atividade de tipo “instrumental” − que tenha como referência de “sucesso” a realidade empírica e não uma realidade querida, almejada, pelos indivíduos – é aquela pela qual os indivíduos efetivam-se, humanizando, adequando a si, a realidade objetiva da qual eles próprios são parte e tornando, ao mesmo tempo, concreta e possível uma nova realidade. Assim sendo, a própria interpretação que o autor faz de Marx, em determinado momento deste texto, fica comprometida: “Fazer a história de forma voluntária e consciente – Marx tinha, com certeza, considerado que o problema consistia em dominar, numa perspectiva propriamente prática, o processo da evolução social até então incontrolado”199. Segundo ele, seus intérpretes é que compreenderam tal problema como sendo “de ordem técnica”. Marx, como podemos concluir deste nosso trabalho, desvela um controle prático concreto cada vez maior dos indivíduos sociais sobre seu processo societário de produção e auto-produção – controle, este, potencializado (e não reduzido) com a modernidade – o qual, efetivamente, 197 198

Id., p. 425 Id., p. 68 130

constituir-se-ia em fator de emancipação. No entanto, a categoria “prática” tem, nele um sentido bem diferente daquele que possui em Habermas. Trata-se, como fica evidente, não de um controle prático enquanto externo ou independente quanto às relações de produção. Como processo em que se configura a possibilidade de um maior controle dos indivíduos sociais sobre sua produção própria ou como controle efetivo vislumbrado como resultado de tal processo social, em nenhuma de suas formas, ele é entendido como extrínseco ao trabalho. Antes, trata-se da conquista de um auto-controle ou de um domínio de si mesmos enquanto seres sociais ativos obtido através da apropriação mesma, pelos indivíduos, de suas forças produtivas objetivadas. Em outros termos, trata-se de um auto-controle resultante de uma reconciliação de si, enquanto indivíduos singulares, com suas forças produtivas sociais estranhadas e nunca, de uma subsunção externa destas últimas a si – o que significaria manutenção do estranhamento e não sua superação. O que se conclui, assim, é que o domínio do homem sobre si mesmo, sobre seu processo social, jamais é encarado, por Marx, como domínio que se efetiva de forma externa à atividade sensível. As condições desta auto-determinação, do controle sobre si mesmos dos indivíduos sociais, são entendidas como condições de um trabalho emancipado, como criação de tempo social livre e livre desenvolvimento do indivíduo social rico em determinações. Condições, estas, engendradas pela ação própria dos homens na relação com sua mundaneidade, pelo desenvolvimento efetivo de suas forças produtivas − mesmo se de forma contraditória.

199

Id., p. 64 131

Uma “explosão”200 social − que talvez pudéssemos entender como ação social de cunho político, embora Marx não qualifique tal ação transformadora radical − é considerada como momento necessário no processo de superação da sociabilidade moderna. Necessário, porém, não preponderante ou determinante. Pois, vale a pena repetir: Marx quer mostrar, nestes manuscritos, precisamente que tal “explosão” não ocorreria fora de condições objetivas e subjetivas muito concretas que a possibilitasse. Mesmo porque são estas as condições que lhe dão origem enquanto momento ideal. São as condições efetivas de superação das relações estabelecidas que dão origem à consciência da necessidade desta superação. Uma ação social ou prática, no sentido habermasiano, não é vista, por Marx, como preponderante em nenhum momento do processo histórico do desenvolvimento humano-societário nem tampouco propugnada, por ele, para que viesse a sê-lo. A ausência, no texto em análise, de detalhes ou de um tratamento do tema da emancipação de um ponto de vista político não se constitui numa possível falha ou lacuna, mas está relacionada com o caráter mesmo do pensamento marxiano. Embora as condições para uma produção livre sejam fartamente demonstradas por ele na trama das determinações engendradas pela trajetória humana, Marx não faz do trabalho emancipado um objeto exclusivo de atenção. Pois, fazê-lo infringiria sua própria concepção da atividade humana, que tem, para ele, a forma de uma atividade em permanente vir a ser, de atividade aberta. Como assevera Rosdolsky: “Sabe-se que

200

Reiteremos, aqui, que Marx não utiliza, nos Grundrisse, o termo revolução. A passagem em que faz alusão a um momento radical no contexto de superação do modo de produção capitalista apresenta-se, como fora visto, da seguinte forma: “(...) no quadro da sociedade burguesa, da sociedade fundada sobre o valor de troca, criam-se relações de troca e de produção que são, também, minas para fazê-la explodir. (Uma massa de formas contraditórias da unidade social das quais não se pode, porém, jamais fazer explodir o caráter contraditório por meio de uma metamorfose silenciosa. De um outro lado, se, na sociedade tal como ela é, não encontramos dissimuladas as condições materiais de produção de uma sociedade sem classes e as relações de troca que lhes correspondam, todas as tentativas de fazê-la explodir seriam apenas donquichotismo).” (tomo I, p. 95). 132

o fundador do marxismo rechaçava toda especulação acerca de um futuro socialista na medida em que se tratava de inventar sistemas acabados, derivados dos ´princípios eternos da justiça´ e das ´leis imutáveis da natureza humana´.” 201 Seria, por outro lado, logicamente impossível antecipar algo sobre o que só tem seu lugar no interior de um desenvolvimento não totalmente realizado no momento em que Marx escrevia: o momento ideal ou subjetivo do processo de superação da forma social moderna. Há, portanto, nos Grundrisse, um elo de continuidade do pensamento de Marx expresso em suas obras anteriores no que se refere especificamente à forma peculiar de apreensão das determinações concretas da vida humano-societária202. O pensamento de Marx, como demonstrara J. Chasin, possui um caráter “onto-prático” ou, em outros termos, um estatuto ontológico na medida em que busca apreender o concreto em suas determinações constitutivas e em sua dinâmica ativa própria, tomando-o como existência social efetiva autônoma, independente, em relação ao pensamento. Daí porque, embora reconheça, na efetividade do capital, as condições necessárias de sua própria superação, Marx refere a produção e apropriação coletivas como uma possibilidade, por conseguinte, uma hipótese a ser ou não efetivada203. Vale acrescentar, ainda, a compreensão de Rosdolsky em seu estudo sobre os Grundrisse. Para este autor, os apontamentos de Marx em relação a uma sociabilidade emancipada têm sua razão de ser no método materialista dialético: “(...) no Capital e nos trabalhos preliminares a ele encontramos, vez ou outra, digressões e observações que se ocupam dos problemas da ordem social socialista (...). Estas digressões se

201

ROSDOLSKY, R. Gênesis y Estructura de El Capital de Marx (estúdios sobre los Grundrisse), p. 457 202 Não se desconhecendo, com isto, bem entendido, as importantes reformulações e conquistas alcançadas na trajetória intelectual marxiana, principalmente, na década de 50, quando os Grundrisse foram escritos. 203 Cf. MARX, K., op. cit., p. 109 e 110 133

fazem necessárias em razão mesmo do método materialista dialético de Marx, que aspira compreender toda manifestação social no fluxo de seu vir a ser, de sua existência e de sua expiração. Por isto, este método assinala, por si mesmo, ‘modos anteriores de produção’ e, de outro lado, ´pontos nos quais, prefigurando o movimento nascente do futuro, se insinua a abolição da forma presente das relações de produção”204. Na visão deste autor, Marx se distancia dos socialistas utópicos na medida em que entende o desenvolvimento histórico em suas leis próprias e o futuro socialista, como uma “fase necessária do desenvolvimento da humanidade” e não “como um mero ideal”205. Mas, as leis próprias do desenvolvimento histórico, de acordo com as quais Marx pautaria suas análises, são, para Rosdolsky, leis deduzidas do método materialista dialético. “A consideração materialista-dialética das relações de produção capitalistas conduz, pois, diretamente à contraposição entre este modo de produção e as formas sociais pré-capitalistas, por um lado, e o ordenamento social socialista, que substitui este modo de produção, por outro. ´A troca privada de todos os produtos do trabalho, das capacidades e das atividades está em contraposição [antítesis] tanto com a distribuição fundada sobre as relações de dominação e sujeição (...) dos indivíduos entre si [...], quanto com a livre troca entre os indivíduos associados sobre a base da apropriação e do controle comum dos meios de produção´. Deste modo, se produz uma divisão de toda a história da humanidade que possui a forma de uma tríade dialética em três etapas (...)”206. Mais do que dividir a história humana numa “tríade dialética”, o que ocorre é que, a partir do desvelamento efetivo, por Marx, do complexo da produção na 204 205

ROSDOLSKY, R., op. cit, p. 458. Grifos nossos. Id., p. 457 134

formação social moderna, torna-se-lhe possível dilucidar as formas anteriores da produção, bem como reconhecer o novo posto como possibilidade pela mesma formação moderna já desenvolvida. Em suas palavras: “A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e a mais variada organização histórica da produção. Por isto, as categorias que exprimem as relações desta sociedade, a compreensão de sua articulação, permitem que se dê conta da articulação e, ao mesmo tempo, das relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas – com os restos e os elementos das quais ela se edificou e das quais certos vestígios, ainda não superados, subsistem (...). A anatomia do homem é uma chave para a anatomia do macaco. Os indícios que anunciam uma forma superior, nas espécies animais de ordem inferior, só podem, por seu lado, ser compreendidos quando a forma superior é, ela própria, já conhecida. Assim, a economia burguesa nos dá a chave da economia antiga, etc. Mas, de forma alguma, à maneira dos economistas que apagam todas as diferenças históricas e que vêem, em todas as formas de sociedade, aquelas da sociedade burguesa.”207. Além disto, só se pode entender as formas passadas da produção à partir do momento em que a atual alcance fazer sua própria crítica: “O chamado desenvolvimento histórico repousa sobre o fato de que a última forma considera as anteriores como etapas conduzindo a ela; além do que ela é raramente capaz, apenas em condições muito determinadas, de fazer sua própria crítica (...). Do mesmo modo, a economia burguesa só vem a compreender as sociedades feudais, antigas e orientais a partir do momento em que se iniciou a auto-crítica da sociedade burguesa.”208 Fica claro, a partir das passagens acima referidas, o significado da determinação social do pensamento, vale dizer, o desvelamento das formas de 206 207

Id., p. 458. Grifos nossos. MARX, K., op. cit., tomo I, p. 39 135

produção faz-se possível sob condições sócio-históricas precisas, determinadas. Desse modo, “seria, portanto, inviável e errado seguir as categorias econômicas na ordem em que elas foram historicamente determinantes. Sua ordem é, ao contrário, determinada pelas relações que existem entre elas na sociedade burguesa moderna e ela é precisamente o inverso do que parece ser a ordem natural delas ou corresponder a sua sucessão no curso da evolução histórica. Não se trata da relação que se estabelece historicamente entre as relações econômicas na sucessão das diferentes formas de sociedade. Menos ainda, de sua ordem de sucessão ´na idéia´ (Proudhon) (concepção do movimento histórico que tende a se esvair). Trata-se de sua articulação no quadro da sociedade burguesa moderna.”209 O desenvolvimento sócio-histórico das forças e relações de produção só é apreendido, pois, como resultado, ou seja, à partir do rigoroso desvelamento das determinações próprias à sociabilidade do capital. Vimos, ainda, que, em Marx, só se apreende realmente um objeto de conhecimento – no caso, as relações sociais de produção – quando se o toma em suas particularidades efetivas. As determinações gerais ou universais servem “para nos evitar a repetição (...) Mas, se é verdade que as línguas mais evoluídas têm em comum com as menos evoluídas certas leis e determinações, o que as diferencia destes caracteres gerais e comuns é precisamente aquilo que constitui sua evolução. Também, é preciso distinguir as determinações que valem para a produção em geral, para que a unidade (...) não faça esquecer a diferença essencial”210. A forma de apreensão teórica pela qual prima o pensador alemão não é aquela que reconhece, “por toda parte, as determinações do conceito lógico, mas que 208 209

Id., p. 40 Id., p. 42 136

apreende a lógica específica do objeto específico”, que “não se limita a indicar as contradições existentes, mas as esclarece, compreende sua gênese, sua necessidade. Apreende-as em seu significado próprio”211. Forma de apreensão, esta, que toma – no reconhecimento ideal de sua constituição – o ser social por ele mesmo, em seus complexos constituintes, e não como exemplar de cada um de seus momentos constituídos como formas autônomas pela idealidade que se auto-sustenta. Tal estatuto ou patamar de cientificidade não é alterado na obra marxiana madura em questão. Ao contrário, é a partir dele que pode Marx afirmar, por outro lado, que “(...) os indivíduos desenvolvidos universalmente (...) não são produtos da natureza, mas da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades, no seio das quais esta individualidade torna-se possível, pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca; produção, esta, que começa por produzir, com a universalidade, a alienação do indivíduo em relação a si mesmo e aos outros, mas que produz, também, a universalidade e o caráter multilateral [Allgemeinheit und Allseitigkeit] de suas relações e aptidões.”212 Os apontamentos de Marx em relação às três formas gerais da produção social resultam, portanto, não de um conhecimento parametrado, conduzido, por um método – entendido como construção a priori do intelecto – mas, de uma forma de apreensão intelectiva instaurada já com o rompimento juvenil em relação a Hegel. Forma de apreensão em que o conhecimento é construção que se viabiliza em seu fazer efetivo. Fazer este que possibilita a Marx extrair considerações a seu respeito, as quais encontram-se na Introdução de 1857 e foram objeto do capítulo I deste trabalho. Dito de outro modo, o entendimento marxiano a respeito do procedimento analítico 210 211

Id., p. 19. Grifos nossos. MARX, K, Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, 137

correto, longe de se configurar num método que oriente o conhecimento por parâmetros ou medidas pré-estabelecidas, anteriores e externas ao próprio objeto investigado, é um entendimento que, ao contrário, resulta do caminho percorrido. Como o próprio Rosdolsky reconhece, Marx só refere uma forma coletiva da produção na medida em que as condições desta despontam, surgem como possíveis, no interior da produção atual por ele dilucidada. Tal procedimento é, a nosso ver, por si só incompatível com um proceder no qual tais elos ou “vinculações econômicas” fossem “concebidas como leis dialéticas da evolução” e pelo qual “este método assinala, por si mesmo, ´modos anteriores de produção´ e, de outro lado, ´pontos nos quais, prefigurando o movimento nascente do futuro, se insinua a abolição da forma presente das relações de produção”213. Para Rosdolsky, Marx deriva sua “imagem do futuro socialista do conhecimento (...), da análise das relações de produção capitalistas.” 214 No entanto, tal conhecimento, embora não seja entendido por ele como algo de natureza metafísica, é um conhecimento pautado e organizado por um método. Método, este, que não parece coincidir, entretanto, com o procedimento analítico indicado por Marx em sua famosa Introdução, mas com o método de Hegel de ponta cabeça, isto é, invertido. Assim, é que, para o autor ora examinado, os Grundrisse são uma “grande remissão a Hegel e, em especial, a sua Ciência da Lógica – demonstrando a forma radicalmente materialista em que se converteu Hegel neste caso.” 215 No entanto, o que seria esta inversão materialista de Hegel ou um método materialista dialético?

212

MARX, K. Manuscrit de 1857-1858 (Grundrisse), tomo I, p. 98 ROSDOLSKY, R. op. cit, p. 458. 214 Id., p. 481 215 Id., p. 13 213

138

Como não é nosso objetivo realizar um acerto de contas com este clássico comentador dos Grundrisse – mesmo porque, se assim o fosse, seria preciso dizer que concordamos com ele em vários outros aspectos – o que nos cumpre reafirmar é que, a análise de Marx, nestes manuscritos, mostra-se, por tudo o que foi visto, livre de peias metodológicas apriorísticas. As categorias as mais abstratas pressupõem, sempre, aí, determinações mais concretas. Concretude da qual Marx não se afasta em nenhum momento de seu proceder – nem quando dela extrai suas relações mais gerais e abstratas nem quando realiza este movimento no sentido de volta, isto é, quando realiza efetivamente o procedimento considerado, por ele, correto; pois, “No primeiro passo, a plenitude da representação foi volatilizada em uma determinação abstrata, no segundo, são as determinações abstratas que conduzem à reprodução do concreto no curso do caminhar do pensamento. É por isto que Hegel caiu na ilusão que consiste em conceber o real como resultado do pensamento que se reúne em si, se aprofunda em si, se move a partir de si mesmo; enquanto o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto é apenas a maneira que o pensamento tem de se apropriar do concreto, de reproduzi-lo enquanto concreto do espírito, mas não é, de forma alguma, o processo de gênese do próprio concreto”216. Em suma, a posição de Rosdolsky acerca do importante problema da emancipação, não obstante sua contribuição para a interpretação da obra de maturidade de Marx, foi referida na parte conclusiva da presente dissertação, na medida em que exemplifica certa porção das abordagens mais ventiladas a respeito. Parece ter se tornado quase consensual a idéia de que muito, para não dizer tudo, na obra de Marx, inclusive a problemática em tela, decorre da utilização do método dialético. Embora não se trate, aqui, de esgotar a questão, é necessário advertir para as 216

MARX, K., op. cit., tomo I, p. 35 139

deficiências do metodologismo ou, mesmo, logicismo, quando se trata de analisar a obra marxiana. Lukács, em obra publicada postumamente, já havia assinalado que “todo leitor sereno de Marx não pode deixar de notar que todos os seus enunciados concretos, se interpretados corretamente, fora dos preconceitos da moda, são entendidos, em última análise, como enunciados diretos sobre algum tipo de ser, isto é, são puras afirmações ontológicas” 217. Desta forma, a questão metodológica encontra-se subordinada, em Marx, a fundamentos de caráter ontológico, não podendo ser devidamente compreendida de modo autônomo.

217

Per l’Ontologia dell’essere sociale, “I princípi ontologci fondamentali di Marx”, Editori Riuniti, pp.261 e ss. 140

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