ATIVIDADES E CONCEPÇÕES DE EXPERIMENTAÇÃO EM GUIAS PARA O PROFESSOR DE UMA COLEÇÃO DE LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS

July 5, 2017 | Autor: Maria Santos | Categoria: Science Education
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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014

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ATIVIDADES E CONCEPÇÕES DE EXPERIMENTAÇÃO EM GUIAS PARA O PROFESSOR DE UMA COLEÇÃO DE LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS Luziana de Aquino da Silva (Mestranda do PPGEAS/FFP/UERJ) Maria Cristina Ferreira dos Santos (Prof. Adjunta da FFP e CAp/UERJ)

Resumo O presente trabalho tem como tema a experimentação em livros didáticos de Ciências dirigidos ao primeiro segmento do ensino fundamental. Com o intuito de identificar as atividades e concepções de experimentação mobilizadas nos livros dirigidos aos professores, tomamos como principais fontes os Guias e Recursos Didáticos para o Professor da Coleção Projeto Buriti: ciências, do 2º ao 5º anos, em sua terceira edição (2013). A investigação focou nos objetivos e concepções da experimentação presentes nas atividades de experimentação didática e revelou a prevalência da concepção demonstrativa e baixa representatividade da concepção construtivista nas atividades desta Coleção. Palavras-chave: experimentação didática, livro didático, ensino de ciências, séries iniciais do ensino fundamental.

Introdução Os livros didáticos são compreendidos como expressões das práticas curriculares em que se configuram tanto conteúdos como modos de ensinar. Esses materiais produzem “um testemunho visível e público dos diversos embates que são travados em torno das decisões que envolvem a seleção e a organização do conhecimento escolar” (FERREIRA; SELLES, 2004 p. 64). Os conhecimentos escolares mobilizados nos livros didáticos têm papel central no processo de ensino e aprendizagem. Considerando os contextos e conflitos dos quais o livro é resultado (SELLES; FERREIRA, 2003, p. 64), a sua análise nos permite perscrutar parte do universo da cultura escolar que se estabeleceu no tempo-espaço das instituições de ensino. Juliá (2001, p.10) define a cultura escolar como: Um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). 5186

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A cultura escolar é composta por vários fatores que atuam em diferentes frentes junto ao processo de ensino-aprendizagem. Entendendo que os saberes e práticas vivenciados nas instituições de ensino são múltiplos e que sua complexidade nos convida a reflexões sobre outros temas, a investigação sobre os conhecimentos nos livros didáticos constitui apenas uma entre as possíveis dimensões de análise, que se fertiliza com as contribuições de outras áreas. De acordo com Martins (2006, p. 119-120) e Selles e Ferreira (2003, p. 75), as investigações sobre os livros didáticos concentraram-se em algumas tendências: tradicionalmente focalizaram o inventário e discussão dos erros conceituais e, mais recentemente, nos aspectos relativos à linguagem e nas políticas curriculares ou ideologias por eles veiculadas. Sendo o livro didático tão vastamente explorado nesta visão, apreciar esta fonte de pesquisa de forma diferenciada e buscar neste campo de análise muitas vezes dissecado outra perspectiva, nos permite o alargamento das possibilidades de compreensão do seu papel na constituição do currículo escolar. Não sendo novidade as pesquisas que analisam o livro didático, investigar as concepções de experimentação expressas em manuais pedagógicos e livros didáticos voltados para as séries iniciais do ensino fundamental significa olhar para esta fonte de pesquisa sob nova óptica, ainda pouco explorada. Uma vez que através da experimentação a criança não apenas desenvolve conhecimentos, mas também habilidades e atitudes, melhorando a sua capacidade de pensar e agir racionalmente (MORAES; BORGES, 1998, p.18), as atividades experimentais podem ser um importante instrumento na aprendizagem. Se, por um lado, a realização de atividades de experimentação no ensino de ciências por si só não seja garantia da eficácia deste processo, por outro lado, quando bem planejada, estruturada e executada, poderá auxiliar na consolidação de conteúdos fundamentais no longo processo de escolarização pelo qual passarão os alunos até o final da educação básica.

A experimentação e o ensino de ciências Na literatura da área são utilizadas terminologias diversas associadas ao ensino experimental de ciências: experimentação, experimentos, atividade prática etc. Para Marandino et al (2009, p.106) é a expressão experimentação didática quem melhor atende às atividades de cunho mais experimental realizadas na escola, sendo esta resultado de “processos de transformação de conteúdos e procedimentos científicos para atender a 5187

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finalidades de ensino”. Segundo Rosito (2000, p.196), “a experimentação é a verificação de uma hipótese proveniente de experimentos, podendo chegar, eventualmente, a uma lei, dita experimental”. Já para Japiassù e Marcondes (1996, p.96), significa “a interrogação metódica dos fenômenos, efetuada através de um conjunto de operações, não somente supondo a repetibilidade dos fenômenos estudados, mas a medida dos diferentes parâmetros: primeiro passo para a matematização da realidade”. O experimento também pode ser entendido como “um teste, que pode possuir diferentes objetivos: demonstrar uma verdade, examinar a validade de uma hipótese, apontar soluções para um problema ou ajudar a compreender um conceito” (MORAES; BORGES, 1998, p. 30-31). A experimentação escolar apresenta sua fundamentação em características do experimento científico, mas não é simples reprodução do trabalho acadêmico (MARANDINO et al, 2009), sendo importante considerar outras conformações e objetivos que estas atividades adquirem no contexto escolar. As autoras utilizam o termo experimentação didática, agregando elementos da experimentação científica, mas recontextualizado no ambiente escolar. A experimentação didática pode ser considerada uma atividade prática, na medida em que coloca o aluno como sujeito ativo no processo de aprendizagem, porém difere das demais práticas, como debates em grupo ou produção de maquetes, pois traz em si marcas da atividade científica. Entre aquelas compreendidas como experimentação didática incluem-se: [...] atividades de caráter fisiológico, como a identificação de certa ação enzimática, atividades de observação, descrição e classificação-, relacionadas à identificação anatômica de organismos vegetais e animais, à identificação microscópica de certas estruturas, à montagem de coleções e aos trabalhos de campo ou estudos do meio. (MARANDINO et al, 2009 p.106)

Argumentamos que a construção de atividades experimentais que ocorrem no âmbito escolar constitui um processo diferenciado do utilizado no meio acadêmico, influenciado pelo mesmo, mas com características particulares. Neste sentido, concordamos com Marandino et al (2009, p. 103) quando estas autoras afirmam que: A experimentação escolar resulta de processos de transformação de conteúdos e de procedimentos científicos para atender a finalidades de ensino. Esses processos de produção curricular guardam semelhanças com o contexto científico, mas assumem configurações muito próprias; afinal não são experiências científicas stricto senso, ou autênticas.

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Atentamos também para as concepções de experimentação nos livros didáticos, considerando a classificação proposta por Moraes e Borges (1998, p.31-33), que propõem quatro categorias, adiante caracterizadas: • Demonstrativa - Nesta perspectiva as atividades propostas são voltadas à demonstração de um fenômeno já conhecido, onde não há preocupação com a construção do conceito. O que se propõe é a constatação de verdades estabelecidas, em que reforçam a “crença” na ciência. • Empirista-indutivista - As atividades propostas partem de fenômenos específicos e propõem a generalização. O método científico é considerado um fim em si mesmo, sendo ele próprio gerador de conhecimento. • Dedutivista-racionalista – Toda observação e experimentação são embasadas pela teoria, ou seja, as atividades experimentais são orientadas por hipóteses derivadas de uma teoria. O conhecimento científico é percebido como uma construção humana e, portanto, não é uma verdade definitiva, é provisório e sujeito a transformações e a reconstruções. • Construtivista - As atividades são planejadas levando-se em consideração o conhecimento prévio dos alunos e os experimentos são desenvolvidos na forma de problemas ou testes de hipóteses. O diálogo e a discussão assumem um papel importante e os experimentos combinam, indissociavelmente, ação e reflexão. A análise das concepções de experimentação presentes nas atividades propostas nos livros didáticos nos permite uma aproximação às visões dos autores sobre o ensino de ciências e as ciências de referência, a partir da compreensão de que o conhecimento escolar na disciplina escolar Ciências Naturais tece relações com o conhecimento científico das disciplinas de referência, de forma recontextualizada e atendendo às finalidades sociais e pedagógicas da escolarização. Este trabalho tem como objetivo principal a análise de atividades de experimentação didática em livros dirigidos aos professores das séries iniciais do ensino fundamental, entendendo que estes materializam o conhecimento escolar e a tradição experimental no ensino de ciências. Entender como as atividades de experimentação didática foram mobilizadas em materiais curriculares neste segmento de ensino pode nos permitir vislumbrar a sua inserção e papel no ensino de ciências. 5189

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Sobre a metodologia e corpus de análise Como fontes para a análise, tomamos os Guias e Recursos Didáticos para o Professor da Coleção Projeto Buriti: ciências, em sua 3ª edição (2013), tendo em vista a sua importância como orientadores do trabalho docente. Estes livros para o primeiro segmento do ensino fundamental foram publicados pela Editora Moderna e selecionados pelas edições de 2010 e 2013 do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A coleção analisada foi publicada pela Editora Moderna em sua terceira edição em 2013, abrangendo quatro volumes, do 2º ao 5º ano do ensino fundamental. Esta editora foi fundada em 1968 e possui sólida tradição na área de educação, com livros didáticos produzidos em diferentes áreas de conhecimento, inclusive Ciências. Segundo esta editora, a Coleção Projeto Buriti apresenta como objetivo central o domínio da linguagem, mas também, a aprendizagem significativa e a aproximação entre aluno e conhecimento estão incluídas em sua proposta pedagógica (BEZERRA, L. M., 2013, v.1-4, p.VI). A intenção é identificar as concepções de experimentação priorizadas pelos autores nos Guias e Recursos Didáticos para o Professor. No presente estudo a escolha das séries iniciais deve-se ao interesse e atividade profissional das autoras neste segmento de ensino. Na seleção das atividades foram consideradas as que apresentaram características de experimentação didática, segundo Marandino et al (2009) . As atividades foram analisadas de acordo com as concepções de experimentação - demonstrativa, empirista-indutivista, dedutivista-racionalista e construtivista, com esteio em Moraes e Borges (1998). Para identificar as concepções de experimentação impressas nas atividades foram considerados: a descrição das instruções, questões elaboradas sobre a atividade, objetivo da atividade e orientações para o professor. Os resultados apresentados neste trabalho constituem parte de uma pesquisa de Mestrado em andamento.

Conteúdos de ensino, objetivos e concepções de experimentação na Coleção Projeto Buriti: ciências Caracterização da coleção e organização temática - Os quatro volumes são divididos em nove unidades, possuindo 184 páginas, exceto pelo 3º ano, onde o livro apresenta apenas 176 páginas. Também os livros apresentam inicialmente e nesta ordem: uma explanação breve 5190

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sobre o projeto para todas as disciplinas, a proposta didática da coleção para o ensino de ciências, seguida de orientações para uso do livro. Há também textos complementares e sugestões de avaliação que variam de livro para livro, de acordo com os temas das unidades trabalhadas. Após as unidades, há também um suplemento de atividades práticas e por fim o almanaque do jovem internauta - material utilizado com CD multimídia que acompanha os livros do 2º ao 5º anos. Os conteúdos de ensino abordados nos livros do 2º ao 5º ano distribuem-se em quatro temas principais: seres vivos, seres humanos, planeta terra e ambiente, matéria e energia. O livro do 2º ano é composto por nove unidades ( Somos seres humanos, Os sentidos do corpo humano, No ambiente tudo acontece, Os animais, As plantas, Água, ar e solo, O céu e a Terra, Os materiais, A tecnologia e os materiais). No 3º ano as unidades são organizadas em: A matéria suas transformações, As rochas e o solo, A água na natureza, As características da água, O ar, As plantas, Animais vertebrados e invertebrados, O corpo humano por dentro e O esqueleto e os músculos. No 4º ano os conteúdos estão distribuídos em: A vida sob o microscópio, Bactérias e fungos, Ecossistemas e relações ecológicas, Alimentação e respiração de animais e plantas, Alimentação e o corpo humano, Respiração, circulação e excreção, Energia e suas transformações, Luz e calor, Universo e o sistema Solar. Compõem as 184 páginas do livro do 5º ano as unidades: Os fósseis e a história da vida, Biomas brasileiros, Recursos naturais, Geração de energia elétrica, Eletricidade e magnetismo, Movimento, forças e máquinas, Reprodução de plantas e animais, Reprodução humana e Sistema nervoso (BEZERRA, L. M., 2013, v. 1-4). Análise dos manuais para os professores - No Guia para o Professor existem representações reduzidas das páginas do livro do aluno e, lateralmente, instruções específicas para o professor. Os objetivos das imagens, dos textos e das atividades, instruções para o trabalho em sala, materiais extras, sugestões (de sites, livros e passeios), estão distribuídos ao longo das páginas, para orientação no uso da coleção. Os objetivos e estratégias são apresentados nesta coleção com o mesmo texto nos quatro volumes: Fizemos esta coleção visando oferecer ao professor e ao aluno um material que disponha de um repertório de conteúdos conceituais, apresentados de maneira clara e objetiva, que dê oportunidades de pesquisa e investigação sobre os temas abordados e que possibilite a reflexão a respeito de questões que envolvam sua participação individual e coletiva na sociedade. [...] 5191

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Procuramos elaborar um material que proponha situações de aprendizagem que valorizem o conhecimento dos alunos e a interação com o objeto de estudo, incentivem a formulação e a organização de ideias, a expressão oral e escrita, com pleno uso da linguagem, e formem cidadãos aptos à participação social efetiva. (BEZERRA, L. M., 2013, v. 1-4, p.XII)

As

orientações

enunciadas

para o

professor pretendem

se constituir no

“desenvolvimento de habilidades importantes para a formação de pessoas capazes de empenhar um pensamento investigativo, crítico, questionador e reflexivo”, assim como “a educação científica deve visar à formação de pessoas aptas à participação social, capazes de refletir sobre sua realidade e atuar sobre ela” (BEZERRA, L. M., 2013, v,1-4, p.10-11) São objetivos parcialmente em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), quando afirmam não ser possível a formação de um cidadão crítico à margem do saber científico. A compreensão da natureza dinâmica e mutável como um conjunto de processos e fenômenos que ocorrem muitas vezes no cotidiano do aluno não é inserida nos objetivos do ensino de ciências. Ao se ensinar ciências, devemos instrumentalizar os alunos, mas também ajudá-los a compreender a natureza que lhes cerca. É através deste entendimento que o objetivo de formação do cidadão poderá ser mais bem atendido. Uma visão dicotômica entre o papel social e o científico do ensino de ciências dificultará uma compreensão unitária das diversas dimensões de sua existência, do entendimento da sociedade em que se vive e cuja ação humana ativamente constrói (THEÓPHILO, 2009, p.29). Embora nos livros analisados não tenham sido encontradas as definições de experimentação, experimento e atividade prática, entende-se como implícita em algumas partes a distinção entre atividade prática e experimento. As atividades de experimentação aparecem em geral no final de algumas unidades sob o tema “vamos investigar” e, no final do livro há um conjunto de atividades práticas diversas, como construção de modelos, pesquisas e experimentos, que são o “suplemento de atividades práticas” (BEZERRA, L. M., 2013, v.1, p.130; idem, v.2, p. 138; idem, v.3, p.146; idem, v.4, p.146). As atividades são categorizadas de acordo com seu objetivo: vamos construir, vamos pesquisar, vamos experimentar. A partir do momento em que o autor insere um grupo de atividades, que vão desde a construção de modelos a experimentos instrumentalizados, entende-se que o experimento está incluído como uma das “modalidades” da atividade prática. Segundo Marinho (2012, p.3), as atividades práticas, ao serem colocadas nos livros didáticos, tem como objetivo aproximar os alunos da relação entre teoria e prática, na medida em que ela não se torna uma ilustração da

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teoria, coloca o aluno como sujeito participativo no processo de aprendizagem, fazendo-o interagir ativamente com o objeto em estudo. A justificativa apresentada na Coleção Buriti: ciências para estas atividades experimentais é fazer com que o aluno trabalhe, “além dos conteúdos e conceitos, a metodologia científica: a observação, a pesquisa, o registro, o levantamento de hipóteses e a experimentação.” (BEZERRA, L. M., 2013, v. 1-4 p.XVI). Em outro fragmento os autores complementam os objetivos da experimentação: Além disso, ao permitir o uso de práticas próprias das ciências, como pesquisar, comparar, testar, registrar e analisar dados, compartilhar e argumentar pontos de vista, as atividades de investigação também favorecem a compreensão sobre como o conhecimento científico é construído, ou seja, da própria natureza da Ciência. (BEZERRA, L. M., 2013, v.1-4 p.XI)

Nem toda atividade denominada prática é classificada neste trabalho como experimentação didática, assim como muitas atividades que para as autoras dos livros não seriam denominadas como tal, foram inseridas na análise, como as atividades de observação, por exemplo. Segundo Marandino et al (2009), a experimentação didática, não é um experimento científico, mas uma reconfiguração do mesmo, percolada de características próprias do contexto escolar. Nas orientações direcionadas ao professor no início de cada livro pouco se trata dos objetivos e conceitos teóricos que os fundamentam.

Na atividade “Como preservar a

temperatura?” (BEZERRA, L. M., 2013, v.1-4, p. 171), os autores estabelecem a correspondência entre as atividades realizadas na escola e nas ciências de referência: “Neste experimento, os alunos tem contato com os procedimentos próprios do trabalho científico.”. Na aproximação entre as práticas científicas e escolares, os autores assumem a compreensão de que o experimento realizado na escola utiliza a mesma metodologia daquela do meio científico, desconsiderando as especificidades e adequações ao ambiente escolar, como explicitado nos objetivos da coleção: “reconhecer métodos e procedimentos próprios da ciência” e da inserção destas práticas: “é buscar um diálogo entre teoria e prática, no qual um altera e amplia o entendimento do outro” (ibidem, p. XII). Entender que concepção de experimentação foi expressa nas atividades requer uma analise textual de diversos aspectos. Os objetivos apresentados ao professor para cada atividade muitas vezes se limitavam a utilização apenas da observação, seja de objetos ou processos (“observar um ovo de galinha e identificar algumas de suas partes” – 5º ano, 5193

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“observar a ação do fermento do pão” – 4º ano), a manipulação dos materiais ou a análise de resultados não é posta como objetivos da atividade. Com isso foi necessário observar a atividade em si e seus desdobramentos para analisá-la dentro de um contexto mais amplo. Nas orientações ao aluno, os procedimentos são simples e de fácil compreensão. O objetivo da atividade aparece sob o tópico “O que você vai fazer” (“Fazer um experimento para entender como as chuvas acontecem” – 3º ano, “Acompanhar o desenvolvimento de um pé de feijão em um lugar com pouca luz” – 2º ano) seguidos de exercícios, organizados de forma a solicitar aos alunos respostas, diretamente relacionadas aos objetivos das atividades e a correlações entre prática e teoria. O levantamento prévio de hipóteses por parte dos alunos não é explorado em várias das atividades propostas. O volume que apresenta maior número de atividades de experimentação didática é o do 4º ano, com 22, já o 3º e o 5º ano 18 atividades cada. O 2º ano é o que apresenta menor número, 11. O 3º, 4º e 5º anos mostraram um repertório de temas muito diversificado, com aprofundamento teórico maior, o que favorece o uso de um maior número de experimentações didáticas. O 2º ano possui um menor número de experimentos, mas há nesta série maior número de outras propostas práticas, como o trabalho com imagens, jogos e brincadeiras. Nas demais séries este tipo de proposta metodológica existe, porém em menor quantidade. A análise das concepções de experimentação nas atividades dos quatro volumes da coleção revelou a prevalência da concepção demonstrativa e baixa representatividade da concepção construtivista (Quadro 1): Quadro 1. Distribuição das concepções de experimentação presentes nas atividades didáticas dos Guias e Recursos para o Professor da Coleção Buriti: ciências (2013) por ano do primeiro segmento do ensino fundamental. Concepções prevalecentes nas atividades Anos

Demonstrativa

Empirista-

Dedutivista-

Indutivista

Racionalista

Construtivista

Total por ano

2º ano

6

3

1

1

11

3º ano

5

6

4

3

18

4º ano

14

2

6

0

22

5º ano

11

3

3

1

18

TOTAL

36

14

14

5

69

5194

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Estes resultados podem ser relacionados ao que Moraes (2000) aponta sobre o ensino de ciências, no sentido de que este carrega em si uma tradição empirista, onde o conhecimento é apresentado pronto, imutável, como um fato acabado, produzindo uma visão de que aquilo que é ensinado é uma reprodução idêntica dos fenômenos naturais e plenamente verificável. Dentro desta concepção as atividades que se utilizem da observação passiva ou que tendem a apresentar fenômenos e processos como fatos científicos dados podem ser elencadas como demonstrativas e empiristas (ibidem, p.56). As concepções de experimentação nas atividades didáticas nos quatro volumes são marcas da tradição no ensino de ciências, impregnadas nesta coleção. A visão empirista expressa na estruturação das atividades de experimentação didática é destacada na análise da coleção pelo Guia Nacional do Livro Didático em 2013: A obra apresenta um grande conjunto de atividades experimentais e práticas, muitas delas de natureza investigativa, reforçando a visão tradicional de método científico de natureza empírico-indutiva. Outras são propostas com roteiros instrucionais que contêm informações sobre o que fazer, como fazer e quais resultados e conclusões devem ser obtidos. (BRASIL, 2013, p.97)

Nos quatro volumes existem várias sugestões de atividades que trazem a concepção demonstrativa, muitas vezes centradas na observação de fenômenos ou objetos de estudo. Esta concepção está em consonância com os objetivos da coleção, no sentido de favorecer a compreensão de como o conhecimento científico é construído. Somente no livro do 3º ano ocorre uma distribuição mais equitativa de diferentes concepções no número de atividades. Uma explicação plausível pode se fundamentar nos conhecimentos oriundos de diferentes ramos das ciências de referência apresentados no livro desta série, que abrangem da classificação zoológica às propriedades do ar; e de transformações da matéria à anatomia humana. De forma diversa da abordagem teórica do livro, estruturada em questões que buscam a reflexão dos alunos sobre conteúdos antes mesmo de sua apresentação, as atividades que envolvem experimentação foram propostas sem questões que incitem os alunos a apresentarem suas concepções iniciais, antes de serem instruídos a realizá-las. Em muitas delas, a reflexão inicial aparece apenas como uma orientação para o professor, mas não há no livro qualquer forma de registro destas concepções dos alunos para posterior comparação. Das 69 atividades propostas analisadas em todas as séries, em apenas cinco delas foi observada uma abordagem mais construtivista, como ocorre em geral na apresentação inicial das 5195

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unidades nos quatro volumes da coleção. Sem uma visão de experimentação didática centrada no conhecimento dos alunos, que os instiguem, os motivem, os estimulem a refletir e (re) construir seus conceitos, limitam-se as possibilidades de aprendizagem, muitas vezes centrada na mecanização de procedimentos e comprovação de uma “verdade” científica. Neste sentido, a análise de materiais didáticos contribui para a problematização do currículo de Ciências na educação básica e instiga professores e pesquisadores à reflexão sobre os conhecimentos e práticas vivenciados na escola.

Considerações finais Nos quatro volumes desta coleção foram utilizadas distintas concepções de experimentação, que variaram de acordo com os conteúdos de ensino selecionados nos diferentes anos das séries iniciais. As atividades de experimentação sugeridas nos livros priorizaram a concepção demonstrativa e foram identificados com o trabalho científico. A concepção construtivista foi a de menor representatividade, apontando nos livros uma abordagem didática calcada em concepções tradicionais de experimentação. Outras questões nos incitam na continuidade da investigação: Quais elementos de didatização foram incorporados nas atividades experimentais propostas? Que relações podem ser estabelecidas entre as atividades experimentais incluídas e a concepção em que estão embutidas? Outros estudos sobre a didatização e a experimentação nos livros de ciências das séries iniciais podem nos auxiliar a compreender as tendências na constituição do currículo escolar na atualidade.

Referências BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais: 1º e 2º ciclo do Ensino Fundamental. Ciências Naturais. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 1997. BRASIL. Guia nacional do livro didático – Ciências. Séries/anos iniciais do Ensino Fundamental. PNLD. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2013. FRACALANZA, J e MEGID NETO, H. O livro didático de ciências: problemas e soluções. Ciência e Educação, v. 9, n.2, p. 147-157, 2003. FERREIRA, M. S.; SELLES, S. E. Análise de livros didáticos em Ciências: entre as ciências de referência e as finalidades sociais da escolarização. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 8, n. I e II, p. 63-78, 2004. 5196

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JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, v.1, n. 1, p. 9-43, 2001. JAPIASSÚ, H. MARCONDES, D Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. MARANDINO, M.; SELLES, S. E.; FERREIRA, M. S.; Ensino de biologia: histórias e práticas em diferentes espaços educativos. Coleção docência em formação. Série ensino médio. São Paulo: Ed. Cortez, 2009. MARINHO, A. B. et al. Análise de experimentos no livro didático de ciências: possibilidades e limites. In: IV Encontro Nacional de Ensino de Biologia. Acessado em: 09/05/14. Disponível em: http://lesec.icb.ufg.br/uploads/263/original_experimento.pdf MARTINS, I. Analisando livros didáticos na perspectiva dos estudos do discurso: compartilhando reflexões e sugerindo uma agenda para a pesquisa. Pro-Posições, v. 17, n. 1 (49), 2006. MORAES, R; BORGES, R. M. R (org.). Educação em ciências nas séries iniciais. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998. MORAES, R. (Org.) O construtivismo e o ensino de Ciências: Reflexões epistemológicas e metodológicas. Rio Grande do Sul: Ed. EDIPUCRS, 2000. THEOPHÍLO, I. M., MATA, M. F. Ensino de Ciências. Fortaleza: Ed. Brasil Tropical, 2001.

Livros analisados BEZERRA, L. M. (ed.) Projeto Buriti: ciências. Guia e Recursos Didáticos para o Professor. 2º ano. 3. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 2013, v.1. BEZERRA, L. M. (ed.) Projeto Buriti: ciências. Guia e Recursos Didáticos para o Professor. 3º ano. 3. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 2013, v.2. BEZERRA, L. M. (ed.) Projeto Buriti: ciências. Guia e Recursos Didáticos para o Professor. 4º ano. 3. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 2013, , v.3. BEZERRA, L. M. (ed.) Projeto Buriti: ciências. Guia e Recursos Didáticos para o Professor. 5º ano. 3. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 2013, v.4.

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