Atrações Dominantes, Dispositivos de Imageité - Autobiografia Autorizada, Desmedida e projeto brasil
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL DEPARTAMENTO DE CINEMA E VÍDEO LICENCIATURA EM CINEMA E AUDIOVISUAL ATRAÇÕES DOMINANTES, DISPOSITIVOS DE IMAGEITÉS: Autobiografia Autorizada, Desmedida, projeto brasil. Senhoras e Senhores, Sofri epifanias enquanto lia o artigo “Montagem de Atrações” de Serguei Mikhailovitch Eisenstein. Sabe quando algo toca fundo na Experiência e te lembra algo que já sentiste? Minhas lembranças foram pescadas por seus conceitos que passaram a me habitar: já estava até a pensar em gradações das Atrações a partir de Dominantes que poderiam variar de acordo com seu poder dispersivo. Cada Atração teria um poder de atração e de dispersão, que teriam efeitos distintos em momentos distintos. Cada objeto simbólico teria um poder mutante de sugar a atenção do espectador e também de lembrálo da roupa esquecida estirada ao varal. Até refleti que se há Dominantes então há Subalternas, e que se há Atrações há lacunas de desatração, de “repugnação”. Tal empolgação se estremeceu com o exemplo dado ao fim do artigo de Eisenstein. Senti que as peças de teatro a que eu relacionara o conceito do russo nada se parecem com o exemplificado no artigo pelo autor. Lembrei da personagem do Prólogo de “Até Mais, e Obrigado pelos Peixes!”: "E, então, uma quintafeira, quase 2000 anos depois que um homem foi pregado num pedaço de madeira por ter dito que seria ótimo se as pessoas fossem legais umas com as outras para variar, uma garota, sozinha numa pequena lanchonete em Rickmansworth, de repente compreendeu o que tinha dado errado todo esse tempo e
finalmente descobriu como o mundo poderia se tornar um lugar bom e feliz. Desta vez estava tudo certo, ia funcionar, e ninguém teria que ser pregado em coisa nenhuma. Infelizmente, porém, antes que ela pudesse telefonar para alguém e contar sua descoberta, aconteceu uma catástrofe terrível e idiota e a ideia perdeuse para todo o sempre. (ADAMS, 2009, P. 8)" No caso de Até Mais e Obrigado Pelos Peixes são os os extraterrestres burocratas Vogons que destroem a Terra para a construção de uma Via de Transporte Intergaláctica. Conforme o tempo passou eu percebi que meu caso não era tão trágico. Acabei preocupado com uma certa apropriação dos conceitos que dançariam em equívoco a um ritmo que seus autores jamais ouviram. Concluí que o aspecto digressivo sempre fez parte da construção do conhecimento e que apenas estou lidando com as particularidades temporais. Assumi minhas impressões. Quase a encerrar o artigo encontrei palavras que completaram as Atrações que o cineasta usou em suas peças: “Cabe aqui destacar o termo atração, utilizado pelo cineasta Serguei Eisenstein no período de suas atividades no Primeiro Teatro do Proletkult e posteriormente na elaboração
de
suas
teorias
da
montagem
cinematográfica. Segundo François Albera (2002), o jovem Eisenstein, durante a sua atuação como cenógrafo e diretor, inova ao mostrar no espetáculo O Mexicano (1921) uma luta de boxe que se dava em pleno proscênio, rompendo com a separação entre a cena e o público. No fim da peça, fogos de artifício estouravam debaixo das poltronas, acompanhados de ações burlescas e de uma cacofonia musical. Ao montar O Sábio (1923), utilizaria elementos do circo, da acrobacia e introduziria um fragmento filmado.” (LIMA, 2011, p. 509) Este texto, então, assume um aspecto de ensaio. A tentativa e o erro lhe são característicos. A sorte e a experimentação são os meios.
Este tempo permitiu que minhas reflexões seguissem dois caminhos que em algum momento podem se cruzar. No caso, procuro identificar quais são as “atrações dominantes” em três peças de teatro que muito me sensibilizaram e intrigaram: “Autobiografia Autorizada” (dir. Paulo Betti e Rafael Ponzi), “Desmedida” (dir. Júlio Mello) e “projeto brasil” (Dir. Marcio Abreu). O segundo caminho envolve aproximar esta discussão de Atração e Dominante a dois conceitos contemporâneos que tem dominado o mercado editorial de análise artística: dispositivo e imageité. Tenho receios da “estruturalidade” que resultará de tal ato, implicações que espero conseguir perceber e investigar a tempo de não reproduzir “a postura mecanicista, que reconhece a multiplicidade das funções de um texto poético e julga esse texto, intencionalmente ou não, como uma aglomeração mecânica de funções” (JAKOBSON, 2014, p. 5). Veremos. Atração, Dominante, Imageité, Dispositivo. Em “Montagem de Atrações”, o Autor Sergei Eisenstein discorre sobre um tipo de montagem teatral que buscaria "elevar o nível organizacional da vida cotidiana das massas através da própria abolição do teatro" (EISENSTEIN, 1983, P. 187) pois "a organização de oficinas de trabalho e a elaboração de um sistema científico para a elevação deste nível são tarefas imediatas da seção científica do Proletkult no campo teatral" ( ib. p. 188). Tal sistema partiria do método do teatro de agitprop para atingir seu objetivo, método que “[...] visa um resultado concreto, mensurável por sua eficácia política, não apenas no nível da mobilização conseguida para esta ou aquela campanha em particular, mas no engajamento mais amplo, que extrapola a relação palcoplatéia e soma esforços na construção do socialismo” (GARCIA apud LOPES, 2012, p. 68). Nisto, o conceito de atração lhe é essencial para seguir seus trabalhos. "Atração (do ponto de vista teatral) é todo aspecto agressivo do teatro, ou seja, todo elemento que submete o espectador a uma ação sensorial ou psicológica, experimentalmente verificada e matematicamente
calculada, com o propósito de nele produzir certos choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto precisamente a possibilidade do espectador perceber o aspecto ideológico daquilo que foi exposto, sua conclusão ideológica final". (EISENSTEIN, 1983, p. 189) A atração é a Eisenstein um conceito caro dentro de seu projeto de teatro, específico em abolir as distinções entre Arte, Vida e Trabalho. Seu significado é construído com a oposição que o autor estabelece a truque. "O truque (...) significa algo absoluto e acabado em si, diametralmente oposto à atração, que se baseia exclusivamente na relação, ou seja, na reação do espectador" (ibid. p. 191.). Enfim, Eisenstein me enchia de esperanças e exemplos enquanto me confirmava a noção de atração. "Uma abordagem autenticamente nova que altera de forma radical a possibilidade dos princípios de construção da "estrutura ativa" (o espetáculo em sua totalidade); em lugar do "reflexo" estático de um determinado fato que é exigido pelo tema e cuja solução é admitida unicamente por meio de ações, logicamente relacionadas a um tal acontecimento, um novo procedimento é proposto: a montagem livre de ações (atrações) arbitrariamente escolhidas e independentes (também exteriores à composição e ao enredo vivido pelos atores), porém com o objetivo preciso de atingir um certo efeito temático final. É isso a montagem de atrações". (ibid. p. 191) De alguma forma sua discussão se contrapõe à narrativa aristotélica e o truque pode ser uma metáfora associada a esta mas o conceito de Dominante amplia o escopo de discussão, termo de Samuel Jakobson que exerceu sua dominância sobre o pensamento Construtivista.
“O dominante pode ser definido como o componente focal de uma obra de arte: ele regula, determina e transforma os demais componentes. É o dominante que garante a integridade da estrutura. O dominante especifica o trabalho. (...) Podemos buscar um dominante não apenas no trabalho poético de um artista individual – e não somente no cânone poético, o conjunto de normas de uma dada escola poética – mas também na arte de uma determinada época, vista como um todo particular.” (JAKOBSON, 2014, p. 3) http://www.socine.org.br/rebeca/pdf/TRADUCOES_2_Roman%20Jakobson_final.pdf Já Imageité é um termo apresentado por Jacques Rancière. O francês afirma que uma inúmera diversidade se abriga sobre o mesmo guardachuva, o da Imagem. “Não haveria, sob o mesmo nome de imagem, diversas funções cujo ajuste problemático constitui precisamente o trabalho da arte?” (RANCIÈRE, 2012, P. 9) Ele resume este processo a um jogo das imagens: “O que difere são as performances dentro da tela, as ‘naturezas intrínsecas das imagens’”. ( ibid , p. 11) Perguntome se difeririam, então, nas atrações e dominantes, o que implica haver atrações sib qualquer imageité. Ao citar um filme de Bresson, Au Hazard Balthazar, Rancière cita a fragmentação operada pela décupagem neste projeto: um encadeamento distinto da narrativa, que não a compromete apenas em relação a um canônico, mas sintetiza a ação a seus gestos mínimos. Sob minha hipótese essa sequência montada sob o paradigma Clássico apresentaria um outro regime embora sobre o mesmo texto: com Atrações e Dominantes distintas. Até pensei em outras digressões que impulsionariam a discussão. Em alguns processos de realização fílmica o documento mais importante é o roteiro. Para outros é o storyboard. Tal privilégio distinto pode gerar dois resultados: um são os filmes que possuem uma visualidade extremamente “desimportante” enquanto a atuação e as falas se tornam protagonistas; outro são os que se importam definitivamente com a visualidade e criam com esta camada novas possibilidades de significação. Exemplo: um diálogo qualquer pode se
desenrolar com qualquer production design, inclusive em um palco escuro com um único spotlight. Pegue as mesmas falas e coloque os atores em frente a espelhos. O simples objeto que agora compõe a visualidade gera uma nova camada informativa e aspectos como narcisismo podem ser incorporados à trama. Enquanto assistia a “Pulp Fiction”, um amigo me perguntou: “Por quê sempre tem um espelho em cena”. Tal é exatamente a diferença entre “Amor” e “Atame”: ambos possuem textos ácidos, atuações arquetípicas e próximas do drama televisivo; o primeiro apenas coloca atores em frente a câmera enquanto o segundo os coloca em frente a espelhos caleidoscópios, de ponta cabeça, de frente a portas que parecem obras De Stijl. “Amor” se passar em um Teatro e o “Atame” em um Set de Filmagem são meras coincidências. O “pulo do gato” de Rancière ocorre quando deixa pistas para aproximar a imagem da palavra ao afirmar que “A imagem não é uma exclusividade do visível” ( ibid, p. 16). “Resumindo a ação ao encadeamento de percepções e de movimentos, e curtocircuitando a explicação das razões, o cinema bressoniano não realiza uma essência própria do cinema. Ele se inscreve na continuidade da tradição romanesca iniciada por Flaubert; a de uma ambivalência em que os mesmos procedimentos produzem e retiram sentido, asseguram e desfazem a ligação de percepções, ações e afetos (...) o poder de antecipar um efeito para melhor deslocálo ou contradizêlo. ( ibid, P. 14). Ao complexificar o termo imagem, o que abre acepções em torno da “imagem mental”, do “imaginário” e da “imaginação”, JR evidencia que há procedimentos próprios a cada obra mas que eles se relacionam dentro de uma quebra de suporte: um mesmo regime de imageité pode ser atingido por uma pintura, uma instalação, uma música, um poema. As fronteira se borram e passa a existir palavra na imagem, ritmo na palavra, imagem no som. Poderia haver equivalências entre o teatro revolucionário russo e, por exemplo, algum tipo de performance contemporânea. Por fim adiciono um último conceito que adiciona literalmente novas camadas discursivas à discussão. Até então os exemplos dados utilizam de formas diegéticas para decompor os espetáculos para se diferenciar de uma forma reacionária no casso russo e para evidenciar a própria diversidade no caso francês.
Já o conceito de dispositivo amplia o escopo da discussão, ainda mais quando vinculado a uma noção de “experiência”. O filósofo italiano Giorgio Agamben empreende uma busca pelo conceito que o remete aos padres da Idade Média, Hegel e Foucault. Assim ele o resume: “a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e nãolinguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c. Como tal, resulta no cruzamento de relações de poder e de relações de saber.” (AGAMBEN, 2009, p. 29) Agamben aponta este conceito como central no pensamento de Foucault dentro de sua linha que busca compreender as tecnologias de governabilidade. Para Giorgio tal discussão se assenta na discussão de Hegel entre natureza e positividade, que contrapõe uma inclinação transcedental à coerção pela história. O esteta André Parente apresenta uma aplicação interessante deste conceito quando aborda principalmente as vídeoinstalações. O autor evidencia a importância destes outros elementos discursivos na constituição da obra, este “dito e não dito” como Agamben aponta. Complexificada pela noção de Dispositivo, a Imageité também depende, por exemplo, da pedagogia dos corpos imbricada na obra, das formas arquitetônicas relacionadas e tudo o mais que compete ao complexo espetacular: do quê o ator comeu até os acontecimentos jornalísticos do dia. Ele complementa a discussão sobre Atração que propus na Introdução. O dispositivo evidencia o próprio espaço, os espectadores e suas funções sugeridas pelo espetáculo como Atrações distintas. Atrações, Dominantes e Imageités surgem então como conceitos operativos que buscam reestruturar os espetáculos enquanto obras singulares. Eisenstein me contradiz ao chamar por Atração algo que só se constituiria no corpoacorpo com o espectador, o que aproxima o conceito do russo à noção de dispositivo. Tal a imbricada relação que acabei por tecer: Eisenstein já apontava a amplitude do espetáculo enquanto Jakobson e Rancière se vinculam em demasiado com estes conceitos à noções
estruturais, embora o deste último esteja mais vinculado a resultados dialéticos similares do que a partes decompostas. A Profanação do dispositivo. As peças “Autobiografia Autorizada” é um monólogo roteirizado e dirigido pelo ator e diretor Paulo Betti em 2014. O texto foi criado a partir de história oral do próprio e de materiais registrados em diários pessoais também próprios. A narrativa se inicia na década de 1930, em sítios do interior paulista onde sua família de imigrantes italianos sobreviviam no corte de cana e com um bar de beira de estrada, e se encerra na década de 1980, onde Paulo parte para a capital paulista em busca do Teatro. Tal trajetória é permeada pelas afetividades e excentricidades caipiras de seus parentes, o contato com instituições como a Cidade, a Escola, a Fábrica e o Manicômio e os primeiros contatos com os meios de comunicação e Artes. Tal espetáculo, portanto, constituise de 1. um ator de fama internacional, graças às dezenas de participações em novelas da Rede Globo e também múltiplas incursões pelo Cinema e Teatro; 2. este ator apresenta seu universo infantil nada glamouroso (como, por exemplo, sua avó que urinava em espaços públicos a todo momento). As relações entre 1 e 2 permitem um discurso calcado na meritocracia, onde o que move o espectador é contrastar seu imaginário em torno de um ator “Global” e de “Cinema” com uma infância à beira da miséria, com problemas familiares que beiram o insuportável (como seu pai esquizo). Tal configuração espetacular toca um sentimento particularmente alimentado pelo Liberalismo, onde teoricamente não importa as condições dadas: a força de vontade e comprometimento com o trabalho do agente o farão ascender economicamente e suceder dentro do Sistema. São os pequenos casos de sucesso que criam sentimentos de Esperança e motivação no espectador. Um ponto de vista marxista pode indicar neste complexo certa mitigação de informações que não desvendam a Realidade Social em suas questões materiais, que provavelmente estão presentantes na “Biografia não autorizada” pelo Autor: trechos de sua vida que não estão presentes no recorte apresentado. A imageité do espetáculo é reforçada pelos constantes deslizes do autor, que hora parece contar trechos futuros da peça e hora parece se esquecer do texto. Tais ações reforçam
uma aproximação às obras que remetem à história oral e que lidam com a memória pessoal para constituir a Estória. Autobiografia Autorizada é atravessada por um sentimento de ingenuidade, um traço do momento retratado da vida de Paulo Betti: a infância. Encontro em tal Atração a Dominante deste espetáculo. “Desmedida”, espetáculo premiado pelo edital ProACSP foi produzido pelo Coletivo Cê na cidade de VotorantimSP. O processo da peça diz muito sobre a história do próprio grupo realizador. Suas instalações envolvem um processo de ocupação consentida de uma sede de associação de moradores do bairro da Chave que estava desativada e abandonada. O grupo restaurou o espaço e lá passou a fazer eventos performativos e instalativos que iam para o universo da Música, do Teatro, das Artes Visuais e para a Cultura Popular da região. Em “Desmedida” o esforço envolveu o resgate da história do bairro onde estavam instalados. Tratase de um conjunto habitacional construído pela Fábrica de Cimento Votorantim que recebeu imigrantes para o trabalho na fábrica. Após sua construção, a vila era administrada e policiada pela Indústria, sendo o principal núcleo urbano da futura cidade de Votorantim emancipada de Sorocaba: financiada pela Fábrica em busca de menores tributações. Dezesseis atores e quatro músicos lideravam a apresentação, que envolvia uma viagem por décadas e uma caminhada de um quilômetro pelo bairro pelas ruas, casas de moradores e instalações abandonadas como terrenos baldios e a linha de trem. A quebra da quarta parede foi a principal atração utilizada pelo grupo para proporcionar uma imersão no universo histórico proposto. Aproximaramse da noção de espectATOR de Augusto Boal e então cabia ao público circular pelos cenários, performar perante as personagens e vivenciar situações propostas. A peça começava com um agendamento perante as vagas limitadas. Via a rede social Facebook, o candidato a espectador deveria conversar com um perfil de uma personagem e assim agendar a sua “viagem”. Ao chegar ao local marcado, sem atrasos como a personagem virtual enfatizara, o primeiro choque envolvia uma fila por onde se esperava ser chamado pelo nome. Um a um, adentravase a um escritório onde se era recebido como em um porto, como um imigrante recém desembarcado em terras tupiniquins. Lá se informava ao burocrata o nome do navio que o transportara, a região de origem e algumas outras informações. Recebiase um número que deveria ser guardado e uma grande carimbada nas mãos. Só então o espectador estaria livre para partir para o próximo cenário e a fila lá fora andava: iase a uma grande hospedaria
onde se compartilhava camas com outros espectadores. Havia interação com os donos da hospedaria e os hóspedes podiam então conversar, geralmente sobre o nível imersivo que a peça proporcionara até então: ali só haviam atores! Da hospedaria os espectadores embarcavam em um trem de papel até sua nova moradia: Votorantim. Pela linha de trem já se via no horizonte as pequenas casas geminadas, por onde caminhavam grandes “bonecos de Olinda” que retratavam monstruosos policiais. A partir daí um cortejo pelas ruas presenciava dramas de personagens históricos como funcionários demitidos por gravidez, mortes em chão de fábrica, insalubridade em condições de trabalho, repressão à atividade sindical etc. Lembro de a população atual do bairro acompanhar as apresentações com muita assiduidade. O grupo até incorporou as crianças do bairro à dinâmica das apresentações tamanho era a persistência com que interferiam nas cenas. Munidos de refletores e fantástica cenografia móvel, víamos os atores pelos telhados, pelas janelas e salas. Foi memorável ver uma cena se desenrolar no interior de uma casa onde o morador continuou sentado em seu sofá a assistir o Domingão do Faustão como se nada acontecesse. O encerramento da peça ocorria na Atualidade, com representações recentes da população, como o churrasco na laje e o funk. Antes de voltar à sede do grupo, uma cena se desenrolou no meio de um baile de forró que ocorre no bairro. Por fim, encontramos uma personagem que representa uma exmoradora do bairro que tenta enriquecer ao vender livros onde conta sua versão da história do Bairro da Chave. Na última cen,a uma índia se banha nua na cachoeira, onde é capturada por um Europeu vestido à moda do quintecentto. Ele cobre sua nudez enquanto ela grita em desespero. A peça se configura como um grande mapa onde se evoca as ações envoltas ao tempo sobre o espaço. Pisamos no solo que fora o palco daquelas narrativas. Com Desmedida, o Coletivo Cê se aproveita da proposição vanguardista de tornar a vida em arte e, para além de um processo de espetacularização do cotidiano que só poderia ser averiguado em uma nova incursão pela população local, “Desmedida” torna o Público a atração principal. Já “projeto brasil” se propõe uma obra mutante. Provavelmente em uma próxima temporada os espectadores não tenham acesso à configuração narrativa a que assisti. Após viajarem por três anos por todas as regiões do Brasil em busca de sua essência, o grupo estreou uma obra rizomática a la Goddard. Três atores, um músico, caixas de som e uma tela.
Temas como o Amor, a Comunicação e a Violência são trabalhados em pequenos atos que bebem da técnica de sketch e performance para construir um esforço pela comunicação: a atração dominante como esse falar que dói, que cobra um esforço tremendo, ainda mais quando se foge das formas hegemônicas que fingem clareza e concisão: discursar gera dor. Ouvimos um discurso de uma ministra francesa que defende a adoção infantil por casais homossexuais; assistimos a pequenas entrevistas onde uma população diversa apresenta falas também diversas; um dos autores apresenta um discurso em meio à gagueira; os atores se lançam à plateia e beijam a todos de língua na boca; um ator estupra uma atriz enquanto uma terceira os tacas ovos que estouram pretos em um fundo branco lembro de apenas o último acertar seu alvo: exatamente no lado esquerdo do peito da estuprada. As três peças lidam com o tempo passado: Paulo Betti resgata suas memórias e através de uma narrativa de herói apresenta um espaço em um tempo que perpassa uma subjetividade individual; o Coletivo Cê se aproxima de uma visita guiada a um museu, onde uma narrativa perpassa as diferentes instalações e performances com o deslocamento como um conceito central aproximase das representações coletivas sugeridas pelo cinema soviético do começo do século XX; a Cia Brasileira de Teatro se aproxima do zapping ou de um “rolar” de páginas pelo Facebook, algo próximo de “Um Dia na Vida” de Eduardo Coutinho, onde a colagem de discursos quase aleatórios acaba por tecer um retrato de um devir regional. As três obras são proposições sobre a representação da coletividade. Os meios e os fins diferenciam os projetos. Eisenstein disse que na montagem de atrações “o próprio espectador passa a constituir o material básico do teatro.” (EISENSTEIN, 1983, p. 189) Nestes três casos, para além da construção da trama, o próprio corpo dos espectadores acaba por influenciar na imersão ao espetáculo . CONCLUSÃO O sentimento de ter “forçado a barra” é inevitável, embora o articular das quatro noções tenham deixado um sentimento de que certo estruturalismo permeia todas as correntes de onde vem estes autores correspondentes. Agradeço a oportunidade de poder pensar um pouco mais sobre estes termos e não tenho dúvidas de que, como essa, outras imersões gerarão aprofundamentos importantes dentro de esses conceitos que hora parecem esquecidos, hora parecem supervalorizados.
BIBLIOGRAFIA ADAMS, Douglas. “ATÉ MAIS, E OBRIGADO PELOS PEIXES!”. Tradução de Marcia Heloisa Amarante Gonçalves. Rio de Janeiro, RJ: Sextante, 2009. AGAMBEN, Giorgio. “O QUE É O CONTEMPORÂNEO? E OUTROS ENSAIOS”. Tradução: Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. EISENSTEIN, Serguei. “MONTAGEM DE ATRAÇÕES” in XAVIER, I. (org). “A Experiência do Cinema: antologia”. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal : Embrafilme, 1983. JAKOBSON, Roman. “O DOMINANTE”. Tradução: Fernando S. Vugman. 2014 . LIMA, WAGNER J. da C. “A INSTALAÇÃO DE VÍDEO E A MONTAGEM DE ATRAÇÕES
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. LOPES, Cassiana dos R. “O ESPAÇO CÊNICO COMO ELEMENTO POLÍTICO NA PEÇA BR3
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. PARENTE, André. Cinemáticos: tendências do cinema de artista no Brasil. Rio de Janeiro: +2 Editora, 2013. RANCIÈRE, Jacques. “O DESTINO DAS IMAGENS”. Tradução: Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2012. PEÇAS DE TEATRO “AUTOBIOGRAFIA AUTORIZADA”. Dir: Paulo Betti e Rafael Ponzi. Prole de Adão, 2015. 90 min. “DESMEDIDA”. Dir. Julio Mello. Coletivo Cê, 2014, 150 min. “projeto brasil”. Dir. Marcio Abreu. Cia Brasileira de Teatro, 2015, 70 min. FILMES “AMAR”. Dir. Carlos Gregório. 1997, 23 min. “ATAME”. Dir Pedro Almodóvar. Miramax Filmes, 1990, 111 min. “PULP FICTION”. Dir. Quentin Tarantino. Miramax Filmes, 1995, 178 min. “UM DIA NA VIDA”. Dir. Eduardo Coutinho. 2010, 95 min.
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