Atrações Dominantes, Dispositivos de Imageité - Autobiografia Autorizada, Desmedida e projeto brasil

June 1, 2017 | Autor: Rafael Romão Silva | Categoria: Jacques Rancière, Estética, Teatro, Teatro Brasileiro
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE  INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL  DEPARTAMENTO DE CINEMA E VÍDEO  LICENCIATURA EM CINEMA E AUDIOVISUAL    ATRAÇÕES DOMINANTES, DISPOSITIVOS DE IMAGEITÉS:   Autobiografia Autorizada, Desmedida,  projeto brasil.          Senhoras e Senhores,  Sofri  epifanias  enquanto  lia  o  artigo  “Montagem  de  Atrações”  de  Serguei  Mikhailovitch  Eisenstein.  Sabe  quando  algo  toca  fundo  na  Experiência  e  te  lembra  algo  que  já sentiste?  Minhas  lembranças  foram  pescadas  por  seus  conceitos  que  passaram  a  me  habitar: já  estava  até  a pensar  em gradações das Atrações a partir de Dominantes que poderiam variar de  acordo  com  seu  poder dispersivo. Cada  Atração teria um poder de  atração e de dispersão, que  teriam  efeitos   distintos  em  momentos  distintos.  Cada  objeto  simbólico  teria  um  poder  mutante  de  sugar  a atenção do espectador e também de lembrá­lo da roupa esquecida estirada  ao  varal.  Até  refleti  que  se  há  Dominantes  então  há  Subalternas,  e  que  se  há  Atrações  há  lacunas de desatração, de “repugnação”.   Tal  empolgação  se  estremeceu  com  o  exemplo  dado  ao  fim  do  artigo  de  Eisenstein.  Senti  que  as  peças  de  teatro  a  que  eu  relacionara  o  conceito do russo nada se parecem com o  exemplificado   no   artigo  pelo  autor.  Lembrei  da  personagem  do  Prólogo  de  “Até  Mais,  e  Obrigado pelos Peixes!”:  "E,  então,  uma   quinta­feira,  quase  2000  anos depois que  um  homem  foi  pregado  num  pedaço  de  madeira  por  ter  dito  que  seria  ótimo  se  as  pessoas  fossem  legais  umas  com  as  outras  para   variar,  uma  garota,  sozinha  numa  pequena  lanchonete  em  Rickmansworth,  de  repente  compreendeu  o  que  tinha  dado  errado  todo  esse tempo e 

finalmente  descobriu  como  o  mundo  poderia  se  tornar  um  lugar  bom  e  feliz.  Desta  vez  estava  tudo  certo,  ia  funcionar,  e  ninguém  teria  que  ser  pregado  em  coisa  nenhuma.  Infelizmente,  porém,  antes  que  ela  pudesse  telefonar  para  alguém e contar sua descoberta, aconteceu  uma  catástrofe  terrível  e  idiota  e  a  ideia  perdeu­se  para  todo o sempre. (ADAMS, 2009, P. 8)"  No  caso  de  Até  Mais  e  Obrigado  Pelos  Peixes  são  os  os  extraterrestres  burocratas  Vogons  que  destroem  a  Terra  para  a  construção  de  uma  Via  de  Transporte  Intergaláctica.  Conforme  o  tempo  passou  eu  percebi  que  meu  caso  não  era  tão  trágico.  Acabei  preocupado  com  uma  certa  apropriação  dos  conceitos  que  dançariam  em  equívoco  a  um  ritmo  que  seus  autores  jamais  ouviram.  Concluí  que  o  aspecto  digressivo  sempre  fez  parte  da construção do  conhecimento  e  que  apenas  estou  lidando  com  as particularidades temporais. Assumi minhas   impressões.  Quase  a  encerrar  o  artigo  encontrei  palavras  que  completaram as Atrações que o  cineasta usou em suas peças:  “Cabe  aqui  destacar  o  termo  atração,  utilizado  pelo  cineasta Serguei Eisenstein no período de suas atividades  no  Primeiro  Teatro  do  Proletkult  e  posteriormente  na  elaboração 

de 

suas 

teorias 

da 

montagem 

cinematográfica.  Segundo  François  Albera  (2002),  o  jovem  Eisenstein,  durante  a  sua atuação como cenógrafo  e  diretor,  inova  ao  mostrar  no  espetáculo  O  Mexicano  (1921)  uma  luta  de  boxe  que   se  dava  em  pleno  proscênio,  rompendo  com  a  separação  entre  a  cena  e  o  público.  No  fim  da  peça,  fogos  de  artifício  estouravam  debaixo  das poltronas, acompanhados de ações burlescas  e  de  uma  cacofonia  musical.  Ao montar O Sábio (1923),  utilizaria  elementos  do  circo,  da  acrobacia  e introduziria  um fragmento filmado.” (LIMA, 2011, p. 509)    Este  texto,  então,  assume  um  aspecto  de  ensaio.  A  tentativa  e  o  erro  lhe  são  característicos. A sorte e a experimentação são os meios. 

Este  tempo  permitiu  que  minhas  reflexões  seguissem  dois  caminhos  que  em  algum  momento  podem  se  cruzar.  No  caso,  procuro  identificar  quais  são  as  “atrações  dominantes”  em  três  peças  de  teatro  que  muito  me  sensibilizaram  e  intrigaram:  “Autobiografia  Autorizada”  (dir.  Paulo  Betti  e  Rafael  Ponzi),  “Desmedida”  (dir.  Júlio  Mello)  e   “projeto  brasil”  (Dir.  Marcio   Abreu).  O  segundo  caminho  envolve  aproximar  esta  discussão  de   Atração  e  Dominante  a  dois  conceitos  contemporâneos  que  tem  dominado  o  mercado  editorial  de  análise  artística:  dispositivo  e  imageité.  Tenho  receios  da  “estruturalidade”  que  resultará  de  tal  ato,  implicações  que  espero  conseguir  perceber  e  investigar  a  tempo  de  não  reproduzir  “a  postura  mecanicista,  que  reconhece  a  multiplicidade  das  funções  de  um  texto  poético  e  julga  esse  texto,  intencionalmente  ou  não,  como  uma  aglomeração  mecânica  de  funções” (JAKOBSON, 2014, p. 5). Veremos.    Atração, Dominante, Imageité, Dispositivo.  Em  “Montagem  de  Atrações”,  o  Autor  Sergei  Eisenstein  discorre  sobre  um  tipo  de  montagem  teatral   que  buscaria  "elevar  o  nível   organizacional  da  vida  cotidiana  das  massas  através  da  própria  abolição  do  teatro"  (EISENSTEIN,  1983,  P.  187)  pois  "a  organização  de  oficinas  de  trabalho  e  a  elaboração  de  um  sistema  científico  para  a  elevação   deste  nível  são  tarefas imediatas da seção científica do Proletkult no campo teatral" ( ib. ​ p. 188).   Tal  sistema  partiria   do   método   do   teatro de agitprop para atingir seu objetivo, método  que  “[...]  visa  um  resultado  concreto,  mensurável  por  sua  eficácia  política,  não  apenas  no  nível  da  mobilização  conseguida  para   esta  ou  aquela  campanha  em particular,  mas  no engajamento  mais amplo, que extrapola a relação  palco­platéia  e  soma  esforços  na  construção  do  socialismo” (GARCIA ​ apud​  LOPES, 2012, p. 68).     Nisto, o conceito de atração lhe é essencial para seguir seus trabalhos.  "Atração  (do  ponto  de  vista  teatral)  é  todo  aspecto  agressivo  do  teatro,  ou  seja,  todo  elemento  que  submete  o  espectador  a   uma  ação  sensorial  ou  psicológica,  experimentalmente  verificada  e  matematicamente 

calculada,  com  o  propósito  de  nele  produzir  certos  choques  emocionais  que,  por  sua  vez,  determinem  em  seu  conjunto  precisamente  a  possibilidade  do espectador  perceber  o  aspecto  ideológico  daquilo  que  foi  exposto,  sua  conclusão  ideológica final". (EISENSTEIN, 1983, p.  189)  A  atração  é  a  Eisenstein  um  conceito  caro  dentro  de  seu  projeto   de  teatro,  específico  em  abolir  as  distinções  entre  Arte,  Vida  e  Trabalho.  Seu  significado  é  construído  com  a  oposição  que  o  autor  estabelece  a truque. "O truque  (...) significa algo absoluto e acabado em  si,  diametralmente  oposto  à  atração,  que  se  baseia  exclusivamente  na  relação,  ou  seja,  na  reação do espectador" (ibid. p. 191.).   Enfim,  Eisenstein  me  enchia  de  esperanças  e  exemplos  enquanto   me  confirmava  a  noção de atração.   "Uma  abordagem  autenticamente  nova  que  altera  de  forma  radical  a  possibilidade  dos  princípios  de  construção  da  "estrutura  ativa"  (o  espetáculo   em  sua  totalidade);  em  lugar  do  "reflexo"  estático   de  um  determinado  fato  que  é  exigido  pelo  tema e cuja solução  é  admitida  unicamente  por  meio  de  ações,  logicamente  relacionadas  a  um   tal  acontecimento,  um  novo  procedimento  é  proposto:  a   montagem  livre  de  ações  (atrações)  arbitrariamente  escolhidas  e  independentes  (também  exteriores  à  composição  e  ao  enredo  vivido  pelos  atores),  porém  com  o  objetivo  preciso  de  atingir  um  certo  efeito  temático  final.  É  isso  a  montagem  de  atrações". (ibid. p. 191)      De  alguma  forma  sua  discussão  se  contrapõe  à  narrativa  aristotélica  e  o  truque  pode  ser  uma  metáfora  associada  a  esta  mas  o  conceito  de  Dominante   amplia  o  escopo  de  discussão,  termo  de  Samuel  Jakobson  que  exerceu  sua  dominância  sobre  o  pensamento  Construtivista. 

  “O  dominante  pode  ser  definido  como  o  componente  focal  de  uma  obra  de  arte:  ele  regula,  determina  e  transforma  os  demais  componentes.  É  o  dominante  que  garante  a  integridade  da  estrutura.  O  dominante  especifica  o  trabalho.  (...)  Podemos  buscar  um  dominante  não  apenas  no  trabalho  poético  de  um  artista  individual  –  e  não  somente   no   cânone  poético,  o  conjunto  de  normas  de  uma  dada  escola  poética  –  mas  também  na  arte  de  uma  determinada  época,  vista  como  um todo particular.” (JAKOBSON, 2014, p. 3)    http://www.socine.org.br/rebeca/pdf/TRADUCOES_2_Roman%20Jakobson_final.pdf    Já  Imageité  é  um  termo  apresentado  por  Jacques  Rancière.   O francês afirma que uma  inúmera  diversidade  se   abriga sobre o mesmo guarda­chuva, o da  Imagem. “Não haveria, sob  o  mesmo  nome  de  imagem,  diversas  funções cujo ajuste problemático constitui precisamente  o  trabalho  da  arte?”  (RANCIÈRE,  2012,  P.  9)  Ele  resume  este  processo  a  um  jogo  das  imagens:  “O  que  difere  são  as  performances  dentro  da  tela,  as  ‘naturezas  intrínsecas  das  imagens’”.  (​ ibid​ ,  p.  11)  Pergunto­me  se  difeririam,  então,  nas  atrações  e  dominantes,  o  que  implica haver atrações sib qualquer imageité.  Ao  citar  um  filme  de  Bresson,  Au  Hazard  Balthazar,  Rancière  cita  a  fragmentação  operada  pela  décupagem  neste  projeto:  um  encadeamento  distinto  da  narrativa,  que  não  a  compromete  apenas   em  relação  a  um  canônico,  mas  sintetiza  a  ação  a  seus  gestos  mínimos.  Sob  minha  hipótese  essa  sequência  montada  sob  o paradigma Clássico apresentaria um outro   regime embora sobre o mesmo texto: com Atrações e Dominantes distintas.  Até  pensei  em  outras  digressões  que  impulsionariam  a  discussão.  Em  alguns  processos  de  realização  fílmica  o  documento  mais  importante  é  o  roteiro.  Para  outros  é  o  storyboard.  Tal  privilégio  distinto  pode  gerar  dois  resultados:  um  são  os filmes que possuem  uma  visualidade  extremamente  “desimportante”  enquanto  a  atuação  e  as  falas  se  tornam  protagonistas;  outro  são  os  que  se  importam  definitivamente  com  a  visualidade  e  criam com  esta  camada  novas  possibilidades  de  significação.  Exemplo:  um  diálogo  qualquer  pode  se 

desenrolar  com  qualquer  production  design,  inclusive  em  um  palco  escuro  com  um  único  spotlight.  Pegue  as  mesmas  falas  e  coloque  os  atores  em  frente  a  espelhos.  O simples objeto  que  agora  compõe  a  visualidade  gera  uma  nova  camada  informativa  e  aspectos  como  narcisismo  podem  ser  incorporados  à  trama.  Enquanto  assistia  a  “Pulp  Fiction”,  um  amigo  me  perguntou: “Por quê sempre  tem  um espelho em cena”. Tal é exatamente a diferença entre  “Amor”  e  “Ata­me”:  ambos  possuem  textos  ácidos,  atuações  arquetípicas   e  próximas  do  drama  televisivo;  o  primeiro  apenas  coloca  atores  em  frente a câmera enquanto o segundo os  coloca  em  frente  a  espelhos  caleidoscópios,  de  ponta  cabeça,  de  frente  a  portas que parecem  obras  De  Stijl.  “Amor”  se  passar  em  um  Teatro  e  o  “Ata­me”  em  um  Set  de  Filmagem  são  meras coincidências.   O  “pulo do gato” de Rancière ocorre quando deixa pistas para aproximar a imagem da  palavra ao afirmar que “A imagem não é uma exclusividade do visível” (​ ibid, ​ p. 16).  “Resumindo  a  ação  ao  encadeamento de percepções e de  movimentos, e curto­circuitando a  explicação das razões,  o  cinema  bressoniano  não  realiza  uma  essência  própria  do  cinema.  Ele   se  inscreve  na  continuidade  da  tradição   romanesca  iniciada  por  Flaubert;  a  de uma ambivalência  em  que  os  mesmos  procedimentos   produzem  e  retiram  sentido,  asseguram  e  desfazem  a  ligação  de  percepções,  ações  e  afetos  (...)  o  poder  de  antecipar  um  efeito   para  melhor deslocá­lo ou contradizê­lo. (​ ibid, ​ P. 14).  Ao  complexificar  o  termo  imagem,  o  que  abre  acepções  em  torno  da  “imagem  mental”,  do  “imaginário”  e  da  “imaginação”,  JR  evidencia   que  há  procedimentos  próprios  a  cada  obra mas  que eles  se relacionam dentro de uma quebra de suporte: um mesmo regime de  imageité  pode  ser  atingido  por  uma  pintura,  uma  instalação,  uma  música,  um  poema.  As  fronteira  se  borram  e  passa  a  existir  palavra  na  imagem,  ritmo  na  palavra,  imagem  no  som.  Poderia  haver  equivalências  entre o teatro revolucionário russo e, por exemplo, algum tipo de  performance contemporânea.  Por  fim  adiciono  um  último  conceito  que  adiciona  literalmente  novas  camadas  discursivas  à  discussão.  Até  então  os   exemplos  dados  utilizam  de  formas  diegéticas  para  decompor  os  espetáculos  ­ para se diferenciar de uma forma reacionária no casso russo e para  evidenciar a própria diversidade no caso francês.  

Já  o  conceito  de  dispositivo  amplia  o  escopo  da  discussão,  ainda  mais  quando  vinculado  a  uma  noção  de  “experiência”.  O  filósofo  italiano  Giorgio  Agamben  empreende  uma  busca  pelo  conceito  que  o  remete  aos  padres  da  Idade  Média,  Hegel  e  Foucault.  Assim  ele o resume:   “a.  É  um  conjunto  heterogêneo,  linguístico  e  não­linguístico,  que  inclui  virtualmente  qualquer  coisa  no  mesmo  título:  discursos,  instituições,  edifícios,  leis,  medidas  de  polícia,  proposições  filosóficas  etc.  O  dispositivo  em  si  mesmo  é a rede que  se estabelece entre  esses elementos.  b.  o  dispositivo  tem  sempre  uma  função   estratégica  concreta e se inscreve sempre numa relação de poder.  c.  Como  tal,  resulta  no  cruzamento  de  relações  de poder  e de relações de saber.”  (AGAMBEN, 2009, p. 29)  Agamben  aponta este conceito como central no pensamento de  Foucault  dentro de  sua  linha  que busca compreender as tecnologias de governabilidade. Para Giorgio tal discussão se  assenta  na  discussão  de  Hegel  entre  natureza  e  positividade,  que   contrapõe  uma  inclinação  transcedental à coerção pela história.   O  esteta  André  Parente  apresenta  uma  aplicação  interessante  deste  conceito  quando  aborda  principalmente  as  vídeo­instalações.  O  autor  evidencia  a  importância  destes  outros  elementos discursivos na constituição da obra, este “dito e não dito” como Agamben aponta.   Complexificada  pela noção de Dispositivo, a Imageité também depende, por exemplo,  da  pedagogia  dos  corpos  imbricada  na  obra,  das  formas  arquitetônicas  relacionadas  e  tudo  o  mais  que  compete   ao  complexo  espetacular:  do  quê  o  ator  comeu  até  os  acontecimentos  jornalísticos  do  dia.  Ele  complementa a discussão sobre Atração que propus na Introdução. O  dispositivo  evidencia  o  próprio  espaço,  os  espectadores  e  suas  funções  sugeridas  pelo   espetáculo  como  Atrações  distintas.  Atrações,  Dominantes  e  Imageités  surgem  então  como  conceitos  operativos  que  buscam  re­estruturar  os  espetáculos  enquanto  obras  singulares.  Eisenstein  me  contradiz  ao  chamar  por  Atração  algo  que  só  se  constituiria  no  corpo­a­corpo  com  o  espectador,  o  que  aproxima  o  conceito  do  russo  à  noção  de  dispositivo.  Tal  a   imbricada  relação  que  acabei  por  tecer:  Eisenstein  já  apontava  a  amplitude  do  espetáculo  enquanto  Jakobson  e  Rancière  se  vinculam  em  demasiado  com  estes  conceitos  à  noções 

estruturais,  embora  o  deste   último  esteja  mais  vinculado  a  resultados  dialéticos  similares  do  que a partes decompostas.     A Profanação do dispositivo.  As peças  “Autobiografia  Autorizada”  é  um  monólogo  roteirizado  e  dirigido  pelo  ator  e  diretor  Paulo  Betti  em  2014.  O  texto  foi  criado  a   partir  de  história  oral  do  próprio  e  de  materiais  registrados  em  diários pessoais também próprios.  A narrativa se inicia na década de 1930, em  sítios  do  interior  paulista  onde  sua  família  de  imigrantes  italianos  sobreviviam  no  corte  de  cana  e  com  um  bar de beira de estrada, e se encerra na década de 1980, onde  Paulo parte para  a  capital  paulista   em  busca  do  Teatro.  Tal  trajetória  é  permeada  pelas  afetividades  e  excentricidades   caipiras  de  seus  parentes,  o  contato  com  instituições  como  a  Cidade,  a  Escola,  a  Fábrica  e  o  Manicômio  e  os  primeiros  contatos  com  os  meios  de  comunicação  e  Artes.   Tal  espetáculo,  portanto,  constitui­se  de  1.  um  ator  de  fama  internacional,  graças  às  dezenas  de  participações  em  novelas  da  Rede  Globo  e  também  múltiplas  incursões  pelo  Cinema  e  Teatro;  2.  este  ator  apresenta  seu  universo  infantil  nada  glamouroso  (como,  por  exemplo,  sua  avó  que  urinava  em  espaços  públicos  a todo momento). As relações entre 1 e 2  permitem  um  discurso  calcado  na  meritocracia,  onde  o  que  move  o  espectador  é  contrastar  seu  imaginário  em  torno  de  um   ator  “Global”  e  de  “Cinema”  com  uma  infância  à  beira  da  miséria,  com  problemas  familiares  que  beiram  o  insuportável  (como  seu  pai  esquizo).  Tal  configuração   espetacular  toca  um  sentimento  particularmente  alimentado  pelo  Liberalismo,  onde  teoricamente  não  importa  as  condições  dadas:  a  força  de  vontade  e  comprometimento  com  o  trabalho  do agente o farão ascender economicamente e suceder dentro do Sistema. São  os  pequenos  casos  de  sucesso  que  criam  sentimentos  de  Esperança  e  motivação  no  espectador.  Um  ponto  de  vista  marxista  pode  indicar  neste  complexo  certa  mitigação  de  informações  que  não  desvendam  a  Realidade  Social  em  suas  questões  materiais,  que  provavelmente  estão  presentantes  na  “Biografia  não  autorizada”  pelo  Autor:  trechos  de  sua  vida que não estão presentes no recorte apresentado.  A  imageité  do  espetáculo  é  reforçada  pelos  constantes  deslizes  do  autor,  que  hora  parece  contar  trechos  futuros  da peça e hora parece se esquecer do texto. Tais ações reforçam 

uma  aproximação  às   obras  que  remetem  à  história  oral  e  que  lidam  com  a  memória  pessoal  para constituir a Estória.    Autobiografia  Autorizada  é  atravessada  por  um sentimento de ingenuidade, um traço  do  momento  retratado  da  vida  de  Paulo  Betti:  a  infância.  Encontro  em  tal  Atração  a  Dominante deste espetáculo.  “Desmedida”,  espetáculo  premiado  pelo edital ProAC­SP foi produzido pelo Coletivo  Cê  na  cidade  de  Votorantim­SP.  O  processo  da  peça  diz  muito  sobre  a  história  do  próprio  grupo  realizador.  Suas   instalações  envolvem  um  processo  de  ocupação  consentida  de  uma  sede  de associação de moradores do bairro da Chave ­ que estava desativada e abandonada. O  grupo  restaurou  o  espaço  e  lá  passou  a  fazer  eventos  performativos  e  instalativos  que  iam  para  o  universo  da  Música,  do  Teatro,  das  Artes  Visuais  e  para  a  Cultura  Popular  da  região.  Em  “Desmedida”  o  esforço  envolveu  o resgate da história do bairro onde estavam instalados.  Trata­se  de   um  conjunto  habitacional  construído  pela  Fábrica  de  Cimento   Votorantim  que  recebeu  imigrantes  para  o  trabalho  na  fábrica.  Após   sua construção, a vila era administrada e   policiada  pela  Indústria,  sendo  o  principal  núcleo  urbano  da  futura  cidade  de  Votorantim  ­  emancipada  de   Sorocaba:  financiada  pela  Fábrica  em  busca  de  menores  tributações.  Dezesseis  atores  e  quatro  músicos  lideravam  a  apresentação,  que  envolvia  uma  viagem  por  décadas  e  uma  caminhada  de  um  quilômetro  pelo  bairro  ­  pelas  ruas,  casas  de  moradores  e  instalações abandonadas como terrenos baldios e a linha de trem.   A  quebra  da  quarta  parede  foi  a  principal  atração  utilizada  pelo  grupo  para  proporcionar  uma  imersão  no  universo  histórico  proposto.  Aproximaram­se  da  noção  de  espectATOR  de  Augusto  Boal  e  então  cabia  ao  público  circular  pelos  cenários,  performar  perante  as  personagens  e  vivenciar  situações  propostas.  A  peça  começava  com  um  agendamento  perante  as  vagas  limitadas.  Via  a  rede  social  Facebook,  o  candidato  a  espectador  deveria  conversar  com  um  perfil  de  uma  personagem  e  assim  agendar  a  sua  “viagem”.  Ao  chegar  ao  local  marcado,  sem  atrasos  como   a personagem virtual enfatizara, o  primeiro  choque  envolvia  uma  fila  por  onde  se  esperava  ser  chamado  pelo  nome.  Um  a  um,  adentrava­se  a  um  escritório  onde  se  era  recebido  como  em  um  porto,  como  um  imigrante  recém  desembarcado  em  terras  tupiniquins.  Lá  se  informava  ao  burocrata  o  nome  do  navio  que  o  transportara,   a  região  de  origem  e  algumas outras informações. Recebia­se um número  que  deveria  ser  guardado  e  uma  grande  carimbada  nas   mãos.  Só  então  o  espectador  estaria  livre  para  partir   para  o  próximo cenário e a fila lá fora andava: ia­se a uma grande hospedaria 

onde  se  compartilhava  camas  com  outros  espectadores.  Havia  interação  com  os  donos  da  hospedaria  e  os  hóspedes  podiam  então  conversar,  geralmente  sobre  o  nível  imersivo  que  a  peça proporcionara até então: ali só haviam atores!  Da  hospedaria  os  espectadores  embarcavam  em  um  trem  de  papel  até  sua  nova  moradia:  Votorantim.  Pela  linha  de  trem  já  se via no horizonte as pequenas casas geminadas,  por onde caminhavam grandes “bonecos de Olinda” que retratavam monstruosos policiais.  A  partir daí um cortejo pelas  ruas presenciava dramas de personagens históricos como  funcionários  demitidos  por  gravidez,  mortes  em  chão  de fábrica, insalubridade  em condições  de  trabalho,  repressão  à  atividade  sindical  etc.  Lembro  de  a  população  atual  do  bairro  acompanhar  as   apresentações  com  muita  assiduidade.  O  grupo  até   incorporou  as  crianças do  bairro  à  dinâmica  das  apresentações  tamanho  era  a  persistência  com  que  interferiam  nas  cenas.  Munidos  de  refletores  e  fantástica  cenografia  móvel,  víamos  os  atores  pelos  telhados,  pelas  janelas  e  salas.  Foi memorável ver uma cena se desenrolar no interior de uma casa onde  o  morador  continuou  sentado  em  seu  sofá  a  assistir  o  Domingão  do  Faustão  como  se  nada  acontecesse.   O  encerramento  da  peça  ocorria  na  Atualidade,  com  representações  recentes  da  população,  como  o  churrasco  na  laje  e  o  funk.  Antes  de  voltar  à  sede  do grupo, uma cena se  desenrolou  no  meio  de  um  baile  de  forró  que  ocorre  no  bairro.  Por  fim,  encontramos  uma  personagem  que  representa  uma  ex­moradora  do  bairro  que tenta enriquecer ao vender livros  onde  conta  sua  versão  da  história  do  Bairro  da  Chave.  Na  última  cen,a  uma  índia  se  banha  nua  na  cachoeira,  onde  é  capturada  por  um  Europeu  vestido  à  moda  do  quintecentto.  Ele  cobre sua nudez enquanto ela grita em desespero.   A  peça  se  configura  como  um  grande mapa onde se evoca as ações envoltas ao tempo  sobre  o  espaço.  Pisamos  no  solo  que  fora  o  palco  daquelas  narrativas.  Com  Desmedida,  o  Coletivo  Cê  se  aproveita  da  proposição  vanguardista  de  tornar a vida em arte e, para além de  um  processo  de  espetacularização  do  cotidiano  que  só  poderia  ser  averiguado  em  uma  nova  incursão pela população local, “Desmedida” torna o Público a atração principal.  Já  “projeto  brasil”  se  propõe  uma  obra  mutante.  Provavelmente  em  uma  próxima  temporada  os  espectadores  não  tenham  acesso  à  configuração  narrativa  a  que  assisti.  Após  viajarem  por  três  anos  por  todas  as  regiões  do  Brasil  em  busca  de  sua  essência,  o  grupo  estreou uma obra rizomática a la Goddard. Três atores, um músico, caixas de som e uma tela.  

Temas  como o Amor, a Comunicação e a Violência são trabalhados em pequenos atos  que  bebem da técnica de sketch e performance para construir um esforço pela comunicação:  a  atração  dominante  como  esse  falar  que  dói,  que  cobra  um  esforço  tremendo,  ainda  mais  quando se foge das formas hegemônicas que fingem clareza e concisão: discursar gera dor.   Ouvimos  um  discurso  de  uma  ministra  francesa  que  defende  a  adoção  infantil  por   casais  homossexuais;  assistimos  a  pequenas  entrevistas  onde  uma  população  diversa  apresenta  falas  também  diversas;  um  dos  autores  apresenta  um  discurso em meio à gagueira;  os  atores  se  lançam  à plateia e beijam a todos ­ de língua ­ na boca; um ator estupra uma atriz  enquanto  uma  terceira  os  tacas  ovos  que  estouram  pretos  em  um  fundo  branco  ­  lembro  de  apenas o último acertar seu alvo: exatamente no lado esquerdo do peito da estuprada.   As  três  peças  lidam  com  o  tempo  passado:  Paulo  Betti  resgata  suas  memórias  e  através  de  uma  narrativa  de  herói  apresenta  um  espaço  em  um  tempo  que  perpassa  uma  subjetividade  individual;  o  Coletivo  Cê  se  aproxima  de  uma  visita  guiada  a  um museu, onde  uma  narrativa  perpassa  as  diferentes  instalações  e  performances  com  o  deslocamento  como  um  conceito  central  ­  aproxima­se  das  representações  coletivas  sugeridas  pelo  cinema  soviético  do  começo   do   século  XX;  a  Cia  Brasileira  de Teatro se aproxima do zapping ou de  um  “rolar”  de  páginas  pelo  Facebook,  algo  próximo  de  “Um  Dia  na  Vida”  de  Eduardo  Coutinho,  onde  a  colagem  de  discursos  quase  aleatórios  acaba  por  tecer  um   retrato  de  um  devir regional.  As  três  obras  são  proposições  sobre  a  representação  da  coletividade.  Os  meios  e  os  fins  diferenciam  os  projetos.  Eisenstein  disse  que  na  montagem  de  atrações  “o  próprio  espectador  passa  a  constituir  o  material  básico  do  teatro.”  (EISENSTEIN,  1983,  p.  189)  Nestes  três  casos,  para  além  da  construção  da  trama,  o  próprio corpo  dos espectadores acaba  por influenciar na imersão ao espetáculo .    CONCLUSÃO  O  sentimento  de  ter  “forçado  a  barra”  é  inevitável,  embora  o  articular  das  quatro  noções  tenham deixado um sentimento de que certo estruturalismo permeia todas as correntes  de  onde  vem  estes  autores  correspondentes.  Agradeço  a  oportunidade  de  poder  pensar  um  pouco  mais  sobre  estes  termos  e  não  tenho  dúvidas  de  que,  como  essa,  outras  imersões  gerarão  aprofundamentos  importantes  dentro  de  esses  conceitos  que  hora  parecem  esquecidos, hora parecem supervalorizados. 

BIBLIOGRAFIA  ADAMS,  Douglas.  “ATÉ  MAIS,  E  OBRIGADO  PELOS  PEIXES!”.  Tradução   de  Marcia  Heloisa Amarante Gonçalves. Rio de Janeiro, RJ: Sextante, 2009.  AGAMBEN,  Giorgio.  “O  QUE  É  O  CONTEMPORÂNEO?  E  OUTROS  ENSAIOS”.  Tradução: Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.  EISENSTEIN,  Serguei.  “MONTAGEM  DE  ATRAÇÕES”  in  XAVIER,  I.  (org).  “A  Experiência do Cinema: antologia”. Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal : Embrafilme, 1983.  JAKOBSON,  Roman.  “O  DOMINANTE”.  Tradução:  Fernando  S.  Vugman.  2014  .  LIMA,  WAGNER  J.  da  C.  “A  INSTALAÇÃO  DE  VÍDEO  E  A  MONTAGEM  DE  ATRAÇÕES 

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UNICAMP, 

2011. 

.  LOPES, Cassiana dos R. “O ESPAÇO CÊNICO COMO ELEMENTO POLÍTICO NA PEÇA  BR­3 

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TEATRO 

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Paraná: 

2012. 

.  PARENTE,  André.  Cinemáticos:  tendências  do  cinema  de  artista  no  Brasil.  Rio  de  Janeiro:  +2 Editora, 2013.  RANCIÈRE,  Jacques.  “O  DESTINO  DAS  IMAGENS”.  Tradução:  Mônica  Costa Netto. Rio  de Janeiro, RJ: Contraponto, 2012.     PEÇAS DE TEATRO  “AUTOBIOGRAFIA  AUTORIZADA”.  Dir:  Paulo  Betti  e  Rafael  Ponzi.  Prole  de  Adão,  2015. 90 min.  “DESMEDIDA”. Dir. Julio Mello. Coletivo Cê, 2014, 150 min.  “projeto brasil”. Dir. Marcio Abreu. Cia Brasileira de Teatro, 2015, 70 min.    FILMES  “AMAR”. Dir. Carlos Gregório. 1997, 23 min.  “ATA­ME”. Dir Pedro Almodóvar. Miramax Filmes, 1990, 111 min.  “PULP FICTION”. Dir. Quentin Tarantino. Miramax Filmes, 1995, 178 min.  “UM DIA NA VIDA”. Dir. Eduardo Coutinho. 2010, 95 min. 

         

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