Atrás do Prejuízo - Notas sobre a necessidade de os aportes criminológico-críticos se vivificarem no cotidiano processual-penal brasileiro

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Denival Francisco da Silva Tiago Felipe de Oliveira Alexandre Bizzotto (Organizadores)

QUOTIDIANUS: a criminalização nossa de cada dia Denival Francisco da Silva • Tiago Felipe de Oliveira • Alexandre Bizzotto • Airto Chaves Júnior • /HRQDUGR&RVWDGH3DXODȏ*DEULHO$QWLQROȴ'LYDQȏ 7KLDJR$JXLDUGH3£GXDȏ-H΍HUVRQ&DU¼V*XHGHVȏ James E. Robertson • Danilo Vasconcelos

IV ATRÁS DO PREJUÍZO – NOTAS SOBRE A NECESSIDADE DE OS APORTES CRIMINOLÓGICO-CRÍTICOS SE VIVIFICAREM NO COTIDIANO PROCESSUAL-PENAL BRASILEIRO Gabriel Antinolfi Divan1

Sumário: ΖQWURGX©¥RȂȊrespeitável públicoȋ-XVWL©D3HQDO seletividade e contribuições para o status quo&ULPLQRORJLD FU¯WLFD H3URFHVVRDQHFHVVLGDGHGDLQWHUVHF©¥R&RQFOXV¥R 5. Referências

Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto Só desafeto, vida de inseto, imundo Indenização? Fama de vagabundo Nação sem teto, Angola, ketu, Congo, Soweto A cor de Eto’o, maioria nos gueto Monstro sequestro, capta três, rapta Violência se adapta, Um dia ela volta pro’cêis Tipo campos de concentração, Prantos em vão

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Doutor em Ciências Criminais (PUCRS). Professor do Mestrado em Direito da Universidade de Passo Fundo-RS. Líder do Grupo de Pesquisa “Reclame as Ruas: direito Política e sociedade”. Advogado.

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Quis vida digna, estigma, indignação O trabalho liberta, ou não? Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu? Extinção Por mais que você corra irmão Pra sua guerra vão nem se lixar Esse é o xis da questão Já viu eles chorar pela cor do orixá? E os camburão o que são? Negreiros a retraficar Favela ainda é senzala, jão Bomba relógio prestes a estourar (Emicida – Boa Esperança)

1 INTRODUÇÃO – “... RESPEITÁVEL PÚBLICO...” De acordo com dados que – diante da volúpia estatística alimentada por uma velocidade assombrosa dos objetos da empiria em questão – já ganham lume em imediata desatualização, a população carcerária brasileira entre 2005 e 2012 obteve um crescimento de 74% (BRASIL, 2015, p. 25). As estatísticas para o ano presente de 2015, se fosse possível uma coleta imaginária, imediata, de dados (tal qual um download simultâneo à rodagem do arquivo), devem ser maiores: em crescimento demográfico prisional, muito provavelmente, uma vez que os números de 2012 em relação à quantidade bruta de pessoas encarceradas já superaram aqueles quase quinhentos e dezesseis mil apresentados no mapeamento da Secretaria Geral da Presidência da República. Um novo levantamento, exibido no Anuário Brasileiro de Segurança Pública – publicado recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2015, p. 62) – revelou que dados relativos a 2014 apontam para um número de seiscentos e sete mil, trezentos e setenta e três pessoas presas no país (entre clientela efetiva dos estabelecimentos do sistema carcerário e pessoas custodiadas pela polícia). Dados de várias edições do Anuário servem para o panorama se tornar mais sombrio à medida em que a leitura avança: na edição aqui referida (p. 6) o número oficial de mortes decorrentes de intervenções letais da polícia é o equivalente a 5% do número de mortes intencionais regis-

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tradas no país (o que, isoladamente, pareceria numericamente pouco, até nos depararmos com o complemento do dado, onde o número de mortes causadas por intervenções letais da polícia – lato sensu – chega a ser 46,6% superior à quantidade de mortes por latrocínio no mesmo período). Estatisticamente, a polícia, ela própria, causa mais mortes que uma das infrações mais abstratamente vis previstas na legislação penal (o roubo qualificado pelo resultado morte, previsto no Artigo 157, parágrafo 3o do Código Penal Brasileiro – um crime, aliás, que afeta a vida como espécie de brinde ou acessório para a violação do bem jurídico patrimonial ali protegido). Edições anteriores do Anuário possibilitaram que se extraísse das mesmas a sinistra quantia de seis pessoas mortas por dia em intervenções policiais – ou a morte de uma a cada cem mil pessoas no ano de 2013, como decorrência de ações diretas dos agentes da(s) polícia(s) (MENA, 2015, p. 20). Falando sobre uma realidade onde as políticas públicas e sobretudo criminais são geralmente orientadas pelo populismo calcado em slogans e onde os dados técnicos e estudos nessas temáticas são tratados com escárnio e/ou desprezo pelos legisladores e agentes executivos, algumas contradições não admiram, infelizmente: ignorando solenemente a vulgaridade do trânsito por práticas criminosas e homicidas de uma boa parte dos agentes policiais (MENA, 2015, p. 19-20) o montante populacional pesquisado pelo Anuário mostra uma leve maioria de pessoas que adere ao mote do “bandido bom é bandido morto” (pp. 108-111), bordão que, se levado em conta a título de reverberação em termos de opinião pública certamente (poder-se-ia imaginar) atingiria números e reflexos (inclusive legislativos) maiores. Comentando dados escorados no próprio Anuário (sumamente no gráfico apresentado em p. 128 – que mostra que em termos de adolescentes envolvidos em investigações de homicídios, os mesmos são autores das infrações em apenas 10,4% dos casos, sendo vítimas em mais de 89% deles), Azevedo (2015, p. 124-127) mostra como o discurso da ‘impunidade’ segue calcificado no imaginário médio do brasileiro que busca conforto na ideia de que o ajuste mecânico-quantitativo da previsão abstrata de recrudescimento da lei (no caso exemplificado, a Proposta de Emenda Constitucional n. 171/1993, que visa a redução

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da maioridade para fins de responsabilização punitiva do cidadão) é a solução-reação automática para o problema. Contra levantamentos de dados e pesquisas, o imaginário policialesco e sensacionalista não falha, jamais, se caracterizando, aqui, um embate que já nasce sem qualquer perspectiva fora do previsível: os números que atentam para uma progressão estúpida da população carcerária combinados com sequer a estagnação, e, sim, o aumento da quantidade de crimes violentos (um exemplo) não parece dizer nada para muitos, sobre o quanto essa solução soluciona de fato. O grito (de guerra) ostentado busca maior punitividade, maior inchaço, maior encarceramento e sequer trata de respirar em meio à vociferação e se dar conta de que já estamos beirando todos os recordes mundiais no quesito, sem que se tenha – em breve – qualquer sistema, país ou ordenamento que possa servir tanto de exemplo como que de meta a ser buscada. Descontados, claro, aqueles ordenamentos (impossíveis de serem desvinculados da indigência moral de seus regimes políticos) onde a tortura (apedrejamentos, espancamentos, estupros ‘corretivos’, mutilações) e os meios insidiosos de pena de morte (decapitação, fuzilamento) seguem vigorantes – o que seria o ápice e o júbilo de uma parcela festiva da população brasileira com representatividade no Congresso Nacional, não temos qualquer dúvida. Há ainda quem diga, contudo, que hipóteses teóricas como a do “grande encarceramento” (BATISTA, 2014, p. 99-111) são (banhadas pela ‘ideologia’) aparelhos teóricos orientados e desconectados da realidade, tendentes a alarmar e inflamar os contrapontos para sustentar autofagicamente sus hipóteses. Negar o caos e as vidas ceifadas por ele ou persistir indiferentemente na cartilha caótica? Estamos diante de um quadro onde muitos optam por uma macabra mistura de ambas opções.

2 JUSTIÇA PENAL: SELETIVIDADE E CONTRIBUIÇÕES PARA O STATUS QUO Quando se procura verificar o panorama do ponto de vista da atuação da parcela judiciária do sistema jurídico-penal (DIVAN, 2015c, p. 62-63), se focalizam mais distorções e mais autismo. Em apenas uma das frentes

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que poderia ser abordada, Ferreira (2013, p. 19-34) situa um panorama histórico sobre a seletividade no sistema penal brasileiro, para deduzir (p. 52), embasada em dados qualitativos e quantitativos posteriormente dispostos ao longo da mesma obra, que é factível perceber a seletividade desvelada pela própria linguagem escancaradamente díspar no tratamento jurisdicional relativo aos crimes da baixa (mas numericamente superior) camada populacional economicamente desfavorecida em relação àquela antagonicamente alta. Em termos de um país onde, ousamos definir, think thanks conservadores de fachada supostamente calcada no liberalismo político (que fariam corar de vergonha genuínos liberais à moda de Stuart Mill) e na ‘isenção’ ideológica são arautos de uma desigualdade que “estimula” o crescimento e a competição (no papel), enquanto mal disfarçadamente mata de fome (na prática), nada de anormal: a negação frenética e oligofrênica dos quadros do desnível de classes e de todos os efeitos perversos e literalmente sangrentos que deles advém é mais do que uma estratégia ou partidarismo. É profissão de fé. É um reflexo daquilo que em outra ocasião já denominamos de “cinismo da homeostase” (Cf. DIVAN, 2015b): uma acepção de convivência na esfera pública onde qualquer possibilidade de assunção político-ideológica que vise (a) uma tomada de postura; (b) uma militância teórica e prática em relação a essa postura e, (c) uma substancialidade para a democracia, é ‘atacada’ porquanto estaria sendo ‘tendenciosa’. A homeostase é cínica no instante em que age ideologicamente barrando denúncias quanto às imperfeições (para dizer o mínimo sobre um panorama que não raramente é genocida) e escamoteando a necessidade extrema de revisões, alterações, câmbios e (sobretudo) abandonos técnicos e pragmáticos. Dados e elementos qualitativamente analisados lhes causam horror. Pesquisas e ideários assumidamente engajados lhes provocam repulsa. O mundo do faz de conta tecnocrata que assola igualmente o direito criminal e suas esferas, agências, órgãos, atores e discursos quer uma estranha e robótica tomada de decisões supostamente descoloridas de significados e de posicionamentos. Método triste para tentar obscurecer o único pensamento existente. Nesse instante, a dissimulação opera a favor do conservadorismo que, locupletando-se

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política e economicamente com o status quo ante, apregoa a necessidade de empenhos ainda maiores em relação aos fluxos perenes que nos afundam cada vez mais nos quadros descritos. Os ‘discursos oficiais’ do sistema se mesclam a esse amálgama monstruoso de liturgia oligarca, esse elitismo incensado e esse autoritarismo cool (ZAFFARONI, 2007, p. 70) que exibe ‘resultados’ pontuais quando lhe convém, prometendo resultados futuros com desleixo (novamente, os slogans), ignorando dados e realidades que não lhes dizem respeito (tal e qual é o massacre cotidiano da população supostamente matável que engrossa a densidade demográfica miserável no país). Só assim se justifica a ideia de que não haveria um estudo e uma consideração política a ser feita considerando a “ralé brasileira” (conceito comumente usado por Jessé de Souza, que ganha estudo de Alves e Garcia em relação especifica à questão criminal brasileira e à luta de classes – Cf. 2001, p. 6-8). A ‘superação’ do ‘discurso’ de luta de classes sempre se mostrou como sonho dourado de alguns mais do que como possibilidade real diante de fechada a conta com o obstáculo superado. Típico dos fanáticos homeostatas: extinguir (supostamente) um problema anulando as denúncias e manifestações em relação a ele, em busca de uma neutralidade (falsa) não só discursiva como ambiental. Como se o problema vivesse mais e em razão das denúncias de sua existência do que por uma verdadeira existência em si. Para alguns a causa da luta de classes é o discurso que a combate, então, mais uma vez, nada de anormal nesses trópicos.

3 CRIMINOLOGIA (CRÍTICA) E PROCESSO: A NECESSIDADE DA INTERSECÇÃO A problemática de se trabalhar os dogmas e a sistemática do Processo Penal (e mesmo os regramentos e considerações teóricas, políticas e filosóficas sobre o Direito Processual Penal) em meio a alicerces calcados na política criminal e relativos e referentes à criminologia (crítica) não são novos. Cite-se, por exemplo, o substancial estudo de Fernandes (2001) que situa a possibilidade de discussão de funções político-criminais para o

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processo penal. Discordando, com vênia, do autor referido, expusemos já (DIVAN, 2015c, p. 60-65) visão que procura afastar a ideia de um processo penal/direito processual como engrenagem acoplada do poder punitivo e de uma visão ‘tradicional’ de política criminal. Nossa ideia, em síntese, vem na esteira de possibilidades abertas por Roxin (2001, p. 22), quando associa às finalidades político-criminais (em sentido amplo) não só o direito penal, mas a totalidade do sistema: o processo cumpre, sim, uma finalidade e um papel político-criminais, mas que não pode ser lido à luz de um modo simplista, como se as normas, conjecturas e ritos processuais estivesse à serviço de uma mentalidade punitiva-repressiva ou como se falar em política criminal, aqui, significasse discutir apenas criminalização/descriminalização. Nossa visão de política criminal engloba não o direito processual e o processo em si como um instrumento do aparelho punitivo (não é, nunca será, e aliás, em um estado democrático só pode agir em impulso contrário, como freio ou filtro do mesmo): engloba-os como integrantes do conjunto de medidas agudas em termos de políticas públicas para a gestão da situação criminal, sem que todo o sistema possa ter uma espécie de unidade de funções. Em sentido contrário, note-se, os discursos de lei e ordem que identificam o processo, equivocadamente, como um mecanismo a mais para auxiliar e potencializar a punição. Casara e Melchior (2013, p. 37-38) dão o tom do debate, quando mostram que a discussão processual não se pode fazer sem as coligações políticas, político-criminais e quiçá criminológicas, sob pena de um procedimentalismo opaco que interessa a qualquer um, menos a quem esteja preocupado com valores humanos e com o seio democrático de uma sociedade justa e fraterna: Seguindo as lições de Alfredo Vélez Mariconde, pode-se afirmar que o processo penal é fundamentalmente direito constitucional aplicado, ou seja, “una regulación específica de principios constitucionales básicos acerca de las facultades de los órganos estatales y de los derechos ciudadanos en materia de persecución penal”. Com isto, pretende-se dizer que, mesmo a partir de um ponto de vista estritamente normativo, reduzir o estudo do processo penal à disciplina normativa presente no Código ou em leis especiais, na forma como aborda

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a doutrina tradicional, diminui sua relevância social e política, o que é prejudicial à maturidade democrática da própria sociedade. Inversamente, o reconhecimento da integração do processo penal ao conteúdo normativo (conteúdo gerado pelo legislador) do sistema criminal (plano do dever-ser) deixa transparecer sua sujeição às oscilações provenientes das políticas criminais e das ideologias respectivas. Por exemplo, da mesma forma que em dados momentos as leis processuais serviram de instrumento à descriminalização indireta, em outros, atenderam à demanda por maior repressão, oriunda dos movimentos de lei e ordem, apoiados por massiva veiculação na mídia. Já procuramos exibir, igualmente (Cf. DIVAN, 2015a), nossa hipótese de que não apenas (a) os conteúdos criminológicos – ou criminológico-críticos – precisam ser vivificados em meio à prática e ao receituário processual penal, como também (b) não há sentido em provocar uma série de elementos de crítica e deslegitimação, acoplados a uma série de incongruências verificadas e denúncias gravíssimas se elas não tiverem desaguadouro. Nossa posição há muito defendida é a de que os rumos do processo criminal e suas normas, bem como o arcabouço teórico que lhes são pertinentes, não podem se furtar a exibir categoricamente um reles desdenhar desses elementos da realidade sensível a fim de garantir-se como mais um aparato a se cercar desse espectro falsário de neutralidade fria e de equanimidade política. Logicamente, o processo e sua seara procedimental, por definição, não podem se resumir a uma discursividade ideológica que não lhe sustente enquanto sistema decisional que existe para ser. Mas a consideração que Lopes Jr. faz (escorado em Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez), sobre o processo enquanto “instrumento neutro” não diz para com esse tipo de argumentação canhestra, senão para com outro desvelar, que inclusive pode encontrar nossa afirmação: enquanto mecanismo de foro democrático para fazer valer o direito de defesa e a presunção de inocência, o processo pode vir a barrar ou a legitimar a procedência do pedido de condenação (corolário do direito de punir que passará a existir para o estado frente ao então culpado). Nesse sentido o processo é neutro (não

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há ‘resposta’ certa ou condicionada, a priori, entre a punitividade ou a liberdade, o que vai depender do desenrolar da trama procedimental). Mas, se o processo não é passível de ser enquadrado entre a mecânica punitivista (porque sua função é totalmente diversa à do sistema penal de normas punitivas) e se o processo é neutro no que diz para com sua versão de mecanismo ou sistema operacional das garantias e da filtragem do poder punitivo, ele não pode ser cego à realidade política nem avesso à empiria. Por isso, sustentamos que, lamentavelmente, é no raio de atuação e circunferência teórica das normas e dos dogmas processuais-constitucionais que os momentos mais tensos da atuação do sistema punitivo se verificam. E é por isso que o processo precisa ser permeável às constatações criminológico-críticas. Aliás, é perceptível que a atuação na pesquisa e na escrita em termos de criminologia, na América Latina, se dê capitaneada por penalistas. Nesse ponto, a tradição de denúncia e de escrutínio da falência e do vácuo de moral e/ou legitimidade do sistema e do patrimonialismo que lhe é correlato é de uma contundência acachapante. Estranho, no entanto, que não haja mais processualistas-criminólogos: inundados pela verve política iluminista que banha as correntes garantistas processuais e pela defesa democrática que pugna pelos elementos constitucionais aplicados na prática, toda uma gama de processualistas parece se mostrar sensível às demandas e denúncias criminológicas, sem, porém, tratar de agir para que esses conceitos e críticas reverberem tecnicamente. Nossas singelas propostas – enquanto processualistas-criminólogos (críticos) ou enquanto criminólogos (críticos) com atuação e pesquisa na esfera processual visam não apenas fazer inserir nesse diálogo premissas de combate, mas também procurar viabilizar alternativas práticas: a) Os juízos de prelibação processual devem estar cientes da realidade político-criminal, carcerária e criminológica para que a decisão de recebimento ou rejeição de manifestações acusatórias não seja um mero excurso procedimental a avaliar tecnicidade de peças e plausibilidade fática de pleitos: é preciso inserir considerações e sopesares que

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estejam ancorados a fundo nos aportes sobre a seletividade do sistema, sua intrínseca injustiça e sua reprodução de mais violência a partir de uma falência que é por todos admitida com rubor. b) Desse modo, quando da análise dos pressupostos de admissibilidade processual, é preciso que se busque diálogo para que aquele juízo inicial (mas só não mais importante que a própria decisão de mérito) seja revestido de um conteúdo de análise político-criminal, uma vez que não é possível acreditar que um magistrado não tenha ciência do que politicamente o circunda sem crer que suas decisões não corroboram ou contribuem para a manutenção desse status quo tenebroso. c) Visualizamos a multiplicidade de fatores e acepções que pode ter a Justa Causa para a Ação Penal como uma válvula de entrada para as condições de crítica criminológica em meio às decisões judiciais – mormente aquelas de prelibação: em nosso sentir, a Justa Causa não se reveste apenas de um caráter de antecipação de mérito plausível (como para GRINOVER, 1977), nem apenas (na visão majoritariamente assentida pela jurisprudência) como uma análise inicial de viabilidade acusatória com base em um “escorço probatório mínimo” condizente com uma condição da ação avulsa (Cf., entre tantos, JARDIM, 2002, p. 97; OLIVEIRA, 2012, p. 112-113). Nossa visão “quadripartite” ou quadrilateral da Justa Causa (expressa, basicamente, em DIVAN, 2015c, p. 477-528) tem como um dos quadrantes a consideração ou faceta criminológica da Justa Causa (ao lado dos quadrantes dogmático processual, dogmático penal e sociofilosófico). Nela, vai defendida a ideia de que uma das análises obrigatoriamente latentes na avaliação da existência de uma (literalmente) justa causa para se processar (ou mesmo indicar, acusar e até punir) alguém é a avaliação da questão posta com a sensibilidade criminológica. É o terreno tanto para uma discussão sobre os caracteres de insignificância/bagatela ganharem corpo, como também é o mote e momento para que se discuta tendências relativas à bifurcação entre a tipicidade formal e material (ou para que se dê vazão à linha conglobante de tipicidade) – critérios dogmático-penais que necessariamente precisam de informação criminológica para sobreviver.

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É também o ponto certeiro onde se pode discutir a ingerência nefasta das políticas administrativas (pense-se em algumas corregedorias) que cobram atuação quantitativa e métrica dos atores (autoridades policiais, ministeriais e judiciais) ao invés de qualitativa, o que, de sobremaneira, é uma das causas do emperrar da máquina judiciária e do sistema prisional como um todo – viabilidade de uso de conceitos criminológicos por esses agentes para suprimir parte da inclemente e injusta demanda procedimental-punitiva. É, por isso, habitat fértil e necessário para que se venha a introduzir e dar utilização ao arcabouço criminológico-crítico, e seu punhado maciço de críticas ao funcionamento do sistema que precisam procurar se efetivar em algo além do que reclames de cunho externo. Nesse sentido, é impensável procurar sintetizar tecnicamente a função do operador jurídico na seara processual-persecutória para – em um passe de magia (negra) – contornar o fato de que: c1) Existe uma clientela injustamente alvejada pelas lentes do sistema jurídico-penal no instante em que o seu tipo de criminalidade é aquele que a matriz nuclear ideológica do sistema almeja neutralizar, ao passo que uma larga escala de criminalidade (leve ou, em alguns casos, substancial e de consequências gravíssimas) tem trânsito franqueado pelas barbas do mesmo sistema, mostrando que ele não é justo na medida em que não é equânime (Cf; CARVALHO, 2013, p. 129-130); c2) Existe uma necessidade, sim, ainda, de ideologizar o sistema penal deixando transparecer a função do jurista crítico, justamente para que as ideologias da homeostase e seu falso disfarce de isenção técnica ajudem a encobrir a barbárie perpetrada pelo sistema em seu funcionamento ‘corriqueiro’ (CIRINO DOS SANTOS, 2006, p. 82 e seguintes); c3) É preciso evitar a qualquer custo toda e qualquer pretensão de pureza que vise cada vez mais tornar fácil a ideia de que temos na porta de entrada da sistematização das relações humanas um mero controle de “subsunções automáticas” (HASSEMER; MUNHÓZ CONDE, 1989, p. 60-61), receosas de que haverá ‘ideologização’ em caso de que se pare para pensar e promover um juízo crítico, o que, justamente em contrário, seria o mais urgente e necessário.

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Desse modo, há mais do que uma sugestão, e sim muito de apelo abrupto e gritante para que tanto os operadores quanto os teóricos do direito processual prestem mais atenção à grande magnitude dos conteúdos criminológico-críticos sob pena de sua atuação parecer meramente catedrática e pugnada em um universo totalmente diferente daquele onde se encontra as coisas e, especialmente, as pessoas reais. Com seu sangue real. E suas lágrimas reais e salgadas.

DISPOSIÇÕES FINAIS Há muito temos a empáfia de declarar publicamente que uma questão de posicionamento político nos faz tomar distância de teóricos do direito penal que não se mostrem, ao mesmo tempo, pensadores e investigadores das hipóteses e conceitos criminológicos. Não parece, contudo tão exagerado o veto, se pensarmos que se trata de uma exigência primordial de contato com a realidade. Sem nenhum tipo de preconceito ou sanha, mas com muito de preocupação genuína, declaramos que se há, inegável, espaço para considerações teóricas na esfera penalista que gravitam em torno de hipotéticas situações-limite em relação à realidade plausível pelo bel prazer de se resolver charadas que estão a um passo de abandonar o estado da arte para atingir o nível do delírio, questionamos se, contudo, esse espaço que existe é do que precisamos, por hora, com urgência. Nem a fila da denúncia, nem os quesitos a serem denunciados, parecem ter fim, e é preciso um saber técnico que trabalhe com isso em consideração. A menos que algumas pessoas consigam fruir de sua destreza dogmática sem qualquer compromisso de mudar ou amenizar os flagelos daqueles que são diuturnamente atingidos por esse mesmo sistema que é objeto de estudo e trabalho. Quiçá um dia, quando algumas das considerações aqui estabelecidas já tiverem algum respaldo (sonho bom), poder-se-ia dizer o mesmo: ou se lerá o conteúdo do que têm a dizer os processualistas que são processualistas-criminólogos, ou se assume que para uma imensa gama de estudos e profissionais a realidade monstruosa do nosso sistema não faz a mínima diferença e se discorre sobre direito processual penal como se monta um castelo de cartas por passatempo onde o cuidado e o deleite estão a serviço de si próprios, sem qualquer outro objetivo concreto.

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