Atribuição transgressora de função pelo uso ou aqueles casos em que alguém amarra seu cabelo com um lápis

May 27, 2017 | Autor: Erika Diaz | Categoria: Design, Product Design, Creative Misuse of Technology, Reverse Engineering
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES DEPARTAMENTO DE DESIGN

ATRIBUIÇÃO TRANSGRESSORA DE FUNÇÃO PELO USO OU AQUELES CASOS EM QUE, POR EXEMPLO, ALGUÉM AMARRA O CABELO COM UM LÁPIS

Erika Díaz Gómez

FLORIANÓPOLIS, SC – BRASIL 2008

Erika Díaz Gómez

ATRIBUIÇÃO TRANSGRESSORA DE FUNÇÃO PELO USO OU AQUELES CASOS EM QUE, POR EXEMPLO, ALGUÉM AMARRA O CABELO COM UM LÁPIS

Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharelado em Design – Habilitação em Design Gráfico no Centro de Artes da Universidade de Santa Catarina, orientado pelo Prof. Murilo Scóz, Msc.

Florianópolis, julho de 2008

Atribuição transgressora de função pelo uso ou aqueles casos em que, por exemplo, alguém amarra o cabelo com um lápis Erika Díaz Gómez

O presente Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado e aprovado pela banca examinadora constituída pelos professores:

____________________________ Prof. Murilo Scóz, Msc. Orientador

____________________________

Profa. Denise da Silva Stucchi, Dra. Laboratório de Estudos Audiovisuais Olho (Faculdade de Educação/UNICAMP)

____________________________ Profa. Anelise Zimmerman, Msc.

Dedico este trabalho a quem se interessar por sua leitura.

SINCERAS EXPRESSÕES DE AFETO E AGRADECIMENTO Ao meu pai pela inteligência, a força, o bom humor e a tendência a se esconder quando se emociona. À minha mãe pelo amor incondicional, por sua beleza e pelas brigas por desordem. Ao meu irmão pelo silêncio e gritos (sobretudo pelo silêncio) e por um dia ter me considerado a menina mais bonita da escola. À Denise e ao Zé Pedro, pelo apoio, atenção, conversas e pela amizade. Aos meus amigos. Aos que não sabem que são meus amigos. Àqueles que mesmo não sendo meus amigos me fizeram feliz ou infeliz alguma vez. Ao Júlio por me mostrar a beleza da subversão, pela companhia e pela inspiração, sempre. Aos meus objetos favoritos (incluindo à Magnolia, que é um gato-brinquedo).

La página contiene una sola frase: En el fondo sabía que no se puede ir más allá porque no lo hay. La frase se repite a lo largo de toda la página, dando la impresión de un muro, de un impedimento. No hay puntos, ni comas, ni márgenes. De hecho un muro de palabras ilustrando el sentido de la frase, el choque contra una barrera atrás de la cual no hay nada. Pero hacia abajo y a la derecha, en una de las frases falta la palabra lo. Un ojo sensible descubre el hueco entre los ladrillos, la luz que pasa. JULIO CORTÁZAR Rayuela

RESUMO O presente trabalho aborda assuntos sobre os conceitos de função, funcionalidade, forma e percepção a partir da apresentação de casos de transgressão de função pelo uso. PALAVRAS CHAVE: objeto, criatividade, transgressão, reinvenção.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 7 JUSTIFICATIVA..................................................................................... 8 O QUE ESTE TRABALHO SE PROPÕE A FAZER............................... 9 COMENTÁRIO PRELIMINAR.............................................................. 10 0. ALGUMA VEZ UTILIZOU UM LIVRO GORDO PARA SEGURAR UM MÓVEL MANCO? ................................................................................ 11 0.1 QUAL É MESMO SEU NOME? (OU DISCORDÂNCIAS TEÓRICAS PARA SE CHEGAR A UM CONSENSO DE NOMENCLATURA) .............................................12

1. A FUNÇÃO....................................................................................... 15 1.1 INTRODUÇÃO AO CONCEITO GENERALIZADO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS .................................................................................15 1.1.1 OS PRIMÓRDIOS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE OBJETOS UTILITÁRIOS (ELEMENTOS NATURAIS OU PRIMEIRO ARGUMENTO QUE CONTRARIA A NOÇÃO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS) ......17 1.1.2 NEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE FUNÇÃO PARA OS OBJETOS CULTURAIS (OU: SEGUNDO ARGUMENTO QUE CONTRARIA A NOÇÃO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS) ................................................................................19 1.1.2.1 Objetos culturais............................................................................................19 1.1.2.2 Objetos de uso ..............................................................................................20 1.1.3 CRIAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE OBJETOS DE USO (OU: TERCEIRO ARGUMENTO QUE CONTRARIA A NOÇÃO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS) ...........................................................................................................21 1.2 PRIMEIRAS PROPOSIÇÕES SOBRE O CONCEITO DE FUNÇÃO..................26

2. A FORMA......................................................................................... 27 2.1 A FORMA E A ESTRUTURA (OU: PRIMEIRO ARGUMENTO QUE FUNDAMENTA A RELEVÂNCIA MENOR DA FORMA, FRENTE A OUTROS SIGNIFICADOS) .......................................................................................................27 2.2 A FORMA E A ESTRUTURA QUANDO EMBALADAS (OU: SEGUNDO ARGUMENTO QUE FUNDAMENTA A RELEVÂNCIA MENOR DA FORMA FRENTE A OUTROS SIGNIFICADOS)....................................................................................34 2.3 FORMAS E ESTRUTURAS TECNOLÓGICAS (OU SITUAÇÕES EM QUE A FORMA É MAIS RELEVANTE DO QUE OUTROS SIGNIFICADOS).......................37

3. A IMPORTÂNCIA DA FORMA COMO PRIMEIRO CONTATO COM OS OBJETOS E SEUS SIGNIFICADOS MAIS RELEVANTES (OU O CAMPO PERCEPTIVO) ....................................................................... 38

3.1 O ERRO PERCEPTIVO COMO POSSIBILIDADE REAL DAS COISAS DO MUNDO (E A CRIAÇÃO) ..........................................................................................40

4. ATRIBUIÇÃO TRANSGRESSORA DE FUNÇÃO PELO USO (OU ATOS COMO AQUELES EM QUE SE USA UMA FACA COMO CHAVE DE FENDA) .......................................................................................... 43 4.1 ATRIBUIÇÃO DE FUNÇÃO PELO USO .............................................................43 4.2 A IMPOSSIBILIDADE DE SE CHAMAR ATRIBUIÇÃO DE FUNÇÃO PELO USO E A ACEITAÇÃO DE SUA QUALIDADE TRANSGRESSORA .................................46 4.2.1 A moral da história ...........................................................................................48

5. SOBRE OS MEIOS TRANSGRESSORES DA FUNÇÃO ................ 51 6. ANOTAÇÕES FINAIS ...................................................................... 56 ANEXOS .............................................................................................. 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 60 DOCUMENTOS ELETRÔNICOS ......................................................... 61

INTRODUÇÃO ESTE TRABALHO ESTUDA OS USOS ALTERNATIVOS — JUSTIFICADOS NESTE TEXTO COMO TRANSGRESSORES — ATRIBUÍDOS A OBJETOS COTIDIANOS. Em uma sala há normalmente um sofá de três lugares e um de dois, uma mesa no centro, algumas almofadas, e com sorte (ou sem ela) uma tevê. Alguns quadros decorativos, e um tapete sobre o qual provavelmente dorme e baba um cachorro, ao lado de uma janela por onde entra o sol. Um dia, alguém decide pendurar o tapete na parede, tirar a mesa do centro e colocar num canto. Depois, a pessoa senta-se sobre os livros, põe um prato na cabeça e beija a televisão. Esse alguém a quem me refiro é sem duvida você, o seu vizinho, o seu marido, sua filha, seu neto ou sua mulher. Sim, posso afirmar sem a menor possibilidade de dúvida que é definitivamente você. Porém e felizmente, graças a certa noção de limite na acumulação de fatos estranhos, você não pratica essas atividades na mesma hora, nem no mesmo dia, nem no mesmo lugar, e assim faz com que seja eliminada qualquer possibilidade remota de ser apontado na rua como “aquele sujeito esquisito que mora na casa 43”. Este trabalho abordará o comportamento singular com que todas as pessoas transgridem a função dos seus objetos cotidianos, alguns de forma ilustre, outros nem tanto. O presente texto, porém, não tem como objetivo ser um convite à transgressão.

Afinal,

como

disse

antes

e

mesmo

estranhamento, esse comportamento já faz parte de você.

lhe

causando

algum

JUSTIFICATIVA

[There is] a curious discrepancy between industrial society’s colossal capacity to produce material goods and its comparative reticence to engage 1 with them theoretically (CARDOSO, 2004, p.1) .

1 Há uma curiosa discrepância entre a capacidade colossal com que a sociedade industrial produz bens materiais e a sua resistência para assumir um compromisso de cunho teórico com esses mesmos produtos. (Tradução da autora).

O QUE ESTE TRABALHO SE PROPÕE A FAZER Analisar o caráter transgressor da atribuição de função pelo uso, através do estudo de conceitos de função, funcionalidade, design e criação de objetos utilitários. Fazer uma análise crítica sobre a forma como são entendidos e manipulados os objetos cotidianos, uma vez desvinculados dos ciclos de produção e comercialização. Propor o comportamento transgressor como um impulso criativo inerente a todos os indivíduos.

COMENTÁRIO PRELIMINAR Em vista da ausência de referências teóricas específicas sobre o assunto da pesquisa, este trabalho propõe uma discussão inicial sobre as variadas possibilidades de manifestação da atribuição transgressora de função pelo uso. Nesse sentido, esta monografia procura aprofundar questões consideradas fundamentais, assim como apontar derivações sobre o tema como propostas para pesquisas

futuras.

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0. ALGUMA VEZ UTILIZOU UM LIVRO GORDO PARA SEGURAR UM MÓVEL MANCO? Se os objetos fossem chamados por um nome composto, que considerasse na raiz o uso que desempenham, viveríamos no mundo das cadeiras-assento, das cadeiras-escada, das cadeiras-armário e das cadeiras-brinquedo, entre outras. Não se pode negar que as pessoas que atribuíram os nomes para as coisas definiram nomenclaturas de relação, e provavelmente desistiram da especificação ao perceberem que os nomes seriam infinitos, e os desencontros atrozes (desconsiderando ainda as metamorfoses que sofreria a língua matter). Graças a esses esforços de abstração, existem hoje em dia os dicionários e as enciclopédias, que representam o grande sistema do conhecimento científico, ganhando “meritoriamente” alta credibilidade. Agora que a ordem das coisas parece instituída, há quem estude o que ainda não faz parte do dicionário, com a esperança de, quem sabe um dia, ser reconhecido por chamar a atenção para novas relações merecedoras de um título em negrito no grande livro das definições. Mas apesar da falta de consideração lingüística, os sapatos-mata-barata e as garrafas-vaso de flor existem formalmente, conformando junto à massa de informação teórica o binômio racional da realidade. Felizmente, é a partir de desencontros práticos que as teorias avançam!

A única coisa que dá conta do real não são tanto as estruturas coerentes da técnica como as modalidades de incidência das práticas sobre as técnicas, ou mais exatamente as modalidades de obstrução das técnicas pelas práticas (BAUDRILLARD, 1993, p. 6).

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O fato de existirem essas obstruções da técnica é evidentemente significativo para a cultura, ou melhor, é um dos elementos que a configuram como tal. Mas o que tudo isso diz sobre as pessoas? Como analisar um comportamento que se manifesta em todos os indivíduos, mas é indiscutivelmente anônimo?

0.1 QUAL É MESMO SEU NOME? (OU DISCORDÂNCIAS TEÓRICAS PARA SE CHEGAR A UM CONSENSO DE NOMENCLATURA)

Cada coisa tem sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. Por que é que árvore não há de chamar-se plupuch e plupubach depois da chuva? (...) A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra meus senhores é uma questão pública de suprema importância. HUGO BALL Manifesto Dadaísta

O primeiro aspecto que acredito relevante é a categoria nominal. Afinal, a atribuição de função pelo uso é uma característica cotidiana, não exatamente recente. Por que então não houve, ainda, um encontro de opiniões a este respeito? Antes de começar a levantar algumas observações sobre essas tentativas de nomenclatura, gostaria de esclarecer que por trás de toda categoria há uma classificação científica responsável pela sua existência. Este esclarecimento é imprescindível

no

sentido

que,

ao

serem

apreendidos

por

determinado

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conhecimento, os fundamentos científicos ganham, para o conhecimento comum, sentido de lei e, portanto, de verdade. Esta afirmação será fundamental ao decorrer deste trabalho, pois os conceitos que serão aqui apresentados têm como base o estudo das categorias aparentemente estabelecidas no dia a dia de pessoas comuns. Alguns dos títulos definidos para este comportamento são:

Non Intentional Design (NID) is a term we have invented and which has not yet entered in everyday linguistic use (…) NID refers to the day-to-day redefining of the defining. NID deals with norms which are “abnormally” transformed — every day, everywhere, by everyone. It is about the use and the exploitation of objects already designed (BRANDES, ERLHOFF, 2006, 2 s/p) .

Vou propor agora uma definição — sumária — do desvio de função: casos em que um artefato é submetido a um uso outro que não aquele considerado adequado (KASPER, 2004, p. 1).

De uma maneira genérica, gambiarra é o procedimento necessário para a configuração de um artefato improvisado. A prática da gambiarra envolve sempre uma intervenção alternativa, o que também poderíamos definir como uma “técnica” de re-apropriação material: uma maneira de usar ou constituir artefatos, através de uma atitude de diferenciação, improvisação, adaptação, ajuste, transformação ou adequação necessária sobre um recurso material disponível, muitas vezes com o objetivo de solucionar uma necessidade específica. Podemos compreender tal atitude como um raciocínio projetivo imediato, determinado pela circunstância momentânea; ou ainda, como uma espécie de design espontâneo (BOUFLEUR, 2006, p. 5).

O que significam os termos redefinição, desvio de função, intervenção alternativa, e re-apropriação material?

2

O Design Não Intencional (NID) é um termo inventado por nós, que ainda não faz parte da linguagem cotidiana (...) NID trata da redefinição diária do que já foi definido. NID lida com normas que são “anormalmente” transformadas — todos os dias, em todos os lugares, por todas as pessoas —. Diz respeito ao uso e exploração de objetos já projetados (Tradução da autora).

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Se pensarmos em um contexto em que as coisas possuem funções estabelecidas, e cuja fabricação é desenvolvida por áreas extremamente especializadas,

(e mesmo ignorando o fato da superprodução de bens

desnecessários) poderia ser sugerido que em termos gerais, aquilo a que nos referimos se apresenta como um tipo de comportamento transgressor. O ato transgressor diz respeito a uma violação e, portanto, pressupõe a existência de uma regra que é vigente e foi infringida. Mas, que norma estaria alguém transgredindo ao limpar o banheiro com uma escova de dentes? No caso ao qual nos referimos esta regra equivaleria à afirmação de que aquela escova deve ser utilizada para o processo higiênico de limpar a dentadura, ou seja, que sua função essencial é cumprir de forma eficiente o objetivo para a qual este objeto foi lançado no mercado. De modo geral este tipo de norma seria equivalente ao princípio de que a cada coisa equivale uma função essencial — intrínseca e definitiva — ou que a função seria um aspecto que pertence às coisas, uma característica inerente. Analisaremos a seguir as questões que consideramos fundamentais a respeito de função, forma e transgressão.

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1. A FUNÇÃO

1.1 INTRODUÇÃO AO CONCEITO GENERALIZADO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS

Sócrates: Admites então que há alguma coisa a que se pode chamar a função de um cavalo? Trasímaco: Sim. Sócrates: Dirias então, que a função de um cavalo, ou de qualquer outra coisa, é a operação ou trabalho, para cuja realização é ou o único ou o melhor instrumento? Trasímaco: Não entendo. Sócrates: Podes ver com outro órgão que não os olhos? Trasímaco: Certo que não. Sócrates: Podes ouvir com outro órgão que não os ouvidos? Trasímaco: Certo que não. Sócrates: Não diríamos então, com rigor, que ver e ouvir são as funções daqueles órgãos? Trasímaco: Certamente. Sócrates: Mas, poderias cortar uma vara de videira com uma faca de trinchar ou escopo ou qualquer outro instrumento? Trasímaco: Certamente. Sócrates: Mas nenhum decerto, te serviria tão bem como o podão para isso expressamente feito. Trasímaco: Claro. Sócrates: Não definiríamos, então, a poda como função própria do podão? Trasímaco: Perfeitamente Sócrates: Creio que agora perceberás melhor o que quis há pouco saber quando te perguntei se a função de uma coisa não é o trabalho para cuja realização é o melhor, ou então o único instrumento. Trasímaco: Agora entendo e estou em que esta é, em todos os casos, a função de uma coisa (PLATÃO, 1956, p.53).

E não é essa enunciação clássica a mais atual das definições de função? A primeira conclusão a que podemos chegar é que a questão que nos dirige aos conflitos funcionais é tradicionalmente estável, e que a diferença primordial da relação com os objetos ao longo do tempo é conseqüência das características de produção, apreensão e percepção, ou, em outras palavras, em conseqüência da

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cultura. Pois, alguém se atreveria a sugerir, de forma definitiva, um objeto que seja o 3

melhor ou o único da sua classe ? Ao refletirmos sobre o conceito de função, devemos primeiramente analisar como entendemos seu significado. Christian Kasper, no texto Aspectos sobre desvio de função, sugere que:

Temos todos uma noção intuitiva de que os objetos que nos cercam possuem uma função: uma faca serve para cortar, um lápis serve para escrever ou desenhar, um guarda-chuva serve para nos proteger da chuva. Com objetos mais complexos, por exemplo, um computador, já se torna mais difícil dizer “para que serve”; no entanto, temos uma noção intuitiva de um uso ‘correto’ do aparelho. Para a consciência comum, presa às necessidades da vida quotidiana e encontrando no seu ambiente os meios de suas ações, a função se apresenta como uma propriedade das coisas, da mesma maneira que sua forma ou sua cor (2004 p.1).

Pensar sobre a função como propriedade das coisas é tão comum que os livros explicativos de termos genéricos enunciam relações de uso como atributos essenciais

dos

objetos,

ao

defini-los

pelas

ações

para

as

quais

são

convencionalmente utilizados4. Esta situação é assim mesmo aparente, em linguagens abstratas de comunicação visual, (ícones, pictogramas, marcas) onde são estabelecidas claras relações de “uso correto” ao simbolizar ações através de

3

Ao perguntar a Marta, auxiliar doméstica, sobre o melhor pano de limpeza de piso cerâmico, sua resposta vem imediatamente: “camisetas velhas”. 4

Como referências exemplares dessa discussão e segundo o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, apontamos: Colher (é) [Do lat. cochleare.] Substantivo feminino. 1. Instrumento composto de uma concha rasa e de cabo, para levar certos alimentos à boca, ou para misturar, mexer, provar ou servir iguarias: colher de café; colher de sopa. Garrafa [De or. incerta; (...)] Substantivo feminino. 1. Vaso, comumente de vidro, com gargalo estreito, e destinado a conter líquidos. 2. Porção de líquido que a garrafa contém: Tomou duas garrafas de cerveja. Martelo [Do lat. med. martellu (cláss. marculus e martulus).] Substantivo masculino. 1. Instrumento de ferro, em geral com cabo de pau, destinado a bater, quebrar e, esp., cravar pregos na madeira.

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objetos (uma taça simboliza um bar, ou um lugar para consumir bebidas servidas em taças). Mas as questões de uso e utilidade sugerem algumas conjecturas. Ao refletirmos sobre o conceito de função como propriedade das coisas, devemos propor um contexto em que se justifique sua existência sugerindo, portanto, que: 1. Todos os objetos possuem uma função inerente e, portanto, inseparável deles próprios. 2. Se a função é uma propriedade das coisas, um objeto só poderia ser considerado como tal quando tendo alguma função. Esta afirmação equivale a dizer que todos os objetos, sem exceção, possuem uma finalidade de cunho utilitário. 3. Se o objeto atende a necessidades meramente utilitárias, a função é um reflexo da intenção do projetista dos objetos, no momento da sua concepção ou manufatura.

1.1.1 OS PRIMÓRDIOS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE OBJETOS UTILITÁRIOS (ELEMENTOS NATURAIS OU PRIMEIRO ARGUMENTO QUE CONTRARIA A NOÇÃO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS)

Tentemos pensar nas primeiras ferramentas: Elementos da natureza adaptados para certas utilidades: Meios aparentemente casuais para satisfazer a determinadas necessidades. Um dia, uma pedra para quebrar uma semente e o galho de uma árvore para atingir animais à distância. No dia seguinte, o galho de uma árvore para quebrar uma semente e uma pedra para atingir animais à distância. Acompanhando esse modo de pensamento podemos apontar que os elementos da natureza, utilizados e adaptados para a realização de ações cotidianas, eram meios antes de serem objetos. Assim:

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If we go back to first causes, (...) we find that hammer was not originally an object but an action, not a noun but a verb. The first humans to make use of a hammer took up whatever natural object was serviceable for the task and hammered away. The next step after that was to look for more suitable natural objects, and the next after that was to interfere in the object so as to make it even more appropriate to the task at hand. At some point in this continuum, humans crossed the threshold between being doers and becoming makers; and natural objects were transformed by human ingenuity into artefacts, that is, objects made by human hands. This is the natural scope of design in its broadest sense: to transform objects according to a 5 plan (CARDOSO, 2004. p 5) .

Permanecendo com esse modo de pensamento podemos afirmar então, que ao assumir o principio da função como propriedade das coisas, deveríamos incluir dentro deste preceito as coisas naturais, ancestrais e materiais dos nossos objetos de uso. Para poder sustentar tal afirmação, seria preciso aceitar como verdadeira a proposição de que as coisas naturais possuem também funções inatas de cunho utilitário, cujo objetivo seria atender às necessidades cotidianas das pessoas. Esta hipótese,

visivelmente

antropocêntrica,

é

definitivamente

insustentável,

ao

considerarmos que:

Pensemos, por exemplo [n]as plantas medicinais: seu uso humano nada tem a ver com sua função dentro do ecossistema, e suas virtudes curativas foram descobertas através de experiências que devem ter sido, algumas vezes, mortais (KASPER, 2001. p. 5).

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Se voltarmos às causas primeiras, (...) descobriremos que um martelo não era originalmente um objeto, se não uma ação; não era um substantivo, era um verbo. Os primeiros seres humanos em fazer uso de um martelo utilizaram qualquer objeto natural que fosse útil para esta tarefa e martelaram. O próximo passo foi procurar objetos naturais mais apropriados, e o próximo foi interferir nestes objetos para torná-los mais apropriados ainda para a tarefa e a mão. Em algum ponto deste processo, os seres humanos atravessaram o umbral existente entre homens que agem e homens que fazem ao transformar — por ingenuidade — os objetos naturais em artefatos, ou seja, objetos feitos por mãos humanas. Este é o escopo natural do design no sentido mais amplo: transformar objetos seguindo um plano. (Tradução da autora).

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1.1.2 NEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE FUNÇÃO PARA OS OBJETOS CULTURAIS (OU: SEGUNDO ARGUMENTO QUE CONTRARIA A NOÇÃO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS)

Dizemos que, para assumir como verdadeiro o conceito da função como propriedade das coisas, teríamos que aceitar que todos os objetos, para serem considerados como tal, devem atender a uma necessidade, sendo esses, portanto, e sem nenhuma exceção, objetos utilitários. A partir de agora, vamos aprofundar essas considerações.

1.1.2.1 Objetos culturais

Entre os objetos que não ocorrem na natureza, mas tão somente no mundo feito pelo homem, distinguimos objetos de uso e obras de arte, os quais possuem ambos uma certa permanência que vai desde a durabilidade ordinária até a potencial imortalidade no caso das obras de arte (...) Do ponto de vista da mera durabilidade, as obras de arte são claramente superiores a todas as demais coisas; e, visto ficarem no mundo por mais tempo do que tudo o mais, são o que existe de mais mundano entre todas as coisas. Elas são, além disso, os únicos objetos sem qualquer função no processo vital da sociedade (ARENDT, 1997. p.262).

Numa primeira leitura, esta anotação feita por Hannah Arendt pode despertar rápidos contra-argumentos que defendem a existência de funções que atendem a necessidades em nível subjetivo. Túlio Fornari (1989), por exemplo, argumenta que todos os objetos artificiais justificam sua existência para servir a uma finalidade humana e, portanto, devem ser em sua totalidade entendidos como utilitários. Ao estabelecer esta afirmação apresenta uma classificação segundo “seu tipo genérico de utilidade” apontando a existência de utilidades físicas, utilidades psíquicas e utilidades psicofísicas.

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Mesmo não se aprofundando nesta questão, ao referir-se a objetos de utilidade psíquica, o autor explica que (...) Sirve [n] para atender necessidades 6

espirituales, como pueden ser las estéticas . Mas existirá um argumento (além do apresentado anteriormente sobre as coisas naturais), que discuta estas concepções exclusivamente utilitárias?

Um objeto é cultural na medida em que pode durar; sua durabilidade é o contrário mesmo da funcionalidade, que é a qualidade que faz com que ele novamente desapareça do mundo fenomênico ao ser usado e consumido (...) estritamente falando, [as obras de arte] não são fabricadas para homens, mas antes para o mundo que está destinado a sobreviver ao período de vida dos mortais, ao vir e ir das gerações. (...) Somente quando essa sobrevivência é assegurada falamos de cultura, e somente quando nos confrontamos com coisas que existem independentemente de todas as referências utilitárias e funcionais e cuja qualidade continua sempre a mesma, falamos de obras de arte (ARENDT, 1997, p. 260).

Partindo desta perspectiva é possível libertar os objetos culturais junto aos naturais das relações utilitárias isentando-os, em definitivo, da questão da função como propriedade das coisas. Mesmo assumindo esse princípio, a percepção de função como propriedade deve ser aprofundada, considerando, na classificação dos objetos, um grupo menos distante da visão utilitária.

1.1.2.2 Objetos de uso

Há objetos em nosso cotidiano que atendem a necessidades de ordem prática. O que está nomeado aqui como objetos de uso é equivalente ao grupo de

6

Servem para atender necessidades espirituais como, por exemplo, as estéticas. (Tradução da autora).

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objetos que ao serem utilizados e tendo cumprindo alguma função, são 7

descartados . Ao analisar o problema da função como propriedade das coisas, tomando como referência os objetos de uso, devemos nos aprofundar em alguns aspectos: Se a função é entendida como uma propriedade das coisas, como é definida esta função? Afinal, os objetos oferecem informações que são reflexo das funções, ou vontades do seu criador?

1.1.3 CRIAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE OBJETOS DE USO (OU: TERCEIRO ARGUMENTO QUE CONTRARIA A NOÇÃO DE FUNÇÃO COMO PROPRIEDADE DAS COISAS)

Multiquick MR 400 — Power at your fingertips — Small and compact in size, the Multiquick MR 400 is an indispensable help for those looking for a

7

Esta colocação, bastante otimista, também se aplica para aqueles objetos que são adquiridos e descartados sem serem utilizados.

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quick and easy to use kitchen helper. It performs many of the functions you would normally do by hand — like chopping onions, but more easily, conveniently and faster. Allowing you more time for everyday dishes or to try new recipes. With its chopper, blender shaft and metal whisk, it provides a great variety of dishes, from pancakes for breakfast to homemade tomato soup or dips and spreads. Thanks to its 300 Watts, the Multiquick MR 400 is one of the most powerful hand blenders in its class, delivering finest 8 results in seconds .

Para chegar à comercialização de milhões de produtos cotidianos, é imprescindível considerar o longo processo coletivo de conscientização sobre a função das coisas, pois ao olhar para um objeto como o Multiquick MR 400 da Braun Company (citação indispensável no desenvolvimento da história do design9), e eliminando as referências à sua utilização, seria dificílimo deduzir a função para a qual esse objeto foi projetado. Mas se a função é percebida como uma propriedade das coisas, isso significaria então que a função é um reflexo da vontade do projetista do objeto? Digamos, por enquanto, que esta afirmação é genuína e vamos analisar alguns produtos:

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Multiquick MR 400 — Poder na ponta de seus dedos — Compacto e de tamanho reduzido, o Multiquick MR 400 é uma ajuda indispensável para quem procura um facilitador das tarefas caseiras. Ele realiza todas as funções que você normalmente faria à mão — como cortar cebolas — porém mais fácil e de forma mais eficiente, permitindo que você invista mais tempo para preparar os pratos de todos os dias ou tente novas receitas. Desde panquecas para o café da manhã, à sopa de tomate feita em casa ou dips e molhos. Graças a seus 300 wats, o Multiquick MR 400 é um dos “mix” de mão mais poderosos da sua classe, oferecendo os resultados mais sofisticados. (Tradução da autora). Disponível em: http://www.braun.com/global/products/fooddrink/foodpreparation/handprocessors/mr400.html e http://www.service.braun.com/line/HH/H4179/H4179_3_MN_AMEE.pdf; último acesso em 03 de Maio e 09 de Junho de 2008.

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Nenhuma outra empresa influenciou tanto o desenvolvimento do design na Alemanha como a firma B. Braun em Kronberg, perto de Frankfurt. A ininterrupta tradição do moderno determina até hoje a política empresarial e de design da empresa. A Braun valeu por décadas a fio como exemplo para outras empresas — e não apenas na Alemanha (BURDEK, 2006. p. 55).

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SLIP NO MORE the skid-free banana peels — The bathroom is no place for slapstick slip-and-fall routines. To ensure a sure-footed shower, peel these bananas and apply them to the floor of your bathtub or shower stall. Turns out, bananas ARE good for your health. Three life-size stickers in each 10 peggable package.

ZING! launch your lunch — Everyone knows you shouldn’t play with your food. But hey — sometimes you have to defend your dinner! Now there’s a

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Não escorregue mais — As cascas de banana que evitam o deslizamento — O banheiro não é um lugar para rotinas vergonhosas como as de escorregar e cair. Para garantir um banho de pés firmes, descasque estas bananas e aplique-as no chão do seu chuveiro ou box. Funciona! As bananas são boas para sua saúde. Cada embalagem contém três adesivos em tamanho real. (Tradução da autora). Disponível em: http://www.worldwidefred.com/slipnomore.htm último acesso em 05 de Maio de 2008.

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new weapon in your homeland security arsenal — load up a particularly mushy pea or corn niblet, aim, pull back the spring-loaded handle, and watch 11 your food take flight. ZING! It’s WAY more fun than a war of words.

O apelo atribuído a estes produtos é precisamente o de contrariar a noção de “uso correto”, partindo de observações sobre a utilização não convencional dos objetos, e no caso do primeiro exemplo, contraditórios inclusive ao sentido comum. Nesses casos, seu diferencial comercial é precisamente fazer uma abordagem que estimula a subjetividade perceptiva no relacionamento com as coisas, fazendo com que o objeto ganhe sentido através de uma definição de função que não é a convencional.

Podemos perceber, em ambos casos, uma intenção de ironizar a concepção de função como propriedade das coisas, transparecendo no objeto o potencial para ocultar e/ou dissimular funções no processo de criação. Este principio, como ficou demonstrado, contraria a proposição clássica de que “a forma segue a função”. Mas existem casos em que essa dissimulação não é exatamente explícita e existe um objetivo de mascarar os verdadeiros propósitos para os quais foram projetados os objetos. Um exemplo dessa situação é apresentado por Adrian Forty no livro Objetos de Desejo:

O design altera o modo como as pessoas vêem as mercadorias. Para dar um exemplo deste processo, podemos examinar o design dos primeiros aparelhos de rádio. Quando as transmissões começaram em 1920, os receptores eram uma montagem grosseira de resistores, fios e válvulas. Os fabricantes logo perceberam que se quisessem vender rádios para que as

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Zing! Atire seu lanche — Todas as pessoas sabem que não se deve brincar com a comida. Mas atenção — às vezes você precisa defender sua janta! Agora existe uma nova arma para o arsenal de segurança do seu lar — Carregue-o com munições de mingau de ervilha ou porções de milho, puxe para trás o cabo de mola, e aprecie como seus alimentos levantam vôo. ZING! É muito mais divertido que uma guerra de palavras. (Tradução da autora) Disponível em: http://www.worldwidefred.com/ing. htm; último acesso em 05 de Maio de 2008.

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pessoas os pusessem na sala precisariam de uma abordagem mais sofisticada do design. No final dos anos 1920 e o começo dos 1930, desenvolveram-se três tipos de solução, cada uma das quais apresentava a mesma mercadoria, o rádio, de uma maneira totalmente diferente. A primeira era alojar o aparelho em uma caixa que imitava uma mobília antiga, e assim referia-se ao passado. A segunda era esconder o rádio dentro de uma peça de mobília que servia para uma finalidade bem diferente, como uma poltrona. A terceira, que se tornou mais comum à medida que as pessoas se familiarizavam com o rádio e o achavam menos perturbador, era colocá-lo dentro de um estojo desenhado para sugerir que pertencia a um mundo futuro e melhor. Cada um desses designs transformou o rádio original, “primitivo”, de modo a torná-lo irreconhecível (1986. p. 20).

Se assumirmos que existe uma função essencial que é reflexo da intenção dos projetistas e/ou produtores de objetos de uso, devemos também ter consciência da possibilidade de dissimular tais relações, criando, como conseqüência, situações ambígüas no processo de comunicação e promovendo, portanto, apreensões extremamente variáveis das chamadas propriedades funcionais. Aprofundando essa análise, diríamos que aceitar esse princípio significaria que aquilo que se entende por essência funcional de um objeto torna-se desconhecido quando este é desligado de um ciclo de produção e comercialização, sendo descaracterizado dos rasgos determinantes que definem o que se entende por função. Após essas considerações devemos esclarecer que o processo de relação com os objetos envolve múltiplos significados que estão além dos designados nos sistemas de projeção e manufatura. Acontece que, no contexto das formas de ligação com os objetos materiais, dificilmente se considera uma questão fundamental: o ponto de vista do usuário, como ser individual, dotado de autonomia.

Cada um de nossos objetos práticos se associa a um ou vários elementos estruturais, mas por outro lado escapam continuamente da estruturalidade técnica para as significações segundas, do sistema tecnológico dentro de um sistema cultural. O meio ambiente cotidiano permanece, em larga medida, um sistema “abstrato”: nele os múltiplos objetos acham-se em geral isolados de sua função, é o homem que lhes assegura, na medida de suas necessidades, sua coexistência em um contexto funcional. (BAUDRILLARD, 1968. p.14)

26

1.2 PRIMEIRAS PROPOSIÇÕES SOBRE O CONCEITO DE FUNÇÃO



Devido à impossibilidade de assumir a função como uma propriedade intrínseca a objetos naturais e culturais, podemos propor que a noção de função como propriedade apresenta fundamentos que obedecem a um sistema aleatório de convenção.



As propriedades físicas e materiais dos objetos não são únicas nem definitivas, pois estão intimamente ligadas às relações de concepção e uso, e não refletem, necessariamente, as intenções de seus criadores e projetistas.



As relações estabelecidas com as coisas materiais não são exclusivamente utilitárias,

sendo

racionalizantes.

assim,

não

se

submetem

a

análises

meramente

27

2. A FORMA Às características físicas de um objeto é o que se chamará aqui de forma. Estas questões são indubitavelmente importantes, já que seria ingênuo, — e, quem sabe, temerário — desconsiderar como através da sua constituição material os objetos proporcionam informações e sugerem determinados usos. Nesses termos, podemos sugerir que a forma é menos distante da necessidade imediata do que aquilo que entendemos por função. Apesar desta consideração, proponho que, assim como acontece com a função, as formas e estruturas apresentam-se como possibilidades genuínas e decididamente criativas nos processos de produção de objetos cotidianos. Poderíamos nos arriscar e afirmar que esses aspectos são menos relevantes do que outros significados12?

2.1 A FORMA E A ESTRUTURA (OU: PRIMEIRO ARGUMENTO QUE FUNDAMENTA A RELEVÂNCIA MENOR DA FORMA, FRENTE A OUTROS SIGNIFICADOS)

Vamos propor um exemplo para discutir esta questão: O futebol é uma atividade praticada por várias culturas no mundo inteiro. O jogo consiste, basicamente, no encontro de dois times, de onze jogadores cada um, e tem como objetivo colocar uma bola (convencionalmente feita de couro) numa área denominada gol. Para estes fins, os competidores podem utilizar qualquer

12

Esses outros significados serão abordados no próximo capitulo.

28

parte do corpo, com exceção das extremidades superiores (cotovelos, braços, antebraços, e mãos). Um dos jogadores, o goleiro, tem como máxima responsabilidade defender a área de gol correspondente a seu time, sendo o único privilegiado com o poder de manipular a bola com as mãos. Ao nos referirmos aos primeiros dez jogadores o pé se apresenta, claramente, como o membro mais eficiente e, portanto, o mais comumente utilizado para vencer o zelador da área contrária, o goleiro. O corpo receptor de toda a energia proveniente dos pontapés dos vinte aguerridos é, antes do goleiro (com algumas exceções), o artefato esférico convencionalmente feito de couro, a bola. Vamos ilustrar um exemplo de bola:

At the Final Draw for the UEFA EURO 2008™ in Lucerne today, Adidas and UEFA unveiled the adidas “EUROPASS”: the official match ball of the competition. The ball’s new surface structure allows players to control and direct it perfectly in all weather conditions. The revolutionary PSC-Texture™

29

consists of a sophisticated and extremely fine structure on the ball’s outer 13 skin that guarantees optimum grip between ball and boot (...) .

Ao consultarmos as normas deste jogo, que especificam vários aspectos sobre segurança e eficiência na hora da competição, veremos como o couro é materialmente mais apropriado devido às suas características estruturais, que “garantem uma ótima aderência entre o sapato e a superfície da bola”. Apesar dos estudos e tecnologias orientados para alcançar tais conclusões, o jogo acontece em muitos casos, (ou melhor, na maioria desses), com diversas adaptações e interpretações de regras e significados, dependendo de divergências e acordos culturais e locais. Vemos a seguir algumas bolas feitas para o jogo de futebol, utilizadas em culturas certamente distantes de nós e fabricadas com materiais alternativos:

13

Na atração final de hoje pela EURO UEFA 2008 em Lucerna, a Adidas e a UEFA desvelaram a “EUROPASS” da Adidas: a bola oficial da competição. A nova superfície da bola permite que os jogadores a controlem e direcionem perfeitamente em qualquer condição climática. Sua revolucionária textura—PSC consiste numa sofisticada estrutura extremamente fina que cobre a parte externa da bola, garantindo uma ótima aderência entre esta e o sapato do jogador (Tradução da autora). Extraído de http://www.press.adidas.com/en/desktopdefault.aspx; último acesso em 9 de Junho de 2008.

30

Footballs are made from available materials in Zambia — usually rags, paper 14 or packaging materials — stuffed in a plastic bag and bound with string . (MUSTIENES, 2003. p.172)

Odd. A sweatshirt stuffed with a pink nightgown and stitched with hexagonal patches to resemble a regulation football makes this rag football from 15 Senegal (MUSTIENES, 2003, p.172).

14

As bolas de futebol de Zâmbia são produzidas com materiais acessíveis — usualmente farrapos, papéis ou materiais de embalagem — sacolas plásticas preenchidas e amarradas com barbantes (Tradução da autora).

15

Curioso. Esta bola de pano do Senegal é uma blusa de moletom preenchida com uma camisola cor-de-rosa à qual foram costurados remendos hexagonais para se assemelhar às bolas regulamentares (Tradução da autora).

31

Se analisarmos a aparência dessas bolas, poderemos perceber as adaptações em sua forma para se assemelharem àquela que é considerada mais apropriada para o jogo de futebol.

Ainda que elementar, a tecnologia utilizada para a confecção do objeto esférico proveniente de Zâmbia, permite que se preservem suas características primárias, mantendo-se, ao que parece, resistente aos impactos que sofrerá ao longo do jogo (regulamentado para durar noventa minutos).

No segundo caso, ou seja, a bola do Senegal, podemos observar uma situação particular, a saber: o objeto é ornamentado com pedaços de tecido de formato hexagonal que sugerem a constituição aparente das bolas de futebol utilizadas

profissionalmente.

Este

cuidado,

entretanto,

não

otimiza

ergonômicamente o propósito do jogo em si, pois se retirarmos os ornamentos, o artefato se manterá estruturalmente idêntico, atendendo da mesma forma ao seu propósito original.

O aspecto decorativo pode ser analisado como um sinal da importância de atribuições simbólicas a objetos do cotidiano, através dos quais, neste caso, a bola é percebida como sendo “melhor” por ser mais próxima da aparencia reconhecida como ideal. Se continuarmos analisando o aspecto das formas e das estruturas através de exemplos de uso, poderemos sugerir que, para o fim da prática do futebol, a melhor forma que poderia ter uma bola seria sempre a esférica. No entanto, basta sair para a rua e olhar a nossa volta para perceber como objetos, material e estruturalmente “inapropriados”, são utilizados na prática desse

32

jogo tão popular. Um exemplo particular desta situação se apresenta com latas de alumínio amassadas, vitimas constantes da prática do futebol. Ao afirmar que a forma é um fator indispensável que sugere características funcionais definitivas para uma coisa, estamos deixando de lado uma importante questão: quem atribui significados às coisas do mundo pode facilmente ignorar suas características formais no ato do uso efetivo. Podemos aprofundar essas questões se sugerirmos um princípio que nos acompanha tradicionalmente, declarando que qualquer objeto é passível de ser movimentado sempre e quando sua forma apresente certa instabilidade. Dito de outra maneira, quanto mais arredondadas sejam suas formas, (a esfera é a forma geométrica mais instável) mais propícias ao movimento. Se quisermos renunciar a tal princípio teríamos que investir, como conseqüência, em esforços magníficos que ao final, proporcionariam movimentos dinâmicos precários. Assim posto, podemos afirmar que seria ridículo atribuir às formas quadradas a missão de rolar?

33

In 1997 mathematics professor Stan Wagon constructed a square wheel bike that rolls smoothly over a road made out of inverted catenaries. The original vehicle wore out and was replaced in April, 2004. Finer materials were used and the ride is now much smoother: so smooth that one cannot tell one is not riding a round-wheel bike. The photo above shows President Rosenberg 16 taking the inaugural ride .

Qual o significado de uma roda quadrada no contexto das formas? Uma grande contradição? Podemos assumir assim, que da mesma maneira como a função, as formas e os materiais das coisas não são nunca definitivos e, ao contrário, acabam por se revelar como fatores que apresentam infinitas possibilidades de uso, ou como proposto por Cardoso:

16

Em 1997, o professor de matemática Stan Wagon construiu uma bicicleta de rodas quadradas que gira suavemente sobre um caminho feito de catenárias invertidas. O veículo original ficou gasto e foi substituído em abril de 2004. Para este novo modelo foram utilizados materiais mais finos que permitem um trajeto muito mais estável: Tão suave que ninguém diria que está andando numa bicicleta de rodas quadradas. A foto mostra o presidente Rosenberg fazendo o passeio inaugural. (Tradução da autora). Extraído de http://www.macalester.edu/mathcs/SquareWheelBike.html; último acesso em 8 de Junho de 2008.

34

What is interesting, from a design perspective, is that the vast majority of meaning deriving from the objects that surround us fall decidely into the adherent end of the spectrum. That is to say, most of the meanings relating to most of the artifacts we know are attributed much more by context and use than the physical nature and construction of an 17 object (2004. p. 7).

2.2 A FORMA E A ESTRUTURA QUANDO EMBALADAS (OU: SEGUNDO ARGUMENTO QUE FUNDAMENTA A RELEVÂNCIA MENOR DA FORMA FRENTE A OUTROS SIGNIFICADOS)

Nos tempos atuais, uma das áreas do design mais facilmente identificadas e rapidamente reconhecidas é aquela que se ocupa dos projetos de comunicação visual: o design gráfico. Temos acesso a suas produções através de uma vasta quantidade

de

ramificações

que

se

apresentam

para

nós,

quase

que

inevitavelmente, durante a circulação em nossos espaços cotidianos. Segundo André Villas-boas:

Design Gráfico é a área de conhecimento e a prática profissional específicas que tratam da organização formal de elementos visuais — tanto textuais quanto não textuais — que compõem peças gráficas feitas para reprodução, que são reproduzíveis e que têm um objetivo expressamente comunicacional (1999, p.17).

Um dos objetivos desta área do design é criar uma identificação entre consumidores e produtos, produzindo apelos para o consumo de massa visando

17

O que é interessante, de uma perspectiva de design, é que a grande maioria de sentidos que derivam dos objetos que nos rodeiam cedem definitivamente ao aderente fim do espectro. Isso é equivalente a dizer que a maioria dos significados relacionados à maioria dos artefatos que conhecemos, são atribuídos muito mais pelo contexto e o uso do que pela constituição física e estrutural de um objeto (Tradução da autora).

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produzir lucro, aliás, tal como se espera de qualquer atividade produtiva no contexto 18

do universo do capital . Para considerar uma dessas ramificações citaremos o caso do projeto de embalagens, motivo de grandes controvérsias entre ambientalistas e seus críticos. As embalagens dos produtos, a princípio, devem proteger seu conteúdo de ameaças externas e facilitar seu transporte, exposição e armazenamento. Ao lado dessas necessidades, as embalagens são usadas, inclusive, para expor graficamente temáticas relativas ao seu diferencial comercial em relação a produtos similares e concorrentes. Se nos limitamos ao estudo de objetos cotidianos de uso, diríamos então que dificilmente teremos acesso à aquisição comercial desses, sem os revestimentos e formas agregadas como são neste caso, as embalagens. Apresentemos um exemplo dessa situação:

18

Devido às características desta pesquisa não será feita, neste momento, uma abordagem crítica sobre os motivos e as conseqüências da prática do design gráfico. Este trabalho propõe ser uma pesquisa que discute a área de design em geral, tomando como estudo prático a relação com os objetos cotidianos.

36

Embalagem de bateria para memória interna de computadores Dell (o 19 produto é o disco prateado que se encontra no meio) .

Para corroborar tal proposição, propomos mais uma colocação de Rafael Cardoso:

Now, in the electronic age, aggregate forms such as packaging, command systems and interfaces play an increasingly important role in communication purpose, loosening up the casual ties between form and meaning (2004. p. 20 15) .

Analisando do ponto de vista projetual, podemos concluir que existe uma consciência de que a forma das coisas não é o único, e nem mesmo o mais importante dos fatores ao se pensar na produção de objetos cotidianos. Através desses mesmos argumentos é possível concluir também que a forma não é um fator decisivo ao usarmos nossos objetos cotidianos.

19

Extraído de http://www.flickr.com/photos/trance-elbow/954262650/sizes/l/; último acesso em 10 de junho de 2008. 20

Na era eletrônica em que vivemos hoje, as formas agregadas — como é o caso de embalagens, sistemas de comando e interfaces — desempenham um papel importante nos objetivos comunicacionais que cresce progressivamente, fazendo com que se percam as relações casuais existentes entre a forma e o significado (Tradução da autora).

37

2.3 FORMAS E ESTRUTURAS TECNOLÓGICAS (OU SITUAÇÕES EM QUE A FORMA É MAIS RELEVANTE DO QUE OUTROS SIGNIFICADOS)

Dizemos que a grande maioria dos objetos possui significados, além dos formais, que os definem como tal. É importante, porém, considerar uma espécie de objetos para os quais a forma é verdadeiramente fundamental. Os objetos de cunho tecnológico têm como objetivo atender a funções específicas, geralmente ligadas a utilidades de grande complexidade nas áreas da ciência e da engenharia. Devido à necessidade de discriminações técnicas, extremamente específicas, a estrutura e a forma estão completamente envolvidas no processo de apreensão e uso, pois, graças à sua exigência, os materiais devem ser cuidadosamente utilizados, visando o funcionamento adequado. Porém, devemos reiterar que as relações propostas por este trabalho se limitam ao campo dos objetos cotidianos utilizados por usuários comuns, ou melhor, por usuários de objetos comuns. Assim:

A tecnologia conta-nos uma história rigorosa dos objetos, onde os antagonismos funcionais se resolvem dialeticamente em estruturas mais amplas. (...) Mas esta ciência só pode se exercer rigorosamente em setores restritos que vão das pesquisas de laboratório às realizações altamente técnicas tais como a aeronáutica, a marinha, os grandes caminhões de transporte, as máquinas aperfeiçoadas, etc., em pontos onde a urgência técnica faz atuar a fundo a coerção estrutural, onde o caráter coletivo e impessoal reduz ao mínimo o domínio da moda (...) Mas é claro que, para dar conta do sistema cotidiano dos objetos, esta análise tecnológica estrutural é insuficiente (BAUDRILLARD, 1968, p.12).

38

3. A IMPORTÂNCIA DA FORMA COMO PRIMEIRO CONTATO COM OS OBJETOS E SEUS SIGNIFICADOS MAIS RELEVANTES (OU O CAMPO PERCEPTIVO) Ao falar sobre a forma nos referimos algumas vezes a significados que se apresentam como sendo mais relevantes do que a forma em si mesma. Mas dissemos também, que esta relação não é passível de análises racionalizantes, deixando tempo e espaço para a ação de subjetividades que não podem ser ignoradas. Apesar dessas questões, as considerações sobre o campo perceptivo podem levantar alguns aspectos fundamentais para esta discussão, esclarecendo como a forma é na realidade menos relevante do que outros significados na percepção de objetos cotidianos. Consideremos primeiramente uma breve introdução a um conceito de percepção:

A percepção nos oferece um acesso ao mundo dos objetos práticos e instrumentais, isto é, nos orienta para a ação cotidiana e para as ações mais simples (...) A percepção é uma conduta vital, uma comunicação, uma interpretação e uma valoração do mundo, a partir da estrutura de relações entre nosso corpo e o mundo (CHAUI; 1999, p. 136).

Colocaremos agora, três questões imprescindíveis para o tema que estamos abordando, a saber: 1.

Ao falarmos no vínculo que possuímos com os objetos, seja este simbólico ou de uso, nos referimos a um relacionamento, ou seja, há significados que o objeto sugere, graças ao sentido que damos a

39

ele. Isto é, existe um individuo com um repertório singular que interpreta o significado dos objetos.

(...) A percepção não é causada pelos objetos sobre nós nem é causada pelo nosso corpo sobre as coisas: ela é a relação entre elas e nós, entre nós e elas. (...) A percepção envolve toda nossa personalidade, nossa história pessoal, nossa afetividade, nossos desejos e paixões, isto é, a percepção é uma maneira fundamental de os seres humanos estarem no mundo (CHAUI; 1999, p.138).

2.

O objeto não existe como ente individual, ou seja, ele faz parte de um

contexto

que

modifica

suas

características

individuais,

configurando os significados resultantes desta relação.

A percepção depende das coisas e do nosso corpo, depende do mundo e dos nossos sentidos, e por isso é mais adequado falar em campo perceptivo para indicar que se trata de uma relação complexa entre o sujeito e o mundo num campo de significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras, motrizes, espaciais, temporais e lingüísticas (CHAUI; 1999, p. 138).

An object in its natural state, such as a stone, only acquires meaning if human beings somehow interact with it. Meaning (as opposed to function or purpose) is essentially a quality of human self-awareness, possessing only an indirect relation to the natural organisation of matter (CARDOSO, 2001, 21 p13) .

3.

O objeto não é definitivo, já que oferece inúmeras possibilidades de renovação perceptiva.

Devido à relevância desse ultimo aspecto para a discussão, aprofundaremos um pouco mais tais questões.

21

Um objeto em seu estado natural, como pode ser uma pedra, só ganha sentido se de alguma forma os seres humanos interagem com ele. O significado (contrário da função ou da finalidade) é em essência, uma qualidade da autoconsciência humana que estabelece uma relação unicamente indireta com a organização natural da matéria (Tradução da autora).

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3.1 O ERRO PERCEPTIVO COMO POSSIBILIDADE REAL DAS COISAS DO MUNDO (E A CRIAÇÃO)

A percepção é [por exemplo] uma forma de conhecimento e de ação fundamental para as artes, que são capazes de criar um “outro” mundo pela simples alteração que provoca em nossa percepção cotidiana (CHAUI; 1999. p.136).

Abordamos o assunto do campo perceptivo com o objetivo de chamar a atenção para um aspecto fundamental nesta discussão. Em primeiro lugar, podemos afirmar que aquilo que entendemos por forma, e formas definitivas, são convenções abstratas e aleatórias que pretendem estabelecer limites que nos possibilitam o entendimento e relacionamento com as coisas do mundo, ou seja:

Forma significa, sempre, estrutura, organização, ordenação. Isso é muito importante, pois só podemos perceber formas, ou ordenações que sejam delimitadas. O que não conseguimos delimitar, nem conseguimos perceber. Assim, em qualquer área de conhecimento, a compreensão depende da concepção de limites (OSTROWER; 1988, p. 175).

Podemos dizer então que os objetos não são definitivos?

Em primeiro lugar, uma coisa tem sua grandeza e sua forma própria sob as variações e perspectivas que são apenas aparentes. Nós não lançamos estas aparências na conta do objeto, elas são um acidente de nossas relações com ele, não concernem a ele mesmo (MERLEAU-PONTY; 1999, p. 401).

Podemos dizer então que as coisas do mundo não são definitivas, isto porque dependem de um contexto e do repertório de um observador. Devido a estes fatores consideramos que existem infinitas possibilidades de interpretação que dão lugar a diferentes formas de manipulação dos objetos. Para entender como isso acontece proponho as palavras de Marilena Chauí sobre a ilusão ou o erro perceptivo:

41

A percepção está sujeita a uma forma essencial de erro: a ilusão, causada pela confusão entre várias percepções e várias idéias, levando-nos a tomar uma coisa por outra, (...) mas que também pode ser causada pelas condições de nosso corpo e do objeto (CHAUI; 1999. p.136).

Esse tipo de erro, entretanto, não se refere a uma mentira. Já colocamos anteriormente que o objeto não é definitivo, e que aquilo que entendemos pelas suas características próprias são convenções acidentais estabelecidas como verdadeiras. Portanto:

Perceber é sempre perceber um campo de objetos que permite corrigir uma percepção por meio de outra (CHAUI; 1999, p.137).

Mas como tudo isso se relaciona com a criação?

O ser humano é por natureza, criativo. No ato de perceber, ele tenta interpretar, e nesse interpretar, já começa a criar. Não existe um momento de compreensão que não seja ao mesmo tempo criação (OSTROWER; 1988, p. 167).

E, para concluir:

Remember: Application always implies action, being productive: reading, handling things, living or loving. But storing things and listening and viewing are also facts that do not simply happen to us, are not situational descriptions, but constitute actions too. There truly is a permanently productive reception and each perception and experience recontruct the perceived and the experienced. Acquirement always take place actively — the acquired object and that with wich we are dealing being altered as a result. It is precisely this which provides proof of the human powers of 22 imagination and design (BRANDES, ERLHOFF. 2006, s/p).

22

Lembre que a aplicação sempre implica uma ação, um ato produtivo: ler, manipular coisas, viver ou amar. Mas a acumulação de objetos ou os atos de escutar e observar não são simples fatos que nos acontecem, ou descrições situacionais, eles também constituem ações. Existe uma verdadeira recepção produtiva onde a percepção e a experiência são constantemente reconstruídas. As apreensões sempre acontecem ativamente, o objeto em apreensão e aquilo com que nos relacionamos é finalmente alterado. São precisamente estes fatos que provam os poderes humanos da imaginação e o design (Tradução da autora).

42

O mundo percebido é qualitativo, significativo, estruturado e estamos nele como sujeitos ativos, isto é, damos às coisas percebidas novos sentidos e novos valores, pois as coisas fazem parte de nossa vida e nós interagimos com o mundo (CHAUI; 1999, p.135).

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4. ATRIBUIÇÃO TRANSGRESSORA DE FUNÇÃO PELO USO (OU ATOS COMO AQUELES EM QUE SE USA UMA FACA COMO CHAVE DE FENDA)

4.1 ATRIBUIÇÃO DE FUNÇÃO PELO USO

Se os modos de pensamento propostos por este trabalho apresentam coerência e sentido, acabaremos por concluir que o comportamento a que nos estamos referindo, não é, necessariamente, transgressor. Havendo a necessidade de nomear esta forma de proceder podemos, portanto, sugerir que envolver frutas em papel jornal (função para a qual este último não foi produzido) pode ser uma atribuição de função imediata ou atribuição de função pelo uso. Se não bastasse o que foi dito até agora devemos apontar para um ponto fundamental nesta discussão: Além deste comportamento não ser aparentemente dotado de uma atitude transgressora, ele tem um papel importantíssimo no desenvolvimento da criação de objetos utilitários. Para entender do que se trata, voltaremos a uma questão abordada no primeiro capitulo, propondo novamente um argumento de Rafael Cardoso:

If we go back to first causes, (...) we find that hammer was not originally an object but an action, not a noun but a verb. The first humans to make use of a hammer took up whatever natural object was serviceable for the task and hammered away. The next step after that, was to look for more suitable natural objects, and the next after that was to interfere in the object so as to make it even more appropriate to the task at hand. At some point in this continuum, humans crossed the threshold between being doers and becoming makers; and natural objects were transformed by human ingenuity

44

into artefacts, that is, objects made by human hands. This is the natural scope of design in its broadest sense: to transform objects according to a 23 plan (2004, p 5) .

Dizemos então que o ato de criação de objetos de uso teve origem enquanto eram identificadas formas e estruturas, mais ou menos apropriadas para realizar determinadas ações, ou dito em outras palavras: O ato de criação de objetos de uso começou pelo processo (transgressor) subjetivo e/ou coletivo de atribuição de função. Se esta afirmação é coerente podemos aceitar a atribuição (transgressora) de função como um comportamento de cunho criativo, sem o qual não teríamos saído de ser “pessoas que fazem” a “pessoas que controlam, adaptam ou fabricam” Curiosamente, a relevância desse assunto não termina aqui, existe outro aspecto, igualmente importante a ser considerado. Vamos propor agora uma situação ideal para entender as relações entre esse processo e aquele realizado por projetistas de novos produtos. Primeiramente, existe uma necessidade

24

que será orientada a um público-

alvo, ou um grupo específico (determinado, por ex., através de pesquisas de mercado) ao qual se destina o objeto planejado. Logo de definir conceitualmente a

23

Se voltarmos às causas primeiras, (...) descobriremos que um martelo não era originalmente um objeto, se não uma ação; não era um substantivo, era um verbo. Os primeiros seres humanos em fazer uso de um martelo utilizaram qualquer objeto natural que fosse útil para esta tarefa e martelaram. O próximo passo foi procurar objetos naturais mais apropriados, e o próximo foi interferir nestes objetos para torná-los mais apropriados ainda para a tarefa e a mão. Em algum ponto deste processo, os seres humanos atravessaram o umbral entre serem homens que agem e serem homens que fazem, Fazendo com que os objetos naturais fossem transformados pela ingenuidade em artefatos, isto é, objetos feitos por mãos humanas. Este é o escopo natural do design no sentido mais amplo: transformar objetos seguindo um plano (Tradução da autora). 24

Importante lembrar que as necessidades não serão sempre reais, algumas serão inventadas pelos projetistas de produtos de acordo com a orientação de seus empregadores.

45

proposta do novo produto. (no processo conceitual são pensados os significados 25

“metafísicos” do objeto ). Após

esses

procedimentos

será

realizada

uma

série

de

análises

mercadológicas sobre produtos semelhantes, a fim de se decidir a maneira mais 26

eficaz de produzir (e reproduzir)

o novo produto.

Na fase seguinte, serão feitos os levantamentos das necessidades técnicas e das características materiais que seriam adequadas ao objetivo anteriormente designado.

Neste

ponto

podem

ser

considerados

materiais

novos

ou

convencionalmente utilizados para tais fins. É nesse momento que os aspectos mágicos e misteriosos do design acontecem: no momento da criação. Refiro-me aqui à criação no sentido da arte de fazer. Foi exatamente arte o que quis dizer, dado que:

Art and magic both partake of a process strictly describable as objectification, ie, the evocation of abstract ideas and their transformation into a concrete and palpable form. As part of their historical effort to distance themselves from the traditional arts and crafts, designers have often lost sight of this magical — literally, factitious — aspect of what they do, choosing instead to think of their activities as a species of engineering, guided not by anything as imprecise as creativity and artifice but rather by rigorous 27 methodologies and protocols of a scientific and technological bent. (CARDOSO, 2004. p.12)

25

Aqui tal conotação é proposital, devido à impossibilidade de racionalização de certos aspectos do objeto, conforme apontado no capítulo que trata da percepção.

26

No livro Objetos de desejo (2007), Adrian Forty apresenta o designer como criador de moldes, fazendo com que a atividade do design seja indivisível dos processos de reprodução.

27

Tanto a arte quanto a magia participam de um processo descrito estritamente como objetivação, isto é, a evocação de idéias abstratas e sua conseqüente transformação em uma forma concreta e palpável. Como parte de um esforço histórico para se distanciar das artes e dos ofícios tradicionais, os designers perdem constantemente de vista esse aspecto mágico — literalmente, artificial — do que realizam, escolhendo, no lugar disto, pensar sua atividade como uma espécie de engenharia, que não é em absoluto conduzida por coisas tão imprecisas como a criatividade e o artifício, mas, ao invés disso, por metodologias rigorosas e protocolos de tendências científicas e tecnológicas (Tradução da autora).

46

Nesse misterioso processo de criação há, sem dúvida, um elemento que pode nos parecer familiar: Em algum desses momentos, assim como acontecia nos primórdios, uma função é atribuída a um material, ou objeto existente, atribuição esta sem a qual seria impossível alguma relação de uso com as coisas. Dito de outra maneira: A atribuição de função é um passo indispensável na projeção e criação de objetos utilitários.

4.2 A IMPOSSIBILIDADE DE SE CHAMAR ATRIBUIÇÃO DE FUNÇÃO PELO USO E A ACEITAÇÃO DE SUA QUALIDADE TRANSGRESSORA

Dizemos que a atribuição de função, além de ser imprescindível na evolução da memória material ou manipulação de objetos materiais, é um ato criativo. Ao pensar nos princípios de criação e de percepção, vimos que somos passiveis de sofrer erros perceptivos (Chauí, 1999), sendo exatamente isso que nos caracteriza como pessoas com pontos de vista únicos. Assim, a princípio, aceitamos que toda criação assume, de fato, esses erros perceptivos como possibilidade real das coisas e que aquilo que se manifesta como verdadeiro a respeito da função como propriedade das coisas não apresenta fundamentos consistentes. Nesse momento da discussão, mesmo em vista de nossas considerações até chegar nesse ponto, vamos expor alguns argumentos a favor da característica transgressora do fato discutido neste trabalho. Como apresentado no primeiro capítulo, um indício relevante quando se observa um comportamento no cotidiano é a consideração sobre a motivação das pessoas envolvidas nesse acontecimento. Isso significa que mesmo que uma

47

análise do fato em si nos leve à conclusão de que ele não apresenta características transgressoras, é bastante provável que, para a pessoa que lida com o objeto, a atribuição de função possua um evidente componente transgressor. Em outras palavras, a pessoa, ao atribuir funções ao objeto, percebe que está quebrando um padrão. Em muitas ocasiões, poderemos corroborar essa transgressão sendo efetivada nos cenários da nossa vida cotidiana. Existem assim traços de desvio na atribuição de função pelo uso que não apresentam fundamentação epistemológica ou metodológica, em outras palavras, não têm comprovação científica. Então, será possível analisar esse tipo de situação? Com o objetivo de responder à pergunta, vou propor — por analogía — a análise de um fato pertinente ao relacionamento social cotidiano. A Constituição da República Federativa do Brasil, na declaração de 1988, refere-se ao ato matrimonial nos seguintes termos:

Não podem casar: I — os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II — os afins em linha reta; III — o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV — os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V — o adotado com o filho do adotante; VI — as pessoas casadas; VII — o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa 28 de homicídio contra o seu consorte .

Ao mesmo tempo, o texto constitucional aponta que:

O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada 29 separação de fato por mais de dois anos .

28

Extraído da constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm; último acesso em 9 de Junho de 2008.

29

Idem.

48

A Constituição, como declaração de lei, não aponta literalmente a liberdade que uma pessoa possui para contrair núpcias quantas vezes desejar. No entanto, podemos deduzir que se o contrário não é expresso, implicitamente o ato de contrair matrimônio pode ser realizado inúmeras vezes, sempre e quando sejam cumpridas as normas do primeiro artigo citado. Considerando essa situação, se uma pessoa sente necessidade de se casar algumas vezes em 10 anos, isso equivale a dizer que ela poderia se casar até 10 vezes

nesse

período.

Alguém

nessa

situação

poderia

provocar

reações

escandalizadas de toda ordem, mesmo que seu direito ao casamento seja legítimo visto estar contemplado pela lei. Pois ainda assim, é muito provável que seu comportamento fosse socialmente considerado como anormal — ou imoral. Ao propor esta analogia em particular, pretendo chamar a atenção para o aspecto central que define a atribuição de função pelo uso como um comportamento transgressor.

4.2.1 A moral da história

Ah, esses moralistas... Não há nada que empeste mais do que um desinfetante! Mario Quintana

Mesmo não se encontrando um método que fundamente em termos racionais a atribuição de função como uma transgressão, — assim como acontece com a sucessão de um número não convencional de divórcios e/ou casamentos realizados por uma mesma pessoa — é provável que essa ausência de fundamentação se dê

49

em virtude da inadequação desses comportamentos em relação aos padrões estabelecidos de normalidade (e, portanto, de moralidade). Perceber a atribuição de função como um ato transgressor têm um caráter que contradiz parâmetros que podem ser considerados morais. Quais são esses parâmetros? Analizemos uma breve citação sobre a definição de desvio de função feita por Túlio Fornari, da área da engenharia e o design:

Hemos querido poner em crisis al funcionamento ingenuo, pero tampoco queremos pecar de extremistas en la relativización. Si bien hay desviaciones respecto a usos previstos, también es cierto que la mayoria de los destinatários de productos, em general reconocen y aceptan sus funciones innatas y los emplean en consecuencia. (Aparte de vampiros no debe haber muchas personas que duermen em ataúdes, acostumbran hacerlo em 30 camas) (989. p 30) .

O modo como o autor propõe o assunto da atribuição de função pelo uso é um tanto radical, porém podemos perceber como a função das coisas é verdadeiramente um ponto sensível para os princípios morais do projeto de produto, no qual todos os fatores que se apresentam como sendo divergentes do objetivo original, são considerados incorretos: desvios que estão ao mesmo nível de situações de ciência ficção 31. Analizemos um pouco melhor como funciona o comportamento baseado em regras de moral. Para isto proponho as considerações de Milton de Almeida quando faz um paralelo entre os métodos de ensino modernos e as leis da Escolástica

30

Quisemos colocar em crise o funcionamento ingênuo, porém não queremos pecar como extremistas na relativização. Mesmo que existam desvios em relação a usos previstos, também é certo que a maioria dos destinatários de produtos reconhece e aceita suas funções inatas, empregando-os consequentemente. (Além de vampiros não devem existir muitas pessoas que durmam em caixões, acostumam fazê-lo em camas) (Tradução da autora). 31

Já diria Christian Kasper, no ensaio sobre desvio de função: (...) que os meios devem ser proporcionais aos fins é uma lei que tem, em nossas sociedades, o valor de um imperativo moral (2001. p. 3).

50

concebidas por São Tomás de Aquino durante a Idade Média. Chamo a atenção para as semelhanças que podem ser encontradas com as metodologias de projeto em design.

Para os escolásticos, o fim — nos projetos, ou nos planos, chamado de o objetivo — deve ser pensado e conduzido pelo intelecto, também chamado de “razão universal”, (…) Esse movimento, segundo Aquino, é o seguinte: primeiro é pensado o fim, sempre um bem a ser alcançado, e deliberado por meio da definição da verdade. Em seguida, delibera-se sobre os meios, tendo em vista o fim, o objetivo, o bem, a verdade. Nesse momento, acontece a escolha dos meios para atingir o fim definido logicamente, portanto é o momento do controle das condições circunstanciais, do desejo, dos apetites que podem desviar o ser envolvido da boa direção ao bem a ser alcançado. O movimento, que se realiza por intermédio dos meios, deve encaminhar o projeto ao fim, ao bem a ser atingido, que se confunde com o início, o bem desejado. Como o objeto do fim, do objetivo, é sempre o bem, os meios serão controlados pelas virtudes. E a razão condutora é naturalmente sempre a razão do bem, o mal é “desrazão” (…) Os erros e desvios serão atribuídos aos vícios, pois o mal, que segundo Aquino não é inerente ao homem, é um acidente, um desvio, é a ausência de bem que 32 pode ser reposta, ou ensinada, ou verificada pelo projeto (2005, p. 21) .

Acredito

que

esse

texto

traz,

para

este

estudo,

considerações

epistemológicas — e metodológicas — que se revelam pontuais no sentido de esclarecer as ideologías subjacentes às idéias de PROJETO que sustentam o imaginário de nossa cultura, incluindo nesse contexto, sem sombra de dúvida, a prática projetual em design.

32

Milton de Almeida apresenta a seguinte citação como nota de fundo para seu texto: Nada morre jamais numa vida. Tudo sobrevive. Nós, ao mesmo tempo, vivemos e sobrevivemos. Assim também toda a cultura é sempre entrelaçada de sobrevivências. No caso que estamos agora examinando, o que sobrevive são aqueles famosos 2 mil anos de imitatio Christi, aquele irracionalismo religioso. Eles não têm mais sentido, pertencem a um outro mundo, negado, recusado, superado; e, no entanto, sobrevivem. São elementos historicamente mortos, mas humanamente vivos que nos compõem. Penso que seria ingênuo, superficial, faccioso negar ou ignorar sua existência. Eu, pessoalmente, sou anticlerical (não tenho nenhum medo de afirmá-lo), mas sei que em mim existem 2 mil anos de cristianismo: eu construí com meus antepassados as igrejas românicas, e depois as igrejas góticas, e depois as igrejas barrocas: elas são meu patrimônio, no conteúdo e no estilo. Seria louco se negasse essa força poderosa que existe em mim: se deixasse para os padres o monopólio do Bem (PASOLINI, 1962).

51

5. SOBRE ALGUNS DOS MEIOS TRANSGRESSORES DA FUNÇÃO Agora que tentamos esclarecer a forma como tais questões se apresentam como uma transgressão para o conhecimento comum, tentemos entender um pouco sobre como isso acontece. Com a idéia de fundamentar melhor as características das pessoas transgressoras será pertinente traçar um paralelo entre uma concepção de Walter Benjamin em A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica33 e a atribuição transgressora de função pelo uso. Segundo Benjamin, uma das conseqüências da reprodutibilidade técnica para a arte é a distância entre a atitude de fruição e a atitude crítica — por parte do público. Devido a essas diferenças, podem ser identificadas reações de tipo progressista ou retrógrado no espectador, assim:

O comportamento progressista se caracteriza pela ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado e a atitude do especialista, por outro. (...) Assim o mesmo público que têm uma relação progressista diante de um filme burlesco, tem uma reação retrógrada diante de um filme surrealista (BENJAMIN, 1994, p. 173).

Quem atribui uma função pelo uso, nos termos de Benjamin, precisa ter um comportamento progressista, isto é, confiança frente ao objeto que sofrerá a transgressão, geralmente produzida pelo conhecimento (mesmo que aparente) do objeto que será modificado ou apropriado.

33

Nesse texto é discutida a forma de recepção dos quadros dentro do contexto da sociedade de massa.

52 34

Vejamos um exemplo que explicara melhor essa questão :

A

cadeira,

“um

dos

objetos

mais

freqüentemente

projetados

e

constantemente apropriados pela invenção de diversas novas funções pelo uso”35 funciona neste caso, como suporte para dirigir-se a um lugar mais alto. Independente da intenção com que a pessoa da foto (e o gato) tenha subido na cadeira, — que foi projetada para sentar-se —, o objeto a que nos referimos é definitivamente comum e, portanto, permite a livre apropriação, que nos termos de Benjamin, foi apresentada como uma atitude progressista. Podemos sustentar essa afirmação ao analisarmos o caso contrário, ou seja, a apropriação de objetos que se apresentam como misteriosos para o conhecimento comum.

34

Extraído de http://flickr.com/photos/65151897@N00/2528461147/ último acesso em 23 de Junho de 2008 35

“The chair, one of the most frequently designed and redesigned objects: inventing diverse new functions through usage” (BRANDES, ERLHOFF, 2006, s/p). (Tradução da autora).

53

Os objetos de cunho tecnológico estão relacionados ao conhecimento específico, tanto nos casos das pessoas que os fabricam, como nos casos de quem os manipula, isto é, temos uma noção sobre o uso para o qual esses objetos podem ser utilizados, mesmo sem entender os processos que acontecem para dar lugar a essas ações. Essa proposição implica que ao desconhecermos a essência desses objetos, temos com eles atitudes retrógradas no momento do uso. Se analisarmos os casos em que objetos tecnológicos são transgredidos funcionalmente, podemos observar como essa situação é fundamentada. Um exemplo destes casos é mostrado a seguir36:

36

Extraído do livro Non Intentional Design (BRANDES, ERLHOFF, 2006, s/p)

54

Para fazer com que essa geladeira fosse transformada num armário, seus mecanismos tecnológicos foram aparentemente eliminados, fazendo com que os elementos funcionais, desconhecidos pelo conhecimento comum, deixassem de fazer parte do sistema fundamental de significado. Christian Kasper fundamenta essas proposições ao referir-se ao desvio de função em objetos tecnológicos:

Um exemplo espetacular deste caso é o atentado do 11 de setembro: o desvio de função — usar uma linha aérea para derrubar uma torre — passou por um desvio de rota, para o qual a competência necessária era de um piloto, usuário legítimo do artefato avião. (…) Quanto ao conhecimento do técnico, ele possibilita uma intervenção ao nível dos elementos que compõem o artefato, e, sobretudo, uma previsão dos efeitos produzidos pelas alterações do funcionamento. Não há dúvida que isso possa ajudar a viabilizar usos alternativos das tecnologias, mas certamente não os promove. (…) Novas propriedades, e, portanto, novos usos, só poderão aparecer na ocasião de experimentações, com os riscos que isso comporta. (2004, p. 4)

Podemos perceber assim, que os objetos que se apresentam como sendo passíveis ao ato transgressor são aqueles que conhecemos e com os quais estabelecemos relações íntimas que permitem o ato criativo. Se voltarmos para os argumentos das questões morais e resgatarmos também o fato de que os objetos mais propícios ao desvio funcional são aqueles com os quais possuímos relações mais intimas, podemos sugerir então que os espaços mais favoráveis para a transgressão são os lugares privados. Não pretendo com essa colocação ignorar casos públicos e sem dúvida extraordinários de atribuições transgressoras de função pelo uso, pois diariamente observamos sacolas fazendo o lugar de guarda-chuvas, baldes e garrafas como instrumentos musicais, postes como bicicletários e bancos de rua utilizados como camas. Apesar disto não podemos negar como esses comportamentos nos causam curiosidade por serem soluções certamente criativas, e, claro, transgressoras.

55

Esse fato pode mostrar-nos, porém, a maneira como a transgressão de função se relaciona com todas as pessoas. Vemos como esse comportamento é uma realidade singular e íntima que se apresenta para nós como um sinal das significativas relações que estabelecemos com as coisas do mundo. Tendo discorrido sobre alguns dos meios transgressores da função, gostaria de propor como ultima colocação, ou quem sabe provocação, uma metáfora sobre a invenção na literatura:

¿Pero de qué nos sirve la verdad que tranquiliza al propietario honesto? Nuestra verdad posible tiene que ser invención, (...) En uno de sus libros, Morelli habla del napolitano que se pasó años sentado a la puerta de su casa mirando un tornillo en el suelo. Por la noche lo juntaba y lo ponía debajo del colchón. El tornillo fue primero risa, tomada de pelo, irritación comunal, junta de vecinos, signo de violación de los deberes cívicos, finalmente encogimiento de hombros, la paz, el tornillo fue la paz. (...) Morelli pensaba que el tornillo debía ser otra cosa, un dios o algo así. Solución demasiado fácil. Quizá el error estuviera en aceptar que ese objeto era un tornillo por el hecho de que tenía la forma de un tornillo. Picasso toma un auto de juguete y lo convierte en el mentón de un cinocéfalo. A lo mejor el napolitano era un idiota pero también pudo ser el inventor de un mundo. Del tornillo a un ojo, de un ojo a una estrella... ¿Por qué entregarse a la Gran Costumbre? Se puede elegir la invención, es decir el tornillo o el 37 auto de juguete. (...) Julio Cortázar Rayuela

37

Porém, de que nos serve a verdade que tranquiliza o proprietário honesto? Nossa verdade tem que ser invenção, (...) Em um dos seus livros, Morelli fala do Napolitano que passou anos sentado à porta da sua casa olhando um parafuso no chão. De noite, pegava-o e guardava debaixo do colchão. primeiro uma simples piada, uma gozação, uma irritação comunal, reunião de vizinhos, sinal de violação dos direitos cívicos e, finalmente, um encolher de ombros, a paz, o parafuso foi a paz (...) Morelli pensava que o parafuso devia ser outra coisa, um deus ou algo assim. Solução demasiadamente fácil. Talvez o erro tenha sido aceitar que esse objeto fosse um parafuso, tãosomente por ter a forma de um parafuso. Picasso pega um carro de brinquedo e o converte no queixo de um cinocéfalo. É bem possível que o napolitano fosse um idiota, mas também pode ter sido o inventor de um mundo. Do parafuso a um olho, do olho a uma estrela... Porque entregar-se ao Grande Costume? É possível escolher a invenção, ou seja, o parafuso, ou o carro de brinquedo (...) (Tradução da autora)

56

6. ANOTAÇÕES FINAIS

Hacer. Hacer algo, hacer el bien, hacer pis, hacer tiempo, la acción en todas sus barajas. Pero detrás de toda acción había una protesta, porque todo hacer significaba salir de para llegar a, o mover algo para que estuviera aquí y no allí, o entrar en esa casa en vez de no entrar o entrar en la de al lado, es decir que en todo acto había la admisión de una carencia, de algo no hecho todavía y que era posible hacer, la protesta tácita frente a la continua 38 evidencia de la falta, de la merma, de la parvedad del presente. Julio Cortázar Rayuela

Devido às características deste trabalho, a proposição de conclusões seria uma intenção falha. Apresentamos um comportamento de cunho criativo, impossível de ser analisado desde um ponto de vista exclusivamente lógico, que se refere a uma intima relação subjetiva dos indivíduos com as coisas do mundo. Foi exposto como os fundamentos de forma e função são extremamente variáveis, ao lado de concepções inventivas que desmentem o absoluto como uma concepção generalizada de situações cotidianas. Chamamos a atenção para um comportamento comum que nos coloca no mundo como seres ativos nos processos dos quais fazemos parte e ao mesmo tempo nos aponta as possibilidades infinitas existentes nessas relações.

38

Fazer, fazer algo, fazer o bem, fazer xixi, fazer tempo. A ação em todos seus baralhos. Porém, atrás de toda ação há um protesto, porque toda ação significa sair de um lugar para chegar em outro, ou movimentar alguma coisa para que esteja aqui e não lá, ou entrar naquela casa no lugar de ficar fora dela, ou entrar na casa do lado; ou seja, em todo ato existe a aceitação de uma carência, de algo que ainda não foi realizado, mas que era possível fazer, a proposta tácita frente à continua evidencia da falta, da ausência, da escassez do presente. (Tradução da autora)

57

Mesmo considerando essas colocações e apesar da impossibilidade de apresentar conclusões definitivas, podemos apontar para alguns resquícios provenientes da análise da atribuição transgressora de função pelo uso (ou aqueles casos em que, por exemplo, alguém amarra o cabelo com um lápis): 

A forma das coisas, os fundamentos, as leis e as verdades são opções, convenções, paradigmas. Essas opções implicam em todos os casos o abandono de outras coisas, outros fundamentos, outras convenções. Aquilo que vemos, as ações em que estamos envolvidos, o mundo em que vivemos é baseado em escolhas, escolhemos que isto seja desta forma agora, e daquela forma depois, mas aquilo que não fizemos, aquela escolha que ignoramos e aquilo que ainda não existe, é um universo de possibilidades infinitas.



As subjetividades são resultados de experiências individuais que nos constituem como seres autonomos e criativos capazes da modificação e apropriação das coisas materiais, como reflexo de desejos, vontades e necessidades intermináveis e indeterminadas.



Os objetos são sinais da nossa passagem pelo mundo, sua adaptação e apropriação denotam nossa capacidade de criação e imaginação que assume formas magníficas a partir da atribuição de significado.



A transgressão existe graças à instituição de regras e limites, devo propor então, longa vida aos limites e que vivam as regras e as convenções!

Senhoras e senhores agora vocês têm alguns motivos para dar uma risada oculta ao matar aquela barata suja com seu chinelo.

58

ANEXOS39

39

As Imágens desta página foram extraídas do livro Non Intentional Design (BRANDES, ERLHOFF, 2006, s/p). As figuras da página seguinte foram capturadas pela autora desta monografia.

59

60

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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