Audio-Arte: Memórias de um blog musical (livro)

May 25, 2017 | Autor: Daniel Cerqueira | Categoria: Music, Blogs, Música, Música e Administração, Musicología histórica
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Daniel L. Cerqueira

Memórias de um blog musical

Rio de Janeiro 2017

Daniel L. Cerqueira

Audio-Arte: Memórias de um blog musical

Rio de Janeiro Edição do autor 2017

CERQUEIRA, D. L. Audio-Arte: Memórias de um blog musical. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2017. 495p. ISBN: 978-85-912882-1-2

Não escrevo para os eruditos em assuntos musicais, pois esses de mim não precisam. João Nunes (1877-1951)

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 5 MEMÓRIAS DE UM BLOG MUSICAL 1. Estreia do Blog ....................................................................................................... 11 2. “A Importância da Música” ...................................................................................13 3. A Excelência da Performance Musical .................................................................. 15 4. Aprendizagem colaborativa na Performance Musical .......................................... 17 5. Pensamentos em uma caminhada na praia... .......................................................19 6. A relação Compositor-Intérprete na contemporaneidade....................................21 7. Sobre o Erudito e o Popular ................................................................................. 24 8. Considerações sobre Arte e Entretenimento ....................................................... 27 9. Do Concertista ao Pagodeiro ................................................................................ 29 10. Sobre a “Excelência” da Performance Musical, parte II .................................... 32 11. O espaço da Perfomance Musical nas Universidades brasileiras ....................... 35 12. Concebendo Improvisação e Composição como um só processo ...................... 38 13. O problema de Richard Clayderman ...................................................................41 14. Os conceitos de Absoluto e Relativo na Teoria Musical ..................................... 43 15. Sobre Concursos de Música ................................................................................ 45 16. “Criatividade” ...................................................................................................... 47 17. O Entretenedor Musical ...................................................................................... 50 18. Criando um estúdio em casa............................................................................... 52 19. A fronteira entre o músico profissional e o amador ........................................... 57 20. Afinal o que é Educação Musical? ...................................................................... 60 21. Pela Escola de Música do Maranhão .................................................................. 63 22. Qualquer um pode ser músico! (?) ..................................................................... 65 23. José Alberto Kaplan: um importante educador musical ................................... 68 24. “Substituição na Chefia Departamental” ........................................................... 70 25. Será o Piano um instrumento decadente? ......................................................... 72 26. Sobre Pesquisa em Música ................................................................................. 74 27. Ensino “Reprodutivo” ..........................................................................................77 28. Contextos do ensino musical.............................................................................. 80 29. “A Música dialoga com...”................................................................................... 84 30. Pedagogia do Piano ............................................................................................ 89 31. O professor de Performance Musical e a “pesquisa” ...........................................91 32. Aprender Música é diferente! ............................................................................. 93 33. Pedagogia do Piano: Técnica e Repertório......................................................... 96 34. Blogs sobre Música ............................................................................................. 98 35. Pedagogia do Piano: Performance Musical, crítica e autoestima .................... 102 36. Instrumentação MIDI no Windows ................................................................. 105 37. Pedagogia do Piano: a Música Popular na formação do pianista .................... 108 38. Administração Musical...................................................................................... 110 39. Administração Musical, parte II ....................................................................... 113 40. As últimas do Ministério da Cultura ................................................................. 115 41. Professor Universitário de Música: múltiplas incompetências ........................ 117

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42. Interface entre Música e Tecnologia ................................................................. 119 43. Leitura à Primeira Vista como critério de avaliação ......................................... 121 44. Sobre a “Boa Música” ....................................................................................... 124 45. Sete razões para defender a Prova de Habilidades Específicas ....................... 126 46. Mais um escândalo do Ministério da Cultura .................................................. 129 47. Análise do Projeto de Lei n.º 4.915/2012......................................................... 130 48. Aulas de História da Música na Educação Básica ............................................133 49. Universidade das Artes..................................................................................... 136 50. “Música de Elite” ............................................................................................... 137 51. Manifesto pela Música nas academias.............................................................. 140 52. Música na Educação Básica: um percurso histórico ........................................ 143 53. Cultura e Sociedade: Cultura ou Sociedade? ................................................... 144 54. Uma questão sobre Música e Educação ............................................................ 147 55. Colaboração na Música ..................................................................................... 149 56. Edição de Áudio: reduzindo a latência de seu computador............................. 150 57. Discurso e Prática na Pedagogia do Piano ........................................................154 58. Polivalência na Universidade? ..........................................................................156 59. Acerca deste blog .............................................................................................. 158 60. História da Educação Musical nas Licenciaturas ............................................ 160 61. Sugestões de Arquivologia Digital para músicos.............................................. 162 62. Sobre os Conselhos de Cultura ..........................................................................165 63. Ciência? Para quê?............................................................................................ 168 64. Dilema pessoal na vida profissional ................................................................. 170 65. Investimento na Cultura popular ...................................................................... 173 66. Tenha Dó (Maior) .............................................................................................. 175 67. Como contribuir musicalmente? ....................................................................... 177 68. Sobre pianos e turntables .................................................................................. 179 69. Para quem são as Políticas Públicas de Cultura? ............................................. 180 70. Discussão sobre o Edital do funk carioca......................................................... 182 71. Referências sobre Políticas Públicas de Cultura............................................... 184 72. Administração Musical: trabalhando com as “reservas” ..................................187 73. Discussão sobre as discussões .......................................................................... 189 74. Pesquisa em Música e Pesquisa sobre Música .................................................. 191 75. Falando em Copa do Mundo... ......................................................................... 192 76. A função social da música................................................................................. 194 77. Alguém se lembra da “Lambada”?.....................................................................195 78. Darwinismo Cultural ......................................................................................... 197 79. I Encontro Nacional do Ensino Superior das Artes ......................................... 199 80. II Congresso da ABRAPEM ............................................................................. 202 81. Editais da Cultura de São Luís em 2014 ........................................................... 204 82. Edital n.º 21/2014 “Mais Orquestra” da FAPEMA .......................................... 206 83. Germany 7 X 1 Brazil ......................................................................................... 211 84. Sobre as setoriais de cultura .............................................................................213 85. Enlatado cultural ...............................................................................................215 86. A mais nova da Lei Rouanet ............................................................................. 218 87. Cultura Sem Fronteiras .................................................................................... 220

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88. Sobre o termo “Performance Musical” ............................................................ 221 89. Exemplos de peças nos modos gregos ............................................................. 223 90. Piano e educação inclusiva ............................................................................... 225 91. Presentment ...................................................................................................... 227 92. Group Piano: na experience report .................................................................. 230 93. Saiu o MuseScore 2.0 ....................................................................................... 233 94. Música maranhense ......................................................................................... 235 95. O tesoureiro ...................................................................................................... 238 96. Arte e Cultura ................................................................................................... 240 97. “Parabéns pra você...” ....................................................................................... 243 98. Uma homenagem ............................................................................................. 244 99. A last word regarding Music and Astronomy .................................................. 245 100. Feliz Dia do Músico! ....................................................................................... 248 101. The disaster in Brazil .......................................................................................251 102. Pra rir um pouco ............................................................................................. 253 103. Scott Weiland .................................................................................................. 254 104. Sobre o Teste de Habilidades Específicas (de novo) ...................................... 255 105. Pela Pedagogia do Piano, parte I .................................................................... 257 106. Um parêntesis ................................................................................................. 260 107. Música e marxismo ......................................................................................... 262 108. Vendem-se sonhos e memórias ...................................................................... 265 109. Pela Pedagogia do Piano, parte II .................................................................. 268 110. Novidades sobre a Lei Rouanet ...................................................................... 272 111. Internet e mudanças na legislação de direitos autorais .................................. 274 112. Uma rapidinha ................................................................................................ 277 113. Abaixo os -ismos .............................................................................................. 279 114. A extinção do Ministério da Cultura ............................................................... 281 115. A extinção do Ministério da Cultura, parte 2 .................................................. 283 116. A volta do Ministério da Cultura, parte final? ................................................ 285 117. Um adendo ...................................................................................................... 293 118. Sobre contribuições musicais: a história de João Carlos Dias Nazareth ....... 294 119. Trabalhos sobre letra de música ..................................................................... 296 120. O Maranhão está de luto ................................................................................ 298 121. “Arte como passaporte” ................................................................................... 299 122. Comemorações dos 199 anos do Teatro Arthur Azevedo ............................... 301 123. Pareidolia ........................................................................................................ 304 124. Plágio em Stairway to Heaven? ...................................................................... 307 125. Prêmio da Música Brasileira ........................................................................... 310 126. Olimpíadas .......................................................................................................312 127. A morte de um estudante na UFMA ................................................................ 315 128. Formação de plateia........................................................................................ 318 129. MaraDub ......................................................................................................... 322 130. Desafios do professor artista na universidade brasileira ............................... 323 131. About America ................................................................................................. 324 132. Uma apresentação para refletir... .................................................................. 325 155. E a história se repete... ................................................................................... 407

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156. Políticas culturais do Maranhão pelo Portal de Transparência Pública ........ 409 163. World Music Map ........................................................................................... 436 174. Questões acadêmicas na Performance Musical .............................................. 487 SÉRIE HISTÓRIA MUSICAL DO MARANHÃO 133. Marcellino Maya ............................................................................................. 326 134. Alcino Billio ..................................................................................................... 330 135. Sérgio Marinho ............................................................................................... 333 136. Francisco Freire de Lemos.............................................................................. 337 137. Claudio Serra ................................................................................................... 340 138. José Martins.................................................................................................... 344 139. Ignacio Billio ................................................................................................... 349 140. Francisco Antonio Colás ................................................................................. 354 141. João Facióla ..................................................................................................... 358 142. Faustino Rabello ............................................................................................. 360 143. Bernardino Barros .......................................................................................... 363 144. Francisco Xavier Beckman ............................................................................. 366 145. João José Lentini ............................................................................................ 368 146. Pedro do Rosário............................................................................................. 374 147. Cecílio Coimbra ............................................................................................... 377 148. João de Deus Serra ......................................................................................... 379 149. Luiz do Rego Lima .......................................................................................... 381 150. Isidoro Lavrador da Serra............................................................................... 384 151. Chaminé ........................................................................................................... 386 152. Lygia Barbosa .................................................................................................. 389 153. Adelmana Torreão .......................................................................................... 391 154. Alguns mestres de bandas do Maranhão ........................................................ 398 157. Dionisio Algarvio ............................................................................................. 412 158. Bruno Wyzuj ................................................................................................... 414 159. Joaquim Zeferino Ferreira Parga ................................................................... 420 160. Maestro Ettore Bosio ...................................................................................... 425 161. Osiris do Nordeste ........................................................................................... 430 162. Padre Jocy Rodrigues ..................................................................................... 434 164. Nhozinho Santos ............................................................................................. 437 165. Undine Mello .................................................................................................. 439 166. Maestro Joaquim Franco ................................................................................ 445 167. Olga Mohana ................................................................................................... 453 168. Mini-dicionário biográfico de músicos maranhenses .................................... 459 169. Almerinda Nogueira ....................................................................................... 466 170. Esther Santos .................................................................................................. 472 171. Creusa Tavares................................................................................................. 475 172. Argemiro Belleza ............................................................................................. 479 173. João Evangelista do Livramento..................................................................... 483 SOBRE O AUTOR ..................................................................................................... 495

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APRESENTAÇÃO Pra quem deixou algum texto escrito, acredito que todos nós nos assustamos ao reler textos de tempos anteriores. “Mas eu pensava mesmo desse jeito?” Essa é a maior prova de que estamos em um estado constante de aprendizado e de mudanças. Porém, ao invés de se “envergonhar” do que deixamos para trás, é mais interessante observar como trilhamos esse caminho – afinal, o presente é justamente o resultado de nosso aprendizado com as “tentativas e erros” do passado. E assim vamos buscando as nossas “verdades” – que, naturalmente, são temporárias. Sob uma perspectiva educacional, é muito interessante que os outros possam ver nossas trilhas. Como me disse uma vez a exímia pianista e professora Celina Szrvinsk, quem nos vê hoje não sabe o quanto já vivemos de altos e baixos, vitórias e derrotas. Em um dado momento, estamos em um ponto diferente dessa estrada. Nessa perspectiva, não faz sentid0 entender que uma pessoa é “melhor” ou “pior” do que a outra: cada uma está em um determinado local e momento dessa caminhada conforme a trilha que pretende percorrer, e nada mais. Esse é um bom ponto de partida para começarmos a desconstruir o conceito de “evolução” e – especialmente – o pedantismo que existe no meio acadêmico: covardes que se acham “proprietários do conhecimento” e se escondem atrás de autores e citações, comissões julgadoras, normas, regimentos ou que simplesmente humilham outras pessoas para tentar se convencer de que não passam de completos inúteis... Por sorte, esse perfil tende a se isolar e sumir. Cada vez mais há docentes com o verdadeiro espírito acadêmico de construir o conhecimento de forma coletiva e transparente, com autocrítica – em todos os sentidos – e disposição a dialogar (que saibam falar e, especialmente, ouvir) e ajudar de forma sincera. Focando agora nos tipos de discussão que foram levantados no blog (acredito que o itálico a partir de agora se tornaria redundante, pois essa palavra é utilizada com frequência apesar de ser um estrangeirismo) durante esses anos, as inquietações e insatisfações que me moviam na época continuam sendo as mesmas; apenas o discurso que foi se alterando – amadurecendo, talvez – de acordo com o que eu ouvia de respostas. Não é meu interesse atingir a ninguém, por isso é sempre importante repensar constantemente a retórica, que algumas vezes é mais ofensiva e outras mais cautelosa. Cada pessoa que se afasta do nosso discurso é uma porta que se fecha. Um detalhe curioso que vejo hoje é como algumas ideias minhas estavam em “consonância” com o tema da pesquisa artística, amplamente difundido em países como Holanda, Suécia, Finlândia, Reino Unido, África do Sul e Austrália. Eu ainda não conhecia os livros de Robin Nelson, Efva Lilja e, em especial, Henk Borgdorff. Ideias semelhantes à “pesquisa nas artes”, “prática como pesquisa”, “conhecimento incorporado” estão presentes em alguns textos, como “Manifesto pela Música nas academias” e “Pesquisa em Música e Pesquisa sobre Música”. Porém, isso é digno de um “puxão de orelha”, pois um aspecto positivo do meio acadêmico é justamente não nos deixar “descobrir o ovo de Colombo”... isso é sinal de que eu não estava a par de

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uma literatura interessantíssima sobre o assunto, revelando que eu não estava sozinho nessas inquietações. Hoje, podemos levar isso adiante – e academicamente. Dentre os assuntos mais discutidos, há muitos sobre Performance Musical e seu ensino – com ênfase na Pedagogia do Piano – e, como desmembramento desta, questões sobre o que tenho chamado de “Administração Musical”, que não é apenas autogestão da carreira e elaboração de projetos, mas uma crítica mais aprofundada sobre a profissão de músico, questionando as relações de trabalho e as políticas culturais. Há também discussões sobre Educação Musical, uma subárea que me incomoda profundamente devido aos “discursos prontos” adotados que, ao invés de analisar o contexto em que cada estratégia didática em particular funciona, tentam “universalizar” o que é “certo” ou “errado” no ensino musical – e que, geralmente, depreciam o ensino da Performance Musical. Já mais recentemente, procurei abordar a história musical do Maranhão, já que tenho me debruçado sobre esse tema. Como não vai ser possível tratar sobre todo contexto musical investigado, decidi utilizar o blog para publicar parte do material encontrado, especialmente devido à absoluta escassez de informações sobre o assunto. Espero que essas informações possam ter alguma aplicação mais imediata para quem se interessa em estudar e ensinar os músicos e seu contexto histórico, até mesmo porque são poucas as pessoas que parecem se interessar pela sua própria memória. Em 2017, o Teatro Arthur Azevedo vai fazer duzentos anos. Entretanto, o mesmo já não recebe a variedade de espetáculos de outrora, que teve seu auge durante a segunda metade do século XIX. Ele foi palco de um riquíssimo intercâmbio cultural, com a vinda de companhias de outras Províncias e de vários países, a exemplo de Portugal, Itália (os mais contemplados), Espanha, França, Estados Unidos e até Japão. Assim, mais um motivo que me levou a trazer várias críticas sobre as Políticas Públicas de Cultura do Maranhão é justamente o fato de que elas simplesmente ignoram essa preciosa história, e hoje só contempla (ou melhor, explora) grupos folclóricos para turistas verem, além de shows de Revéillon com ícones da música popular convidados de outros Estados sob cachês altíssimos – e enquanto isso, vários artistas maranhenses e que residem no Maranhã0 não tem apoio pra absolutamente nada, sendo lembrados apenas pra se apresentar de graça em “Nome do Governo do Maranhão” ou sob o argumento da “oportunidade de divulgação”, como se fossem porcos chafurdando por migalhas. Cabe ainda destacar a mentalidade “eurofóbica” que tem tomado conta não só do Maranhão, mas do Brasil. Essa preocupação em superar o eurocentrismo – que é muito necessária e positiva – está gerando justamente o oposto: agora, o brasileiro tende a renegar a origem europeia de sua cultura, que é tão importante quanto a origem africana e a précolombiana (no caso, a indígena). Precisamos entender que independente da condição de dominante ou dominado, opressor ou oprimido, somos hoje um resultado dessas três origens e que devem ser vistas de forma equilibrada. A questão não é “compensar” os erros do passado depreciando uma origem ou outra, e sim aprender com eles para que possamos construir um futuro melhor. E esse é meu grande dilema hoje: depois de uma longa pesquisa sobre o piano no Maranhão e voltar com toda a disposição para dar aulas, apresentar o repertório,

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organizar eventos, fazer tournées pelas cidades do interior e mostrar à sociedade uma parte de sua história que poucos conhecem... chegarei na atual Secretaria de Cultura e Turismo (e que nomenclatura tão apropriada, não?) para ter a porta fechada na minha cara por não estar trabalhando com “bumba-meu-boi”, “tambor-de-crioula” ou “cacuriá”... se as Políticas Públicas de Cultura não forem para ajudar artistas com esse tipo de iniciativa, então pra que servem? Só pode ser para privilegiar grupos no poder, fazer lavagem cerebral na população sobre o que deve ser a sua “identidade cultural”, ou até mesmo para desviar recursos públicos... ou sou eu que tenho de aceitar o fato do piano ser um instrumento de origem europeia e viver em penitência por causa disso? Aqui entra meu ponto de desacordo com os antropólogos: a música “erudita” ou “de concerto”, por ser muito associada ao “europeu” – apesar de já nos pertencer de fato – não é vista como uma prática cultural cada vez mais fragilizada. No Maranhão, então, ela sempre esteve em situação vulnerável. Com relação à minhas publicações “científicas”, outro dilema me apetece. Sempre escrevo pensando no cantor, instrumentista, professor de instrumento, harmonia, contraponto, do músico “prático”, DJ ou do artista independente, ou seja: aqueles que tem maior intimidade com a produção artística. Entretanto, esses mesmos profissionais estão muito ocupados justamente em fazer essa produção artística – fato que é compreensível e extremamente louvável, ainda mais diante do desconforto constante devido a um sistema acadêmico avesso a esse tipo de trabalho. Contudo, são pouquíssimos os que leem tais publicações. Por outro lado, pessoas ligadas a outras áreas do conhecimento e até mesmo às demais subáreas da Música, interessados mais nas leituras, tendem a não gostar das minhas publicações. Resumindo: tenho refletido seriamente se vale a pena continuar escrevendo, pois as pessoas pra quem eu escrevo não leem, e quem lê não gosta. Mais essa... Enfim, são questões cuja solução estão muito além da minha alçada. O que posso fazer é levantar a crítica. E meu “sonho” de levar à população maranhense o piano, que teve uma presença importante em sua cultura, provavelmente vai dar espaço para vários goles de cerveja e tardes inteiras em crise existencial, por ter a sensação de que todo o meu trabalho artístico e meus esforços são irrelevantes para a sociedade... enfim, essa é apenas mais uma das diversas questões que serão tratadas nesse livro – mas é provável essa última seja a pior de todas pra mim.

Estatísticas Um aspecto interessante do blog é revelar suas estatísticas de acesso. A partir delas, podemos perceber que tipos de assunto são de maior interesse para o público em geral. Segue adiante uma imagem das estatísticas gerais de acesso desde a criação do blog, em junho de 2011, em consulta feita no dia 15 de dezembro de 2016:

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Adiante temos um demonstrativo da quantidade de acessos por publicação – “postagens”:

Esses números nos mostram, primeiramente, que os textos sobre Música e Tecnologia – um tema que eu adoro – despertam grande interesse hoje na internet brasileira. Tal fato provavelmente se dá porque vários DJs, produtores musicais e compositores de música eletrônica, amadores ou profissionais, pesquisam programas e recursos (como os samples, por exemplo) na internet. O “Google”, como já era de se

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esperar, aparece como o principal mecanismo de pesquisa que levou ao acesso do blog. O segundo assunto mais procurado trata sobre informações elementares sobre a música, do tipo: “a importância da música”, “a função social da música” ou “o que é educação musical”, entre outros títulos. Acredito que o grande interesse por esse tipo de tema venha de pessoas interessadas em entender a questão da música como área de conhecimento. Obviamente, não é um público de especialistas. O último assunto que aparece na lista dos mais acessados, mas não está relacionado aos dois primeiros, diz respeito à questão da diferença entre o músico profissional e o amador. Esse é um assunto bastante discutido na área como um todo (no meio acadêmico da Música, esse tipo de discussão é praticamente inexistente). Como a profissão de músico é “desprotegida” – não há uma regulamentação como a que existe para enfermagem, medicina, direito, arquitetura ou engenharia, por exemplo, que exigem diplomas para exercício da profissão – não há um limiar de distinção entre amador e profissional. Somando-se ao fato, há ainda a Ordem dos Músicos, cuja trajetória é marcada pelo descompromisso com o fortalecimento da profissão de músico, pois se tornou apenas mais uma das entidades que os exploram. Esse é um assunto bastante delicado especialmente porque em muitos contextos, a prática musical é desvalorizada como profissão. Entretanto, essas situações são tão diversas que dificultam o estabelecimento de uma “regra geral” para definir quem é ou não um profissional. Segundo Leonardo Salazar em seu excelente livro “Música Ltda.: o negócio da música para empreendedores” – e já pedindo desculpa aos marxistas que “odeiam” mercado – o músico profissional seria aquele que pudesse comprovar uma renda igual ou superior a 75% proveniente apenas de atividades ligadas à música em um sentido amplo, desde tocar, compor, produzir e dar aulas até pesquisar, divulgar e organizar eventos musicais, oferecer acessoria artística e criar páginas virtuais para músicos na internet. Por fim, apresenta-se a quantidade de acessos por país:

É interessante observar aqui uma quantidade significativa de acessos dos Estados Unidos, da Rússia e da Alemanha, à frente de países de língua portuguesa como Angola e Portugal. O blogger, portal no qual está vinculado o presente blog, tem uma ferramente que faz a tradução imediata do texto para a língua do visitante. Em algumas oportunidades, havia comentários em inglês de textos escritos em português.

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Com exceção apenas da língua inglesa, os mecanismos de tradução automática ainda possuem alguns problemas. Entretanto, é bem provável que nos próximos anos, a linguagem não mais será uma barreira para a comunicação entre pessoas de todo o mundo, através da tradução automática. Esse é um cenário bastante promissor. Para concluir esta seção, desejo agradecer em especial a meus colegas, amigos e irmãos, os professores Guilherme Ávila, Ricieri Zorzal e Leonardo Botta, com quem discuti várias vezes sobre a perspectiva de abrir um espaço na internet para compartilhar questões sobre música – mais no sentido tradicional do termo, confesso – e o meio acadêmico musical. Conversei com eles várias vezes sobre a proposta e a necessidade de gerar um pouco de movimento à aparente “estaticidade” de certas questões, imaginando possíveis consequências para essa atitude como, por exemplo, sofrer retaliações – fato que aconteceu algumas vezes. Todavia, o máximo que poderia acontecer seria alguém debochar de meus textos, colocar-me em uma lista de pessoas que não deveriam ser convidadas para eventos, comissões julgadoras, bancas de trabalhos de conclusão, comissões editoriais e quaisquer outras ocupações enjoadas que o meio acadêmico oferece, ou reprovar alguns artigos meus – pois sabemos que no sistema de pareceres “cegos”, é possível saber quem escreveu o artigo dependendo do assunto discutido e da forma de escrever, e isso vale para qualquer área do conhecimento. Agora, para quem não é concursado ainda, tenho a obrigação de advertir que experiências como essa não são nem um pouco recomendáveis! Por fim, desejo uma boa leitura e reflexão aos interessados no livro. Espero que as questões discutidas possam ser úteis de alguma forma – nem que seja para reforçar provocações. Parece ser contraditório, mas essa é a forma mais eficiente de construir o conhecimento: às vezes, precisamos apenas de uma conversa sincera, sem se preocupar que nossas ideias coloquem em xeque convenções estabelecidas, a reputação das instituições, as estruturas e posições de poder consolidadas e – especialmente – nossas próprias “certezas”. É justamente isso o que persegui quando criei esse blog, para tratar sobre diversas questões de forma mais espontânea e mais acessível a possíveis interessados. Entretanto, tenho a obrigação de advertir que esse livro não tem nenhum valor “científico” no sentido tradicional do termo. Agora, se for o caso de questionar o poder do meio acadêmico de “validar o conhecimento”, ignorando o fato de que todo ser humano participa ativamente da construção do saber e da cultura, seja de maneira oral, intuitiva ou por outros meios não legitimados pelo conceito estabelecido de “ciência” e “método científico”, aí já é outro caso...

Daniel Lemos Cerqueira

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MEMÓRIAS DE UM BLOG MUSICAL 1. Estreia do Blog 01/06/2011 Caros! Aqui estou, tentando imaginar o que poderia escrever sobre a estreia deste blog... A marca "Audio Arte" foi criada para o estúdio que montei ao longo dos anos, juntando equipamentos de qualidade. Finalmente, consegui um espaço para funcionar: um quarto comum com ar condicionado tipo "split", que já ajuda muito no isolamento acústico. Sobre meu objetivo enquanto músico e cidadão, espero contribuir especialmente para o Ensino da Performance Musical, tão carente de novas ideias, e - principalmente atitude para realizar tais proposições. Quem viveu um pouco do ensino de Música aos moldes dos Conservatórios europeus do Século XIX compreende muito bem o que estou dizendo. Todos que se dedicam a fazer uma Graduação em Música - principalmente um Bacharelado - são dignos de coragem e dedicação, pois além de ser uma formação difícil e com pouco reconhecimento da sociedade, precisam durante o curso ignorar questões como "o que vou fazer da vida quando me formar?" Ao se formar, a sensação de estar face à dura realidade do campo de trabalho, para quem acreditou na Música e se dedicou de coração e alma, é - no mínimo - decepcionante e vergonhosa, parecendo que todo seu empenho não é sequer digno de estar em uma lixeira qualquer. Creio que por ter vivido isso - e ter acompanhado a corajosa trajetória de meus professores de Piano, que mesmo bem intencionados em buscar uma formação de qualidade, viveram em conflito com a tradição impregnada no Ensino da Performance - me sinto compelido a contribuir de forma que nenhum egresso de um Bacharelado em Música passe pelas mesmas dificuldades que tive ao deixar a Universidade. Para mim, seria "mais fácil" me tornar mais um educador musical aos moldes da LDB 9.394/96, não devido à profissão em si, pois esta é de fato muito árdua. Refiro-me ao respeito, apoio e espírito de colaboração que existe entre os educadores musicais, fato que certamente contribuiu para o enorme avanço desta área nos últimos anos e que, infelizmente, praticamente inexiste na área de Performance Musical. Entretanto, o espaço que consegui hoje foi conquistado justamente por ser um instrumentista, e me sinto responsável por contribuir para o desenvolvimento de minha área. Ao vermos as necessidades do Ensino Profissional e Superior de Música, percebemos que há

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muitos professores músicos que desejam aprender novas práticas de ensino, mas não dispõem de conhecimentos e cursos de capacitação, muito menos da ajuda de quem poderia estar contribuindo para tal. Infelizmente, na atualidade, a área de Educação Musical tem focado quase que exclusivamente no ensino de Música na Educação Básica. Ainda, vemos muitas críticas deferidas por educadores musicais à área de Performance Musical, porém, sem propor contribuições práticas ou metodologias que possam ajudar na solução dos problemas apontados. É provável que este cenário contribuiu para o infeliz distanciamento existente entre estas áreas irmãs, que na prática existem de forma mútua, pois todo educador musical pratica a Performance e todo instrumentista, regente, compositor ou cantor vivenciou experiências como professor ou aluno. Assim, acabei por "vestir a camisa" do Ensino da Performance – ou Pedagogia da Performance, e meus últimos trabalhos tem sido direcionados exclusivamente a esta área. Sim, nosso tempo de dedicação ao instrumento diminuiu significativamente, mas acredito que minha maior responsabilidade é contribuir de fato para a formação de músicos conscientes de sua importância na sociedade, a par de sua realidade cultural e ao mesmo tempo zeladores do Patrimônio Artístico da Humanidade, além de - especialmente - ficarem livres dos dogmas, regras e concepções nocivas herdadas do Ensino de Música dos Conservatórios europeus do Século XIX. Mesmo com as dificuldades de diálogo e resistência com os músicos da Performance Musical muitas vezes não por motivos musicais ou pedagógicos - devemos nos esforçar para contribuir, pois é latente a necessidade de desenvolvimento desta área. Bom, eu estava falando do Blog né? Não se preocupem, tratarei de assuntos diversos aqui, não necessariamente relacionados à Música. Pode haver também reflexões pessoais... mas, enfim, creio que seja difícil separar profissional e pessoal para quem trabalha com Arte. Quando tocamos, não apenas estudamos "notas, ritmos, dinâmicas e tipos de ataque", mas colocamos sentimentos verdadeiros e experiências pessoais em nossa interpretação musical. Ou não... ?

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2. “A Importância da Música" 01/06/2011 Bem... Como esta é uma temática sempre abordada por aqui - principalmente por nossos alunos, que tem de ficar sempre explicando por que a Música é importante para pessoas de outras áreas - resolvi fazer minha contribuição também. “A Importância da Música” Nosso mundo hoje vive sob uma falsa ilusão de desenvolvimento e "progresso". A cada dia surgem novos modelos de celular, computadores e carros. A economia mundial nunca estivera tão aquecida, e a diferença entre países ricos e pobres está diminuindo consideravelmente. Temos agora o sistema GPS - com margem de erro de meros dois metros – a nanotecnologia, as células-tronco, e o mais incrível: planetas orbitando em torno de outras estrelas estão sendo descobertos a cada dia. É bem provável que neste Século será anunciada a descoberta de vida em outro lugar do Universo. Certamente é uma conquista feita através dos valores capitalistas e científicos de nosso modo de produção atual. E quanto progresso o ser humano diz ter, não é mesmo? E aí reside justamente o seu erro. Onde está realmente a essência da palavra "humano"? Todo este "avanço" material não serve - e nunca serviu - para nos trazer a paz, a solidariedade, o amor. Pelo contrário: é constante motivo de disputas, egoísmo e vaidade. Devido ao próprio percurso de nossa sociedade, os valores humanos tem sido deixados de lado. De que adianta o avanço tecnológico se o ser humano - aquele que exerce seu usufruto - não o utiliza para seu próprio bem? Daí surgem as guerras civis, o "Terror" e o receio em desenvolver a tecnologia nuclear. Tudo isso porque o homem simplesmente ignora a questão mais importante: ser humano. A Música - assim como as Artes em sua totalidade - em geral é o "patinho feio" da Academia, pois só exige "gastos" que poderiam ser aplicados na construção algo mais rentável, como um prédio à prova de tremores ou pesquisas em célula-tronco, por exemplo. Apesar de todo o avanço da Ciência, nossa tecnologia é muito primitiva para restringir a experiência artística a meros artigos, livros e anais de eventos. As Artes lidam com a experiência sensorial por completo, e nossa "avançada" tecnologia é incapaz de registrar sensações de tato. A intuição - elemento que tenho reforçado em meus trabalhos acadêmicos – é fundamental para a Arte, por sorte a Psicologia Cognitiva já tem tratado deste assunto na Academia. Entretanto, a Arte abarca a Ciência, e faz desta uma ferramenta importante para a formação artística. Porém, é uma via de mão única, pois os cientistas jamais terão a capacidade de compreender a Arte, pela própria limitação que a visão racional impõe ao ser humano. Tanto que até

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hoje ninguém soube realmente definir com precisão o que seria a Arte. Proponho-me então a realizar esta árdua e pretensiosa tarefa: o que é Arte? Arte é existência. Não pode ser vida, pois também trata da morte. Não pode ser emoção, pois ela pode também ser impessoal e descritiva. Não pode ser a realidade, pois também exprime muitos de nossos sonhos. O que a Arte realmente traz de importante é trabalhar aquilo que nosso "mundo avançado" não faz: tratar dos valores humanos, transportar-nos a outras épocas, contextos e até lugares onde nunca imaginamos estar, vivenciar emoções como amor, ódio, indiferença, raiva, prazer, perda, vitória, pena, sucesso, caridade... é vivenciando tais experiências que passamos a refletir um pouco mais sobre nosso real papel perante a vida, sobre o que realmente estamos fazendo aqui e o que devemos valorizar. Este papel da Arte é fundamental para a Educação, pois desta experiência vem a sensibilização, fato despercebido em nossas vidas contemporâneas, que furtam nosso tempo e pregam a perseguição pelas luxúrias materiais. Tente lembrar qual foi a última vez que você olhou para o céu à noite, ou sentiu aquela ânsia de encontrar uma pessoa de que gosta muito, ou a última vez que viu um filme que trouxe lembranças, boas ou ruins... a Arte nos aproxima de Deus, e a Ciência? Bem, a intenção era falar da "Importância da Música". Esta é onipresente em nossa sociedade, sendo uma poderosa linguagem artística. Também tem sido alvo de nosso "mundo avançado", quando vemos inúmeros depoimentos de músicos que tem de adequar sua produção artística aos valores impostos pelo mercado. Porém, a Internet é um meio recente que permite a propagação de ideias que jamais em outra época da Humanidade teriam este amplo acesso. Da mesma forma, os valores artísticos podem ser retomados, pois não mais o músico depende do mercado. Ele pode dar aulas, tocar em eventos ou ambientes sociais, e assim viver. Talvez nunca seja rico – o ideal materialista de nosso mundo atual - mas certamente terá orgulho e privilégio em trabalhar com aquela que pode representar a salvação e o futuro de nossa sociedade: a Música.

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3. A Excelência da Performance Musical 01/06/2011 Muitas vezes vemos termos como estes em referência à Performance Musical. Títulos de livros como "Practicing Perfection" (Praticando a perfeição), e voltando mais no tempo, "Escola da Velocidade" ou "A Arte da Destreza Digital", ilustram não somente a ideia de que o músico é um atleta, mas todo um sistema de Educação Musical estabelecido com base neste princípio. Obviamente, o músico necessita do corpo para a Performance Musical. Entretanto, palavras como "perfeição" e "destreza" possuem influência negativa para o músico, pois como afirma José Alberto Kaplan (1935-2009) - o grande nome da Pedagogia do Piano no Brasil - em "Teoria da Aprendizagem Pianística", a Performance Musical é um processo essencialmente psicológico, sendo a parte fisiológica - os movimentos - a externalização de uma série de ações iniciadas no cérebro. Logo, palavras que transmitem ideias subentendidas de cobrança e perfeccionismo não se mostram adequadas. Damos como exemplo a situação que se cria em orquestras, como no caso mais recente, os acontecimentos ocorridos na Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB). Aplicando a ideia exposta anteriormente a este contexto, certamente a ampla exigência pela "qualidade artística" ou a "Alta Performance" influencia negativamente a própria Performance, em especial quando se cria um ambiente de trabalho hostil. O zelo pela qualidade de vida dos trabalhadores, criando um ambiente que respeite o tempo e a satisfação de cada um, beneficia diretamente a produtividade, sendo isto bem mais evidente na Performance Musical, dada sua natureza psicológica. Trabalhos recentes na área de Educação Física, como "Aprendizagem e Performance Motora" de Schmidt e Wrisberg, reforçam que os resultados da realização de uma atividade motora são comprometidos quando atletas se encontram sob ambientes de pressão psicológica, como em Olimpíadas. Oras, isto pode ser diretamente relacionado à Performance Musical! Infelizmente, isto não ocorre somente nas Orquestras. Há ainda no Brasil diversas Instituições de ensino musical que perpetuam valores semelhantes, reproduzindo o modelo de ensino dos Conservatórios do Século XIX. Sob a imagem idealizada do "concertista virtuoso", estas instituições adotam programas extensos e muitas vezes foras de nosso contexto cultural - abordando somente a Música europeia dos Séculos XVIII e XIX, por exemplo, alegando que isto seria suficiente para formar um "artista". Cria-se um ambiente estressante, podendo haver disputas acirradas e desnecessárias dentro da Instituição, fato que certamente prejudica a produtividade da Performance Musical pelos mesmos fatores antes discutidos. E quando o estudante finaliza o curso, cai de paraquedas em um Universo totalmente diferente, que exige novos conhecimentos e habilidades.

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Estendendo esta ideia a nossas Universidades de Música, vemos, além dos Bacharelados em Música - que em grande parte provém de Conservatórios que foram agregados às Universidades - Programas de Pós-Graduação que exploram seus alunos de mestrado e doutorado, delegando-os a produção de seu programa justamente para atender às bizarras políticas produtivistas da CAPES. Este sistema contribui ainda mais para perpetuar ideias herdadas da Educação Musical dos Conservatórios do Século XIX, e como sempre acontecera, os músicos beneficiados destes sistemas traduz-se servidores públicos sob o cargo de Professores, com sua vida cômoda e sem se preocupar com a eficiência de seus serviços - se aproveitam da dedicação e dificuldade de inserção social de seus alunos para manter sua posição hierárquica. Harnoncourt, em "O Discurso dos Sons", já reforçara que o sistema educacional de Conservatório é estritamente político, e é uma infelicidade que ainda nos dias de hoje cursos nestes moldes continuam a ser oferecidos, não por razões pedagógicas, mas por interesses políticos. É na mudança deste cenário que realmente teremos a tão idealizada "Excelência" da Performance Musical no Brasil. É possível projetar uma perspectiva positiva, com diversas Instituições refletindo sobre suas grades curriculares e adotando novos tipos de conhecimento, entre eles a Música Popular, a Administração e a Pedagogia da Performance Musical. Contudo, somente as reformas curriculares não bastam para construir um curso de Música atualizado e atento ao diálogo com a sociedade; novas estratégias de ensino precisam ser adotadas pelos professores. Todavia, a tendência é colocar em breve um ponto final nos problemas que assolam o Ensino da Performance Musical no Brasil.

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4. Aprendizagem colaborativa na Performance Musical 10/06/2011 Estes dias, ao ministrar uma aula do Curso de Extensão em Piano, tive a ilustre presença de um regente que tem o Piano como seu principal instrumento, e tocou muito bem a segunda Rapsódia Opus 79 de Brahms. Com formação em Regência, fez questão de dizer que não é pianista, que não tem tempo pra estudar "trocentas" horas diárias - logicamente, percebemos que este é mais um mito presente no "inconsciente coletivo" acerca do ensino de Piano. Findando a tradicional aula no estilo "masterclass", conversamos sobre a vida profissional aqui em São Luís, especialmente por sua presença nesta cidade há mais de 20 anos. Diante das dificuldades para trabalhar com Coral, foi necessário prover uma iniciação musical básica, além de ser frequente a elaboração de arranjos para adaptar as peças tanto à formação do coro quanto às capacidades técnico-musicais disponíveis no momento (temos tratado sobre esta metodologia em nossos últimos artigos). Neste contexto, há o aprendizado colaborativo, mencionado por diversos pesquisadores brasileiros de ensino coletivo, entre eles Cristina Tourinho e Flávia Cruvinel, e teorizado recentemente no excelente "Teaching Piano in Groups" de Christopher Fisher (2010), com a principal ideia de zelo por um ambiente de integração e afetividade entre os participantes. Na mensagem anterior, reforçamos o forte componente psicológico presente na Performance Musical. Ao expressar seu desejo de realizar um recital de Piano, dissemos que seria interessante, além de estudar de forma eficiente, nos reunirmos frequentemente com outros pianistas de São Luís para tocar nosso repertório e fazer um lanche depois. Esta prática era realizada pela professora Maria Luísa Urquiza, minha primeira professora de Piano, na época do curso técnico associado à Academia Lorenzo Fernandez (RJ). Fizemos isto algumas vezes, sendo muito positivo tanto para amadurecer o repertório em público quanto a prover um ambiente de socialização profissional, podendo ser até uma possibilidade de aprendizagem colaborativa aplicada ao ensino individual. Este "treino" provê segurança ao subir no palco, pois sabemos que há pessoas como nós, com as mesmas ansiedades, expectativas, responsabilidades e - principalmente - amor à Música. Não faz sentido manter o perfil romântico de músico - vaidoso, solitário, individualista e dispondo de uma estrutura "ideal", dedicada somente à prática do instrumento – pois além da vida não mais permitir isto, somos humanos: "sim, nós erramos". Nada mais saudável do que assumir esta postura, ao invés de estabelecer um distanciamento com relação ao público e aos demais músicos, criando uma sensação de pressão psicológica e uma ideia de "superioridade" mesmo sem haver tal intenção. Essa expectativa realista certamente se refletirá positivamente no momento da apresentação pública, como já propõem várias pesquisas que versam sobre a "Ansiedade na Performance".

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Assim, a ideia que fica é de criar um ambiente solidário e de integração, ciente de que todos temos vidas diferentes, e tomar como referência apenas a apresentação pública - o produto - é reduzir drasticamente toda nossa experiência musical - o processo. Podemos estar todos envolvidos nesta eterna busca pelo fazer musical com qualidade, cada qual dentro do que sua vida permitir. Este ambiente saudável é fundamental para a formação do músico, e é simplesmente ignorado em diversos ambientes de ensino e aprendizagem da Performance, onde se valoriza quem "toca mais rápido" (virtuosismo) ou "estuda mais" (prática deliberada). Além disso, cada um fará o repertório que tiver mais afinidade, e mesmo se tocarem as mesmas peças, serão vivências musicais traduzidas em interpretações diferentes. Para finalizar o assunto, recomendo o livro "Etudes for Piano Teachers" de Stewart Gordon (1995). Apesar do livro estar direcionado especificamente a este instrumento, há ideias muito positivas que podem ser aplicadas ao ensino da Performance Musical em geral. Ainda, estar trabalhando no Maranhão é muito gratificante, pois temos tido espaço para experimentar estas novas concepções de ensino e aprendizagem da Música, ao lado de músicos receptivos e dispostos a tratar sobre este assunto. Esperamos que daqui a muitos anos este ambiente colaborativo e saudável do exercício profissional da Música possa ir se sedimentando na sociedade musical maranhense.

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5. Pensamentos em uma caminhada na praia... 11/06/2011 Hoje fez uma tarde linda aqui em São Luís. Depois do usual estudo do instrumento, fui andar na praia como de costume, e "pegar umas ondas". Fazia tempo que não via um final de tarde tão bonito: a cor dourada do Sol ao se aproximar do poente, a brisa gostosa, e um azul lindo no céu. Acabo de chegar em casa, já de noite, agora com a Lua crescente dividindo seu brilho com as estrelas... vai fazer uma noite linda também! Bom, agora vou fazer umas perguntas a você... qual foi a última vez que tu viste o pôrdo-Sol? E a última vez que abriste a janela para ver as constelações à noite? Quando foi que viste um filme que despertou emoções fortes, como saudade, paixão, raiva ou tristeza? E a última vez que sentiste aquele friozinho na barriga antes de encontrar alguém que é especial para ti? Estas perguntas podem soar pessoais, mas na verdade não são. Todas estas experiências fazem parte da vida das pessoas que direcionam sua percepção para a /sensibilidade artística/, e segundo nossas pesquisas, tem relações diretas com a Performance Musical, pois são refletidas em nossa intuição (considerada pela Psicologia Cognitiva uma forma de conhecimento) e interpretação. É provável que em épocas anteriores, o homem direcionava mais sua atenção a tais aspectos, mais do que na atualidade. Em nossa vida contemporânea, impera a correria, a pressão psicológica do "stress" (que infelizmente ainda é vista como um fator positivo no atual mundo produtivista), as inúmeras responsabilidades e a busca pela satisfação material. Esta é uma hipótese para a explosão da Indústria do Entretenimento no último século, pois as pessoas buscam se anestesiar de um cotidiano que não mais nos desperta a sensibilidade. É raro apreciarmos uma boa refeição, pois na pressa só "engolimos o prato". Pouquíssimas são as vezes que paramos para olhar a Lua no céu. E ainda há pessoas que dificilmente ouvem músicas que lidam com sentimentos mais profundos, como "Lamento Sertanejo" de Dominguinhos, Luísa de Chico Buarque, a Ária da 5ª Bachiana de Villa-Lobos ou o 3º movimento da Sonata para Violoncelo e Piano de Rachmaninoff... Refletindo sobre esta questão, qual seria nosso real papel como músicos responsáveis pelo Patrimônio Cultural e Artístico da Humanidade, segundo VillaLobos - para que nossa sociedade não esteja fadada ao fracasso em sua dimensão humanística, conforme discutido anteriormente em "A importância da Música"? Os educadores musicais já assumiram a postura de despertar esta sensibilização artística através da Educação Básica. E nós, da Performance, como podemos contribuir? Talvez seja a hora de refletir sobre adotarmos uma postura mais colaborativa, próxima e calorosa com os colegas e a sociedade, pois todas as outras questões certamente são de menor importância.

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Findarei esta mensagem citando dois exemplos de humanidade na área da Performance. Primeiro, o trombonista Radegundis Feitosa. Além de ser referência mundial em seu instrumento, Radegundis ensinou trombone a pessoas que então trabalhavam em obras (assim como ele), oferecendo-lhes a oportunidade de ter uma vida digna através da Música. Esta certamente foi a contribuição mais valiosa deixada a nós: um verdadeiro exemplo de simplicidade e fraternidade. Normando Lucena dedicou uma poesia a Radegundis, veja-a aqui: http://bandademusicaipueiras.blogspot.com/2010/07/poema-um-maestroradegundis-feitosa.html. O segundo exemplo é o pianista e regente João Carlos Martins, que fundou a Orquestra Bachiana Filarmônica SESI-SP, para dar oportunidade a jovens carentes de viver dignamente através da Música. Repito o comentário do pianista em um programa de televisão (não sei se com as mesmas palavras): "meu sonho é ver o dia em que um cidadão brasileiro disser em sua casa que quer viver de Música, ele será respeitado, e saberá que pode construir uma família e viver dignamente trabalhando com a Música." E o meu sonho? É ver a área de Performance Musical contribuindo para a sociedade de forma efetiva, superando as diversas barreiras presentes ao longo de sua história.

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6. A relação contemporaneidade

Compositor-Intérprete

na

20/06/2011 Vou me propor a comentar um assunto que certamente possui um teor polêmico dentro da Música Erudita Contemporânea: o papel do Compositor e do Intérprete na atualidade. Nos últimos Congressos da ANPPOM - a Associação Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Música, organização que agrega os principais intelectuais e pesquisadores da área de Música no Brasil - temos visto temáticas sobre a relação entre Compositor e Intérprete na Música Erudita, em especial na sua vertente conhecida como "Contemporânea". Dentre as afirmações acerca desta relação, vemos um enfoque voltado à figura do especialista: compositores que podem contribuir para a extensão da técnica instrumental e trazer novas contribuições que trazem mudanças constantes à linguagem musical. Entretanto, este engajamento acabou se tornando um clichê na Música Contemporânea. Dessa forma, proponho uma reflexão sobre Compositor e Intérprete não somente em relação às especificidades destas áreas, mas com relação a seu papel na sociedade e principalmente - como efetivos contribuintes ao Patrimônio Cultural da Humanidade, significando que seus papéis vão muito além da área de Música. Voltando no tempo, mais especificamente até o início do período Romântico da Música Ocidental, observa-se uma estreita relação entre Compositor, Intérprete e também - Construtores de instrumentos musicais e a Sociedade. Nota-se que o percurso da linguagem musical sempre fora delineado pelas inter-relações entre estes agentes socioculturais. Parakilas, em “Piano Roles” (2001), reforça que questões sociais e econômicas - não somente musicais - contribuíram para que o Piano se tornasse um dos instrumentos de maior importância na cultura europeia. Sua crescente acessibilidade econômica - em especial a partir do trabalho de construtores, que criaram o Piano de Armário, mais barato e destinado ao lar - certamente contribuiu para que este instrumento seja o que é hoje, obviamente em conjunto com a crescente produção musical pianística. Da mesma forma, o violão - que ficou de fora das salas de concerto por um bom tempo por questões idiomáticas de intensidade - é nos dias de hoje um instrumento mais acessível à sociedade, favorecido pelas mesmas questões econômicas e musicais que delinearam a história do Piano. Mas... aonde quero chegar? Quero chegar no ponto crucial desta relação orgânica que conduziu a linguagem musical ao longo da História. Como se constroem os instrumentos musicais dos dias de hoje? Quais foram as últimas modificações significativas na construção do Piano nas últimas décadas?

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Será que neste aspecto ele está estagnado há mais de um Século? Economicamente, a acessibilidade social ao Piano aumentou ou diminuiu? Vocês certamente podem responder a tais questões. Todavia, é evidente que a estreita relação entre Compositor, Intérprete, Construtor e Sociedade está fragilizada. Mas desde quando? Obviamente, é de extrema pretensão responder a esta última pergunta, pois necessita de investigações mais profundas, e aqui elas estão de fato permeadas por uma visão particular. Contudo, proponho algumas hipóteses. Comecemos pela Segunda Escola de Viena. Arnold Schöenberg, idealizador do Dodecafonismo - estilo musical que manteria a "hegemonia alemã" na História da Música por mais um Século, segundo o próprio compositor - e seus discípulos, Anton von Webern e Alban Berg, idealizaram muito mais do que este elemento semântico da linguagem musical: criaram o estereótipo do Compositor contemporâneo. Alheios à sociedade, criaram um "mundo próprio" no qual apenas os mesmos teriam acesso musical e intelectual, cuja produção remete a grupos restritos. Logicamente, a apreciação da Música Contemporânea exige do ouvinte toda a bagagem musical tradicional, pois sem o conhecimento histórico, não há como propor novidades, e muito menos entendê-las. Contudo, faço a seguinte pergunta: *por que este tem de ser o papel do Compositor na atualidade? Por que ele não pode dialogar com a sociedade, observando suas necessidades, analisando a historicidade por trás da cultura "folclórica" ou "popular" - ou seja, aquela que está distante das Academias de Música - e propor contribuições em consonância com sua formação e estas realidades? Por que, ao invés de se concentrar em desenvolver uma personalidade musical própria, ele não pode se propor a representar uma identidade musical, cultural e social mais abrangente? Por que as peças tem sempre de explorar o limiar da complexidade técnica-instrumental? Ampliando tais questionamentos: por que compor obras com melodia, acompanhamento ou escalas tonais, compor peças tecnicamente simples ou didáticas para o Intérprete, ou utilizar o "livrearbítrio" (segundo Pierre Boulez) e a intuição no processo composicional aparentam ser por muitas vezes impensáveis a um Compositor contemporâneo? Outro aspecto fundamental a ser observado é a construção dos instrumentos. Utilizarei o Piano como exemplo, já que tenho um pouco mais de conhecimento sobre este. Desde meados do Século XIX, no Piano, pouca ou nenhuma inovação neste instrumento tem sido feita. Uma hipótese seria a produção industrial, que visa justamente à padronização dos produtos. Segundo Edwin Good, em “Giraffes, Black Dragons and Other Pianos” (2001), a diversidade de máquinas e recursos no Piano era extremamente variada. Havia até Pianos com sete pedais, cada um capaz de modificar o timbre do instrumento de forma particular. Entretanto, chegamos à padronização total do instrumento. Luciano Berio – fascinado pela organicidade da construção dos instrumentos ao longo da história - esboça uma ideia acerca de inovações em instrumentos, que é de fato uma preocupação fundamental: tais modificações não podem impossibilitar a execução do repertório tradicional. Ele

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menciona em “Entrevista sobre a Música Contemporânea” (1988) o caso de uma flauta onde foram criadas várias chaves para trazer novas possibilidades técnicas e timbrísticas, porém, não mais possibilitavam a execução das obras de J. S. Bach e Mozart, entre outros. Todavia, a estaticidade na construção dos instrumentos que temos visto pode ter inclusive levado à crescente demanda pelos Pianos Digitais, que mesmo sendo incapazes de reproduzir grande parte da técnica pianística tradicional, são economicamente mais acessíveis à sociedade, dispensando manutenção de afinação, entre outros "benefícios". Isto é um problema grave para refletirmos sobre, pois os Pianos acústicos estão sendo substituídos por versões eletrônicas em várias partes do mundo. Aqui no Maranhão, por exemplo, este é um fato já evidente. Caso a tecnologia não consiga desenvolver um Piano Digital que possibilite a execução dos vários tipos de nuances sonoros possíveis em um Piano de cauda, toda a literatura do Piano estará fadada à morte na sociedade, sendo sua sobrevivência restrita à Academia. Sobre a sociedade, é compreensível que a interrupção do diálogo histórico entre Compositor, Intérprete, Construtor e Sociedade tenha levado à grande ascensão da Música Popular em todo o mundo, tendo como elemento catalisador - obviamente - a tecnologia midiática. A visão pessimista de Adorno - permeada pelo julgamento de valores acerca da Música "boa" e "ruim" - não foi suficiente para interromper o percurso histórico natural da linguagem musical na sociedade, pois este não pode ser simplesmente controlado por um compositor ou uma escola de compositores. Sendo assim, a sociedade seguiu seu caminho, diante de sua natural demanda de valores culturais. Como grande parte da Música Erudita do então Século XX fechou suas portas ao diálogo, propondo um rompimento com a linguagem musical tradicional sem aguardar a sedimentação de uma nova linguagem, a sociedade buscou seu caminho. Tanto que ao analisarmos a História da Música do Século XX, diversos compositores tiveram receio em abandonar a tonalidade, justamente por não haver tempo para que uma nova linguagem fosse absorvida e compreendida pela sociedade. É interessante observar que este contexto é totalmente diferente daquele onde surgiu o tonalismo, resultado da sobreposição de elementos da linguagem musical por Compositores, Intérpretes, Luthiers e Sociedade ao longo do tempo. Por fim, termino este longo e possivelmente polêmico texto propondo olhares mais diversificados sobre a relação Compositor-Intérprete. Será possível retornar à organicidade característica do percurso histórico da linguagem musical? Ou ainda, será que o Compositor deve ser aquele que escreve para um "Intérprete perfeito", que possui o melhor instrumento e condições ideais de estudo e Performance? Ou será ainda possível – ou melhor, adequado à realidade - pensar em um novo perfil de músico para os dias de hoje, sendo este um profissional capaz de transitar em diversas áreas da Música e de outras áreas do conhecimento? Talvez como Beethoven, que "compunha e tocava", ou Liszt, que "tocava e compunha"...

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7. Sobre o Erudito e o Popular 28/06/2011 Este é certamente um tema que não poderia deixar de ser abordado aqui. Felizmente, vemos na maioria das escolas especializadas em Música dos dias de hoje, um diálogo cada vez maior entre estes dois mundos musicais. Dentre as Instituições de Ensino Superior que possuem cursos voltados à Música Erudita e Popular, temos a pioneira UNICAMP (que fundou o Curso de Música Popular em 1989), seguida da UNIRIO. Nos últimos anos, vimos diversas instituições importantes criarem habilitações em Música Popular, entre elas a UFMG, UFPB e a UFBA. Nas Universidades mencionadas, a presença de alunos das mais variadas origens e ideologias pode formar um ambiente favorável ao intercâmbio e à pluralidade cultural. Esta diversidade de habilitações é característica das Escolas de Música e Conservatórios da Europa e Estados Unidos do Século XX, que passaram por amplas reformas curriculares, segundo o Dicionário Grove (verbete "Conservatories"). Em São Luís, temos a Escola de Música do Estado do Maranhão (EMEM), que oferece habilitações em instrumentos da Música Popular há pelo menos uma década. Assim, a tendência - mesmo para as instituições mais conservadoras - é aderir a esta proposta, diante das políticas de valorização da pluralidade cultural que temos presenciado no Brasil. Ainda, o próprio campo de trabalho acaba fazendo com que muitos músicos de formação erudita passem a atuar na Música Popular, reforçando o trânsito entre estas áreas na atualidade. Para compreendermos um pouco mais a fundo esta questão, sugiro voltarmos brevemente no tempo. Na Idade Média europeia, houve uma divisão musical semelhante à diferenciação entre Música Popular e Erudita. Como a ideologia da época em questão baseava-se no Teocentrismo, a divisão ocorreu entre Música Sacra - aquela apropriada para cultos religiosos, benigna e permitida pela Igreja Católica - e a Música Profana - aquela que não possuía fins religiosos. Voltando ainda mais, na Grécia Antiga, temos as figuras de Hermes, o deus que representa a música da alma e dos sentimentos profundos, inventor da Lira (doando-a a Apolo), e Dionísio, o deus representante das festas, vinhos e prazeres carnais, relacionado ao “aulos”, um tipo de flauta. Assim, percebemos que existe uma tendência ao longo da História da Música em diferenciar estilos e elementos da linguagem musical, atribuindo-lhes conotações sociais distintas. Logo, podemos notar que se trata de uma estratégia política, e não propriamente musical. A história da diferenciação entre Música (ou também cultura) Erudita e Popular certamente possui esta mesma intenção política, utilizando a Música como um instrumento de distinção social. Segundo Marcos Napolitano, em História & Música Popular, a Música Popular tem suas origens na própria Música Erudita, em especial a

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partir dos Lieds de Gustav Mahler (1860-1911). Ainda, podemos reforçar esta origem facilmente, se considerarmos que os instrumentos da Música Popular herdaram diversas das características dos instrumentos da Música Erudita, bem como a linguagem musical, composta por acordes, melodias, o temperamento igual e harmonia tonal. O modalismo na Música Popular, por sua vez, possui uma trajetória particular, se comparado à Música Erudita tradicional. Da mesma forma, a interpretação musical seguiu rumos distintos. No início do Século XX, o Canto Popular era mais semelhante ao Erudito, com frequente uso de vibrato, por exemplo. Com o desenvolvimento das tecnologias eletroacústicas - que possuem grande proximidade com a Música Popular - a linguagem deste gênero musical tomou rumos bem distintos da Música Erudita. Ainda, podemos mencionar que nos Cursos de Música Popular há saberes específicos que não são contemplados no ensino tradicional da Música Erudita, como Arranjo, Improvisação e Harmonia Popular, outro sinal do percurso histórico desta linguagem musical. Com relação à questão política que historicamente diferenciou estas áreas, é um assunto longo e complexo. Podemos citar o exemplo da Ordem dos Músicos, cuja criação tinha como objetivo principal manter a Música Erudita com o controle do mercado. Em seu estatuto, os presidentes poderiam ser somente Bacharéis em Composição ou Regência. Contudo, esta estratégia não deu certo, uma vez que é a Música Popular quem realmente sustenta esta organização. Na atualidade, tanto músicos eruditos quanto populares desejam o fim da OMB, pois esta não mais se apresenta como um organismo representativo da classe. Assim, reforçamos a necessidade da criação de um Sindicato que possa realmente trabalhar em favor dos músicos, mas para isto, devemos ter em mente que todas modalidades de atuação devem ser respeitadas. Quem trabalha para viver exclusivamente de Música, seja como músico popular, erudito, folclórico, como professor ou produtor musical, certamente possui os mesmos interesses profissionais: o crescimento da área e a articulação comunitária. Todavia, quem atua na Música como um "hobby", uma diversão, terá outros objetivos profissionais, uma vez que o mesmo não depende da Música para viver. Logo, este critério de distinção se apresenta como o mais adequado para a definição das categorias no Sindicato, ao invés da classificação de "músico prático" e "músico profissional" existente na OMB. Finalizando, reforçamos a importância de integrar as diversas áreas da prática musical, buscando superar nossos preconceitos e construir uma classe unida e organizada que poderá reivindicar seus direitos perante a sociedade. Talvez um dos elementos que levam ao baixíssimo investimento em Cultura no Brasil é o fato de que as classes artísticas estão desarticuladas. Assim, o pouco dinheiro acaba sendo investido de acordo com a vontade de poucos privilegiados que estão mais próximos das instâncias administrativas do país. Quem nunca passou aperto com aprovação de projetos nas Leis de Incentivo à Cultura? É importante refletirmos mais sobre isso, deixando de lado o perfil estereotipado do músico apolitizado e desarticulado que

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gasta energia brigando com colegas, ao invés de lutar pela ampliação do espaço musical na sociedade.

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8. Considerações sobre Arte e Entretenimento 18/07/2011 Neste breve texto, iremos propor uma breve consideração acerca dos objetivos da Arte quando esta possui finalidade artística ou de entretenimento. Ao mesmo tempo que haverá a diferenciação entre Arte e Entretenimento, um certo grau de unidade será necessário. Estabelecer uma distinção total seria deveras contraditória, uma vez que no texto anterior, "Sobre o Erudito e o Popular", a crítica recai justamente sobre a prática de valorar gêneros musicais, como Música Sacra e Profana, Erudita e Popular. Iniciando, vamos considerar primeiro o que é Entretenimento. Propõe-se este como as atividades artístico-culturais voltadas ao lazer descontraído, informal e imediato. Aqui, poderíamos traçar uma relação com a arte de Dionísio, o deus grego que simboliza o prazer carnal. Sobre a Arte, esta seria representativa das manifestações artístico-culturais que ofereçam valores emocionais e intelectuais mais intimistas e complexos, como a arte de Hermes, representante da Música para a alma e os sentimentos profundos. Estabelecidos estes conceitos, continuemos com nossas considerações. Aplicando estes dois conceitos nos Séculos XX e XXI, em especial com o surgimento da "indústria cultural" apontada por Theodor Adorno, observamos a diferenciação entre os bens artísticos e "produtos culturais industrializados" - os "enlatados", como dizem alguns estudiosos das Ciências Humanas. Porém, tais valores eram então associados ao Erudito e Popular, pois esta crítica fora estabelecida em um contexto europeu. Já no Brasil - onde a Música Popular é muito mais influente - percebemos que há uma diferenciação entre Arte e Entretenimento dentro da própria Música Popular, tanto por músicos quanto pelo público em geral. Assim, é costumeiro criar uma distinção entre Samba, Bossa Nova, MPB e Axé, Sertanejo e Funk "Carioca" (este último termo, inclusive, é aplicado para diferenciar este estilo de Funk daqueles de maiores valorações estéticas). Porém, como reforçado no texto anterior, precisamos analisar até que ponto tal diferenciação seria social ou musical. O Entretenimento sempre atraiu, ao longo da História da Música, mais investimentos do que os tipos de manifestação artística aqui definidos como "Arte" (confuso? Espero que não!). Mozart, um dos grandes compositores da Música Erudita Ocidental, compunha óperas sob a finalidade de entreter grandes plateias, sendo tal tipo de obra perfeitamente adequada ao conceito que definimos como "Entretenimento". Porém, em termos estéticos - agora sim, sob uma visão musical tal tipo de obra possui preocupações sobre seu valor artístico muito maiores do que as vistas nas obras de arte voltadas ao Entretenimento na atualidade. Assim, nesta época, Arte e Entretenimento possuíam uma unidade mais orgânica, pois os objetivos do compositor, da linguagem musical e da sociedade andavam em paralelo nesta questão.

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Muito tempo mais tarde, em nosso Século XXI, observamos uma grande disparidade entre as obras musicais feitas sob finalidades essencialmente artísticas e aquelas voltadas à indústria do Entretenimento. Como sabemos, os verdadeiros músicos profissionais - aqueles que possuem a Música como principal ofício - reconhecem a diferença entre a Música elaborada sob finalidades artísticas e aquela que possui aplicação imediata para "anestesiar" o público da rispidez intimista de nossa vida contemporânea. Porém, como diversos destes músicos necessitam de recursos financeiros para continuarem se dedicando exclusivamente à Música, as oportunidades oferecidas pela indústria do Entretenimento constituem um importante setor de trabalho. Isto é fato aqui no Maranhão, sendo que na época do Bumba-meu-Boi, diversos músicos precisam tocar nos festejos para conseguir sua renda. Todavia, esta relação tem a consequência de perpetuar os valores estéticos da Música voltada ao Entretenimento, mantendo sua diferença para com a Música voltada a finalidades artísticas. Vemos, no meio acadêmico, severas críticas com relação à arte voltada ao Entretenimento, sendo que tais críticos raramente consideram a realidade de nossos colegas músicos autônomos - que não estão sob o luxo, conforto e isolamento de um emprego público - achando que podem desferir as palavras que quiserem em prol da rotulada "Música Pura", ou "Música Séria". Logo, é fundamental estabelecer olhares mais amplos sobre esta questão, buscando analisar mais profundamente o porquê da indústria do Entretenimento ter tomado tamanhas dimensões, ao invés de perpetuar a tradicional postura unilateral para com a sociedade. Reforça-se, ainda, o simples fato de que o distanciamento entre Academia e sociedade faz com que esta última busque outras maneiras de suprir suas necessidades artísticas, propiciando então o cenário ideal para o surgimento da indústria do Entretenimento. É fato que grande parte do capital investido se destina a atividades artísticas para a indústria do Entretenimento. Assim, propõe-se a ideia de que o Estado - grande responsável pelo fomento à Arte de finalidade artística - passe a exercer uma divisão mais igual do capital, criando nas Secretarias de Cultura unidades administrativas como, por exemplo, subsecretarias de Arte e de Entretenimento, destinadas à divisão justa do montante destinado a cada tipo de manifestação cultural. Somente uma atitude desta envergadura poderia de fato reverter a atual situação, onde a Música sob fins artísticos - tanto Erudita quanto Popular – tem carecido imensamente de investimentos, enquanto do lado oposto, a Música de Entretenimento tem mantido seus valores estéticos devido à questão profissional anteriormente discutida. Com relação ao investimento privado, este sempre tenderá a fomentar o que dá, se não lucro, maior projeção e reconhecimento na sociedade, sendo então o Entretenimento – a não a Arte - a alternativa lógica. Podemos, por fim, retomar as ideias de Adorno: é possível fazer Arte no Capitalismo?

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9. Do Concertista ao Pagodeiro 26/07/2011 O presente texto pretende analisar a valoração que a sociedade faz aos músicos possuidores de maior reconhecimento social, tecendo considerações sobre o real papel do músico na sociedade, independente do status adquirido ao longo de sua carreira. O Concertista Dentre os variados perfis profissionais na Música Erudita, este certamente é o mais idolatrado e cultuado neste gênero musical, sendo considerado por muito tempo o perfil ideal de músico em grande parte das Instituições de ensino musical do mundo. Tanto que todo um sistema educativo-musical se voltou à formação de concertistas, sendo o primeiro modelo adotado no Conservatório de Paris, fundado em 1794. Todavia, este tipo de ensino - também chamado de tecnicista, por privilegiar a "técnica" sobre a Música - é agora considerado inadequado, tanto pela incapacidade em formar artistas completos (transformavam o ensino de Música em um mero exercício muscular) quanto pelas variadas possibilidades de perfil profissional que podem existir na área de Música, sendo o concertista apenas uma delas. Porém, algo que dificilmente é pensado e discutido nas Escolas de Música e Conservatórios do Brasil, é: para atingir este "perfil ideal" de músico, basta apenas estudar Música? Obviamente, dedicar-se com disciplina e organização ao estudo do instrumento é um requisito fundamental. Porém, para se tornar um concertista, existem uma série de fatores econômicos, políticos, publicitários e administrativos envolvidos, sequer mencionados na formação tradicional do músico. Para solar com uma orquestra, por exemplo, é necessário haver uma imensa infraestrutura, com investimentos e mobilização de pessoal capacitado. Logicamente, a grande maioria dos músicos não terá acesso a este ambiente. Porém, é fundamental compreender que, diferentemente do que se prega nas Escolas de Música, quem sola com a orquestra é porque está numa *posição política mais favorável*, e não porque toca melhor do que os outros (pode até tocar, mas este não é o principal motivo). Todos sabemos que há músicos absolutamente geniais que não são valorizados pela mídia, e para a grande maioria dos investidores, nomes reconhecidos são mais importantes do que a qualidade artística em si. Dessa forma, critico a visão que se criou sobre os "incriticáveis" pianistas renomados do Século XX: Vladimir Horowitz, Martha Argerich, Evgeny Kissin, Glenn Gould e Maurizio Pollini, entre outros. Obviamente, a qualidade artística de seus trabalhos é indiscutível. Porém, eles também são frutos da mídia e da indústria do entretenimento, fato que nunca é mencionado. A mesma mídia que - para espanto dos pianistas tradicionais - criou Richard Clayderman (obviamente para um público diferente). Há uma tendência entre os pianistas eruditos de cristalizar estas figuras

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como se elas tivessem atingido um patamar inimaginável de qualidade artística. Todavia, é fato que qualquer pianista com um trabalho sólido poderá atingir este mesmo nível de reconhecimento, caso a mídia esteja a seu favor, bem como o contexto histórico-cultural. Talvez pela redução gradual do interesse da sociedade pelo Piano ao longo do tempo, não há mais investimentos tão significativos quanto na época dos "renomados pianistas", reduzindo a possibilidade de se tornar um destes pianistas "pop". Ainda, quando se chega a um nível artístico elevado, o que realmente faz a diferença é o "gosto" musical, pois todos possuímos a tendência a se identificar com a Arte de alguns, não por mérito artístico, mas por questões próprias de nossa experiência de vida. O Pagodeiro Diferentemente da palavra "concertista" - que possui grande significante de qualidade artística - a palavra "pagodeiro" sugere o oposto: um perfil de músico cuja produção artística é fortemente associada à indústria do entretenimento. Todavia, é fundamental notar que pagodeiros e concertistas compartilham da mesma situação musical: há aqueles mais conhecidos, que estão na mídia, e outros que fazem parte de nosso dia-a-dia, apresentando-se em ambientes mais modestos e de menor impacto social, sendo este último o tipo em maior número. Se a produção artística de ambos é "boa" ou "ruim", isto irá depender de quem a avalia, ou seja: o público-alvo. Logo, o espaço de um não compromete a atuação do outro, uma vez que atuam em ambientes distintos, havendo espaços para a prática profissional de cada um na sociedade. Por fim, retorno ao tema do texto anterior: a diferença entre Arte e Entretenimento. Sob o ponto de vista artístico, é difícil – ou impossível - estabelecer valores às obra de arte, até porque as obras que estão na mídia, sob fins de entretenimento, também são obras de arte. Contudo, se analisarmos a situação sob o ponto de vista do investidor cultural - aquele que deseja incentivar a ação cultural - podemos notar diferentes objetivos por parte do mesmo. Há investidores que desejam atingir um grande número de pessoas e obter lucro, daí ele irá privilegiar os tipos de manifestação artística que lhes proporcionará o objetivo desejado. Por outro lado, temos investidores que desejam investir em ações culturais por seu valor artístico, ou incentivar manifestações culturais "alternativas" - aquelas que se apresentam em menor número na sociedade. Avaliar a intenção dos investidores culturais poderá trazer uma melhor compreensão dos campos de atuação na área de Música, esclarecendo muitas questões mal resolvidas que lidamos em nosso cotidiano profissional. Assim, teremos consciência sobre os tipos de investimento cultural que a sociedade carece, podendo exigir do Estado um papel regulatório mais efetivo no fomento à Cultura. Esta discussão é justamente o objeto da terceira etapa do projeto de pesquisa "Pedagogia da Performance no Brasil: aspectos e mobilizações", no qual faço parte. Esta etapa investigará as questões administrativas, políticas, econômicas e sociais do

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ofício de músico, propondo maior consciência de nossos músicos com relação a estas questões, fundamentais para o exercício digno de nossa profissão na sociedade.

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10. Sobre a "Excelência" da Performance Musical, parte II 31/07/2011 Caros colegas... Em mais uma conversa informal sobre a situação da Performance Musical no Brasil, surgiram novas observações significativas sobre o cenário atual, que são de grande importância para compreendermos um pouco melhor nossas bases ideológicas e o impacto social de nossa prática profissional. A discussão girou em torno das Orquestras nacionais, considerando os acontecimentos mais recentes e suas implicações no cenário sociocultural brasileiro. Em Minas Gerais, há alguns anos, foi criada a Orquestra Filarmônica - chamada de OSEMG - que por sua proposta de altos salários, dificuldade técnica do repertório aqui, me refiro à técnica em seu conceito de destreza muscular e resultado sonoro - e rotina exaustiva de concertos, que por si só já desbancaria a OSMG - a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. Músicos da mais alta competência técnica compõem a OSEMG, sendo que alguns músicos da OSMG acabaram por migrar a estra nova orquestra, diante da proposta salarial. Todavia, o cenário que se observa nos dias de hoje não é compatível com a expectativa que se criou de uma Orquestra tecnicamente e artisticamente "perfeita". Por ver que a OSEMG já viera ocupar o status de "Orquestra a nível internacional", a OSMG acabou por investir na acessibilidade a seus concertos, bem como na execução de repertório mais próximo da realidade musical dos mineiros e apresentações em locais "periféricos". A OSEMG, por sua vez, se concentrara na execução de repertório difícil tecnicamente, executando obras de compositores que, por mais difícil que sejam suas obras, pouco sentido artístico trazem à realidade brasileira, em especial no Estado de Minas Gerais. Assim, a OSMG atualmente está conquistando maior reconhecimento da sociedade, justamente por estar mais próxima desta. A OSEMG, por sua vez, parte do pressuposto que o público deve apreciar a "excelência técnica" de suas apresentações, pagando altos preços pela apreciação de repertório com restrito sentido artístico ao padrão estético do perfil mais comum de ouvinte da atualidade. Assim, a pergunta que faço é: os músicos da OSEMG são de fato mais importantes do que os da OSMG? Talvez para alguns sim, em especial aqueles que cultuam a "perfeição" - para mim uma palavra abominável – da Performance Musical. Mas para grande parte da população, quem realmente está trazendo contribuições artísticas para a sociedade é de fato a OSMG. A reflexão que proponho aqui é justamente questionar qual nossos reais objetivos como profissionais da Performance Musical. Será que nosso papel é sempre explorar 32

o limiar técnico do repertório de nossos instrumentos ou prover uma Arte que esteja em consonância com nosso contexto cultural e traga um sentido musical mais próximo da sociedade? Creio que a resposta seria buscar um meio termo para isso. Em um repertório de Piano solo, por exemplo, podemos inserir uma ou duas peças mais "popularizadas" para dialogar com a sociedade - e, ainda, peças que explorem o limiar da técnica e linguagens não-tradicionais, como a Música Contemporânea. Assim, é possível dialogar com a sociedade, manter o desenvolvimento da técnica instrumental e prover aos ouvintes contato com uma linguagem musical que ainda não está sedimentada na sociedade, justamente pela histórica falta de preocupação dos intérpretes para com os ouvintes como se estes últimos não fossem de fato parte integrante da execução musical. Ainda, como podemos pensar a Performance Musical sob um aspecto cultural mais amplo? Como podemos utilizar a Performance como instrumento educativo? A busca pela "perfeição" da execução certamente não é um aspecto humano, pelo contrário: ele tende a excluir a real essência do fazer musical, baseando-se somente na técnica como parâmetro de qualidade musical. Assim, sugiro pensar em uma aproximação dos músicos para com a sociedade, que além de trazer elementos já reconhecidos da prática musical, permita ampliar os horizontes musicais do ouvinte, oferecendo contato com repertórios diferenciados e novos padrões estéticos da linguagem musical. Como metodologia de ensino, a elaboração de arranjos se mostra um excelente instrumento de ensino da Performance, pois permite que instrumentistas de variados níveis técnicos possam fazer Música com a mesma importância dentro de uma mesma atividade, cada qual a seu modo, respeitando sua vivência musical e sem julgá-los por seu nível de desenvolvimento técnico. Estas ideias oferecem um rompimento com o principal paradigma da Performance Musical: "o mais capacitado é o que toca melhor peças mais difíceis". Além de ser uma afirmação questionável - pois cada um julgará o "melhor" dentro dos padrões estéticos que lhes forem preferenciais - desconsidera outros aspectos fundamentais presentes na prática musical, como impacto na sociedade, pluralidade de estilos musicais (cada uma destes possui seus próprios parâmetros de qualidade artística específicos) e contato com uma experiência artística efetiva, que independe do nível técnico da peça, do músico ou do nível de instrução do ouvinte. Assim, a Performance Musical em um nível mais humanístico não deve excluir a possibilidade de que todos possam fazer música de coração, cada um a seu nível de desenvolvimento particular e em seu próprio contexto musical. Julgar o músico somente pelo produto final, sem considerar que cada um possui sua vivência musical específica, com acesso à infraestrutura e conhecimento passivos de limitação, é reduzir a dimensão humanística que a Performance Musical pode trazer para a sociedade. Obviamente, sem competência profissional, não se chega a lugar algum. Mas imaginar um padrão estético surreal de Performance Musical, impondo-o em qualquer contexto, é

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desprezar todo o trabalho artístico feito por músicos que de fato possuem compromisso com a Arte. Por último, reforço que o renomado compositor Marlos Nobre, em sua Carta aberta ao atual regente da Orquestra Sinfônica Brasileira, trata em diversos pontos sobre a importância de considerar as relações humanas na Performance Musical, ao invés de focar exclusivamente na "excelência artística". Dessa forma, sugiro refletirmos um pouco melhor sobre o real objetivo da área de Performance Musical, repensando sua importância para a sociedade, sem excluir suas múltiplas possibilidades de atuação profissional.

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11. O espaço da Performance Universidades brasileiras

Musical

nas

11/08/2011 Observa-se na atualidade uma realidade cada vez mais difícil para a Performance Musical nas Instituições de Ensino Superior brasileiras. Esta questão será abordada nas linhas a seguir, sob uma perspectiva histórica. Até a Revolução Francesa, o ensino de Música se dava através do ensino informal e não-formal, a partir da transmissão de conhecimentos e habilidades musicais em uma relação de mestre e aprendiz semelhante ao Artesanato, como já mencionara Harnoncourt em “O Discurso dos Sons”. Surge então o ensino individual, fundamental para o ensino da Performance até os dias de hoje. A seguir, em 1794, é fundado o Conservatório de Paris, dando início à institucionalização do ensino de Música, ponto crucial na história da Educação Musical e da Performance. Em resposta à necessidade de se adaptar ao formato da Academia desta época, que fragmentava o conhecimento em disciplinas, o ensino de Música nos Conservatórios passou a ser realizado dessa forma. Como consequência, surgiram diversos problemas na Educação Musical, entre eles a aprendizagem descontextualizada por "decoreba" e imitação, além do ensino da Performance baseado em mero cultivo da destreza digital, perdendo a essência artística do fazer musical, fato que destruiu gerações de pianistas segundo Bomberger em “Piano Roles: three hundred years of life with the Piano”. Infelizmente, isto trouxe uma ideia velada observada sobre o ensino do Piano hoje, como símbolo de uma pedagogia musical rígida e nociva. Todavia, graças aos grandes instrumentistas que atuaram fora destas instituições, o ensino artístico da Música foi mantido, através de nomes como Franz Liszt e Theodor Leschetizky, entre outros, responsáveis pela formação de renomados pianistas no final do Século XIX e início do Século XX. Diante do ensino musical aplicado nos então Conservatórios do Século XIX, houve a necessidade de reformular os projetos político-pedagógicos destas instituições, focando em um ensino da Performance que formasse artistas de fato, além de diversificar os possíveis campos de atuação musical. Dessa forma, diversas instituições de ensino musical na Europa e Estados Unidos modificaram suas propostas pedagógicas, em especial na primeira metade do Século XX, segundo o Dicionário Grove (verbete “Conservatoires”). O seguinte ponto crucial da história do ensino institucional de Música foi a incorporação de Escolas de Música e Conservatórios às Universidades em todo o mundo, fato consumado no Brasil em 1931, a partir do Novo Estatuto das Universidades brasileiras. Importantes instituições musicais foram incorporadas às Universidades públicas, entre elas o Instituto Nacional de Música, então anexado à Universidade do Rio de Janeiro (atual Escola de Música da UFRJ). O principal fato a 35

ser observado aqui é a mudança administrativa, que se outrora possuía regimento interno voltado somente às especificidades da área de Música, passava a ser subserviente ao modelo universitário, agregando áreas do conhecimento tão distintas quanto Música, Artes Visuais, Medicina, Física, Teatro, Engenharia, Psicologia e Educação Física, entre outras. Este problema é visível nas Universidades brasileiras até os dias de hoje, pois ainda não se encontrou uma forma eficiente de agregar o ensino da Música - e das Artes - ao modelo universitário. Com a institucionalização da pesquisa nas Universidades brasileiras a partir da década de 1970, houve uma mudança significativa no modelo administrativo universitário. Transpondo esta nova característica ao cenário atual - de massificação do acesso à Universidade e ênfase na produção meramente quantitativa da pesquisa temos observado um cenário de incertezas que, dentre suas características, a mais aparente - reforçada pelos professores - é a redução da qualidade do ensino, que é justamente o elemento de distinção histórica das Universidades públicas. Vemos ainda muitos docentes que, ao invés de questionar este tipo de política pública, preferem tirar proveito da situação, obedecendo fielmente aos critérios de "qualidade" e "desenvolvimento" designados pelo Ministério da Educação. Um dos exemplos desta política na área de Música é o grande número de Licenciaturas em Música que abriram no Brasil, porém, a criação de Bacharelados praticamente inexistiu. A primeira pergunta que um gestor público atualmente faz é: "pra que abrir um curso que forma um aluno por ano se é possível formar 60?" Este é o tipo de mentalidade que se observa na Educação brasileira hoje. Portanto, se *nós da área de Música* não nos mobilizarmos de forma efetiva em defesa deste espaço, os cursos para formação de instrumentistas - seja Erudito, Popular, Folclórico – simplesmente desaparecerá das Universidades brasileiras. Outro grande prejuízo se dá quando a produção artística não é devidamente valorizada, principalmente por não haver um regimento interno que possa abarcar esta lacuna. Todavia, é fundamental ressaltar que o modelo de administração universitária é democrático, permitindo aos Departamentos, Centros e Unidades Acadêmicas elaborar um regimento próprio que abarque com as especificidades de sua área. Assim, o que realmente falta para a Música nas Universidades brasileiras é um diálogo entre os docentes, estabelecendo critérios que valorizem justamente o que é importante para a manutenção da Música sob âmbito não somente acadêmico, mas artístico. Falta, então, ressaltar elementos fundamentais para o desenvolvimento musical do Brasil: a Pesquisa associada à Extensão (quando esta possui compromisso com a sociedade, não sendo uma mera produção que ficará engavetada em bibliotecas) e a Performance Musical em seus diversos contextos, estilos, gêneros e níveis de complexidade, pois sem esta a Música não existe. Abaixo, serão tomados dois exemplos do tipo de discussão que a área de Música precisa levar a suas reuniões para definição de um regimento interno competente:

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“Ineditismo da obra”: trata-se de um critério utilizado para valoração da Performance Musical. É compreensível se analisarmos que suscita dos músicos a execução de repertório composto na atualidade, dado o restrito interesse pela produção contemporânea da Música Erudita. Porém, é fundamental observar que, ao executar uma peça do repertório tradicional - como uma Balada de Chopin para Piano ou um Estudo de Villa-Lobos para Violão, por exemplo - o músico se coloca em uma situação de exposição, pois dado o número de excelentes performances já realizadas, tal tarefa constitui grande desafio musical e artístico. Logo, este critério pode - e deve - ser revisto em discussões democráticas para a elaboração de um regimento interno competente. “Produção de registro sonoro”: na atualidade, o registro sonoro se apresenta como um importante instrumento de documentação da Performance Musical. Todavia, não se pode desconsiderar a Performance Musical ao vivo, historicamente fundamental para a Música. Valorizar o registro sonoro é incentivar a produção artística em estúdio, onde se pode editar o registro e evitar a Ansiedade na Performance Musical. Porém, trata-se de uma situação artificial, e além disso, tende a sedimentar somente uma visão interpretativa da obra. Logo, é fundamental trabalhar habilidades intrínsecas à apresentação pública. Por fim, reforça-se a necessidade de que os músicos - de todas as especialidades, estilos e concepções humanísticas - trabalhem em conjunto para manter e solidificar seu espaço na Universidade brasileira, pois eles possuem esta ferramenta. Quaisquer questões devem ser menores do que esta, bastando profissionalismo, força de vontade e responsabilidade para com o desenvolvimento da Música no Brasil.

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12. Concebendo Improvisação e Composição como um só processo 09/09/2011 Na Música Ocidental, a primeira palavra que vem à mente quando se fala em Improvisação é /Jazz/, que remete também à concepção tradicional de improviso, onde há possibilidade de mudanças a nível de estruturação musical, em especial melódica e harmônica. Em atividades musicais didáticas, esta mesma concepção é adotada, comumente acompanhada das palavras "liberdade" e "criatividade". Tais palavras lançam um olhar preconceituoso sobre a Performance Musical tradicional, como se esta fosse uma atividade de "mera reprodução" porque se "tocam sempre as mesmas notas" - sendo este o motivo pelo qual não farei uso destas palavras, pois não compactuo com esta ideia. Assim, proponho uma reflexão que amplie o conceito de Improvisação, tratando-a como parte fundamental da Composição e da Performance Musical, em todos os contextos e estilos. Iniciando, citamos o verbete “Improvisation” do Dicionário Grove, que sintetiza a idéia presente neste texto. Assim sendo, pensemos na Improvisação como *Imprevisto* e na Composição como *Controle*. Podemos esboçar um breve modelo conforme o esquema abaixo: IMPROVISAÇÃO Maior Controle ------------->

COMPOSIÇÃO
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