Aula 2 do curso 7 Leituras para pensar o futebol - A busca da excitação - Norbert Elias e Eric Dunning

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CURSO 7 Leituras para pensar o futebol

Prof. Marcos Alvito (UFF)

Livraria Al Fárábi – Rio de Janeiro (Rua do Rosário, número 30)

10 de novembro de 2015

AULA 2: A Busca da Excitação

Autores: Norbert Elias e Eric Dunning

Obra: Quest for excitement: sport and leisure in the civilizing process é uma coletânea de artigos publicada pela primeira vez em 1986. Representou um marco dos estudos sociológicos do esporte, particularmente do futebol. É composta de dez artigos, todos de Elias e/ou Dunning, com exceção do capítulo IX, sobre o hooliganismo, escrito por Dunning e mais dois pesquisadores da "Escola de Leicester" (Patrick Murphy e John Williams), como ficou chamado o grupo de sociólogos formados por Norbert Elias na University of Leicester a partir da década de 50. Basicamente, em todos os artigos, utiliza-se a teoria do processo civilizador, elaborada por Elias ainda ao final da década de 30, mas que só veio a conhecer maior sucesso após a sua publicação em Francês em 1973 (em Inglês em 1978 e em Português em 1990).
O próprio surgimento do esporte moderno estaria relacionado dialeticamente à mudança de longa duração que acabou por exigir um reforço do auto-controle, de certa forma internalizando as tensões e criando a necessidade de uma espécie de catarse (não confundir com "válvula de escape"), que ao mesmo tempo faz o indivíduo experimentar a a excitação e aprender a controlá-la. Além de aspectos mais gerais sobre a sociogênese dos esportes modernos, há artigos falando da história do futebol desde a Idade Média, sobre a relação entre esporte e violência (a partir do exemplo da caça à raposa na Inglaterra), o já referido acerca dos hooligans e, por fim, sobre esporte e identidade masculina. Todos os artigos já haviam sido publicados antes, alguns deles em forma resumida, agora aumentada, mas o livro também tem um prefácio de Dunning e uma preciosa introdução de Norbert Elias, em que ele retoma todos os principais conceitos do livro e da sua obra em geral, incluindo o processo civilizador em 60 páginas.
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Texto da aula:

Tradução portuguesa: ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992.
7 trechos bons para pensar

(todos extraídos de ELIAS,Norbert e DUNNING,Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992.)

"tínhamos a profunda consciência de que a compreensão do desporto contribuía para a compreensão da sociedade." (...) "os estudos de desporto que não sejam simultaneamente estudos da sociedade são análises desprovidas de contexto."
Norbert Elias

Obs: Todos os trechos em negrito foram grifados por mim, exceto quanto assinalado. Além disso, sublinhei os conceitos principais do texto. E tudo que aparece entre colchetes foi escrito por mim para exemplificar ou esclarecer uma passagem do texto.

01 (p.40, Elias, "Introdução"): Por que tanto interesse pelo esporte na nossa sociedade?

"a pergunta: que espécie de sociedade é esta onde cada vez mais pessoas utilizam parte do seu tempo de lazer na participação ou na assistência a estes confrontos não violentos de habilidades corporais a que chamamos 'desporto'? É claro que, em alguns desportos, existem áreas pouco nítidas onde a violência se pratica. Mas, na maioria dos confrontos desportivos, as regras existem com a finalidade de manter estas práticas sob controlo. Pode perguntar-se: que espécie de sociedade é esta, onde as pessoas, em número cada vez maior, e em quase todo o mundo, sentem prazer, quer como actores ou espectadores, em provas físicas e confrontos de tensões entre indivíduos ou equipas, e na excitação criada por estas competições realizadas sob condições onde não se verifica derrame de sangue, nem são provocados ferimentos sérios nos jogadores?"


02 (pp. 41 e 74-75, Elias, "Introdução"): A chave da resposta: uma mudança de longa duração chamada de "Processo Civilizador"

"Uma pesquisa que durou vários anos, agora publicada sob o título geral de O Processo Civilizador, demonstra, para o dizer de maneira breve, que os modelos sociais de conduta e de sensibilidade, particularmente em alguns círculos das classes sociais altas, começam a transformar-se muito drasticamente numa direção específica, desde o século XVI em diante. O domínio da conduta e da sensibilidade tornou-se mais rigoroso, mais diferenciado e abrangendo tudo, mas, também, mais regular, mais moderado e banindo quer excessos de autopunição quer de autocomplacência. A mudança encontrou a sua expressão num termo novo, lançado por Erasmo de Roterdão e utilizado em muitos outros países como símbolo de um novo refinamento das maneiras, o termo 'civilidade', que mais tarde deu origem ao verbo 'civilizar'. Investigações posteriores tornam provável que o processo de formação do Estado, e, em particular, a sujeição da classe guerreira a um controlo mais severo, a 'curialização' dos nobres nos países continentais, possuía algo de comum com a mudança verificada no código de sensibilidase e de conduta."
(...)
"a aprendizagem do autodomínio é uma condição humana universal, uma condição comum da humanidade. Sem ela, as pessoas, enquanto seres individuais, não chegariam a tornar-se humanas, assim como as sociedades, que rapidamente se desintegrariam. O que pode mudar, e aquilo que de fato mudou durante o longo desenvolvimento da humanidade, são os padrões sociais de autodomínio e a maneira segundo a qual eles se forjam no sentido de activar e modelar o potencial naturala dos indivíduos, no sentido de retardar, suprimir, transformar, em resumo, de controlar de várias formas energias elementares e outros impulsos espontâneos. O que mudou, em suma, foram as operações de controlo engendradas no decurso do processo de aprendizagem individual de uma criança e conhecidas actualmente por designações tais como 'razão' ou 'consciência', 'ego' ou 'superego'. A sua estrutura e padrão, as suas fronteiras e, em conjunto, sua relação com os impulsos libidinais e outros em grande medida não apreendidos, são nitidamente diferentes em estádios distintos no desenvolvimento da humanidade e, desse modo, no decurso do seu processo de civilização. Com efeito, as modificações deste gênero constituem o fulcro estrutural deste processo demonstrável, assim como dos ligeiros arranques de civilização ou de descivilização que se podem observar.
É por este motivo que, no desenvolvimento social da espécie humana, não existe o ponto zero da civilização, nenhum momento do qual se possa dizer que foi aqui que a barbárie chegou em absoluto ao fim, ou foi aqui que, entre os humanos, a vida civilizada começou. Dito de outra maneira, o processo de civilização é um processo social sem início absoluto. (...) Um processo de civilização pode ser adquirido, pode até ser acompanhado, por avanços de direcção oposta, pelo processo de descivilização."


03 (pp. 41-43, Elias, "Introdução"): A 'desportivização' (transição dos passatempos a desportos) está ligada ao avanço do processo civilizador, o exemplo do boxe

"De forma idêntica, a investigação sobre o desenvolvimento do desporto mostrou que existia uma transformação global do código de conduta e de sensibilidade na mesma direção. Se compararmos os jogos populares realizados com bola nos finais da Idade Média, ou até nos inícios dos tempos modernos, como o futebol e o râguebi [sic, rugby], os dois ramos do futebol inglês que emergiram no século XIX, pode notar-se que existe um aumento da sensibilidade em relação à violência. A mesma mudança de orientação pode ser observada no desenvolvimento do boxe. As formas mais antigas de pugilato, uma maneira popular de resolver conflitos entre os homens, não eram totalmente desprovidas de regras. Porém, o uso dos punhos desprotegidos era acompanhado, frequentemente, pela utilização das pernas como uma arma. O padrão popular de luta desarmada envolvendo os punhos, ainda que não estivesse totalmente desprovido de regras, era bastante flexível. A luta com os nós dos dedos desprotegidos, como muitos outros combates corporais, assumiu as características de um desporto em Inglaterra, onde foi, pela primeira vez, sujeito a um rigoroso conjunto de regras que, entre outras coisas, eliminava por completo, o uso das pernas como armas. O aumento da sensibilidade revela-se pela introdução de luvas e, com o tempo, pelo acolchoamento destas e a introdução de várias categorias de jogadores de boxe, o que garantia um nível superior de igualdade de oportunidades. De facto, a forma popular de luta só assumiu as características de um 'desporto' quando se verificou a conjugação entre o desenvolvimento de maior diferenciação e, de certo modo, de formas mais estritas de um conjunto de regras, e o aumento de protecção dos jogadores quanto aos graves danos que poderiam advir dos confrontos. Estas características do boxe enquanto desporto permitem explicar o motivo por que a forma inglesa de boxe foi adoptada como padrão em muitos outros países, substituindo, muitas vezes, formas de pugilato tradicionais, específicas de uma região, como sucedeu em França. Do mesmo modo e em grande medida por esta razão, outros tipos de confrontos físicos com as características de desportos foram exportados de Inglaterra e adoptados por outros países, entre eles as corridas a cavalo, o ténis, a corrida e outros gêneros de provas atléticas. A transição dos passatempos a desportos, a 'desportivização' (...) ocorrida na sociedade inglesa, e a exportação de alguns em escala global, é outro exemplo de um avanço de civilização.. "


04 (pp. 47-48 e 79, Elias, "Introdução"): Tanto no futebol quanto na caça à raposa [ou no boxe, ou no romance policial, ou no cinema], o importante não é a vitória e sim a tensão-excitação, que, paradoxalmente, visa reforçar o autocontrole, ao exercitá-lo, processo chamado de catarse (Aristóteles)

"quando se assiste a um jogo de futebol, não é apenas o clímax representado pela vitória da nossa equipa que oferece emoção e prazer. Com efeito, se o jogo é, em si mesmo, desinteressante, até o triunfo da vitória pode ser, de certo modo, uma desilusão. Isso também é verdade quando uma equipa é de tal maneira superior à outra que marca um golo a seguir a outro. Neste caso, o próprio confronto é demasiado efêmero e não se desenvolve como devia ser: esta situação também é decepcionante.
A caça à raposa revela o mesmo padrão. A morte da raposa era, de algum modo, desvalorizada, porque esta não surgia como prato, à mesa de jantar: embora caçada, não era consumida pelos seres humanos. O clímax da caça, a vitória sobre a raposa, só se tornou realmente um prazer quando se assegurava um período de antecipação suficientemente longo. Tal como no caso do futebol, sem um período de antecedência do prazer bastante extenso e excitante, o clímax da vitória perde alguma coisa da sua sedução. Ainda que pouco notada, esta enorme ênfase colocada na agradável tensão-excitação da fase que antecede o prazer, isto é, a tentativa de prolongar o ponto essencial do prazer da vitória no confronto simulado do desporto, era sintomático de uma mudança de grande alcance na estrutura da personalidade dos seres humanos. Por sua vez, isto estava fortemente relacionado com mudanças específicas verificadas na estrutura da sociedade em geral."


05 (pp. 49, 50 e 51, 59 e 68, Elias, "Introdução"): A emergência do esporte está relacionada [de forma dialética, i.e. sem relação de causa e efeito] à diminuição dos ciclos de violência concretizada pela adoção do regime parlamentar ('parlamentarização'), ou seja, que permite uma disputa e uma transição não-violenta dos grupos no poder segundo regras, como no esporte:

"A emergência do desporto como uma forma de confronto físico de tipo relativamente não violento encontrava-se, no essencial, relacionada com um raro desenvolvimento da sociedade considerada sob a perspectiva global: os ciclos de violência abrandaram e os conflitos de interesse e de confiança eram resolvidos de um modo que permitia aos dois principais contendores pelo poder governamental solucionarem as suas diferenças por intermédio de processos inteiramente não violentos, e segundo regras concertadas que ambas as partes respeitavam."
(…)
"De um modo geral, acredita-se que todas as formas de sociedade podem facilmente adoptar e manter a democracia no sentido de um regime multipartidário, seja qual for o nível de tensões que existam no seu interior ou da capacidade dos seus membros para as conservarem. De facto, são necessárias condições especiais para que semelhante regime se desenvolva e se perpetue. Isso é delicado e só pode continuar a funcionar enquanto essas condições existirem em toda a sociedade. Um regime parlamentar está em risco de ruptura se as tensões sociais se aproximarem ou atingirem os limiares de violência. Por outras palavras, o seu funcionamento depende da eficiência do monopólio da violência física de um país, da estabilidade da pacificação interna dessa sociedade. Porém, esta estabilidade depende, até certo ponto, dos níveis de constrangimento individual dos seres humanos que integram estas sociedades. (...) desde que a contenção de tensões constitua uma parte integrante do regime parlamentar, dando lugar a numerosos conflitos não violentos, de acordo com as regras solidamente estabelecidas, o nível de tolerância à tensão, que faz parte do costume social de um povo, constitui um apoio ao funcionamento de semelhante regime.
Neste aspecto, o regime parlamentar apresenta certas afinidades com os jogos desportivos. (...) [caça à raposa, boxe, corrida e alguns jogos com bola se transformaram em esportes no século XVIII, no mesmo período em que o parlamentarismo começou a funcionar plenamente na Inglaterra]. Entre as principais necessidades do regime parlamentar, tal como este emergiu no decurso do século XVIII, encontra-se a capacidade de uma facção ou partido no governo dominar os seus adversários através de um cargo público sem usar a violência, desde que as regras do jogo parlamentar assim o exigissem, como sucede no caso de uma importante votação no Parlamento ou uma eleição na sociedade serem contra isso."
(...)
"A este respeito, a emergência de um governo parlamentar em Inglaterra, no decurso do século XVIII, com uma rotação regular de grupos rivais de acordo com regras combinadas, pode servir como ensinamento. Foi um dos raros exemplos de um ciclo de violência, cumprido no quadro de um processo de dupla moderação, enleando dois ou mais grupos numa situação de medo recíproco da violência de cada um, que se resolveu através de um compromisso sem vencedores ou vencidos absolutos. Como ambos os grupos perderam gradualmente a sua desconfiança mútua e desistiram da violência e respectivas técnicas, tiveram de aprender, por esse facto, ao mesmo tempo, a desenvolver novas competências técnicas e estratégicas exigidas pelo confronto não violento. As técnicas militares deram lugar às técnicas verbais do debate feitas de retórica e de persuasão, a maior parte das quais exigia mais contenção geral, identificando de modo nítido, esta mudança com um avanço de civilização. Foi esta alteração, a maior sensibilidade quanto à utilização da violência, que, refletida nos hábitos sociais dos indivíduos, encontrou também expressão no desenvolvimento dos seus divertimentos. A 'parlamentarização' das classes inglesas que possuíam terras teve a sua contrapartida na 'desportivização' dos seus passatempos."
(...)
"a ligação entre aquilo que é designado com frequência por diferentes esferas do desenvolvimento social, por exemplo, entre o regime parlamentar das classes mais altas e os divertimentos das classes mais baixas na forma de desportos, não possui o carácter de uma relação causal [grifo do autor]. Verificou-se apenas que o mesmo grupo de pessoas que participou no avanço da pacificação e no aumento da regularização dos confrontos entre facções no Parlamento era responsável pelo aumento da pacificação e da regularização dos seus divertimentos."

06 (pp. 68-72 e 79) : A "excitação mimética": criam-se tensões (mas sem perigo real), gerando uma excitação agradável, mas que tem que se manter sob controle, sob o perigo de descambar para a violência; neste sentido o esporte é apenas uma variedade dentre as formas de lazer que desempenham todas o mesmo papel:

"Nas sociedades avançadas do nosso tempo, muitas profissões, muitas relações privadas e actividades, só proporcionam satisfação se todas as pessoas envolvidas conseguirem manter uma razoável harmonia e um controlo estável dos seus impulsos libidinais, afectivos e emocionais mais espontâneos, assim como os dos seus estados de espírito flutuantes. Nestas sociedades, a sobrevivência social e o sucesso dependem, por outras palavras, em certa medida, de uma armadura segura, nem demasiado frágil, nem demasiado forte, de autocontrole individual. Nas sociedades como estas há um campo de acção muito limitado para a demonstração de sentimentos fortes, de acentuadas antipatias e de aversões relativamente a outras pessoas, para a entrega a intensos acessos de cólera, a um ódio feroz ou ao impulso de atingir a cabeça de alguém. As pessoas que se agitam demasiado, sob o domínio de sentimentos que não podem controlar, são casos para hospital ou para prisões. Determinadas condições de elevada excitação são consideradas como anormais em qualquer pessoa e, no caso de multidões, como um perigoso prelúdio de violência. No entanto, a contenção de sentimentos fortes, no sentido de alguém preservar um controlo regular firme e completo dos impulsos, afectos e emoções é um factor de origem de novas tensões."
(...)
"Até onde se pode verificar, a maioria das sociedades humanas desenvolve algumas contramedidas em oposição às tensões do stress que elas próprias criam. No caso de sociedades que atingiram um nível relativamente avançado de civilização, isto é, com relativa estabilidade e com forte necessidade de sublimação, as restrições harmoniosas e moderadas, na sua globalidade, podem ser observadas, habitualmente, numa considerável multiplicidade de actividades de lazer, que desempenham essa função, e de que o desporto é uma variante. Mas, para cumprir a função de libertação das tensões derivadas das pressões, essas actividades devem conformar-se à sensibilidade existente face à violência física que é característica dos hábitos sociais das pessoas no último estádio de um processo de civilização."
(...)
"as actividades de lazer destinam-se a apelar diretamente para os sentimentos das pessoas e animá-las, ainda que segundo maneiras e graus variados. Enquanto a excitação é bastante reprimida na ocupação daquilo que se encara habitualmente como as actividades sérias da vida - excepto a excitação sexual, que está mais estritamente confinada à privacidade - , muitas ocupações de lazer fornecem um quadro imaginário que se destina a autorizar o excitamento, ao representar, de alguma forma, o que tem origem em muitas situações da vida real, embora sem seus perigos e riscos. Filmes, danças, pinturas, jogos de cartas, corridas de cavalos, óperas, histórias policiais e jogos de futebol - estas e muitas outras actividades de lazer pertencem a esta categoria.
Se perguntarmos de que modo é que se animam sentimentos, como é que a excitação é favorecida pelas actividades de lazer, descobre-se que isso é dinamizado, habitualmente, por meio da criação de tensões. Perigo imaginário, medo ou prazer mimético, tristeza e alegria são produzidos e possivelmente resolvidos no quadro dos divertimentos. Diferentes estados de espírito são evocados e talvez colocados em contraste, como a angústia e a exaltação, a agitação e a paz de espírito. Deste modo, os sentimentos dinamizados numa situação imaginária de uma actividade humana de lazer têm afinidades com os que são desencadeados em situações reais da vida - é isso que a expressão 'mimética' indica -, mas o último está associado aos riscos e perigos da frágil vida humana, enquanto o primeiro sustenta, momentaneamente, o fardo de riscos e ameaças, grandes e pequenas, que rodeias a existência humana. (...)
Do mesmo modo [que numa tragédia], os espectadores de um jogo de futebol podem saborear a excitação mimética de um confronto entre duas equipas, evoluindo de um lado para o outro no terreno de jogo, sabendo que nenhum mal acontecerá aos jogadores nem a si mesmos. Tal como na vida real, podem agitar-se entre as esperanças de sucesso e medos de derrota; e, nesse caso, activam-se sentimentos muito fortes, num quadro imaginário, e a sua manifestação aberta na companhia de muitas outras pessoas pode ser a mais agradável e libertadora de todas, porque na sociedade, de um modo geral, as pessoas estão mais isoladas e têm poucas oportunidades para manifestações colectivas de sentimentos intensos.
(...)
"O quadro do desporto, como o de muitas outras actividades de lazer, destina-se a movimentar, a estimular as emoções, a evocar tensões sob a forma de uma excitação controlada e bem equilibrada, sem riscos e tensões habitualmente relacionadas com o excitamento de outras situações da vida, uma excitação mimética que pode ser apreciada e ter um efeito libertador, catártico, mesmo se a ressonância emocional ligada ao desígnio imaginário contiver, como habitualmente acontece, elementos de ansiedade, medo - ou desespero."


07 (pp. 72, 88-93): A explicação para o surgimento da violência entre os torcedores e o hooliganismo ; a 'agressividade' é um sintoma e não uma causa; outsiders dentro da própria sociedade, vivendo vidas sem excitação, perspectivas ou objetivos; vingam-se da sociedade e da ausência de sentido (e não da falta de pão):

"E, contudo, se as tensões despertam numa sociedade mais alargada, se aí as restrições sobre os sentimentos intenso enfraquecem e o nível de hostilidade e ódio entre os diferentes grupos se eleva a sério, a linha divisória que separa o jogo e aquilo que não é jogo, confrontos miméticos e reais, pode ficar pouco nítida. Nesses casos, a derrota no terreno de jogo pode evocar a amarga sensação de derrota na vida real e um apelo de vingança. Uma vitória mimética pode apelar à continuação do triunfo numa batalha fora do terreno de jogo."
(...)
"A excitação contida forma uma parte integrante do prazer do desporto, porém, o que acontece se as condições da sociedade em geral não dotam todos os sectores com formas de autocontrole suficientemente fortes de modo a conterem a excitação, se as tensões na sociedade em geral se tornarem tão intensas que anulem as formas de controlo individual contra a violência e, de facto, introduzem um jacto de descivilização, se induzem setores da população a sentirem a violência como algo agradável?"
(...)
"Uma explicação em termos de 'agressividade' destes jovens não vai muito longe. Porque são agressivos? A referência ao desemprego não nos levaria longe. O exemplo pode ajudar como indicador de que, em casos semelhantes, explicações em termos de uma causa isolada, ou mesmo de um feixe de causas isoladas, são inadequados. Em casos como este, a explicação necessita incluir a situação humana das pessoas envolvidas e sua experiência desse facto. Na verdade, se não se fizer referência à relação instalados-marginais [estabelecidos-outsiders] e ao impacte disso na estrutura da personalidade dos marginais, não se pode compreender o comportamento agressivo e destrutivo dessas pessoas. (...) uma explicação em termos de 'agressividade' (...) acontece pelo facto de se atribuir a um sintoma a aparência de uma causa."
(...)
"A maioria dos que se relacionam com a violência no futebol parece ser proveniente do nível mais baixo das classes trabalhadoras. (...) A maior parte não só provém de famílias consideradas com pouco apreço na sua sociedade mas são, também, encarados sem estima pela maioria dos que se situam entre os instalados [estabelecidos]." (...) "Na sua sociedade conservam uma posição muito inferior. Sempre que contactam com o mundo instalado [estabelecido], sentem a sua inferioridade. O desprezo da sociedade é provavelmente agravado porque os mais novos sabem que lhe pertencem. (...) eles próprios sentem que são daqui; sabem que são ingleses, ou escoceses, ou galeses. E, no entanto, são tratados como se fossem elementos externos [penso nos jovens "árabes" na França dos banlieus, por exemplo]. Existe pouca excitação na sua vida normal; talvez não exista nenhum desporto nem entusiasmo para o praticarem. Podem estar sem trabalho, se é que alguma vez o tiveram. De um modo geral, a vida é particularmente monótona. Nada de especial acontece." (...)
"Não existem perspectivas; não têm objectivos. Deste modo, o desafio de futebol entre equipas locais surge como o maior, o mais excitante dos acontecimentos numa vida que, de qualquer maneira, é, acima de tudo, vazia. Então, pode mostrar-se a todo o mundo que se faz parte dele. E pode voltar-se as costas à sociedade que não o parece notar. E não parece preocupar-se. Já no caminho para o jogo, no seu próprio país ou estrangeiro, não se está mais sozinho, não se está mais com um pequeno grupo de amigos diários. Agora são centenas, até mesmo milhares, do seu género. Essa situação dá força a uma pessoa. Na vida quotidiana de uma multidão, cada um passa a ter poder. Na estação do comboio [trem], no caminho para o jogo e, ainda mais, no campo de futebol, pode chamar-se a atenção sobre si próprio. Qualquer um pode atrever-se a fazer coisas que nem sequer se atreveria a fazer se estivesse só. E, deste modo, sem saber exactamente o que está a fazer, mas gozando com a excitação desencadeada, volta as costas ao sistema. Cada um pode vingar-se de uma vida vazia e sem esperança. A vingança é um motivo forte. Rasgam-se os compartimentos dos comboios; quebram-se mesas e garrafas nos bares. E, depois, no campo de futebol encontram-se milhares e milhares, muitos mais do que a polícia, os representantes da ordem estabelecida. Ou ainda melhor, são estrangeiros. É possível fazer troça deles. Fazer parte de uma multidão transmite coragem. Faz com que aqueles que não têm poder pareçam poderosos. E assim acontece, pessoas que normalmente levam uma vida humilde e decerto frustrante, voltam-lhe as costas por meio do ridículo. Perdem o autodomínio que, em geral, limita a excitação criada pelo confronto entre duas equipas de futebol. Procuram a excitação de uma luta real desenvolvida sob condições tais que permite o envolvimento sem que corram grandes riscos. Aqueles que habitualmente são marginais, tornam-se, por um breve e ilusório momento, os chefes; os oprimidos, destacam-se. De forma resumida, creio que a violência no futebol, qualquer que possa ser a sua explicação, deve ser também considerada como uma síndroma, como uma forma de comportamento e de sentimento característica de jovens marginais quando podem reunir-se e formar uma grande massa."
(...)
"Talvez seja interessante refletir sobre o facto de as desordens internas terem desaparecido completamente nos países mais desenvolvidos e organizados, enquanto os distúrbios do futebol persistem. Algumas das injustiças que se encontravam na origem do primeiro tipo de violência, tais como o perigo de fome, podem ter desaparecido em grande medida destas sociedades de abundância. Outras injustiças, não menos prementes, encontram agora a sua expressão nos distúrbios. A falta de pão, que foi mais ou menos remediada, é agora seguida pela ausência de sentido." (...) "E embora por vezes acreditem que lhes foi feita uma grande injustiça, nem sempre é claro saber por quem foi cometida. Por esse motivo, a vingança é, com frequência, o seu grito de guerra. Um dia a gota d'água transborda e eles procuram vingar-se sobre alguém."


Próxima aula em 24/11/2015*:

"Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa" - Clifford Geertz

* Não teremos aula no dia 17 de novembro
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Reflexão extra:

(p. 67 ) : A relativa autonomia do esporte (desporto nessa tradução portuguesa)

"Pode dizer-se que qualquer variedade de desporto possui uma fisionomia própria. Ela atrai as pessoas segundo as características específicas da sua personalidade. Isso acontece porque possui uma certa autonomia em relação não só aos indivíduos que jogam num determinado momento mas, também, à sociedade onde se desenvolveu. É por esta razão que alguns dos desportos que se desenvolveram, inicialmente, em Inglaterra, puderam transferir-se e ser adoptados por outras sociedades como se fizessem parte delas. O reconhecimento deste facto abre um vasto campo de futuras investigações. Porque é que, por exemplo, algumas das variedades iniciais de desportos ingleses, tais como o futebol e o ténis, foram adoptados por muitas sociedades diferentes, em todo o mundo, enquanto a expansão do críquete se confinou principalmente a um círculo exclusivo dos países da Commonwealth [Comunidade Britânica]? Porque é que uma variedade do futebol, o râguebi, não se expandiu tão largamente como o futebol? Porque é que os EUA, sem abandonarem por completo as variantes do desporto inglês, desenvolveram a sua própria variedade de futebol?"





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Aula 2 do Curso 7 Leituras para pensar o futebol – Prof. Marcos Alvito

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