Autenticidade em Rogers

June 8, 2017 | Autor: Adriano Holanda | Categoria: Psychology, Counseling
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Descrição do Produto

REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro Diretoria (2010-2011) Presidente: Eulalia Henriques Maimone Vice Presidente: Helena de Ornellas Sivieri Pereira 1ª. Secretária: Cirlei Evangelista Silva Souza 2ª. Secretária: Larissa Guimarães Martins Abrão 1ª. Tesoureira: Célia Vectore 2ª. Tesoureira: Marineia Crosara Resende Coordenador de Eventos: Walter Mariano de Faria Silva Neto Editor da Revista: Moisés Fernandes Lemos

UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro Reitor: Virmondes Rodrigues Junior Instituto de Educação, Artes, Letras, Ciências Humanas e Sociais Diretora: Fábio César da Fonseca Curso de Psicologia Coordenadora: Helena de Ornellas Sivieri Pereira

UFU - Universidade Federal de Uberlândia Reitor: Alfredo Júlio Fernandes Neto Instituto de Psicologia Diretora: Áurea de Fátima Oliveira Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Coordenador: Ederaldo José Lopes Curso de Psicologia Coordenador: Joaquim Carlos Rossini

Revista Perspectivas em Psicologia, V. 15 n.1. Jan / Jun 2011

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA Expediente A Revista Perspectivas em Psicologia é uma revista científica semestral, publicada pela da Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro e pelos cursos de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e da Universidade Federal de Uberlândia. Ela é enviada a bibliotecas universitárias do Brasil com a missão de incentivar e difundir o conhecimento científico nas diversas áreas da Psicologia tendo como referência a produção do conhecimento sobre fatos e fenômenos da região

Editor Moisés Fernandes Lemos (UFG-CAC)

Conselho Editorial Antonio Roazzi (UFPE) Célia Vectore (UFU) Cláudia Davis (PUCSP) Eduardo Costa (Coimbra/PT) Elias Humberto Alves (UNICAMP) Eulália Henriques Maimone (UNIUBE) Fernando Antônio de Oliveira Leite (UNIMINAS) José Lino de Oliveira Bueno (USP/Rib. Preto) Marcela Cornejo Cancino (PUC – Santiago-Chile) Maria Aparecida Morgado (UFMT) Maria Gracite (Coimbra/PT) Maria Elisabeth Montagna (PUC-SP) Miguel Mahfoud (UFMG) Sinésio Gomide Júnior (UFU) Teresa Benitez Gray (Universidad de Oriente - Cuba).

Endereço da Revista Universidade Federal de Uberlândia Campus Umuarama Av. Pará, 1720, Bloco 2C, Sala 31, Bairro Umuarama CEP 38405-320 – Uberlândia – MG.

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA Publicada originalmente com o título de: Revista da Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro. Primeiro volume e número (V.1 N.1) publicado em dezembro de 1998. Uberlândia – MG.

Capa Andréia Fernandes Malaquias Assistente - Comunicação Social /UFTM

Diagramação

Thimoteo Pereira Cruz

Impressão e Acabamento

Gráfica Univesitária da Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Ficha catalográfica:

REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA. Uberlândia, V.15 N.1, jan/jun.2011. (V.1 N.1 de dezembro de 1998) Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro. Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Universidade Federal de Uberlândia Semestral 1. Psicologia ISSN 2237-6917 CDU: 159.9

Revista indexada ao INDEX-PSI (www.psicologia-online.org.br/index_psi.html)

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA

EDITORIAL

Editorial SAÚDE E COMPROMISSO SOCIAL Moisés Fernandes Lemos

Na década de oitenta, a sociedade organizada já levantava bandeiras, exigindo do Estado garantias de investimentos em saúde pública, educação e saneamento básico, por entender que essa era uma maneira de melhorar a qualidade de vida da população mais sofrida. Isso faz muito tempo, mas nas últimas décadas o Brasil observou a consolidação do regime democrático e hoje podemos participar diretamente da destinação de verbas públicas, atendendo às necessidades das diversas regiões de um país continental. Os problemas de saneamento básico foram relativamente resolvidos, as endemias e a mortalidade infantil foram controladas. O Brasil ainda tem muitos problemas, entretanto, nos últimos anos o número de brasileiros abaixo da linha da pobreza diminuiu, assim como diminuiu o número de mortes por fome, por problemas de saúde de fácil controle como diarréia e doenças infantis passíveis de coberturas pelas vacinações. Cresceu o número de brasileiros na escola, aumentando, principalmente a quantidade de anos em que o brasileiro permanece nela. Aumentou a incidência de brasileiros com carteiras assinadas, com capacidade de compra, com duas ou mais refeições dia e o acesso à casa própria. Enfim, as condições de vida no Brasil melhoraram, consideravelmente, nos últimos anos, elevando a expectativa de vida de nosso povo. Mas nesse cenário, hoje nos perguntamos: quais os desafios das instituições de ensino em Psicologia e as exigências do mercado de trabalho para a atuação em saúde? Para tentar responder a este questionamento retomamos um pouco da história da Psicologia. As experiências de Wundt na Alemanha levaram ao reconhecimento da Psicologia como área do saber, dotando-a de um objeto de estudo e de um método de investigação científica que a deram o status de ciência do comportamento. Os esforços de Freud, estabelecendo as bases da Psicanálise contribuíram, sobremaneira, para o desenvolvimento da clínica e indiretamente para a inclusão da Psicologia na área de saúde, seja pelo desenvolvimento da teoria, de procedimentos técnicos ou da prática clínica. Não obstante, foi a pequena possibilidade de recuperação dos pacientes internados nos hospitais psiquiátricos suscitou questionamentos em diversos países, levando ao surgimento dos primórdios do movimento denominado de anti-psiquiatria. Na década de 60 a luta anti-manicomial atinge seu ápice na Itália com Franco Baságlia que fecha os manicômios, dando aos internos um tratamento mais humano e devolvendo-lhes a cidadania. As experiências de Baságlia geram um movimento sem precedentes, com repercussão no mundo todo. 4 Revista Perspectivas em Psicologia, V. 15 n.1. Jan / Jun 2011

REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA No Brasil é apresentado o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado, que reduz o número de leitos e propõe meios alternativos ao tratamento do doente mental. Os trabalhadores da saúde se organizam em movimento e em 1985 é realizada uma convenção, exigindo mudanças significativas no modelo de saúde. Como consequência da organização dos trabalhadores em saúde pública o país adota um modelo de assistência inspirado no modelo de assistência sandinista, o qual teve como inspiração o modelo cubano. Observa-se, então, uma mudança significativa na assistência pública à saúde, com a redução de leitos e com a implantação das políticas do SUS em substituição ao modelo de hospitalização do INPS. Como principal recurso à assistência e promoção da saúde mental a lei prevê a instalação dos CAPS e a realização de oficinas terapêuticas. A saúde passa a ser um esforço conjunto de diversas áreas do saber, havendo uma horizontalização do poder na equipe interdisciplinar que atende à demanda, ou seja, a saúde mental deixa de ser uma atribuição do psiquiatra, contando com as contribuições de profissionais de diversas áreas, dentre elas a Psicologia. No que se refere à expansão das áreas de atuação da psicologia clínica os profissionais com formação de inspiração psicanalítica, por influência da Psicanálise Argentina, de forte inspiração socialista, começam a praticar uma clínica mais social, posto que a Psicologia clínica passe a ser praticada de maneira mais extensa, afirmando seu compromisso com as camadas menos favorecidas da população, mas por diversas razões que não cabe aqui discuti-las amiúde. Fato é que a Psicologia Clínica ao ser aplicada em larga escala carece da adequação das técnicas para atender uma clientela mais ampla da população, inaugurando a chamada clínica extensa, que sem negar as origens psicanalíticas faz uma clínica mais voltada para o social, se adaptando gradativamente às características da sociedade brasileira. Se na década de 1980 recebíamos formação voltada para a Psicologia de atendimentos individuais em consultórios, hoje ainda temos deficiências: carecemos de formar profissionais para uma nova realidade: a saúde pública. Não basta ensinar técnicas atendimentos clínicos, colocar profissionais no mercado em larga escala, pois suas primeiras oportunidades de trabalhar provavelmente serão na saúde pública. No entanto, o modelo de formação que ele recebeu não o capacita para atuar nessa área, gerando problemas para quem contrata e para o próprio psicólogo que se vê frustrado em suas iniciativas e com a identidade profissional pouco estabelecida. Nesse cenário, nos parece que o grande desafio para quem atua em saúde pública seja, por um lado, trabalhar numa equipe interdisciplinar, colocando sua escuta treinada a serviço do grupo. Por outro, vimos como um desafio o desenvolvimento de habilidades e competências, adequando as técnicas para o atendimento em grupo, com o envolvimento das famílias, das instituições e da rede social. O aprimoramento das oficinas terapêuticas é outro desafio, já que na prática elas não cumprem o papel previsto na legislação. Cabe ainda destacar que o papel do psicólogo na equipe não está garantido na lei, devendo os colegas que ali atuam justificar suas permanências nas equipes de trabalho e essa justificativa se faz com empenho e resultados. Entendemos que esse problema deva ser resolvido pela categoria e pelas instituições formadoras de tal maneira que o público alvo seja mais bem assistido. Destacamos, ainda,

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA que não da para pensar em formação em Psicologia sem pensar em Psicologia Aplicada. O compromisso profissional do psicólogo deve ser essencialmente com a sociedade, como retribuição dos investimentos sociais em sua formação e capacitação como forma de diminuir o sofrimento humano, seja a instituição formadora pública ou privada, posto que todas usufruam das benesses do Governo. Sendo assim, cabe aos periódicos de Psicologia estimular a discussão, difundir os resultados de pesquisas e publicar avanços e retrocessos da área. Essas experiências, certamente, contribuirão para que a Psicologia alcance seu lugar na história. Nesse sentido, a Revista Perspectivas em Psicologia, sem perder de vista sua proposta generalista, soma esforços com as demais publicações do gênero, buscando um lugar para os psicólogos nas equipes de saúde, por mérito e competência. Tenham uma boa leitura!

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Artigos CAMINHOS METODOLÓGICOS NA PESQUISA EM PSICOLOGIA: PESQUISANDO A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO ESCOLAR Marilene Proença Rebello de Souza (USP – São Paulo - SP) Anabela Almeida Costa e Santos Peretta (UFU – Uberlândia - MG) Juliana Sano de Almeida Lara (UFU – Uberlândia - MG) Roseli Fernandes Lins Caldas (Instituto Mackenzie – São Paulo - SP) Resumo O presente artigo propõe-se a apresentar e discutir os recursos metodológicos utilizados para realização da pesquisa “A atuação do psicólogo da rede pública de ensino frente à demanda escolar: concepções, práticas e inovações”, no estado de São Paulo. A investigação foi organizada em duas frentes concomitantes: 1) pesquisa de campo sobre práticas psicológicas desenvolvidas na rede pública de educação, que contemplou aplicação de questionários e realização de entrevistas; 2) análise documental por meio da revisão de literatura sobre a atuação do psicólogo na educação. Foi possível mapear onde e como atuam os psicólogos paulistas. Identificaram-se avanços nas práticas profissionais psicológicas no campo da educação, os quais anunciam que psicólogos têm se apropriado dos conhecimentos da Psicologia Escolar e Educacional Crítica. Palavras-chave: psicologia escolar; metodologia; atuação do psicólogo; ensino público.

Abstract Methodological paths Research in Psychology: survey on school psychologist proceedings This article aims to present and discuss the methodological resources for the research “School Psychologists in Public School Education: conceptions, practices and innovations” in the State of São Paulo, Brazil. The investigation was organized into two concomitant fronts: 1) field research on the psychological practices developed in public education, which included questionnaires and interviews; 2) document analysis by reviewing the literature about the practice of psychologists in education. It enabled the mapping of where and how the psychologists work. Advances in professional psychological practice in education were identified, which announced that psychologists have appropriated the knowledge from Critical School Psychology. Keywords: school psychology; methodology; psychologist performance; public education.

Artigo Recebido em 03/01/2012 e Aprovado em 29/8/2012

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Introdução O presente artigo se propõe a apresentar e discutir os recursos metodológicos utilizados para a realização da pesquisa “A atuação do psicólogo da rede pública de ensino frente à demanda escolar: concepções, práticas e inovações”. Considerando a relevância da escolha e sistematização do percurso metodológico para os estudos científicos, o presente texto tem como objetivo compartilhar os desafios e os caminhos encontrados para desenvolver estudo comprometido com conhecer e discutir a atuação em Psicologia Escolar e Educacional. A pesquisa em questão foi desenvolvida em âmbito nacional, nos estados de São Paulo, Rondônia, Acre, Minas Gerais, Bahia, Santa Catarina e Paraná. Buscou-se manter uma unidade metodológica em todos os estados, possibilitando, assim, que tivéssemos acesso a uma espécie de “estado da arte” da prática profissional em Psicologia no campo da educação. E, neste artigo, nos deteremos mais especificamente no modo como se deu a condução do estudo no estado de São Paulo. Destaca-se a relevância de São Paulo para que se conheçam as tendências e as peculiaridades da atuação em Psicologia. É possível constatar que o estado concentra quase um terço dos psicólogos brasileiros1 e abriga os principais centros de pesquisa e formação que têm desenvolvido propostas de mudança de rumos na Psicologia Escolar e Educacional. A Psicologia Escolar passou por uma grande transformação desde a década de 1980, quando foram desvelados os compromissos político-ideológicos que vinham sendo assumidos até então por esta ciência e profissão. Passou-se, então, de uma atuação psicológica marcada pela intervenção

junto à dimensão individual das questões escolares, para práticas mais comprometidas com os aspectos institucionais e políticos da educação. Tais mudanças também impactaram a pesquisa em Psicologia Escolar e Educacional. Há cerca de 20 anos, começaram a ganhar evidência trabalhos dedicados a compreender o processo de escolarização. A temática das políticas públicas em Educação também se tornou foco de atenção das pesquisas em Psicologia (Souza, 2010a). Em consonância com a vertente de pesquisa voltada à compreensão de como as políticas públicas em Educação têm sido implantadas e apropriadas pelos diversos participantes da vida diária escolar, estão os estudos que buscam compreender como tem se dado a inserção da psicologia na educação pública brasileira (Balbino, 2008; Marinho-Araújo, Neves, Penna-Moreira e Barbosa, 2011). O estudo deste tema tem se revelado fundamental para a compreensão de quais conquistas têm sido alcançadas, bem como para que se identifique quais são os desafios e as lutas necessárias a garantir que o psicólogo seja um profissional que tenha possibilidades de atuação e efetivas contribuições para a educação brasileira. É neste cenário que se insere a pesquisa aqui apresentada, que teve como objetivo geral identificar e analisar concepções e práticas desenvolvidas pelos psicólogos da rede pública frente às queixas escolares, oriundas do sistema educacional, visando compreender em que medida apresentam elementos inovadores e pertinentes às discussões recentes na área de Psicologia Escolar e Educacional em busca de um ensino de qualidade para todos. O estudo foi organizado em duas frentes concomitantes, contemplando modalidades distintas de

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investigação: 1) investigação das práticas psicológicas desenvolvidas na rede pública de educação, realizada por meio da pesquisa de campo; 2) investigação das discussões recentes na literatura sobre a atuação do psicólogo na educação, realizada por meio da análise documental. Ao optarmos por estes dois procedimentos visávamos estabelecer um diálogo teórico-prático no que se refere à atuação em Psicologia Escolar. Tal recurso possibilitou que identificássemos como e em que medida as discussões e proposições que comparecem nas publicações recentes da área de Psicologia Escolar e Educacional têm sido incorporadas nas práticas dos profissionais que atuam junto à rede pública de educação. Conhecer a atuação dos psicólogos que estão vinculados ao ensino público do estado de São Paulo foi uma tarefa complexa, desenvolvida por meio de estratégias que possibilitaram o acesso a informações quantitativas e qualitativas sobre a inserção dos profissionais e as práticas por eles desenvolvidas. A possibilidade de que estratégias quantitativas e qualitativas possam ocupar uma relação de complementariedade em estudos científicos vem sendo abordada por importantes pesquisadores (Minayo & Sanches, 1993; Spink, 1999), que questionam a ideia de dicotomia entre essas formas de conduzir pesquisas. As abordagens quantitativas possibilitam conhecer a magnitude de fenômenos sociais, enquanto as abordagens qualitativas propiciam que novos aspectos de um fenômeno emerjam e possibilitam que sejam compreendidos os significados sob a perspectiva dos sujeitos envolvidos (Serapioni, 2000). Spink (1999) propõe a triangulação metodológica, ou seja, a utilização de técnicas múltiplas para que se conheça o objeto de

pesquisa proposto. A triangulação de informações quantitativas e qualitativas, sob tal perspectiva, pode ser utilizada como forma de enriquecimento do estudo de fenômenos complexos e multifacetados. Deste modo, as informações quantitativas nos possibilitaram fazer um mapeamento amplo do número de psicólogos do estado, de suas modalidades de intervenção e dos referenciais utilizados para a condução do trabalho, enquanto as estratégias qualitativas de pesquisa foram fundamentais para que fosse aprofundada a compreensão a respeito das práticas desenvolvidas e dos contextos em que se inserem. Conhecendo as práticas dos psicólogos na rede pública de educação No Estado de São Paulo, centramos a busca por psicólogos nas Secretarias Municipais de Educação após verificarmos que não havia psicólogos trabalhando na Secretaria da Educação deste estado. Devido à impossibilidade de contatar os 645 municípios do estado, foi composta uma amostra de 133 municípios para contato, obedecendo aos seguintes critérios: a) boa receptividade por parte dos psicólogos do município à pesquisa; b) contato com psicólogos que participam de atividades na universidade e que, portanto, poderiam apresentar informações relevantes à pesquisa; c) contemplar todas as regiões do Estado de São Paulo, tendo como referência as cidades-sede das Diretorias de Ensino subordinadas à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (vide Figura 1); d) contatar todos os municípios da região metropolitana de São Paulo. Optou-se por realizar contato com as cidades-sede de cada Diretoria de Ensino porque estas correspondem a municípios de

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grande porte que aglutinam à sua volta um conjunto de municípios pequenos e médios, circunscritos a cada diretoria. Desta forma, consideramos que as cidades pertencentes a uma mesma diretoria sofreriam, no âmbito educacional, a influência de uma mesma administração, centralizada na cidade-sede. Quanto à região metropolitana de São Paulo, optou-se por contatar todos os municípios que a compõem, por ser uma região que concentra um grande número de instituições de Ensino Superior com cursos de Psicologia. De acordo com a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP, 2010), no Ensino Superior há 33 cursos de Psicologia na capital e nove nos demais municípios da Grande São Paulo, totalizando 42 dos 99 cursos de Psicologia oferecidos no Estado de São Paulo (42%). Figura 1. Divisão do Estado de São Paulo em Diretorias de Ensino

Extraído de: Souza (2010b)

O contato inicial e os questionários O contato telefônico inicial2 com as Secretarias de Educação dos municípios permitiu obter a informação sobre a presença ou não de psicólogos em seu quadro de funcionários. Os psicólogos encontrados foram convidados a responder questionário,

enviado via fax, correio ou e-mail, ou entregue pessoalmente, no caso de cidades próximas, de fácil acesso. O material da pesquisa enviado era composto por: Carta de apresentação; Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Questionário. O questionário era de preenchimento individual e as perguntas feitas giravam em torno do tempo de trabalho do profissional na equipe, seu cargo, formação, sua filiação teórica e modalidades de atuação de que se utilizava para responder às demandas escolares. Estruturava-se nos seguintes eixos: dados gerais de identificação, formação, níveis de ensino em que atua, público-alvo da intervenção, modalidades de atuação, projetos desenvolvidos, fundamentação teórica e contribuições da Psicologia para a Educação. Dessa maneira, os 108 questionários respondidos proporcionaram a obtenção de dados que permitiram a caracterização das modalidades de atuação profissional, a compreensão das concepções que respaldam as práticas psicológicas, a identificação das práticas realizadas e a identificação de indícios que apontassem o caráter inovador das práticas realizadas. Indícios esses que serviram de base para a seleção dos municípios cujos profissionais seriam entrevistados na etapa seguinte da pesquisa. Além de proporcionar dados para a seleção dos profissionais que participariam da segunda etapa da pesquisa, os questionários permitiram coletar dados muito ricos na caracterização da atuação dos psicólogos que atuam na rede pública de educação e das práticas que desenvolvem. Optou-se, então, por realizar tanto leituras de caráter quantitativo, em relação à distribuição da amostra e à frequência dos dados, como também leituras de caráter qualitativo, com categorizações das respostas por similitudes

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dos conteúdos, principalmente em relação às questões abertas. A análise estatística utilizou o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS) – Versão 10, para verificar de que maneira os dados coletados dos diferentes eixos do questionário se associavam, permitindo a formação de perfis dos psicólogos que atuavam na rede pública de Educação no Estado de São Paulo. Para tanto, foi realizada uma categorização das respostas coletadas nos questionários e todos os 108 questionários respondidos foram tabulados de acordo com esta categorização. Foi avaliada a associação entre pares de variáveis por meio do teste “qui-quadrado”, para verificar quais delas eram significativas. Todos os pares possíveis de variáveis foram testados. A constatação de associações significativas entre variáveis demonstra a existência de um padrão na distribuição dos dados, determinado por dependência entre essas variáveis. A partir das associações significativas entre pares de variáveis, foi utilizada a Análise de Correspondência (ANACOR)3 para verificar as associações significativas entre duas ou mais variáveis. Esta análise gerou um mapa multidimensional que permitiu entender como as variáveis se associavam, podendo-se criar perfis. Para as leituras de caráter quantitativo e qualitativo, o questionário foi dividido em três grandes categorias: a) identificação; b) atuação profissional; c) fundamentação teórico-metodológica da atuação. Identificação A categoria identificação abrangeu informações relativas a: a) dados pessoais: sexo e idade; b) Secretaria de Educação: cargo (contrato), função (que exercia), tempo

no cargo e ano de ingresso na Secretaria de Educação; c) formação: tempo de formação, Instituição formadora e cursos realizados. As análises decorreram a partir da descrição da frequência dos dados, com leituras sobre os valores em médias e porcentagens. Em relação às respostas dadas sobre o trabalho do psicólogo na Secretaria de Educação, além da análise quantitativa sobre a distribuição da amostra, foram feitas categorizações a partir das diversas respostas dadas aos itens: “Cargo” de contratação pela Secretaria de Educação; “Função” exercida pelo profissional e “Tempo no Cargo”. Atuação Profissional A categoria atuação profissional abrangeu informações sobre a) clientela: níveis de ensino em que atua o psicólogo e público-alvo do trabalho; b) modalidades de atuação: com as opções: “avaliação psicológica”, “atendimento clínico”, “formação de professores”, “assessoria às escolas” e “outros”; era solicitado que o psicólogo especificasse os objetivos e estratégias de ação para cada modalidade de atuação; c) projetos e trajetória profissional: descrição de projetos desenvolvidos ao longo da carreira profissional, com destaque para os mais relevantes. Para as temáticas “Níveis de Ensino”, “Público-Alvo” e “Modalidades de Atuação”, foi feita uma análise da frequência das respostas assinaladas, que foram divididas em categorias para obtenção das médias e porcentagens. Também foram realizadas categorizações de caráter qualitativo, buscando-se verificar se o público-alvo era predominantemente alunos e pais ou se envolvia também outros atores do processo ensino-aprendizagem, como professores e

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funcionários. Com relação às modalidades de atuação, buscou-se entender, qualitativamente, como as práticas são de fato realizadas. Quanto à temática “Projetos e Trajetória profissional”, procurou-se separar os projetos citados em categorias, baseadas nos nomes dados aos projetos e na análise da descrição dos mesmos, tendo como objetivo agrupá-los de acordo com o público-alvo do trabalho e/ou com o foco da atuação. Fundamentação teórico-metodológica da atuação Na categoria fundamentação teóricometodológica da atuação, foram agrupadas as respostas dadas pelos psicólogos às questões sobre os “Autores que fundamentam teoricamente o trabalho” e sobre as “Contribuições o psicólogo pode dar à Educação”, bem como comentários adicionais feitos por alguns profissionais. A respeito dos “Autores” foram arrolados os autores e obras citados pelos psicólogos. Procurou-se agrupar autores e obras em categorias, levando em conta as abordagens dos autores citados. As categorias utilizadas foram: “Educação”, para autores da Educação e da Psicologia em sua interface com a Educação; “Clínica”, para autores da psicologia e da psicanálise clínicas; “Educação e Clínica”, para autores que fazem uma junção entre as duas áreas, como no caso da psicopedagogia; e “Outros”, para autores que não se encaixavam em nenhuma das categorias anteriores. A questão referente às “Contribuições à Educação” que a atuação do psicólogo pode oferecer e os comentários finais feitos pelos participantes foram analisadas

qualitativamente a partir do conteúdo das respostas dadas. A análise da fundamentação teóricometodológica presente nas respostas dadas aos questionários foi fundamental para que fossem escolhidos os municípios participantes da segunda etapa da pesquisa. Foram selecionadas equipes municipais ou psicólogos que apresentaram indícios de criticidade, ou seja, aqueles que apontaram para a direção de uma prática crítica. Para o levantamento desses indícios, que serviram de guia para identificar quais municípios apresentavam práticas inovadoras e condizentes com uma perspectiva crítica em Psicologia Escolar e Educacional, foram tomadas como referências as produções teóricas explicitadas a seguir. Adotou-se a concepção de crítica proposta por José de Souza Martins (1977) em Sociologia e Sociedade, citada por Maria Helena Souza Patto em Introdução à Psicologia Escolar (1997, p. 464), compreendido como um conceito que conduz à raiz dos fenômenos e se opõe a naturalização, levando a considerar o contexto histórico, político e cultural: (...) a possibilidade de pensamento crítico – do pensamento que vai à raiz do conhecimento, define seus compromissos sociais e históricos, localiza a perspectiva que o construiu, descobre a maneira de pensar e interpretar a vida social da classe que apresenta esse conhecimento como universal, porque supostamente objetivo e neutro (Martins, 1977, p.2)

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CAMINHOS METODOLÓGICOS NA PESQUISA EM PSICOLOGIA: PESQUISANDO A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO ESCOLAR

Tabela 1. Correspondência entre Indícios de Atuação Crítica em Psicologia Escolar e Educacional (Tanamachi, 1997) e Itens do Questionário Indícios de perspectiva crítica Consideração das múltiplas determinações (sociais, econômicas, políticas,  históricas) e presença de  concepção sobre o homem e sobre a educação.

Itens do questionário Público-alvo Foco da intervenção Concepção sobre a queixa escolar ou fracasso escolar

Contribuição teórico-prática  articulada à realidade em  que se está inserido.

Projetos Modalidade de Atuação

Pressupostos teóricometodológicos/ referência a autores do pensamento  crítico e o modo como são apropriados.

Autores de referência Cursos realizados

Explicitação de um compromisso técnico político e/ou teórico-prático com a transformação da Psicologia.

Contribuições do psicólogo à educação

Para a análise dos questionários, foram utilizados como base produções de Elenita de Rício Tanamachi e Marisa Eugênia Melillo Meira a respeito da atuação crítica em Psicologia Escolar e Educacional. Meira & Tanamachi (2003) defendem que a prática crítica em Psicologia Escolar e Educacional deve procurar analisar a produção da queixa escolar e o processo de subjetivação e objetivação da escolarização. Esta abordagem deve tentar compreender fenômenos por meio de suas múltiplas determinações e o método utilizado deve se pautar na reflexão e análise dos processos. Para identificar se as práticas relatadas nos questionários indicavam atuações em Psicologia Escolar e Educacional numa direção crítica, utilizou-se como base o procedimento adotado por Tanamachi em sua tese de doutorado, intitulada Visão crítica de Educação e de Psicologia: elementos para a

construção de uma visão crítica de Psicologia Escolar (1997), para definir se as teses e dissertações estudadas seguiam uma perspectiva crítica. A partir dos indícios adotados por Tanamachi, fez-se uma correlação com os itens do questionário, conforme indicado no Quadro 1. Considerou-se que todos os elementos constitutivos de uma atuação crítica, apontados acima, não seriam claramente observados em todos os itens de um mesmo questionário, assim buscou-se por indícios de criticidade. Além disso, classificar determinada atuação como “crítica” ou “não crítica” significaria operar de acordo com a lógica formal, ou seja, sem considerar a multideterminação dos fenômenos, o que é compreendido como essencial a partir do referencial teórico adotado. Com a leitura das respostas, observou-se que muitas respostas apresentavam tanto elementos críticos quanto não críticos, encontrando-se numa linha contínua entre estes dois pólos. Dessa forma, a presença de qualquer um dos elementos constitutivos de uma atuação crítica, inovadora, ou não crítica, tradicional, não necessariamente resultaria em uma classificação direta da atuação do psicólogo participante como crítica ou não crítica, respectivamente. Por isso, na seleção para a segunda etapa da pesquisa, foi realizada a análise de cada questionário como um todo, buscando-se identificar quais participantes apresentavam mais tendências à criticidade em sua atuação e verificando a coerência interna entre as respostas dadas. Foram considerados elementos críticos aqueles que apontavam para uma atuação que contemplasse as multideterminações dos fenômenos educacionais e que buscasse incluir os diversos atores escolares na

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superação das queixas. Consideramos elementos não críticos aqueles correspondentes a uma atuação que centrasse o foco da queixa escolar no indivíduo – geralmente no aluno e em sua família – desconsiderando as relações institucionais e a multiplicidade de determinações sociais e históricas que a produzem. Concluiu-se que as entrevistas seriam uma etapa fundamental para identificar em que medida as atuações dos psicólogos aproximavam-se ou afastavam-se do que consideramos como atuação crítica em Psicologia Escolar e Educacional. Além disso, forneceriam importantes informações a respeito de quais seriam as condições concretas de trabalho que possibilitam ou criam empecilhos para atuações em perspectiva crítica. As entrevistas Seleção dos municípios para entrevista Para a realização desta etapa da pesquisa, foram selecionados 11 dos municípios contatados. Adotamos como critério de seleção dos municípios para a segunda etapa a presença de indicativos de uma atuação crítica e inovadora dos psicólogos, conforme critérios apontados anteriormente, e que contemplasse os avanços teóricometodológicos da área de Psicologia Escolar e Educacional. Realização das entrevistas A realização das entrevistas teve como objetivo possibilitar maior aprofundamento a respeito das práticas empreendidas pelos psicólogos. Por se tratar de um instrumento de coleta da linguagem própria do entrevistado, possibilitando ao investigador desenvolver

uma ideia de como o sujeito interpreta aspectos da vida social, a entrevista é amplamente utilizada em pesquisas de cunho qualitativo, sobretudo na área educacional (Bogdan & Biklen, 1994). Para a realização das entrevistas, as Secretarias Municipais de Educação dos municípios escolhidos foram novamente contatadas para convidar os psicólogos a participarem da segunda etapa da pesquisa. Toda a equipe dos psicólogos foi convidada para a entrevista em grupo, mesmo que tivesse como membros profissionais de outras áreas e os projetos desenvolvidos pelos psicólogos fossem diferentes entre si, pois foi tomada como referência a instituição que oferece o serviço de Psicologia, e não cada profissional isoladamente. Os profissionais entrevistados receberam uma carta-convite para participação desta etapa da pesquisa e também o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, referente ao uso do material das entrevistas pelos pesquisadores. As entrevistas seguiram roteiro semiestruturado, elaborado para assegurar que o foco da conversa se articulasse com os objetivos da pesquisa, e para proporcionar a exploração de assuntos levantados pelo entrevistado. Por outro lado, o caráter semiestruturado da entrevista ofereceu oportunidade para que os participantes discorressem com maior liberdade sobre temas abordados pela pesquisa, de modo que pudessem expressar o que pensavam e sentiam a respeito. O objetivo da entrevista foi esclarecido aos participantes, assegurandolhes que a entrevista seria tratada de forma sigilosa, evitando qualquer forma de identificação do sujeito entrevistado. Análise das entrevistas

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Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas; no entanto, duas entrevistas foram descartadas: uma devido à má qualidade do áudio e outra porque, embora apresentasse indícios de criticidade no questionário, a entrevista indicou uma atuação com tendência predominantemente tradicional. Dessa forma, restaram nove municípios paulistas participantes da etapa das entrevistas, cada qual com número variado de psicólogos. As entrevistas foram analisadas utilizando procedimentos de análise de conteúdo, tal como é definida por Bardin (2000): Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (p.42) A compreensão das entrevistas visou à exploração do material obtido de modo a organizá-lo, possibilitando que fossem feitas interpretações e inferências (Bardin, 2000). O processo de interpretação consistiu na compreensão do significado das ações e daquilo que foi dito, conforme aponta Rockwell (1987). Esta autora ressalta também que interpretar requer compartilhar, dentro do possível, ‘o conhecimento local’; compreender o que é dito como o fazem os outros sujeitos da localidade implicaria, dentre outras coisas, compartilhar toda a sua experiência comum, o que é impossível (p. 27). Ainda que seja impossível compartilhar completamente os significados, cabe ao pesquisador buscar essa aproximação. O conhecimento progressivo da situação

estudada, bem como das pessoas que dela participam, e a comparação de respostas dadas pelos diversos informantes foram importantes recursos (Rockwell, 1987). Porém, além dessa aproximação com as categorias ‘locais’, com o modo como os indivíduos viviam a situação estudada, foi necessário construir categorias analíticas que permitissem estabelecer relações e conceitualizações que escapavam àqueles que estavam imersos numa determinada realidade. Para isso, os pesquisadores se debruçaram sobre as entrevistas em busca de regularidades e padrões, a fim de realizar uma codificação e categorização que possibilitasse a articulação entre os avanços teóricos na Psicologia Escolar e Educacional e as práticas adotadas na rede pública de atendimento à Educação. Com este intuito, após a leitura de algumas entrevistas para entrar em contato com o material obtido, foi organizado um roteiro inicial de análise das entrevistas, baseado no roteiro para a realização das entrevistas e nos objetivos da pesquisa. Tal roteiro foi dividido em 3 eixos: serviço, atuação e concepção teórica. Com o roteiro em mãos, toda a equipe leu uma mesma entrevista, visando apropriar-se dele e verificar se ele estava adequado aos objetivos desta etapa da pesquisa. O roteiro foi então reformulado a partir das questões suscitadas pela leitura da entrevista e informações nela contidas que ele não contemplava. Assim, o roteiro de análise foi ampliado com subitens, com vistas a detalhar a descrição das informações contidas nas entrevistas. Cada entrevista foi analisada por duas pessoas, com o objetivo de ampliar as impressões sobre a mesma. A partir do roteiro de análise, foi construído um texto síntese

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para cada entrevista, contendo também citações de trechos relevantes. Dessa forma, a análise das entrevistas foi realizada em um processo dinâmico, constituído por distintos momentos: primeiro, aproximação junto aos dados obtidos em campo; segundo, construção do instrumento de análise a partir de tais dados e dos objetivos pretendidos pela pesquisa; terceiro, verificação da adequação do instrumento ao objeto; quarto, ajuste do instrumento; e quinto, momento de análise dos dados a partir do instrumento reformulado. Isto tornou possível adequar o instrumento a realidades regionais e particularidades trazidas pelos conteúdos das entrevistas, tornando a análise mais fidedigna da realidade que se buscava apreender por meio da entrevista. Após a análise de cada entrevista separadamente, todas foram analisadas no conjunto, em cada um dos eixos: serviço, atuação e fundamentação teórica. Foi realizada a leitura horizontal, isto é, foram lidas as respostas para o mesmo item do roteiro de análise em todas as entrevistas para observar as semelhanças e particularidades daquele tópico. Por fim, foi organizado um texto para cada eixo descrevendo o que fora encontrado no conjunto de todas as entrevistas. Revisão de literatura: contribuições teóricas sobre a atuação do psicólogo na educação Para compreender em que medida as práticas desenvolvidas pelos psicólogos que atuam nas Secretarias de Educação correspondem aos avanços teóricos na área de Psicologia Escolar, foi elaborado um levantamento da produção bibliográfica sobre a atuação do psicólogo na educação, de

maneira a tornar possível a análise das práticas investigadas tomando como base a literatura recente. Consideramos que as publicações da área revelam, de maneira geral, as concepções e fundamentações teórico-práticas a serem implementadas no campo da atuação do psicólogo na educação. Tendo em vista a quantidade de produções encontradas e a sua importância, considerouse necessário realizar uma análise aprofundada e detalhada das publicações. A análise da produção bibliográfica foi constituída por meio de resenhas, elaboradas pela equipe da pesquisa a partir da leitura integral dos textos. A trajetória metodológica desta etapa da pesquisa organizou-se em três momentos, apresentados a seguir: a) critérios de escolha das produções; b) produção de resenhas das publicações; c) análise de conteúdo das resenhas. Primeiro momento: critérios de escolha das produções A pesquisa iniciou-se em 2006, realizando-se levantamento de títulos de livros e coletâneas4 relacionados à Psicologia Escolar e Educacional, segundo quatro critérios: a) recorte editorial: foram selecionadas editoras que usualmente publicam o tema de investigação; b) recorte temporal: foram escolhidos trabalhos publicados entre os anos de 2000 a 2007, incluindo reedições de publicações, por entendermos que a partir dos anos 2000 houve um incremento do número de produções de Psicologia Escolar e Educacional; c) recorte por área de conhecimento: buscou-se priorizar trabalhos que tratam especificamente de temáticas de Psicologia Escolar e Educacional. excluindo

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outras, tais como: Psicopedagogia, Psicomotricidade, Psicolinguística etc; d) recorte temático: foram contemplados trabalhos que se referem direta ou indiretamente à prática do psicólogo escolar. Segundo momento: produção de resenhas das publicações No segundo momento, realizamos a leitura e produção de resenhas5 das publicações selecionadas. Para elaboração das resenhas, foram utilizados três eixos norteadores: 1) trajetória do autor: caminho percorrido pelo autor na construção de seu texto e finalidades do trabalho apresentado; 2) concepções teóricas que embasam a atuação profissional: explicitação das concepções que respaldam as práticas psicológicas descritas no texto; 3) proposta de contribuição do autor para atuação do psicólogo escolar e educacional: caracterização das modalidades de atuação profissional e descrição da prática proposta pelo autor. Consideramos, ainda, a existência de um eixo transversal definido como “perspectivas emancipatórias em Psicologia e Educação”, compreendendo textos que revelam compromisso do psicólogo e do conhecimento psicológico com abordagens que consideram o fenômeno educativo enquanto constituído socialmente, nas relações produzidas no cotidiano da escola, determinadas sócio-históricoculturalmente. Os textos foram lidos na íntegra e resenhados6 com base nos eixos acima. Terceiro momento: análise de conteúdo das produções A atividade de análise das resenhas produzidas retomou os eixos gerais de forma

horizontal, ou seja, buscando identificar cada um deles no conjunto das resenhas. Para tanto, foram produzidas perguntas que visavam detalhar cada um dos eixos. Por exemplo, no eixo 1, relativo à “trajetória do autor e finalidades do trabalho”, foram geradas as seguintes questões: a) autor parte de dados educacionais, de sua própria trajetória profissional ou de conjunto de trabalhos anteriores?; b) quais questões, inquietações geraram interesse do autor pelo tema?; c) Qual o objetivo do autor?; d) Quais instituições relacionadas à área são citadas? Após a elaboração dessas questões e retorno às resenhas, observamos que várias delas referiam-se a temáticas semelhantes. Consideramos então que seria interessante, do ponto de vista comparativo, reunir o conjunto das resenhas, tomando por base determinados temas, a saber: a) intervenção do psicólogo na educação; b) Psicologia e Educação: perspectiva crítica; c) formação do psicólogo; d) temas clássicos e revisitados; e) dimensões teórico-metodológicas da atuação do psicólogo na educação; f) políticas públicas em educação; g) formação docente; h) educação inclusiva; i) Psicologia Escolar no Brasil e em outros países; j) avaliação psicológica. Buscou-se relacionar as informações obtidas nas análises das resenhas e nas entrevistas. Para isto, foram articulados os elementos indicativos de concepções e práticas críticas que compareceram tanto na literatura da área, como nos discursos dos profissionais participantes da pesquisa. Resultados e Discussão Consideramos que os recursos teóricometodológicos adotados permitiram um levantamento importante sobre a atuação do

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psicólogo no estado de São Paulo. Foram pesquisados 133 municípios do Estado de São Paulo, sendo que em 61 deles atuam psicólogos, participando da pesquisa 108 profissionais. Do conjunto dos participantes, 96,4% são mulheres, na faixa etária de 40 anos, com a média de 8,7 anos no cargo. Encontramos uma variedade de formas de contratação: psicólogo, psicólogo escolar, professor, coordenador, supervisor, dentre outros. Com relação à formação, 78,7% dos participantes são provenientes de universidades privadas e 93% mantém uma formação continuada, nas modalidades: especialização, cursos de atualização e supervisões. Os Serviços de Psicologia são bastante diversos quanto à composição: alguns se organizam em equipes multiprofissionais, equipes por nível de ensino ou psicólogos que individualmente atendem à demanda da Secretaria de Educação e demais solicitações no âmbito do Município e, em alguns casos, do estado. Grande parte deles foi instituída a partir dos anos 2000, por iniciativa pessoal do gestor ou por reivindicação do conjunto de profissionais que se encontravam inseridos na rede, ou ainda para adaptar-se à política de educação inclusiva. Com relação à inserção do psicólogo nestes Serviços há uma grande diversidade no que tange a vários aspectos: cargo, função, carga horária, plano de carreira, remuneração e formas de contratação e organização do trabalho. Notou-se que um dos desafios apontados pelos participantes do estudo é a realização do trabalho diante das mudanças constantes de gestão do município que podem interferir nas formas de atuação. Com relação à atuação, a pesquisa analisou os seguintes aspetos: público-alvo, níveis de Ensino, Modalidades de Atuação e Projetos desenvolvidos ao longo da trajetória

profissional. Na Secretaria de Educação dos Municípios, esses profissionais centram seu trabalho em todas as modalidades de Ensino, predominando a atuação nos níveis de Educação Infantil e Ensino Fundamental (34%). No que tange à educação inclusiva, esta atuação encontra-se em torno de 28%. Nesses níveis, as ações centram-se no trabalho com professores (89%) e com alunos (83%). O trabalho realizado revelou três modalidades de atuação: Clínica (15%), Institucional (30%) e Clínica e Institucional (55%). Os psicólogos trabalham com diferentes projetos envolvendo estudantes, famílias e instâncias municipais de caráter intersetorial (Assistência Social, Saúde Mental e, Comunitária). O acompanhamento das queixas escolares se dá, principalmente no interior das escolas, problematizando os encaminhamentos e realizando ações nos espaços pedagógicos instituídos, buscando abarcar familiares, professores e estudantes, optando por modelos institucionais de intervenção. Do ponto de vista das concepções teóricometodológicas, observamos a presença de pelo menos três tendências: a) Clínica, ao incluir respostas que apontam na direção de uma atuação profissional individualizada, baseada em diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. b) Institucional, ao reunir respostas referentes a uma atuação que contempla formas de intervenção em que participam diversos atores do contexto escolar; c) Clínico e Institucional, ao abarcar respostas em que comparecem características de ambas tendências. De maneira geral, o maior número de psicólogos apresentou concepções de caráter Clínico e Institucional. Do conjunto de psicólogos que participaram da pesquisa, pudemos identificar aqueles que atuam em nove municípios e que

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apresentam um conjunto de práticas profissionais que coadunam com as tendências de atuação institucional ─ atualmente consideradas como as que melhor respondem às demandas educacionais em uma perspectiva de educação de qualidade social para todos e todas. Essa atuação centrase em aspectos tais como: a) trabalho em equipe multiprofissional ou intersetorial; b) atuação em redes sociais; c) compreensão das dificuldades escolares a partir do cotidiano escolar e da constituição histórico-cultural do processo de escolarização; d) crítica aos diagnósticos e encaminhamentos das dificuldades de aprendizagem e ao fracasso escolar; e) atuação na formação de professores; f) atuação envolvendo os vários atores escolares; g) ações junto à política de inclusão escolar; h) participação na perspectiva do projeto político pedagógico das unidades escolares. Os psicólogos entrevistados ressaltaram que as dificuldades enfrentadas no âmbito da Educação centram-se nos seguintes aspectos: a) modalidades de contratação que não definem claramente a função do psicólogo na educação; b) níveis salariais baixos; c) mudanças constantes de gestão; d) carga horária não condizente com a demanda da educação; e) representação clínica da profissão pelos educadores e profissionais da saúde; f) questionamentos à política de educação inclusiva pelos educadores e pais. É importante ressaltar que os profissionais destacaram que a Educação pode contribuir para o desenvolvimento e a melhoria da situação do país e de que esse seria o foco central de seu trabalho. Considerações finais

Diante de um objeto de pesquisa, a escolha das estratégias metodológicas a adotar é uma das mais importantes decisões que os pesquisadores precisam tomar. Sobretudo quando fenômenos complexos e pouco conhecidos são eleitos como interesse de estudo, faz-se necessária a criação de recursos que possibilitem a melhor aproximação do que se pretende conhecer. Identifica-se, porém, que a prática de publicação científica destinada à discussão metodológica não tem sido muito adotada nos meios acadêmicos. Daí a relevância do presente artigo que apresentou o percurso metodológico utilizado para que fosse possível conhecer a atuação do psicólogo da rede pública de ensino do estado de São Paulo frente à demanda escolar. O estudo, vinculado a uma pesquisa de âmbito nacional, buscou compreender quais eram as concepções, práticas e inovações presentes na condução do trabalho da Psicologia junto à educação pública. Foram apresentados neste artigo instrumentos e estratégias que possibilitaram o acesso a preciosas informações quantitativas e qualitativas a respeito do que vem sendo publicado na área de Psicologia Escolar e de como os psicólogos vêm incorporando as contribuições das recentes produções acadêmicas recentes no seu trabalho. A dimensão da pesquisa proposta fez com que fosse necessário contar com uma numerosa equipe, que envolveu cerca de 50 pessoas divididas nos sete estados participantes, a fim de que fosse possível desenvolver a diversidade e a quantidade de ações previstas. A equipe do estado de São Paulo, proponente do estudo, teve como desafio criar a sistematização das estratégias que seriam utilizadas. Além disso, foi importante que o trabalho fosse conduzido de modo muito afinado, no que se refere à

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clareza de objetivos e de referenciais teóricometodológicos. Para isto, foram realizados frequentes encontros, nos quais tais aspectos foram exaustivamente discutidos. Esta criteriosa sistematização foi necessária para que houvesse uma unidade nos procedimentos e na compreensão do fenômeno na pesquisa em âmbito nacional. No entanto, não bastou o investimento na unidade metodológica. A vasta amplitude do estudo trouxe a necessidade da flexibilização frente às especificidades e aos obstáculos regionais. Assim, conservando-se a estrutura metodológica, foi necessário fazer a adaptação de procedimentos. Algo que foi, em muitos momentos, fundamental para que se pudesse ter acesso às informações respeitando as características e os contextos dos diferentes municípios. O método aqui exposto não se põe como referencial hegemônico. Apresenta um percurso desenvolvido coletivamente, fruto de muitas discussões e reflexões do grupo que conduziu esta pesquisa. Algo que se configurou numa proposta viável e frutífera de enfrentamento dos desafios e impasses que um trabalho científico de tal monta pode apresentar. Avaliamos que trabalho foi um trabalho bastante importante, pois denotou um movimento de avanço em direção à construção de práticas profissionais no campo da educação que anunciam uma apropriação, por parte dos psicólogos que estão na Educação Pública, dos conhecimentos que vem sendo produzidos pela academia no que se refere a uma atuação que denominamos crítica em Psicologia Escolar e Educacional. Tais indícios de mudança nessa direção, identificados em vários momentos deste estudo, possibilitam vislumbrar um caminho possível, e promissor, para a Psicologia no

Estado de São Paulo, no campo da Educação de qualidade para todos e todas. Notas de Rodapé 1

O Estado de São Paulo conta com mais de 74 mil psicólogos inscritos em seu Conselho Regional de Psicologia (CRPSP), segundo informação disponível em: . No Brasil há aproximadamente 230 mil profissionais, segundo informação do Conselho Federal de Psicologia (CFP), de acordo com informação disponível em 2

Os primeiros contatos com os participantes da pesquisa e as entrevistas inspiraram-se no modelo etnográfico de pesquisa proposto por Rockwell, 2009. 3 Para mais informação ver: OLIVEIRA, F. E. M. (2008). SPSS Básico para Análise de Dados. Rio de Janeiro: Ciência Moderna. 4

Por coletânea entende-se: “conjunto de trechos seletos de diferentes obras, ou coleção de várias obras ou coisas” (Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa. (2001) versão 1.0 para Windows [CD-ROM]. Rio de Janeiro: Objetiva). 5

Por resenhas compreendemos uma síntese ou análise bibliográfica como descrito por Severino (2000). 6

O processo de produção das resenhas durou aproximadamente dois anos e participaram desta etapa 32 membros da equipe de pesquisa: RO - Iracema Tada, Maria Freire; BA - Edlamar de Jesus França, Gabriele Rocha Hayne, Juliana Oliveira, José Junio Almeida

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Queiroz, Marcus de Souza Oliveira, Thais Araújo; MG - Silvia Maria Cintra da Silva, Paula Cristina Medeiros Rezende, Cárita Portilho de Lima, Viviane Silva Barreto, Cláudia Silva de Souza, Denise Silva Rocha, Maria José Ribeiro, Ana Cecília Oliveira Silva, Rafael Santos Carrijo; SP - Aline de Araújo Leite Santos, Aline Morais Mizutani, Anabela de Almeida Costa Santos, Ana Karina Amorim Checchia, Artur Rafael Agostinho Theodoro, Camila Oliveira, Deborah Rosária Barbosa, Jane Cotrin, Juliana Sano de Almeida Lara, Kátia Yamamoto, Marcelo Domingues Roman, Roseli Lins Caldas, Vânia Calado; PR - Marilda Facci, Zaira Leal e Valéria Garcia Silva. As referências dos textosresenhados estão disponíveis no site da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional: http://www.abrapee.psc.br/livros.htm

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2010, respectivamente). Professora Doutora da Universidade de São Paulo. Realizou estágio Pós-Doutoral na York University, Canadá (2001-2002). Anabela Almeida Costa e Santos Peretta é graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1997), aperfeiçoamento em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1999), mestre e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (2002 e 2008, respectivamente). Atualmente é Professora Adjunto 1 da Universidade Federal de Uberlândia Juliana Sano de Almeida Lara é p sicóloga e Bacharel em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2010). Atualmente é mestranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano e cursa Licenciatura em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Roseli Fernandes Lins Caldas é graduada em Psicologia pelo Instituto Unificado Paulista em 1979, especialista em Psicologia Escolar, Mestre em Educação, Arte e História da Cultura, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2000) e Doutora em Psicologia Escolar pelo Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo (2010). É coordenadora da Representação Paulista da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE Endereço para contato: Av. Pará, 1720, Bairro Umuarama, CEP 38405-320 – Uberlândia – MG. E. mail: [email protected]

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA PARA UMA CRÍTICA AO TEMA BULLYING E “VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS” Ana Paula de Ávila Gomide (UFU – Uberlândia - MG) Resumo A partir do referencial da teoria critica da sociedade, o presente trabalho propõe uma problematização do tema do bullying, atualmente, explorado pela mass media, tendo em vista dois aspectos a serem considerados: pensar se nos aspectos evidenciados nos estudos atuais voltados ao tema, não presenciamos certo recrudescimento de discursos tradicionais sobre as “características patológicas de alunos-problemas” que responsabilizam o indivíduo, de forma isolada e a-crítica, pelas demais violências acometidas e ocorridas dentro das escolas; e, lançar luz aos fatores objetivos envolvidos no assunto, assim evidenciando as tendências sociais imperantes que medeiam a formação dos sujeitos e que contribuem para o estabelecimento de relações adoecidas no interior do ambiente escolar. Palavras-chave: teoria crítica; educação; violência

Abstract A critique of the term bullying and "school violence" From the view of the critical theory of society, this paper proposes to discuss the issue of bullying, currently exploited by the media. This is done in order to consider two aspects: on the highlighted in the current studies focused to the theme, based on traditional discourses on the “pathological features or the problems of students” which blame individual in isolation and uncritically by other affected and disregarding violence occurring within schools; and on objective factors involved in the matter, thus showing the prevailing social trends that mediate the formation of the subject which contribute to the establishment of relations diseased within the school environment. Keywords: critical theory; education; violence. Artigo Recebido em 23/09/2011 e Aprovado em 10/04/2012

Introdução Das relações históricas da educação com a psicologia é preciso destacar que a educação, desde o século XIX, tem buscado respaldo na ciência psicológica para fundamentar e resolver, cientificamente, os “problemas” ditos educacionais, em grande parte estabelecendo uma relação de subordinação da educação ao tema do “individuo”, em termos de sua configuração psíquica. Temas como os aspectos

universais do desenvolvimento humano, as condições de ensino e aprendizagem, os chamados “problemas de aprendizagem e fracasso escolar”, a compreensão das características psicológicas dos alunos, entre outros -, e mais as preocupações sobre como “aperfeiçoar” o ensino -, foram elementos necessários para que os educadores e pesquisadores da área se voltassem para a psicologia, a fim de buscarem soluções pragmáticas a tais problemas. Em decorrência desses aspectos 24

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ANA PAULA DE ÁVILA GOMIDE

aqui mencionados, a psicologia enquanto ciência auxiliar aos processos educacionais, muitas vezes tem desempenhando um papel hegemônico nas tentativas de explicação e de orientação das práticas educativas, legitimando as intervenções e diagnósticos de psicólogos escolares dirigidas aos demais desafios encontrados no cotidiano da escola. Os temas sobre o bullying e “violência na escola” têm sido, na atualidade, os privilegiados nos estudos de especialistas, inclusive, ocupando papéis de destaque no mass media e, (não podemos deixar de mencionar) na imprensa sensacionalista. Tendo em vista a expressividade desses temas nas pesquisas acadêmicas e nas demais abordagens de especialistas que se voltam ao assunto, bem como a exploração do fenômeno do bullying escolar veiculado pelos demais meios de comunicação de massa, trataremos aqui de problematizar o assunto em dois aspectos a serem considerados: 1) de um lado, pensar se, nos aspectos evidenciados nos estudos voltados aos temas, não presenciamos certo recrudescimento de discursos tradicionais sobre as “características patológicas de alunos-problemas” - encontradas tanto nas tentativas de descrições de características de alunos que cometem o bullying, quanto na descrição dos tipos de sujeitos mais vulneráveis a sofrerem violência (as chamadas “vitimas do bullying”) - que responsabilizam o indivíduo, de forma isolada e a-crítica, pelas demais violências acometidas e ocorridas dentro das escolas; 2) e, de outro, dando relevo à dimensão do problema - e concordando que o mesmo merece a devida atenção por parte de intelectuais-, pensar o que se evidencia por trás da temática “violência na escola”, em termos de apontar as tendências sociais

imperantes que, por sua vez, medeiam a formação dos sujeitos, assim configurando as suas relações adoecidas no interior das escolas (entre alunos e professores, entre alunos e alunos, etc). É preciso destacar que não se intenciona aqui desvalorizar as pesquisas psicológicas no que tange aos recortes estabelecidos para seus objetos de estudo, nem tampouco seus instrumentos de análise, principalmente porque a psicologia ilumina sobre os “tipos sociais” mais afeitos à violência e aqueles pelos quais o sistema social – a irracionalidade objetiva - subsiste. De fato, há uma tradição de pesquisas empíricas dentro da psicologia social voltadas aos estudos sobre violência, preconceito e antissemitismo, desde a década de 50, nos países europeus e nos EUA que deixaram de herança dados e análises profícuas para a elucidação de problemas dessa natureza, sobretudo, aquelas pesquisas de campo da psicologia profunda, nas interfaces da psicanálise com a teoria social, dentro do campo da psicologia social analiticamente orientada (Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford, 1950). Os aspectos subjetivos da violência devem ser considerados e tratados com a devida seriedade, entretanto, pela perspectiva aqui adotada, não devem ter primazia sobre os fatores objetivos, posto a pesquisa psicológica poder correr o risco de se tornar em um “tipo de imagem encobridora ideológica” (Adorno, 1995) de questões cruciais geradas pelas tendências sociais e históricas contemporâneas, de cunho regressivo, que fomentam e instilam nas pessoas seus comportamentos irracionais. O uso do termo técnico “bullying”, equivocadamente tratado pelo mass media como uma “epidemia social”, às vezes até

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mesmo visto como um fenômeno extrínseco à nossa sociedade que visa descrever formas e códigos de condutas de crianças e adolescentes – esses, por sua vez, apontados como indisciplinados e “sem limites” pelas leituras técnico-psicologizantes -, acaba por ocultar as condições objetivas favoráveis à violência e a um tipo de educação que se volta para a “eliminação” de singularidades, quando essa privilegia a produção de identidades conformadas à lógica produtiva da racionalidade instrumental. Nesse sentido, entendemos ser o termo mais um "produto cultural" a ser consumido pelos agentes educacionais que acaba impedindo a conscientização e a reflexão mais crítica por parte dos mesmos sobre o legado de representações e práticas violentas que a escola carrega consigo, tendo em vista a nossa cultura prenhe de manifestações bárbaras. A partir do referencial da teoria critica da sociedade, especificamente, os escritos de Adorno sobre a temática educacional e formativa, mais elementos teóricos para a discussão do tema serão apontados. Educar contra a barbárie Em boa parte da literatura voltada ao tema do bullying e\ou violência na escola (Fante, 2005; Oliveira & Antônio, 2006), evidenciamos o tratamento do assunto sob o âmbito da psicologia de quem comete as “atrocidades” para com os mais frágeis - as possíveis vitimas -, tendo em vista apresentar os efeitos deletérios das humilhações sobre quem as recebe. As pesquisas têm como intuito apontar as características dos agressores e as peculiaridades de sujeitos que os colocam na posição de vítimas (por exemplo, a

timidez excessiva, “traços que destoam das características culturais de seu grupo etário” ou “dificuldades emocionais e físicas” para reagirem às humilhações (Campos & Jorge, 2010), para se pensar em medidas preventivas nas escolas (Fante, 2005). Em que pese a objetividade dessas pesquisas e a denúncia que subjaz às mesmas sobre as situações desumanas encontradas no ambiente escolar, a questão é a de que os aspectos psicológicos envolvidos na violência não são suficientes para tratar do problema quando não sustentados por uma crítica social. A pesquisa psicológica para o tema da violência entre jovens, e que se volta exclusivamente para as características psíquicas dos sujeitos, deve, necessariamente, em se tratando de escola e de educação, se perguntar pelas condições de existência de seu objeto, assim evidenciando as marcas sociais nos sujeitos a serem estudados. Podemos afirmar que há uma tendência em se enfatizar os traços de caráter dos envolvidos de forma isolada e “estereotipada” – no caso, a ênfase sobre as “famílias desestruturadas” dos jovens agressores e suas necessidades de autoafirmação, baixa auto-estima, etc (Campos & Jorge, 2010)-, em detrimento de uma análise que possa trazer em seu bojo o confronto dos fenômenos apontados com as condições sociais objetivas, de uma época histórica na qual as crianças e jovens são (pseudo) formados sob a influência de imagens televisivas, criadoras de estereótipos sociais, e de jogos eletrônicos extremamente violentos (Zuin, 2010). Em uma época na qual os mandamentos tradicionais patriarcais e religiosos têm sido enfraquecidos pelas transformações estruturais das sociedades tecnológicas (que, por sua vez, forneciam a experiência

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de conteúdos formativos tradicionais pelos quais o indivíduo poderia se salvaguardar dos embates da “socialização” do mundo do trabalho), bem como o empobrecimento de bens espirituais, as pesquisas psicológicas e educacionais deveriam se atentar para essas tendências: a de que crianças e adolescentes encontram-se educados mais diretamente pela sociedade de massa. Os comportamentos economicamente necessários – aqueles necessários à adaptação do sujeito à sociedade – são apreendidos e interiorizados pelos sujeitos por meio de outras instâncias sociais de controle em virtude das transformações ocorridas na família privada, atualmente, cada vez mais empobrecida e invadida por tais instâncias. A televisão, por exemplo, tem sido um dos principais fatores de identificação aos sujeitos, pois, como afirma Marcuse (1998) no texto A obsolescência da psicanálise, a criança acaba por aprender que são seus companheiros de brincadeiras, os vizinhos, o esporte e o cinema – e todo um aparato de estímulos audiovisuais – que “são autoridades no que se refere ao comportamento intelectual e corporal adequado” (Marcuse, 1998, p.100), e não mais o modelo oferecido pela autoridade paterna, também enfraquecida pelas modificações estruturais econômicas das sociedades pós-industriais. Nesse sentido, a respeito da constituição psicológica individual nas sociedades administradas, Marcuse apresenta a formação de “egos frágeis” que resultam em indivíduos poucos resistentes às pressões sociais e mais inclinados a se identificarem aos modelos coletivos irracionais. Nas palavras do autor: Na estrutura da sociedade, o indivíduo torna-se um objeto administrado, consciente e

inconsciente, e obtém liberdade e satisfação em seu papel como um tal objeto; na estrutura psíquica o ego se contrai de tal maneira que já não parece capaz de se manter como um eu distinto do id e do superego. A dinâmica pluridimensional, em virtude da qual o indivíduo alcançava e mantinha seu equilíbrio entre a autonomia e a heteronomia (...) deu lugar a uma dinâmica unidimensional, a uma identificação estática do indivíduo com seus semelhantes e com o princípio de realidade administrado (Marcuse, 1998, p.95). Para Marcuse (1998), a sociedade de massas que promove um ideal coletivo por meio de seus bens de consumo oferecidos – tanto os produtos ditos “culturais”, quanto as “personalidades” fungíveis da televisão, da política, dos esportes, entre outros, que acabam por manipular e ostentar as fantasias narcísicas de onipotência das massas- intensifica o controle social da energia libidinal, repercutindo na economia psíquica dos sujeitos, a saber: a formação de sujeitos frágeis e regredidos e, assim, mais propensos a exteriorizarem suas energias agressivas para a manutenção do status quo, cujas formas de violência podem ser expressas de diversas formas, desde a defesa de práticas políticas autoritárias até às ações de pequenas transgressões contra “minorias”, etc. Assim, uma geração educada cada vez mais sob os imperativos de uma sociedade de massa acaba por se tornar uma geração empobrecida em termos de capacidade de simbolização e de sublimação, perdendo o poder da reflexão crítica. Zuin (2010), discutindo acerca dos crimes e massacres cometidos nas escolas,

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ressalta o arrefecimento da capacidade de produção simbólica suscitado pela indústria cultural que hoje é capaz de redimensionar tanto a esfera objetiva quanto a subjetiva. Os ressentimentos surgidos nas costumeiras relações ambivalentes estabelecidas entre alunos e professores acabam se materializando na fúria explosiva manifestada por alguns alunos ressentidos que, privados de elementos simbólicos que poderiam auxiliá-los na elaboração do sofrimento psicológico, acabam por vingar sobre os colegas as humilhações sofridas. E o autor alerta: se caso as ambivalências surgidas nas relações entre os sujeitos nas escolas fossem trabalhadas, e, como afirma Adorno (1995a), se o medo e a angústia que os jovens vivenciam cotidianamente pudessem ser reconhecidas e explicitadas lembrando que tais sentimentos estão à altura daquilo que a nossa realidade social injusta nos exige -, talvez os massacres e demais tipos de violência pudessem ser evitados na escola. Assim, questões sobre “violência na escola” devem emanar da sociedade, pois, como mesmo afirmou Adorno (1995a), a chave para a desbarbarização das pessoas reside na sociedade e em sua relação com a escola. O conhecimento de fatores desumanos testemunhados no funcionamento escolar não deve se restringir à pedagogia ou à psicologia, pois refletir a educação à luz da teoria crítica é justamente tentar evidenciar os mecanismos de dominação e de controle que se mantêm na sociedade irracional que são reproduzidos no interior das escolas. No texto Educação contra a barbárie, Adorno (1995a) assinala os efeitos nefastos de uma educação que se pauta, exclusivamente, na adaptação e na competição entre crianças e adolescentes. A

competição como instrumental pedagógico é, no fundo, um princípio contrário a uma educação humana, e caso seja utilizada nas escolas, transforma-se em um instrumento reprodutivo da intensa competição presente na essência do capitalismo que transforma os homens em inimigos uns dos outros, privilegiando o domínio dos mais fortes, dos mais ricos, ou dos mais “cultos” sobre os socialmente mais “fracos”. Segundo Adorno: Partilho inteiramente do ponto de vista segundo o qual a competição é um princípio no fundo contrário a uma educação humana. De resto, acredito também que um ensino que se realiza em formas humanas de maneira alguma ultima o fortalecimento do instinto de competição” (Adorno, 1995a, p.161). A escola acaba por reproduzir a lógica instrumental quando privilegia o “bom comportamento” e a competição entre alunos, impedindo ou dificultando a possibilidade de aprofundamento de contatos, a partir das relações entre os diferentes sujeitos e de momentos de fruição da afetividade que poderiam ser agenciados por meio de propostas educativas voltadas a experiências culturais significativas (música, teatro, dança), para além da mera educação formal. A educação que se volte para a emancipação do indivíduo, segundo Adorno, não é nem um processo de modelagem de pessoas, nem a transformação de sujeitos em depositários de “saberes”, pois deve ter como meta a criação de dispositivos pelos quais as crianças e os jovens possam dar vazão e expressão à agressividade, tendo em vista uma realidade social dominada pela violência e pela injustiça que atenta, de

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várias formas, contra as vidas e a dignidade dos sujeitos. Entretanto, alerta o autor, os indivíduos estão sendo mais educados e formados para a adaptação ao todo – produzindo nada além do que “pessoas bem ajustadas” -, em detrimento de uma formação que poderia privilegiar a autoreflexão crítica, providenciada pela capacidade de experiência1, e impulsionadora de resistência e de possível autonomia. E Adorno diz que, neste contexto que privilegia a formação de pessoas com o “ego enfraquecido”, essas se tornam facilmente seduzidas pela coletividade, com a disposição de tratar os outros “como sendo uma massa amorfa” (Adorno, 1995a, p.129), ou como objetos, já que, expropriadas de sua capacidade de autodeterminação, tornaram-se, também, objetos. Das pressões sociais sobre os sujeitos que tem se multiplicado num nível insuportável, cujos efeitos são o desenvolvimento nas pessoas de certa “claustrofobia no mundo administrado”, bem como o fortalecimento progressivo do que é “anti-civilizatório” – o ódio e a aversão que as pessoas podem desenvolver contra a cultura e as autoridades que a representem -, Adorno diz que: Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional. Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são

considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo – seja isto verdade ou não – felizes. De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação (...). Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem as suas qualidades, graças a qual têm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime (Adorno, 1995a, p.122). Em face da pressão social do trabalho alienado, do assédio da indústria da cultura, de uma educação que priva o indivíduo da reflexão assim suscitando o conformismo generalizado, a possibilidade do indivíduo de enxergar que o momento histórico não é inexorável, e que o mundo pode ser diferente do que tem sido apresentado aos sujeitos pela lógica da racionalidade de domínio é minada. Em outro texto intitulado Educação – para quê? Adorno (1995b) alerta sobre o desenvolvimento em crianças e adolescentes de certa aversão à educação, aos valores adquiridos nas primeiras experiências no seio familiar (tais como as brincadeiras, o contato com a música, a arte, e aos valores importantes para a formação de caráter), posto que isso dificultaria suas adaptações e inserções no mundo competitivo e massificado. E, ainda, apontando o empobrecimento de repertório de imagens, de fantasias, da capacidade de linguagem e de toda outra forma de expressão encontradas nas crianças e adolescentes, o autor ressalta a presença de um “realismo supervalorizado” na constituição subjetiva desses jovens, bem como o ressentimento

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mediante os assuntos de natureza intelectual. Dentro deste cenário de realismo supervalorizado, presenciamos o enaltecimento por parte da indústria cultural da violência e dos crimes, e da produção de estereótipos sobre os mais pobres (vide os programas sensacionalistas que apresentam imagens fortes de corpos mutilados, assassinados), bem como a administração de “forças pulsionais” para a vinculação dessas aos objetos oferecidos por meio do consumo de “produtos culturais” (Marcuse, 1998), cujas benesses prometidas revelam-se ilusórias, além de aumentar o grau de frustração nos sujeitos. Nas palavras de Adorno: Pelo fato de o processo de adaptação ser tão desmesuradamente forçado por todo o contexto em que os homens vivem, eles precisam impor a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmos, e, nos termos de Freud, identificando-se com o agressor. A crítica desse realismo supervalorizado parece-me ser umas das tarefas educacionais mais decisivas, a ser implementada, entretanto, já na primeira infância (Adorno, 1995b, p.145). Não é demais lembrar que o sentimento de aversão ao que é diferenciado, ao que possa “destoar” da realidade e do cotidiano, ou do que é moldado pela indústria cultural é uma das características muito citadas por Adorno (1995a) sobre os possíveis traços psicológicos de pessoas com tendências preconceituosas – os traços autoritários. Isso nos conduz à discussão sobre a prevalência de uma educação que corrobora para a “formação” de sujeitos com mentalidades

afeitas aos estereótipos, e aos demais preconceitos sociais, dentro de um “clima social” que promove condições para tal. Sobre as concepções educacionais vigentes é preciso então perguntar até que ponto essas reduzem os processos educativos e pedagógicos ao “necessário momento de instrução” do aluno, tendo como metas principais o desenvolvimento da capacidade formal de pensamento (o desenvolvimento de competências cognitivas necessárias à racionalidade instrumental2), em detrimento da espontaneidade e de momentos singulares que poderiam ser obtidos nas relações dos alunos - suas capacidades de experiência - com diferentes objetos do conhecimento. Tais propostas educativas que se revelam, no fundo, hostis em relação à imaginação e à fantasia, correspondem à produção do conformismo social com a preparação de sujeitos para a fácil aceitação à realidade. Enquanto existirem no que têm de fundamental as condições que geraram a regressão – no caso, Adorno cita o holocausto e as demais políticas totalitárias do século XX -, a barbárie continuará existindo. No texto Tabus acerca do magistério, Adorno (1995c) aponta questões cruciais encontradas nos fatores objetivos e, principalmente, subjetivos envolvidos na profissão de ensinar, nas relações entre alunos e professores e na estrutura escolar de ensino, perpassando por temas tabus relacionados ao magistério – ainda bastante vigentes com relação aos preconceitos referentes à docência -, e à violência inerente às relações institucionais escolares, sendo essa o reflexo de uma sociedade extremamente desigual. As hierarquias oficial e não-oficial exercidas nas escolas e que seguem ainda existindo hoje no

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âmbito escolar -, discutidas por Adorno no texto, e que constituem as relações de poder, contribuem para a aversão de crianças e jovens contra a escola e ao corpo docente que a constitui: aquela hierarquia que diz respeito a uma espécie de aluno que se destaca por seu bom comportamento e bom desempenho de notas que, prestigiado como "aluno exemplar", enquadra-se bem nos moldes de uma sociedade extremamente individualista e competitiva; e aquela - a hierarquia não-oficial - que aponta para aqueles tipos de sujeitos que se destacam pela força física (Adorno, 1995c, p.111). Esses últimos, no entendimento de Adorno apresentados como os "ressentidos" - pois excluídos de uma formação cultural e intelectual e que desenvolvem certa aversão aos homens de estudo e ao "espírito" -, são os possíveis tipos sociais afinados com as personalidades dos algozes e carrascos, necessários às políticas totalitárias. Inclusive, nas palavras de Adorno, o nazismo explorou essa dupla hierarquia muito presente, inclusive, fora das escolas, assim incitando o repúdio e o desprezo das massas pelo trabalho intelectual, ao mesmo tempo, propiciando um clima social para a constituição de sujeitos bem adaptados e eficientes, sempre prontos para cumprir as ordens - o caráter manipulador descrito por Adorno na pesquisa A Personalidade Autoritária, obra também citada nos ensaios de Adorno sobre educação. Adorno afirma: "A pesquisa pedagógica deveria dedicar especial atenção à hierarquia latente na escola" (Adorno, 1995c, p.111). Pensamos então que, para lançar luz ao problema do bullying, as pesquisas sociológicas e psicológicas atuais deveriam se voltar para aquilo que Adorno há muito tempo já havia indicado nas suas

"especulações pedagógicas": a presença da dupla hierarquia nas escolas, que é o reflexo de uma sociedade competitiva ainda baseada na violência física (ainda que nas sociedades “democráticas” o uso da força seja remoto), tem que ser reavaliada e combatida. Todavia, ainda que a educação pautada em castigos físicos deixou de existir oficialmente na atualidade, tal imagem do professor como agente de punição ainda subsiste no imaginário pedagógico, sendo isso reatualizado e reavivado (e, de certa forma, reaproveitado, ainda que de forma inconsciente), pelo professor, quando o mesmo exerce sobre seus alunos um "poder simbólico" - ou uma violência simbólica quando, em vez de empregar castigos físicos, os substitui pelas "punições psicológicas", deixando claro que ele é o "único dono do saber" (Zuin, 2010). Tais arcaísmos relacionados à imagem do professor reverberam nos comportamentos dos alunos, assim fortalecendo no cotidiano escolar um clima de agressividade e de “perseguição” entre colegas, ao lado de sentimentos aversivos contra a educação e ao magistério que crianças e jovens tendem a desenvolver. De acordo com Adorno: Esta imagem representa o professor como sendo aquele que é fisicamente mais forte e castiga mais fraco. Nesta função, que continua a ser atribuída ao professor mesmo depois que oficialmente deixou de existir, e em alguns outros lugares parece constituir-se em valor permanente e compromisso autêntico, o docente infringe um antigo código de honra legado inconscientemente e com certeza conservado por crianças burguesas (Adorno, 1995c, p.105).

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O nosso processo civilizatório e educacional que é delegado aos professores e mestres, orienta-se para o nivelamento no sentido de que as idiossincrasias e as "naturezas disformes" devam ser eliminadas nos alunos, tendo em vista a formação social que se volta para a homogeneização de sujeitos. Não obstante, tal tipo de educação pela "dureza" e pautada exclusivamente na adaptação torna legítima as perseguições contra os colegas que apresentam tais "traços disformes" (aqueles destoantes do modelo de pessoa bem adaptada), ou algum tipo de fragilidade. A escola é também local de violência e punição quando deveria ser um ambiente que pudesse formar pessoas resistentes a qualquer tipo ou traço de violência, sobretudo quando ainda vigora na memória escolar, em meio às tensas relações estabelecidas nas escolas, as imagens tabus sobre professores enquanto “tiranos”, ainda que tais imagens arcaicas tenham perdido suas bases objetivas no contexto de reformas pedagógicas atuais. Somado a isso tudo, cada vez mais as pessoas (pseudo) formadas no seio das sociedades tecnológicas e da indústria cultural têm se tornado avessas ao conhecimento teórico. O fenômeno do bullying e da violência nas escolas está atrelado a questões sociais e políticas mais complexas das sociedades contemporâneas, o que nos levam a questionar o seguinte: em que medida a escola encontra-se implicada na produção da violência social, visto que a escola, enquanto instituição social tende a reproduzir em seu interior os padrões violentos e tradicionais de sociabilidade existente entre os diferentes segmentos de classes? Dentro desse quadro perverso, percebemos um movimento de

desvalorização da escola como um lugar de sociabilização do conhecimento, pois ela não tem sido mais vista pela geração atual como canal seguro de mobilidade social ascendente para os mais pobres, e, ainda, os conhecimentos relevantes para a “experiência formativa” dos sujeitos têm se tornado fatores inócuos dentro das relações reificadas da sociedade capitalista. Assim sendo, temos assistido a crise da eficácia socializadora da educação escolar e, junto a isso, a crescente desvalorização social do professor na sociedade brasileira. Ressaltamos que no interior da política econômica e cultural em tempos sombrios de neoliberalismo, vemos manifestar, na realidade social, a configuração de novos padrões de sociabilidade que determina o “contato adoecido” entre as pessoas, em que o “outro” só interessa como meio para realizar metas particulares, dentro de um individualismo exagerado que corrobora para o chamado “darwinismo social”. Assim, não são todos esses fatores responsáveis pela violência na escola? O bullying, que é tratado pela imprensa sensacionalista como uma síndrome, facilmente incorporado aos discursos psicologizantes sobre questões educacionais, não constitui um termo que, apresentado sob novas roupagens, revigora discursos tradicionais acerca dos problemas referentes à aprendizagem e aos problemas de comportamento dos alunos? Por isso, afirmamos que o tema sobre bullying não é algo recente – a despeito dos alardes em torno do assunto veiculados pela mídia e das queixas atuais dos professores -, nem tampouco se constitui como uma “síndrome escolar” do século XXI. Diz mais respeito, em termos de uma análise mais abrangente, a um “sintoma” que revela

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acerca das tendências sociais e históricas que ainda propiciam um clima favorável à barbárie e, pior, à formação de pessoas mais inclinadas à violência, à regressão e, assim, ao preconceito. As humilhações e demais brincadeiras de mau gosto, ou extremamente violentas, sempre ocorreram em instituições educacionais entre crianças, e/ou professores e alunos, presenciadas nos ritos de iniciação entre jovens em formação e nos abusos cometidos em sala de aula. Mas tal tipo de relação regredida não deveria jamais ser “naturalizada” quando reduzida aos problemas de personalidade dos sujeitos envolvidos, tal como temos presenciado nas pesquisas atuais. Enfim, caberia refletirmos sobre o que ocorre nas nossas escolas hoje que, dolorosamente, crianças, jovens e professores têm experimentado. Com base nas discussões apontadas, alguns fatores devem ser levantados: as relações afetivas permeadas de ambivalência entre professores e crianças são sufocadas no ambiente da escola que, por sua vez, estabelece e privilegia modelos de comportamento, pautados no bom desempenho e na competição entre alunos, tendo em vista o rendimento escolar; as formas de autoridades oferecidas nas escolas comumente se pautam em modelos autoritários, e não nos tipos de “autoridades esclarecidas” no sentido adorniano, que não se originam do princípio da violência, mas, sim, de momentos de transparência com relação às regras e às normas para as crianças e adolescentes; os tabus contra o magistério (representações inconscientes) ainda vigoram e não são ditos explicitamente nas relações entre os escolares; e mais outros elementos graves, tais como o preconceito de classe, etnia,

entre outros, sabemos que se encontram bem presentes nas escolas, principalmente em se tratando de jovens e crianças pobres (aqui não citamos o repúdio que as autoridades brasileiras têm pela educação infantil e fundamental que, é claro, acaba invadindo o cotidiano escolar). Nesse ambiente no qual o medo e a angústia não são trabalhados seus efeitos deletérios só podem de fato se manifestar nas piores formas possíveis: nos massacres e nas diversas formas de violência. Notas de Rodapé 1

Adorno, estabelecendo a crítica ao conceito de racionalidade presente na educação vigente, e introduzindo a questão da reflexão e da experiência como o cerne de uma educação para a emancipação, diz: “Mas aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não o é. Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais” (ADORNO, 1995b, p.151). É claro que aqui o termo “experiência” difere do usual apropriado pelas ciências naturais e positivistas para as suas “pesquisas experimentais”. 2

Não é o caso aqui aprofundar e distinguir as demais tendências contemporâneas na educação, que ora se voltam para as pedagogias do “aprender a aprender”, e que ora adotam princípios pedagógicos que se dirigem à facilitação do aprendizado pela adequação do conteúdo à suposta faixa

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etária ou nível cultural do aluno. Entretanto, tais modelos pedagógicos dão a impressão de que o mundo é facilmente apreendido pelo sujeito por meio do desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, e que por meio dessas, ele estaria preparado para se inserir no mundo do trabalho em termos do desenvolvimento de competências necessárias para o mesmo.

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA FALSAS MEMÓRIAS NUM GRUPO DE ALUNOS DE ESCOLAS PÚBLICAS Cláudia Araújo da Cunha (UFU – Uberlândia - MG) Resumo Este trabalho teve como objetivo discutir as relações entre as idades de 885 alunos do ensino fundamental e médio e a quantidade de erros cometidos no teste pictórico de memória. O instrumento foi aplicado coletivamente, em crianças e adolescentes, de ambos os sexos, de duas escolas da rede pública de uma cidade do interior de Minas Gerais. As respostas erradas do grupo de alunos apresentaram uma correlação inversamente proporcional às idades dos mesmos. Em razão disso, crianças e adolescentes mais jovens erraram mais ao responderem o teste e os mais velhos, erraram menos. Palavras-chave: avaliação em psicologia educacional; teste pictórico de memória; ensino fundamental e médio.

Abstract False memories in a group of students of public schools This work had as aim discuss the relations between the ages of 885 students of elementary and high school and the amount of mistakes made in the pictorial test of memory. The instrument was applied collectively, in children and adolescents, of both sexes, of two public schools of a city in the interior of Minas Gerais. The wrong answers of the group of students presented an inversely proportional correlation to the ages of the same ones. Therefore, younger children and adolescents made more mistakes when answering the test and the oldest, made less mistakes. Keywords: evaluation in educational psychology; pictorial test of memory; elementary and high school. Artigo Recebido em 31/05/2012 e Aprovado em 01/09/2012

Introdução A memória intervém nas funções cognitivas e possui um papel fundamental no processamento da informação. Como conseqüência, o funcionamento anormal da memória prejudicaria, de maneira generalizada, o cotidiano das pessoas (Reynolds e Bigler, 2001). A primeira corrente teórica que procurou definir o construto memória foi a empírica, introduzindo a teoria de associação por contigüidade (Warren,

1921). Segundo essa corrente, idéias complexas seriam formadas na mente, conectando na memória idéias simples baseadas em sensações que seriam vivenciadas simultaneamente em tempo e/ou espaço. Segundo Warren (1921), o processo para essa corrente despertar as seqüências associativas da memória (quando a repetição do evento A faz pensar no evento B) seria o método pelo qual as experiências passadas das pessoas causariam seus pensamentos posteriores para, dessa forma, 36

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CLÁUDIA ARAÚJO DA CUNHA

progredir de uma idéia para a outra. Essa noção básica foi elaborada para explicar a maneira pela qual os seres humanos desenvolvem expectativas coordenadas sobre propriedades de objetos, expectativas sobre seqüências causais de eventos, predições sobre eventos futuros, explicações de como ou por quê alguma coisa surgiu e planos de ação sobre resultados particulares. O primeiro investigador experimental da memória humana, entretanto, foi Ebbinghaus que, em 1885, se interessou em saber qual a quantidade de informação, mais especificamente sílabas, frases sem sentido, números ou monossílabas, que as pessoas poderiam se lembrar de um teste de memória, imediatamente após a apresentação da informação (Tulving & Craik, 2000). Existem alguns tipos de classificações da memória como, por exemplo, memória de curto prazo, intermediária e de longo prazo, ou memória declarativa ou explícita e memória não declarativa ou implícita. Especificamente a memória explícita ou declarativa contém duas classes de memórias, quais sejam, a semântica e a episódica, sendo que a primeira serviria para conservar informações sobre o conhecimento do mundo, como fatos ou conceitos e a memória episódica conservaria os acontecimentos durante a vida da pessoa (Kandel, Schwartz, & Jessell, 2000; Sandi, Venero & Cordero, 2001). Baddeley e Hitch (1974) propuseram o conceito de memória de trabalho, no qual a capacidade de armazenamento seria uma das características, mas não a única. Existiriam também outros sistemas que estariam “operando” na MT. Os autores colocaram que a estrutura da MT compreenderia a existência de um executivo

central, que desempenharia o papel de controle atencional e, além disso, haveria dois sistemas subsidiários, quais sejam, o articulatório e a agenda visoespacial. O articulatório seria o encarregado de conservar de forma transitória a informação auditiva e estaria relacionado com o tratamento dado aos conteúdos da linguagem oral. Por sua vez, a agenda visoespacial seria a encarregada de conservar transitoriamente a informação visoespacial e o processamento das imagens mentais. A partir da década de 70 do século passado, segundo Bajo, Puerta-Melguizo e Gómez-Ariza (1999) diversas teorias debateram sobre a natureza dos códigos representacionais de desenhos e palavras. Por um lado, várias teorias (Paivio, 1971, 1983, 1991; Jonhson, Paivio & Clark, 1996) propuseram que desenhos e palavras difeririam em relação ao sistema de memória ao qual acedem e são armazenados. Por outro lado, teóricos como Glaser (1992) propuseram que os códigos de representação de desenhos e palavras seriam iguais e que a diferença entre eles estaria apenas na ordem em que acedem aos diferentes tipos de representação (visual, fonológica, semântica, dentre outros). Quanto ao problema da representação de desenhos e palavras, Bajo, Puerta-Melguizo e Gómez-Ariza (1999) afirmam que um procedimento muito utilizado tem sido o da facilitação (priming), utilizando desenhos e palavras como estímulos alvo (target) e de preparação (prime). Nelson (1979) e Eysenck (1979), entre outros, já defenderam que características de um objeto influenciariam sua recuperação pela memória, propondo, inclusive, modelos psicológicos para esse fenômeno. Em tais

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modelos argumentava-se que em razão de um processo de codificação diferenciado de estímulos altamente característicos era aumentada sua probabilidade de reconhecimento. Nesse contexto, as figuras seriam codificadas diferentemente em relação aos estímulos visualmente mais simples, como as palavras. As figuras, assim, seriam mais facilmente recordadas que as palavras, regularidade essa que hoje em dia já não é mais discutida em se tratando de tarefas de reconhecimento. A explicação sugere que as características sensoriais da figura são muito diferenciadas, o que facilitaria sua discriminação ao compará-la com outras figuras, que também possibilitariam uma codificação única e diferenciada. Não obstante os numerosos e recentes estudos vinculando os traços característicos dos estímulos a sua codificação, autores como Nelson (1979) e Eysenck (1979), entre outros, já defenderam que características de um objeto influenciariam sua recuperação pela memória, propondo, inclusive, modelos psicológicos para esse fenômeno. Em tais modelos argumentava-se que em razão de um processo de codificação diferenciado de estímulos altamente característicos era aumentada sua probabilidade de reconhecimento. O modelo proposto por Nelson (1979) foi denominado de sensorial-semântico. Define que os estímulos visuais e pictóricos a serem codificados possuem os traços verbal, fonético e semântico. Quando uma tarefa requer a codificação visual de palavras e de figuras, o processamento começa, em geral, pelos traços visuais (a aparência física dos estímulos). Assim, no caso de que seja figura, o processamento seguinte seria o dos traços semânticos

(significado). Depois, o processamento será em relação aos traços fonéticos e visuais da palavra escrita (correspondentes à figura). No caso de que se trate de um estímulo visual verbal (palavra escrita), segundo Nelson (1979), somente depois de acessar o significado da palavra (processamento semântico) é que seria possível recuperar os traços visuais da figura correspondente. Para estudar o falso alarme em tarefas de reconhecimento, Israel e Schacter (1997) compararam o desempenho de dois grupos de pessoas em duas situações: em uma delas, elas ouviam os pares de palavras associadas e viam as respectivas figuras; em outra, as pessoas escutavam as mesmas palavras associadas e viam as respectivas palavras escritas. O resultado indicou que a codificação pictórica produziu taxas de falso reconhecimento mais baixas. A conclusão a que chegaram indicou que a ausência de lembranças detalhadas produz evidência de que o item é novo, que é o caso do signo (palavra) em relação ao símbolo (codificação pictórica); em decorrência, foram rejeitadas novas palavras (distratores) e produziu-se um taxa menor de falso alarme. Corroborando esses resultados Smith e Hunt (2000) constataram uma diminuição de falso reconhecimento das palavras escritas em relação às palavras ouvidas, assumindo que a apresentação visual possibilitou maior discriminação entre os itens estudados e os distratores. Por sua vez, Schacter, Cendan, Dodson e Clifford (2001) concluíram que itens novos (distratores), mas associados aos itens estudados, diminuem a precisão das respostas, devido ao falso reconhecimento dos itens novos. Nesse caso, o falso reconhecimento estaria vinculado à apresentação de palavras

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associadas que favoreceriam a codificação de traços comuns a todos os itens e não a cada item (Schacter, Israel & Racine, 1999). Em termos gerais, há concordância em que a precisão do reconhecimento é afetada pelas codificações das informações relacionais e traços característicos (Dobbins, Kroll, Yonelinas & Liu, 1998). Para estudar o falso alarme em tarefas de reconhecimento, Roediger e McDemott (1995) adaptaram o paradigma de Deese (1959), tradicionalmente usado para o estudo da falsa memória nas tarefas de lembrança livre. Tal paradigma, resultante dessa adaptação, produz altas taxas de falso reconhecimento, principalmente no que tange aos distratores relacionados (Schacter, Israel & Racine, 1999). A interpretação dada ao efeito de falso alarme, normalmente se pauta em que o fornecimento de muitas palavras associadas realça as características semânticas comuns a todos os itens estudados mais que os traços característicos de cada item particular (Schacter, Norman & Koutstaal,1998). Assim, sua redução seria possível se as situações favorecessem mais a codificação dos traços característicos dos itens. Para estudar essa hipótese, Israel e Schacter (1997) compararam o desempenho de dois grupos de pessoas em duas situações: em uma delas, elas ouviam os pares de palavras associadas e viam as respectivas figuras; em outra, as pessoas escutavam as mesmas palavras associadas e viam as respectivas palavras escritas. O resultado indicou que a codificação pictórica produziu taxas de falso reconhecimento mais baixas tanto para os distratores relacionados quanto para os não relacionados. A conclusão a que chegaram

indicou que a ausência de lembranças detalhadas produz evidência de que o item é novo, que é o caso do signo (palavra) em relação ao símbolo (codificação pictórica); em decorrência, foram rejeitadas novas palavras (distratores) e produziu-se um taxa menor de falso alarme. Corroborando esses resultados Smith e Hunt (2000) constataram uma diminuição de falso reconhecimento das palavras escritas em relação às palavras ouvidas, assumindo que a apresentação visual possibilitou maior discriminação entre os itens estudados e os distratores. Por sua vez, Schacter, Cendan, Dodson e Clifford (2001) concluíram que itens novos (distratores), mas associados aos itens estudados, diminuem a precisão das respostas, devido ao falso reconhecimento dos itens novos. Nesse caso, o falso reconhecimento estaria vinculado à apresentação de palavras associadas que favoreceriam a codificação de traços comuns a todos os itens e não a cada item (Schacter, Israel & Racine, 1999). Em termos gerais, há concordância em que a precisão do reconhecimento é afetada pelas codificações das informações relacionais e traços característicos (Dobbins, Kroll, Yonelinas & Liu, 1998). Para a efetiva recuperação de informação, os resultados sugerem que as funções exercidas pelas codificações das informações relacionais e das características são distintas. A expectativa é que para esses dois tipos de codificação haja dissociação (Hunt & McDaniel, 1993). Em conseqüência, essa codificação combinada aumentaria o índice de discriminação dos itens novos associados e itens estudados. Mintzer e Snodgrass (1999) avaliaram o custo da transmodalidade para o reconhecimento de palavras e figuras.

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Assim, quando a situação continha figurafigura (estudar figuras e reconhecer figuras) o desempenho das pessoas foi melhor, ou seja, houve um alto índice de acertos; quando a situação envolvia figura-palavra (tinham que estudar figuras e reconhecer os signos da figuras, ou seja, a palavras) ou palavra-palavra, foi constatado o mesmo número de acertos, ainda que menor que na situação anterior, o que foi explicado pela transmodalidade, quer dizer, embora a figura seja mais fácil de ser reconhecida, na forma figura-palavra (transmodal) se tornava tão difícil quanto palavra-palavra; finalmente, as situações mais difíceis de serem reconhecidas foram as que envolviam palavra-figura, pois a codificação em signo e a transmodalidade estavam presentes. Ao lado disso, defenderam também que as figuras são as mais afetadas pela transmodalidade, como também que a forma como o estímulo foi codificado (figura ou palavra) possibilitou o aumento da taxa de falso reconhecimento. Em suma, por várias décadas a concepção da codificação dos traços característicos dos estímulos e sua lembrança facilitada foram investigadas por distintos paradigmas. Os resultados apontaram que os traços característicos foram e seguem sendo utilizados para explicar a efetividade mnemônica em situação de reconhecimento e a superioridade da figura (Nelson, 1979; Stenberg, Radeborg & Hedman, 1995; Mintzer & Snodgrass, 1999). Sendo assim, o intuito da presente pesquisa foi o de verificar as possíveis correlações estabelecidas entre a idade dos participantes e o número de falsas memórias, ou seja, quantidade de erros

verificados a partir da aplicação do teste pictórico de memória (Rueda e Sisto, 2005). Método Participantes Participaram desta pesquisa 885 alunos, sendo 365 (41,24%) do sexo masculino e 520 (58,76%) do sexo feminino, do ensino fundamental e médio, de duas escolas da rede pública de ensino de uma cidade do interior de Minas Gerais. Materiais e Procedimentos Utilizados O Teste Pictórico de Memória (Rueda & Sisto, 2005) consiste numa lâmina de desenhos compostos por 55 estímulos pictóricos (figurais) divididos em três categorias, quais sejam; céu (13 itens); terra (26 itens) e água (16 itens). Antes da aplicação do material, as diretoras das escolas da rede pública de ensino, pais e professores assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido conforme estabelecido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia. Antes da aplicação do material propriamente dito, a pesquisadora realizou um pré-teste com os alunos, explicitando como se daria a aplicação do teste pictórico de memória bem como a projeção do mesmo em retroprojetores cedidos pelas escolas. A aplicação do material deu-se coletivamente em salas de aula de duas escolas públicas de uma cidade do interior de Minas Gerais. O procedimento adotado pelos autores determina 1 minuto de projeção da lâmina para ser visualizada e 2 minutos para que os participantes registrem na folha de resposta o que conseguiram memorizar. Isso significa dizer que aos participantes foi permitido anotar num

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tempo de 2 minutos, manualmente. Não houve intervalo entre as apresentações das figuras e o registro subseqüente. Pediu-se que os participantes não conversassem entre si. Dos 55 itens considerados, privilegiou-se a contagem dos erros cometidos pelo grupo de alunos quando foram questionados sobre o que lembravam a partir da exposição da lâmina. Foram computados como erros palavras que não faziam parte dos 55 itens considerados pelo teste pictórico de memória. Resultados e Discussão Os resultados demonstraram que a escola 1 concentrou o maior número de alunos, perfazendo um total de 70.73%. Desses 70.73%, 27.12% encontram-se no 3º ano do ensino médio, seguido pelo 2º ano do ensino médio com 18.87% dos alunos. Na tabela nº 1, estão demonstradas as freqüências e porcentagens de alunos, de acordo com as séries e com as escolas, de acordo com o gênero e resultados totais. Tabela 1. Distribuição de freqüências e porcentagens de alunos, de acordo com as séries e com as escolas, em que estão matriculados, de acordo com o gênero e resultados totais. Alunos Escola 1 1º médio 2º médio 3º médio Total Escola 1 8º ano 9º ano Total Escola 2 7º ano 8º ano 9º ano Total T. Geral

Masc Frq

Masc %

Fem Frq

Fem %

Total Frq

Total %

48 76 95 219

5,42 8,59 10,73 24,74

78 91 145 314

8,81 10,28 16,39 35,48

126 167 240 533

14,23 18,87 27,12 60,22

03 29 32 41 40 33 114 365

0,34 3,28 3,62 4,63 4,52 3,73 12,88 41,24

22 39 61 43 55 47 145 520

2,48 4,41 6,89 4,86 6,21 5,31 16,38 58,76

25 68 93 84 95 80 259 885

2,82 7,69 10,51 9,49 10,73 9,04 29,26 100,00

As idades dos alunos variaram de 11 a 19 anos, sendo que a maioria tinha entre 13

e 17 anos, perfazendo um total de 86,54% da amostra. Na tabela nº 2, estão demonstradas as freqüências e porcentagens de alunos, de acordo com a idade e resultados totais. Tabela 2. - Distribuição de freqüências e porcentagens de alunos, de acordo com a idade e resultados totais.

Idades 11 anos 12 anos 13 anos 14 anos 15 anos 16 anos 17 anos 18 anos 19 anos Total

Frequências 13 76 123 127 162 180 174 24 06 885

Porcentagens 1,47 8,59 13,90 14,35 18,30 20,33 19,66 2,72 0,65 100,00

Na tabela nº 3, estão demonstrados os valores mínimos, valores máximos, médias e desvios padrão, relativos às idades dos alunos, de acordo com as séries em que estão matriculados e resultados totais. Tabela 3. Valores mínimos, valores máximos, médias e desvios padrão, relativos às idades dos alunos, de acordo com as séries em que estão matriculados e resultados totais. V. Min

V. Max

7º ano

11 a

16 a

12 a 3 m

Desvios Padrão 1m

8º ano

12 a

15 a

12 a 11 m

8m

9º ano

13 a

17 a

14 a 1 m

9m

1º colegial

14 a

16 a

14 a 10 m

5m

2º colegial

14 a

18 a

15 a 11 m

8m

3º colegial

16 a

19 a

16 a 11 m

8m

Total 11 a a = anos m = mês/meses

19 a

15 a

1a9m

Alunos

Médias

Na tabela nº 4, estão demonstrados os valores mínimos, valores máximos, médias e desvios padrão, relativos aos pontos obtidos pelos alunos, no item Falsas

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FALSAS MEMÓRIAS NUM GRUPO DE ALUNO DE ESCOLAS PÚBLICAS

Memórias, de acordo com as idades e resultados totais. Tabela 4. Valores mínimos, valores máximos, médias e desvios padrão, relativos aos pontos obtidos pelos alunos, no item Falsas Memórias, de acordo com as idades e resultados totais. V. Mín

V. Máx

Médias

11 anos

01

04

1,77

Desvios Padrão 1,09

12 anos

00

04

1,54

0,96

13 anos

00

04

1,46

0,94

14 anos

00

04

1,26

0,93

15 anos

00

04

0,73

1,03

16 anos

00

06

1,52

1,09

17 anos

00

14

1,26

1,43

18 anos

00

03

1,46

0,93

19 anos

00

01

0,17

0,91

Total

00

14

1,27

1,13

Idades

Tabela 5. Valores mínimos, valores máximos, médias e desvios padrão, relativos aos pontos obtidos pelos alunos, no item Falsas Memórias, de acordo com as idades e resultados totais. Idades 11 anos

V. Mín

V. Máx

Médias

01

04

1,77

Tabela 6. Valores mínimos, valores máximos, médias e desvios padrão, relativos às idades dos alunos, de acordo com as séries em que estão matriculados e resultados totais. V. Mín

V. Máx

Médias

Escola 1

12 anos

19 anos

15 a 9 m

Escola 2

11 anos

17 anos

13 a 2 m

1a2m

Total

11 anos

19 anos

13 a 2 m

1a2m

Os resultados demonstraram uma correlação negativa entre a idade dos participantes e o número de erros contabilizados a partir da aplicação da lâmina pictórica de memória, conforme ilustrado na tabela número 7. Tabela 7. Valores de rs e das probabilidades a eles associadas, encontradas quando da aplicação do Coeficiente de Correlação por Postos de Spearman às idades dos alunos e os pontos obtidos por eles nos itens relativos à Falsas Memórias, nas duas Escolas. Variáveis Analisadas

Idade x Falsas Memórias

Idade x Falsas Memórias

00

04

1,54

0,96

13 anos

00

04

1,46

0,94

14 anos

00

04

1,26

0,93

15 anos

00

04

0,73

1,03

16 anos

00

06

1,52

1,09

17 anos

00

14

1,26

1,43

18 anos

00

03

1,46

0,93

19 anos

00

01

0,17

0,91

Total

00

14

1,27

1,13

Na tabela nº 6, estão demonstrados os valores mínimos, valores máximos, médias e desvios padrão, relativos às idades dos alunos, de acordo com a escola que freqüentam e resultados totais.

Valores de rs

Probabilidades

Total de sujeitos

Desvios Padrão 1,09

12 anos

Desvios Padrão 1a4m

Alunos

-0,069

0,039*

0,139

0,000*

-0,040

0,520

Escola 1

Escola 2 Idade x Falsas Memórias (*) p < 0,05

Esses dados revelaram que quanto mais erros os alunos cometem no teste pictórico de memória, menos idade apresentam. Isso vale também dizer que quanto mais idade apresentam, menos erros cometem no teste de memória pictórica. Considerações finais Os resultados indicaram que as falsas memórias medidas pela quantidade de respostas erradas computadas no teste de memória pictórica apresentou uma correlação inversamente proporcional à idade dos alunos. Então, quanto mais

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velhos, menos erravam ao responderem ao teste. Os alunos, em sua grande maioria, se encontravam entre os 13 e 17 anos, faixa etária essa que compreende alunos do 8º e 9º ano do presente estudo. Também foi possível observar um número expressivo de alunos entre 16 e 17 anos conforme ilustrado na tabela 4. Isso significa dizer que apesar de uma idade avançada, menos erros cometiam no teste de memória pictórica e que apesar disso, ainda cursavam o ensino fundamental. O fato de serem, muitas das vezes, repetentes, não invalida a capacidade de memorização de respostas certas dado um estímulo visual. O fato de lembrar errado e até mesmo não lembrar dos nomes de símbolos expostos numa lâmina num curto prazo de tempo, evidencia que quanto mais jovens, menos concentrados e menos atentos à solicitação de uma tarefa. Se pudermos fazer um paralelo com o ensino acadêmico, o que vemos não é muito distante do que foi colocado até então. A adolescência muito contribui para tal resultado. Período de turbulências, dúvidas, crise de identidade, receios e inseguranças que, por vezes, podem estar refletidas nos erros que cometem ao tentarem se lembrar de algo, que momentaneamente, não lhe são interessantes ou que lhes chamem a atenção. O 8º e 9º ano constituem-se nos dois últimos anos do ensino fundamental. Logo, estarão no ensino médio, fase das escolhas profissionais, dos relacionamentos afetivosemocionais e por que não dizer do amadurecimento cognitivo-intelectual. Apesar da memória ser algo tão importante em nossas vidas, a maioria de nós só se preocupa quando esta falha; ou seja, quando nos esquecemos de coisas importantes e/ou corriqueiras, tais como: se

tomamos ou não um remédio; o que fomos comprar ao chegar ao supermercado; o nome daquela pessoa que encontramos dias depois de sermos apresentados. Este tipo de erro na memória é chamado esquecimento e é facilmente identificável. Porém, para Pergher & Stein (2003) o esquecimento é um mecanismo que contribui em grande parte para a nossa inteligência, pois é através do esquecimento de inúmeras situações que somos capazes de abstrair e de trabalhar com conhecimentos genéricos. Sendo assim, para estes autores, tão importante quanto conseguir armazenar informações é conseguir esquecê-las. É importante ressaltar, portanto, que as falsas memórias não se tratam de mentiras. As pessoas que sofrem com esse tipo de erro da memória realmente acreditam que aquela lembrança é verdadeira. Elas podem descrever situações com detalhes e lembram-se inclusive dos sentimentos experienciados na ocasião. O fenômeno da falsificação mnemônica, que ocorre tão freqüentemente como o esquecimento é um tipo de erro de memória que em geral não é identificado. Não é possível distinguir as lembranças falsas das lembranças verdadeiras. Os estudos sobre as falsas memórias são bastante recentes, porém estão em expansão. As pesquisas da psicologia sobre este tema podem contribuir para minimizar tais tipos de problemas, e vêm buscando cada vez mais compreender os mecanismos e processos de retenção, armazenamento e recuperação da memória que podem estar ligados ao aparecimento das falsas memórias.

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Agradecimento A mestra Fernanda Machado pela ajuda incondicional na análise dos dados dos referidos protocolos.

A autora: Cláudia Araújo da Cunha possui graduação em Psicologia pela Universidade Gama Filho (1990), mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Universidade Gama Filho (1993), doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1999) e pós-doutorado pela Universidade São Francisco (2008). Professora Associado II da Universidade Federal de Uberlândia. Av. Pará, 1720, Bairro Umuarama, CEP 38405-320 – Uberlândia – MG. E. mail: [email protected].

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA CONDIÇÕES OBJETIVAS DE VIDA: COMO VIVEM E SOBREVIVEM MORADORES DE UMA COMUNIDADE URBANA Paola Regina Buoro Walter Mariano de Faria Silva Neto Raquel Souza Lobo Guzzo (PUCCAMP – Campinas - SP) Resumo Os objetivos dessa pesquisa envolvem sistematizar elementos das condições objetivas de vida de moradores de uma ocupação urbana de Campinas e analisar sua consciência sobre a influência dessas condições em sua qualidade de vida. Foi utilizado o banco de dados do grupo de pesquisa contendo entrevistas realizadas com moradores de um bairro periférico na cidade de Campinas. Embora tenham sido identificados alienação e fatalismo perante as adversidades, há a percepção acerca de condições objetivas adversas e insatisfatórias, o que poderia pautar a atuação do psicólogo nesta comunidade. A importância de pesquisas como esta, fica evidenciada ao observarmos que a urgência e profundidade das adversidades vividas nesta comunidade não são abarcadas pelos instrumentos utilizados pelos órgãos representativos do Estado. Palavras-chave: fatalismo; impotência; condições objetivas de vida; fortalecimento; conscientização.

Abstract Objective Life Conditions: How to live and survive in an urban community The objectives of this research involve systematizing elements of the objective life conditions of urban settlement residents and analyzing their awareness about the influence of these conditions on their quality of life. We used the research group database, which contains interviews with residents of a suburban neighborhood, in Campinas city. Despite alienation and fatalism in the face of adversity, there is a perception about adverse and unsatisfactory conditions that could guide psychologist's work. This study reveals the importance of such surveys to exist, since the instruments used by the representative bodies of state does not cover the depth and urgency of these issues. Keywords: fatalism; powerlessness; objective conditions of life; empowerment; awareness.

Artigo Recebido em 30/05/2012 e Aprovado em 01/09/2012

Introdução O presente artigo é fruto de uma experiência de iniciação científica realizada pela primeira autora, sob supervisão, na tentativa de elucidar como as condições objetivas de vida dos sujeitos influenciam

sua consciência1. Para tanto, utilizou-se uma fundamentação teórica que auxiliasse na compreensão da vida no capitalismo, bem como a formação da consciência, a partir da perspectiva histórico-cultural e então, que elucidasse o posicionamento dos

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movimentos sociais na cultura produzida pelo capitalismo. A vida no capitalismo A partir de dados concretos da realidade social, bem como do decorrer da história da humanidade, percebeu-se que no modo de produção capitalista a desigualdade social tem o caráter estrutural. Conforme Sloan (2009) descreve, é por conta da lógica do capital que sua acumulação não é possível aos funcionários e sim, apenas, aos donos dos meios de produção. Tal fato passou a ocorrer neste sistema, já que os funcionários não recebem o suficiente para conseguir acumular e o excedente de seu trabalho não retorna a eles, pois são apropriados por aqueles que contratam sua força de trabalho, ou seja, os proprietários dos meios de produção. Com relação a esta lógica, atualmente, pode-se constatar a presença determinante da desigualdade social, por meio de dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000) e pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2010). No caso do Brasil, cerca de 8,5% de pessoas vivem em situação de pobreza multidimensional. Este índice considera não apenas o aspecto financeiro, mas o padrão de vida, a educação e a saúde. Nesse cálculo são incluídos, por exemplo, aqueles que ainda usam combustível sujo para cozinhar seus alimentos, não possuem acesso à água potável, a saneamento adequado ou eletricidade, ou então que possuem membros na família com menos de cinco anos de estudo, ou com má-nutrição. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2010, 1

milhão e 75 mil pessoas de 104 países em desenvolvimento vivem em pobreza multidimensional, que é um índice, criado pelo IBGE em 2010, para captar as privações sobrepostas ao nível da família na saúde, educação e padrão de vida. Este índice baseia-se em três dimensões e dez indicadores, sendo eles: I - Padrão de vida (não ter eletricidade, não ter acesso a água potável limpa; não ter acesso a saneamento adequado; usar combustível sujo para cozinhar [estrume, madeira ou carvão], ter uma casa com piso de terra; não ter carro; caminhão ou veículo motorizado semelhante e possuir no máximo um dos bens seguintes: bicicleta, motocicleta, rádio, frigorífico, telefone ou televisor); II Educação (não ter nenhum membro da família que tenha concluído cinco anos de escolaridade e ter pelo menos uma criança em idade escolar [até ao 8º ano] que não esteja frequentando a escola) e III - Saúde (ter pelo menos um membro da família que sofra de má nutrição e ter tido uma ou mais crianças que tenham falecido). Conforme descrito na Nota Técnica 4 do Relatório de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2010), cada um desses indicadores tem um peso específico que, se for igual ou maior que três, classifica a família como multidimensionalmente pobre e, se for entre 2 e 3, a classificação como vulnerável ou em risco de se tornar multidimensionalmente pobre. Utilizando-se de dados de 2000 a 2008, o PNUD (2010) atribuiu ao Brasil um Índice de Pobreza Multidimensional de 0,039, ou seja, em média os indivíduos sofrem privação em 3,9% dos indicadores relacionados, sendo que 8,5% da população é multidimensionalmente pobre, com intensidade média de privação de 46% dos

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indicadores, e outros 13,1% estão em situação de vulnerabilidade e em risco de se tornarem multidimensionalmente pobres. Há, ainda, 20,2% da população brasileira com, ao menos, uma privação em educação, 5,2% com, ao menos, uma privação na área da saúde e 2,8% com, ao menos, uma privação em relação ao padrão de vida. É interessante, ainda, observar os dados fornecidos pelo Critério de Classificação Econômica Brasil – CCEB (ABEP, 2010), que considera os bens e serviços básicos possuídos pela população para classificá-la em oito classes (A1, A2, B1, B2, C1, C2, D, E), de acordo com seu poder de compra. É informado que a maior parte dos brasileiros encontra-se na classe econômica C1, representando 24,5% da população, acompanhados de perto pela classe C2, composta por 23,9%, e pelas classes B2 e D, compostas respectivamente por 18% e 17,9% da população. Esse indicador mostra ainda a renda média familiar referente a essas classes como sendo: classe B2 igual a R$ 2.327; C1, igual a R$ 1.391; C2, igual a R$ 933; D, igual a R$ 618; E, igual a R$ 403. Nesse cálculo não é exposto a quantidade de pessoas que compõem a família, entretanto, conforme os dados já mencionados na tabela 1, o primeiro quinto mais pobre de cada região do Brasil possui renda per capita entre R$ 10 e R$ 45 e não estão incluídos neste cálculo dos agrupamentos sociais. No entanto, o fato destes indivíduos não estarem incluídos num instrumento que se propõe a dividir a sociedade em classes econômicas se justifica pela autodescrição do mesmo, já que “esse critério foi construído para definir grandes classes que atendam às necessidades de segmentação (por poder aquisitivo) da grande maioria das empresas“

(ABEP, 2010, p. 3). Em outras palavras, esse instrumento se propõe a dividir a sociedade em camadas de públicos-alvo para facilitar às empresas a definição de critérios para estipular o valor de uso de suas mercadorias. Desse modo, por não incluir famílias com menor renda em sua classificação da sociedade, deixa de ser um instrumento válido para se discutir a qualidade de vida da população brasileira. Tabela 1. Renda per capita nas regiões do Brasil Média do 1º

Média do

quinto mais pobre

quinto mais rico

Sul

R$ 45

R$ 1.076

R$ 353

Sudeste

R$ 41

R$ 1.154

R$ 356

R$ 38

R$ 1.231

R$ 367

Norte

R$ 13

R$ 663

R$ 196

Nordeste

R$ 10

R$ 532

R$ 152

Região

Geral

Centro Oeste

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2000

O CCEB (ABEP, 2010), portanto, mostra-se como um instrumento interessante para situarmos somente as famílias com renda média maior que R$ 403 e ineficiente para abarcar a desigualdade social e a maneira como ela se reflete nas condições objetivas de vida daqueles que vivem abaixo do nível de pobreza multidimensional ou mesmo da pobreza de rendimento, delimitada pelo IBGE pela Paridade do Poder de Compra de U$ 1,25 por dia e por pessoa. Quanto a essa divisão de classes, de acordo com o poder aquisitivo das famílias, e para observarmos uma estimativa da quantidade de pessoas excluídas pelo CCEB, utilizamos alguns dados com relação à renda divulgados no Censo que foi realizado pelo IBGE em 2000, e que ainda

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não tiveram sua atualização divulgada pelo Censo 2010: a média da renda per capita entre as regiões do Brasil, em 2000, equivalia a R$ 285, mas nos dados expostos na tabela 1, a desigualdade de distribuição da renda, indica pessoas com renda per capita no máximo de R$ 1.076 e outras, no mínimo R$ 10. Os dados coletados pelo IBGE no referido ano conferem ainda que no Brasil há em média 40% das pessoas com renda per capita abaixo de R$ 75,50, sendo que metade dessas tem renda per capita abaixo de R$ 37,75. Apesar desses dados, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) relativo à renda no Brasil, nesse ano, o colocou numa qualidade média (0,677). Atualmente, através de alguns dados já publicados pelo IBGE (2010) a respeito do censo do ano passado, vemos que mesmo uma década depois ainda existem 531.873 mil domicílios particulares sem renda per capita mensal, sendo que a maioria dos domicílios particulares, equivalendo a 3.705.925 milhões, possuem de 1 a 2 salários mínimos e a segunda maior parte, 3.505.268 milhões, possuem de meio a 1 salário mínimo per capita mensal. Com relação às condições objetivas de moradia, a Organização Panamericana de Saúde - OPS (1999) publicou um documento especificando as condições necessárias para moradia e os riscos que sua violação pode oferecer aos indivíduos, podendo ser de ordem biológica, química e/ou psicossociais. Consciência versus alienação, fatalismo mais opressão Feita respeito

esta breve caracterização a das condições objetivas

consequentes ao sistema capitalista, cabe, então, fazer referência à constituição da consciência, elemento este que se responsabiliza pela diferenciação da atividade humana e da atividade animal. Por ser essencialmente social, a atividade humana permite a apropriação e objetivação dos conhecimentos acumulados, resultando na construção do ser humano por meio do desenvolvimento de suas funções psíquicas superiores. No entanto, justamente pela forma de trabalho da sociedade capitalista, o sentido e o significado da ação são dissociados, anulando o trabalho como algo que desenvolve o indivíduo, tornando-se uma atividade alienante (Duarte, 2004). Somado a isso, os povos oprimidos da America Latina são considerados absortos no fatalismo, devido à construção histórica permeada de opressão com início na colonização destes países e continuidade até os dias de hoje (Martín-Baró, 1996). A pobreza naturalizada e a miséria institucionalizada provocam na população oprimida um sentimento de impotência diante dos próprios problemas, resultando na alienação e fatalismo mediante situações em que é necessária a luta por seus direitos. Nesse processo histórico, a psicologia tem atuado em favor das classes dominantes, oferecendo base teórica que permite culpabilizar os indivíduos pelo seu fracasso, como se este fosse apenas resultante de características individuais, ignorando a construção histórico-cultural que determina as condições objetivas precárias impostas a determinadas classes sociais, normalizando a desigualdade social e miséria das classes menos favorecidas (Guzzo & Lacerda Jr., 2007; Martín-Baró, 1996). O papel do psicólogo

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A psicologia deve atuar, diante destes contextos, a fim de propiciar o fortalecimento desses grupos (Guzzo & Lacerda Jr., 2007; Martín-Baró, 1996; Martín-Baró, 2009; Montero, 2011). Para que as comunidades oprimidas e discriminadas se organizem e lutem pelos seus direitos, devem participar da criação de possibilidades para a transformação social de uma sociedade que possui, como alicerce, a desigualdade. Para tanto, é necessário que o psicólogo atue para promover a desalienação das pessoas e dos grupos, principalmente melhorando o enfoque nesses últimos, permitindo que tenham consciência de sua identidade pessoal e um saber crítico sobre si mesmos, evitando que se comportem ou como dominador ou como dominado (Martín-Baró, 1996). A Psicologia da Libertação possui três tarefas urgentes que são recuperar a historicidade dos povos, desideologizar o senso comum e a experiência cotidiana dos mesmos e potencializar as virtudes populares. (MartínBaró, 2009). A luta pelos direitos O fortalecimento dos sujeitos de uma comunidade, portanto, permite que os integrantes participem na construção de sua realidade, delineando soluções e encaminhamentos para as questões sociais que lhe dizem respeito. O fortalecimento e a tomada de decisões, visando a transformação das condições sociais postas, têm como base essencial a apropriação da própria história, do conhecimento acumulado pela humanidade. É nesse ponto que nos deparamos com a presença da mídia nos dias de hoje e o espaço que vêm

tomando perante a construção da sociedade, por estar se relacionando com os sujeitos e, portanto, participando ativamente de sua constituição. De acordo com Guareschi (2007) a mídia têm se mostrado um veículo de informações determinante na construção da ideologia, que só está sendo usado por pequenos grupos que detém o poder de influenciar as massas e acabam por oprimir e desestruturar os grupos excluídos. O autor relembra que as relações interpessoais que desenvolvemos nos fornecem elementos para constituir nossa identidade e nossa consciência, a respeito das condições materiais que nos rodeiam. A mídia, na sociedade moderna, tem sua presença demarcada no dia-a-dia de toda a população, o que se comprova com os dados coletados por esse mesmo autor que revela que a média de horas diárias que o brasileiro fica diante da TV, por exemplo, é de 4, podendo ser seis horas em algumas cidades periféricas pesquisas por Guareschi (2007) e até mesmo nove horas para as crianças, cujos pais têm medo de deixá-las brincar na rua. Portanto, não é de se espantar que os meios de comunicação assumam hoje um papel de construir a realidade, determinando se um fato existirá ou deixará de existir e, ainda, a conotação valorativa que se atribui a esse fato. Paralelamente, determina a agenda de discussão, que se expressa no fato de que 80% dos assuntos discutidos nos âmbitos sociais são aqueles veiculados pela mídia (Guareschi, 2007), podendo, inclusive, eliminar um assunto da pauta. Esses elementos expostos pelo autor nos levam a compreender o poder de influência que os meios de comunicação exercem sobre a sociedade. É passível também de se

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refletir a questão da falta de democracia na utilização de tais meios e, mais ainda, a influência que um pequeno grupo de pessoas exerce sobre toda a população, pois só no Brasil 90% da mídia eletrônica está nas mãos de nove famílias. A mídia pode, então, ser um veículo para a participação dos sujeitos na construção de sua realidade. No entanto, como este meio de comunicação de massa é pouco acessível para divulgar as demandas dos grupos discriminados pela lógica dominante e, inclusive, influencia as massas de maneira contrária a tais grupos, os movimentos sociais se revelam como instrumentos efetivos de comunicação de tais demandas (Goss & Prudencio, 2004). Obejtivos Este artigo tem como objetivo geral entender como se dá a influência das condições materiais de vida na construção da subjetividade. Sendo assim, os objetivos específicos são: sistematizar elementos das condições de vida de moradores de uma ocupação urbana, informados por meio de um censo comunitário e entrevistas domiciliares e analisar a consciência desses indivíduos sobre a sua qualidade de vida e como as condições objetivas a influenciam. Método Este artigo funda-se no pensamento metodológico proposto pelo Materialismo Histórico Dialético que, como descrito por Marx e Engels (1977), toma primeiramente a realidade concreta para depois entender as representações abstratas que dela se refletem. Será considerado também o processo histórico de constituição da

realidade concreta, apreendendo as contradições expostas nas entrevistas para entender como as condições objetivas de vida dos moradores de uma comunidade urbana influenciam na formação de sua consciência, bem como na construção da alienação e do fatalismo mediante as circunstâncias impostas pelo sistema capitalista. Fontes de pesquisa Foram utilizadas as questões Banco de dados do grupo de pesquisa contendo 60 entrevistas realizadas censitariamente, entre os anos de 2009 e 2010. O instrumento geral utilizado é composto por quatro eixos que se referem à (1) identificação do entrevistado, (2) à dimensão sócioeconômica, (3) ao que trouxe o entrevistado para aquele espaço, e (4) a vida falada e escrita. A entrevistas foram realizadas em momentos diferentes por outros membros do grupo de pesquisa, cada qual utilizando do instrumento geral com adaptações concernentes aos objetivos de suas pesquisas. Contexto das entrevistas O bairro em questão teve sua origem em 1998, por meio de uma ocupação urbana. Pelas descrições dos pesquisadores que realizaram as visitas ao local, foi possível observar que, até então, não havia asfalto nas ruas, centro de saúde, grupo escolar ou área de lazer. O meio de transporte na região é precário por ser impossível o ônibus intermunicipal transitar no local em dias de chuva. As casas, em sua grande maioria, estão em inacabadas e em terrenos pequenos. De acordo com relatos coletados

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pelos entrevistadores, há pontos de droga no bairro. Caracterização dos participantes O banco de dados abrange cerca de 5% (60 moradores) do bairro, que possui cerca de 1.300 moradores. Dentre os participantes 65% são do sexo feminino e 35%, do sexo masculino. Quanto ao número de cômodos na casa, a maior parte dos entrevistados (33,3%) possui quatro cômodos, sendo que na metade das residências há um cômodo por morador ou menos. Em apenas 60% das casas dos entrevistados há cozinha, sendo que em menos de 60% delas há geladeira ou fogão e em menos de 30% há mesa. Quanto ao(s) quarto(s), menos de 40% possuem cama ou guarda-roupa. Quanto à sala, menos de 50% possuem aparelho de televisão e menos de 40% possuem sofá. Em relação à escolaridade, metade dos entrevistados não avançou além do Ensino Fundamental. Pouco mais da metade dos entrevistados recebem menos que três salários mínimos, sendo que a maioria recebe até dois salários mínimos. Apenas alguns, cerca de 6,67%, recebem mais que quatro salários mínimos. Resultados Foram utilizadas quatro questões do instrumento utilizado pelo grupo de pesquisa para as entrevistas. Cada argumento das respostas encontradas foi categorizado, resultando na seguinte sistematização:

Quadro I. Síntese dos resultados – questões 1 - “O que mais gosta de fazer na vida?” e 2- “Onde você obtém informações sobre o que acontece na vida?” 1. O que mais gosta de fazer na vida? 2. Onde você obtém informações sobre o que acontece na vida?

Categoria predominante

Descrição da categoria

Lazer (48,15%*)

Argumentos que se referem às atividades de lazer enquanto atividades de distração, entretenimento ou repouso.

TV (42,9%*)

Argumentos televisão

referentes

à

*relativo aos argumentos encontrados na questão.

Na questão 1 – o que mais gosta de fazer na vida? , encontramos a categoria Lazer, com 48,15% de frequência, indicando argumentos referentes às atividades de distração, entretenimento ou repouso como atividades que mais se gosta de fazer na vida. Com relação à questão 2, referida no mesmo quadro, a maior parte dos argumentos (42,9%) indica a TV como meio para obtenção de informações. Embora não explicitado no quadro, temos também na questão 1 o Trabalho como segunda atividade que mais se gosta de fazer na vida. Já em relação à questão 2 – onde você obtém informações sobre o que acontece? , temos também o jornal impresso como segunda fonte de informações mais citada. Quadro II. Síntese dos resultados – questão 3.”O que gostaria de mudar em sua vida?.” Categorias predominantes

Moradia (25%*) 3.O que gostaria de mudar em sua vida? Trabalho (22,22%*)

Descrição da categoria Argumentos relativos ao lugar em que a pessoa vive, tais como vontade de mudar de bairro, vontade de conquistar a propriedade de sua casa, vontade de reformar a casa, críticas referentes à estrutura básica do bairro Argumentos que se referem à mudanças relativas ao trabalho de uma maneira geral, podendo se expressar como falta de oportunidade de emprego, o desgosto em trabalhar, a vontade de trabalhar e a busca por um trabalho menos sacrificante.

*relativo aos argumentos encontrados na questão.

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Quanto à questão 3 – o que gostaria de mudar em sua vida?, vemos que a maior parte dos argumentos (25%) referem-se às condições objetivas de moradia, incluindo tanto o espaço peridomiciliar quanto o intradomiciliar, e, em segundo lugar, estão os argumentos referentes às condições de trabalho. Convém acrescentar que 55% dos argumentos encontrados dizem respeito às condições objetivas de vida de maneira geral. Quadro III. Síntese dos resultados – questão 4 “Como define suas condições de vida?” Categorias predominantes Presença de Dificuldades (46%*)

4. Como define suas condições de vida?

Indicação de Adaptação (39%*)

Descrição da categoria Argumentos que demonstram a presença de alguma dificuldade na vida da pessoa, variando a intensidade com que são adjetivadas. Argumentos que demonstram a adaptação às condições de vida, podendo estar explicitada a presença de estratégias de enfrentamento, a acomodação e aceitação passiva das dificuldades, ou mesmo não estar indicado em que circunstância tal adaptação se faz. Levar este dado para a discussão, se ele consegue estratégias de enfrentamento ou se simplesmente se acomodou.

*relativo aos argumentos encontrados na questão.

Quanto à questão 4 – como define suas condições de vida? , demonstra que a maior parte dos argumentos (46%) fornecidos pelos participantes indicam a percepção de dificuldades em suas condições de vida. Com boa frequência também temos os argumentos que indicam alguma forma de adaptação, ou seja, a percepção de suas condições de vida mediante uma adaptação a tais condições. Essa adaptação varia entre a formulação de estratégias de enfrentamento, a acomodação, a aceitação passiva das dificuldades ou mesmo não ter sido indicado de que forma é feita tal adaptação. Cabe aqui complementar que foram encontrados também, na questão 4,

argumentos que sinalizam a necessidade de muitas mudanças, sem especificar quais. Outros argumentos explicitam ainda, a percepção de uma inexistência de necessidade de mudança, como, por exemplo, a fala da participante 19: “Ah! Acho que nada! Talvez algo em relação ao meu emprego". Discussão Observamos o destaque para as atividades em que é possível o sujeito objetivar sua personalidade (Duarte, 2004), e, principalmente, as atividades que tiveram maior incidência revelam possibilitar a associação entre o sentido e o significado da ação. Curiosamente, há a presença considerável de argumentos que indicam o trabalho como atividade que mais gostam de fazer na vida, sendo 16,7% dos argumentos voltados à essa questão e a segunda categoria que mais citada. Tal resultado mostra haver motivação em trabalhar, haver sentido na atividade realizada, ainda que o trabalho na sociedade capitalista sofra a dissociação entre sentido e significado (Duarte, 2004). No entanto, não é possível termos conhecimento do tipo de trabalho a que os participantes se referem, podendo dizer respeito a qualquer uma das diversas formas que podem ser caracterizadas como trabalho, com exceção de um participante que revela gostar de trabalhar com plantação no sítio onde fora criado. É possível, portanto, observar a importância que têm as atividades em que os sujeitos se apropriam do conhecimento acumulado e objetivam suas próprias descobertas, investigações, sua própria personalidade, já que essa característica é comum a todas as atividades indicadas.

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Podemos com isso concluir, que as atividades que proporcionam o desenvolvimento do ser humano na sua relação consigo mesmo e com outros são atividades realizadas com prazer e motivação, configurando-se em algo que o sujeito mais gosta de fazer na vida. Nas respostas que vão além dos objetivos da pergunta, observamos que alguns indivíduos são impossibilitados de fazer o que gostam, uns por não terem tempo para se divertir, outros por não terem a oportunidade de realizar tal atividade, como estar desempregado devido à carência de vagas de emprego. Há também a percepção de que “o trabalho engrandece o homem” e é o único meio para se obter alguma conquista. O trabalho é uma atividade necessária para o desenvolvimento das funções superiores do ser humano (Duarte, 2004) e, portanto, engrandece o homem neste sentido. No entanto, sabemos que o sistema capitalista revoluciona a atividade humana justamente por tornar possível à classe dominante, a conquista de algo sem o trabalho, ou seja, através da contratação e exploração da mão de obra de outrem. E isso se revela uma contradição desta sociedade, que ao ser internalizada pelo indivíduo pode se configurar em elementos fatalistas e de não enfrentamento, ao sentir-se impotente diante desta realidade. Observa-se também a grande influência da mídia eletrônica neste contexto, representada muito mais pela televisão, do que pelo rádio. Isso pode indicar a influência da ideologia dominante propagada pelos meios de comunicação na percepção dos sujeitos acerca das consequências que as condições objetivas vivenciadas trazem para sua qualidade de

vida. Ainda assim, vemos considerável quantidade de indicações aos espaços como escola, igreja, conversa com amigos, familiares e colegas, que dão a possibilidade de o receptor participar da transmissão da informação e, com isso, poder problematizar a notícia e a realidade, dando condições para se construir a ação coletiva nessa comunidade o que é potencialmente promotor do fortalecimento do grupo (Montero, 2011). Grande parte dos argumentos revelam a percepção das questões objetivas das vidas dos sujeitos que, ou não estão satisfatórias ou são muito adversas. Ficam nítidas as questões adversas de moradia, tanto ao espaço intradomiciliar quanto ao peridomiciliar, este, por sua vez, agravando outras adversidades da esfera individual. Cabe aqui relembrar que os serviços carentes desta comunidade, como asfalto, grupo escolar, centro de saúde, segurança, saneamento, transporte coletivo, são todos de obrigação do Estado. Enquanto as questões de moradia e de trabalho são as mais evidentes, há sujeitos que apontam a necessidade de mudar muitas coisas ou mesmo tudo. No entanto, também há referências à ausência de necessidade de qualquer mudança, revelando a alienação de alguns deles à respeito da influência que as condições objetivas adversas exercem sobre a qualidade de vida. Podemos captar a presença do fatalismo, inclusive, em alguns argumentos que colocam ser necessário apenas ter fé em Deus para que as adversidades se resolvam ou, então, esperam da Igreja e de Deus a pressão social e moral para realizar a mudança que julgam necessárias, como por exemplo, o abandono da dependência do álcool.

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Por fim, a última questão nos revela novamente a contradição na percepção das condições objetivas, mas ainda mais acentuada. Vemos que há uma grande indicação da percepção de dificuldades, que são por vezes extremas. No entanto, também é muito indicada a percepção de que nem tudo está ruim, de que há pontos positivos que compensam as dificuldades, como ter saúde e vontade de viver. Há também aqueles que percebem suas condições de vida como boas, às vezes como ótimas, chegando a dizer que não têm do que reclamar. Essa percepção de elementos positivos, que foi denominada de “indicação de adaptação” no plano de análise dos resultados, sinaliza a resignação e passividade (Goss & Prudencio, 2004; Montero, 2011) diante de condições objetivas de vida muito adversas e que merecem a atenção da comunidade e do Estado, pois impedem o desenvolvimento saudável dos indivíduos e da própria sociedade. Há outros argumentos que nos mostram a realidade é captada como um dado estático, que não sofre transformações (Iasi, 1999). A partir da caracterização dos entrevistados e das respostas fornecidas através do instrumento, pode-se constatar que a situação concreta da moradia, abarcando os espaços intra e peridomiciliar, apresenta uma série de adversidades, considerando as especificações da Organização Panamericana de Saúde (OPS, 1999). Visto os argumentos encontrados, que em sua maioria apontavam para a necessidade de melhorias na própria casa, pode-se concluir que as mesmas não satisfazem por completo as necessidades particulares da vida familiar e pessoal. Com

relação ao espaço peridomiciliar, embora haja eletricidade, encanamento e sinal de TV (OPS, 1999) a comunidade é carente de serviços de saúde, considerados os mais essenciais, não havendo vigilância ou atenção primária ambiental o que potencializa que o lixo nas ruas favoreça o surgimento de vetores de doenças. Outros fatores de risco indicados pela organização que estão presentes na comunidade são a falta de acabamento e a necessidade de reforma das casas, pois as fissuras do material utilizado nas construções emitem substâncias prejudiciais à saúde dos moradores. Segundo os critérios da OPS, a moradia deve oferecer, também, abrigo resistente aos impactos naturais e sociais, o que ocorre nesta comunidade, pois nos seus relatos, os moradores apontam que as crianças ficam dentro de casa como medida de segurança, o que aponta para uma aparente contradição. No entanto, elas sofrem a influência inevitável do espaço peridomiciliar, que expõe tais indivíduos a situações como a violência e o tráfico de drogas. A renda dos sujeitos é outro elemento a ser considerado na análise de suas condições objetivas de vida. Vemos que 59% dos entrevistados têm renda abaixo de três salários mínimos, sendo que a maioria recebe entre um e dois salários. Entre a maioria dos entrevistados há duas pessoas no grupo familiar trabalhando seguidos de perto dos grupos familiares em que há apenas uma. Aliás, a maior parte dos entrevistados mora em quatro pessoas na casa. Considerando o grupo de pessoas que moram em quatro, dois trabalham ganhando um salário mínimo, chegaremos a uma renda familiar mínima de R$ 1.090 e máxima de R$ 2.180. No caso dos grupos

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familiares em que apenas um trabalha, a renda familiar está entre R$ 5452 e R$ 1.090. De acordo com o Critério de Classificação Econômica Brasil (ABEP, 2010), o primeiro grupo familiar está incluído ou na classe B2 ou na C2, enquanto o segundo se incluiria ou na classe D ou na C2. Devemos considerar além desses casos, que ainda há as famílias que são compostas por até nove pessoas e, também, há aqueles que moram sozinhos. Em suma, temos alguns indivíduos desempregados, mas a maioria possui uma renda familiar mínima de R$ 545, variando o número de pessoas a que essa renda deve sustentar. Quanto aos índices de desenvolvimento humano e de desigualdade sugeridos pelo PNUD (2010) é possível afirmar que os entrevistados não são considerados multidimensionalmente pobres, apesar de vivenciarem adversidades e restrições. O papel da psicologia é de extrema importância e singularidade perante esta situação de alienação e fatalismo. Vivemos numa sociedade desumanizada e desumanizadora, que submete a maioria das pessoas a situações extremas. Em oposição a isso, glorifica o explorador, que consegue realizar suas conquistas sem se importar com as consequências de suas ações. A sociedade capitalista cria e recria uma série de mecanismos para manter essa situação, acreditando fielmente que sua forma de governo, de modo de produção, é a melhor. É na medida em que esses mecanismos se utilizam da ideologia, do senso comum e da alienação para se efetivarem, que a atuação do psicólogo se mostra essencial. Diante deste quadro, o psicólogo pode utilizar seus conhecimentos e técnicas para promover a conscientização e o

fortalecimento dos grupos excluídos e submetidos à violência que a sociedade capitalista lhes reserva. Nesse trajeto é necessário apropriar-se da produção de outras áreas sob o viés da psicologia e, sem dúvida, se unir a outros profissionais e sujeitos inseridos no grupo em questão. A conscientização e fortalecimento destes grupos se constituem como uma única solução para a transformação da sociedade. E diante do fato de que o capitalismo degrada a humanidade dos seres humanos (Iasi, 1999) e, consequentemente, a espécie humana e o planeta, vemos que a conscientização e o fortalecimento em busca de justiça e de igualdade social são aspectos importantes a serem trabalhados pelo psicólogo. Considerações finais Vemos que, apesar de todas essas condições objetivas adversas, os entrevistados não são classificados pelo PNUD (2010) como multidimensionalmente pobres, ou seja, não são vistos pelos órgãos a serviços do Estado como estando em situação alarmante. E também são relativamente bem classificados a partir da ABEP (2010), como um público alvo extenso e interessante para as empresas. Sendo assim, pode-se concluir que o Estado, governantes e empresários dificilmente olharão para esta comunidade visando sua melhoria. Isso evidencia ainda mais a importância deste projeto para explicitar e denunciar as condições objetivas a que estão submetidas não só esta comunidade, mas grande parte da população do Brasil. E mais, que estão submetidas a estas condições devido à negligência dos governantes e ao fatalismo dos governados.

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Por isso, é importante o investimento em pesquisas que gerem meios para a mudança social. É essencial e urgente a discussão sobre para que serve a psicologia, sobre sua posição frente à ideologia dominante, e sobre a formação de psicólogos que possam trabalhar com populações que têm sofrido os efeitos colaterais do capitalismo. Notas de rodapé 1

Trabalho originalmente apresentado no V Seminário do NEPPEM – “Psicologia Histórico-Cultural e Marxismo” 2

Em relação ao salário mínimo da época em que foram coletados os dados

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Raquel Souza Lobo Guzzo possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Estudos Comunitários e Prevenção pela University of Rochester, USA. Professora titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia. Coordenadora do GT de Psicologia Escolar e Educacional da ANPEPP. Endereço para correspondência: Endereço: Rua Santa Monica, Email: [email protected]

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Jd.

Santa

Marcelina.

Campinas/

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Brasil.

CEP

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA O ESTADO E AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL: REFLEXÕES ACERCA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Moisés Fernandes Lemos (UFG – Catalão - GO) Resumo O estudo discute a contradição entre a Constituição (1988) e o modelo de Estado implantado no Brasil, na década de 1990, abordando suas políticas de saúde. O método utilizado em sua realização foi o qualitativo e descritivo, delineado como pesquisa bibliográfica e documental. Os resultados indicam que a implantação das políticas públicas de saúde guarda relação com a Constituição de 1988 e o acesso universal à saúde é uma conquista do povo brasileiro. O Sistema Único de Saúde foi implantado com a superação de forças antagônicas da sociedade, levando à conquista de um sistema público de saúde avançado, democrático, de acesso universal, classificado entre os melhores do mundo, ainda que apresente consideráveis problemas estruturais. Palavras-chave: estado; políticas públicas; saúde; SUS.

Abstract The State of Health and Policies in Brazil: Reflections on the Unified Health System The study discusses the contradiction between the Constitution (1988) and the state model introduced in Brazil in the 1990s, mainly addressing their health policies. The method used for its realization was the qualitative and descriptive, designed as a documentary and bibliographical research. The results indicate that the implementation of public health policies directly related to the 1988 Constitution and universal access to health care is a conquest of the Brazilian people. The Health System has been deployed to overcome opposing forces of society, leading to the achievement of an advanced public health system, democratic, universal access, ranked among the best in the world, though present considerable structural problems. Keywords: state; public policies; health; SUS. Artigo Recebido em 30/09/2011 e Aprovado em 14/05/2012

Introdução O Brasil é um país de dimensões continentais, em processo de desenvolvimento, marcado pelas desigualdades regionais e com direitos sociais garantidos em sua Constituição (Brasil, 1988). Não obstante, o país conviveu com a crise econômica experimentada pela maioria

dos países em desenvolvimento, nas décadas de 1980 e 1990, circulando com intensidade o retorno ao Estado Mínimo como receita para solucionar seus problemas (Costa, 1998; Batista, 1999; Draibe, 2003; Schwartzman, 2007). Segundo Schwartzman (2007) há um descompasso entre os anseios dos direitos humanos e a realidade encontrada no Brasil e países da América Latina, visto que 60

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Os direitos sociais buscam assegurar uma condição de vida minimamente satisfatória, requerendo a existência de um Estado de Bem-Estar, capaz de gerar os recursos e organizar os serviços necessários para que eles sejam efetivados. (...) No entanto, no Brasil e nos países da América Latina, a economia não gera os recursos necessários para satisfazê-los, e o setor público, mesmo quando existem recursos, não tem capacidade para proporcioná-los (Schwartzman, 2007, p. 2-3). Em novembro de 1989, acontece nos EUA uma reunião de funcionários do governo norte-americano, dos órgãos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial e BID) e de diversos economistas sul-americanos, objetivando avaliar as reformas econômicas dos países da América Latina, notadamente mergulhados na referida crise financeira. As conclusões dessa reunião receberam o nome de Consenso de Washington (Batista, 1999). Essa reunião ratifica a proposta neoliberal do governo norte-americano para esses países, ou seja, os EUA defendem para eles a prática da liberdade de mercado e a restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo. Tais propostas implicam, consequentemente, a adoção de uma política restritiva como condição para conceder cooperação financeira externa. Dentre outras exigências, eles apresentam como receita, para solucionar os problemas do Brasil, as privatizações de importantes empresas de setores estratégicos, cortes na prestação de serviços sociais públicos, com queda significativa nos gastos e reduções de graus de proteção social. Preconizam ainda

o desenvolvimento da agricultura, visando à exportação de grãos, sem levar em consideração as necessidades do povo e o estágio de desenvolvimento industrial do país (Batista, 1999). Portanto, há aqui uma aparente contradição entre o clima de redemocratização que se busca com a eleição de novos governantes e a promulgação da nova Constituição e o arrocho econômico apresentado como remédio para a crise financeira e fiscal. Fazendo menção a este período, Costa (1998) afirma que Durante os anos 80 a orientação para o mercado tornou-se a referência cognitiva das comunidades de especialistas (ou comunidades epistêmicas) e a base de legitimação discursiva das agências internacionais, especialmente para o tema da Reforma do Estado. Essas crenças científicas sobre meio e fins da economia e sobre a crise do Estado têm viabilizado o relativo consenso sobre a agenda da Reforma tanto no seio de grupos específicos – sobretudo na comunidade de especialistas em políticas públicas e economia – como na opinião pública em geral (Costa, 1998, p.127). Outro autor que se debruça sobre o tema é Carvalho (2009). Segundo ele, O Estado que se busca estruturar tem a pretensão de ser uma espécie de “Estado empresário” (citado por, Fiori, 1994) enxuto, eficaz, livre das amarras da prestação de serviços e do peso das burocracias. Paralelo a essas medidas o projeto neoliberal manifesta a intenção de corrigir o que ele denomina de disfunções

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burocráticas propondo, para tanto, a implementação de um modelo de administração gerencial em que busca transpor para o setor público práticas bem-sucedidas da administração de empresas. A venda do patrimônio público e a concessão de serviços à iniciativa privada são igualmente estratégicas centrais desse projeto (Carvalho, 2009, p. 24). Esse processo não deve ser tomado apenas como uma mudança do regime autoritário para um regime democrático, mas como um processo que envolve a própria redefinição da natureza do Estado quanto à vinculação das desigualdades de poder com a estrutura social e suas bases materiais (Sallum, 1994, citado por, Nascimento, 2007). Num clima de mudanças e contaminados pelos interesses internacionais, os governos brasileiros da nova república se rendem às exigências do FMI – Fundo Monetário Internacional – colocando, consequentemente, em questão a falência do Estado, visto que assim se via questionada até a soberania brasileira de elaborar e executar sua própria política monetária e fiscal. Para Dagnino, citado por Carvalho (2009), Em contraposição aos princípios constitucionais que afirmam a “Saúde como um direito de todos e um dever do Estado”, políticas de governo influenciadas pelo ideário neoliberal vêm procurando, desde o início da década de 1990, delegar à sociedade civil a responsabilidade pelo cuidado à saúde. Preconiza-se uma solidariedade que não é, como no Estado de Bem-Estar Social,

fundamentada por critérios de igualdade e de direitos universais, mas benemerência dos que podem doar um pouco de seu tempo ou do seu dinheiro (Dagnino, et al, 1999, citado por, Carvalho, 2009, p. 28). Depois desta breve introdução, alguns questionamentos se fazem necessários: neste contexto de antagonias, como dirimir as contradições entre o modelo de Estado e suas políticas públicas? Como se dá, no Brasil, a garantia de direitos sociais? Como assegurar o acesso universal à saúde? Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo discutir esta aparente contradição entre o modelo de Estado e sua política de saúde. Metodologia O presente trabalho se caracteriza como uma pesquisa de natureza qualitativa e descritiva, delineada como estudo bibliográfico e documental, conforme classificação proposta por autores da área de metodologia científica (Appolinário, 2006; Severino, 2007). A escolha da pesquisa qualitativa se justifica a partir do entendimento que ela seja capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo estas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação como construções humanas significativas. A pesquisa qualitativa apresenta ainda algumas características que, para o atual trabalho, são fundamentais. Em primeiro lugar, ela tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento. Ela supõe o

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contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, via de regra, através do trabalho intensivo de campo. Em segundo lugar, os dados coletados são predominantemente descritivos e o material obtido nessas pesquisas é rico em descrições de pessoas, situações, acontecimentos. Outra característica importante é que a preocupação com o processo é muito maior do que com o produto. O interesse do pesquisador ao estudar um determinado problema é verificar como ele se manifesta nas atividades, nos procedimentos e nas interações cotidianas. Por fim, a análise dos dados tende a seguir um processo indutivo. Os pesquisadores não se preocupam em buscar evidências que comprovem hipóteses definidas antes do início dos estudos. As abstrações se formam ou se consolidam basicamente a partir da inspeção dos dados num processo de baixo para cima. A pesquisa qualitativa envolve a obtenção de dados descritivos obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada (Lüdke & André, 1986). Quanto ao delineamento, a pesquisa é classificada como um estudo bibliográfico e documental, visto que o conhecimento sobre teorias do estado e políticas públicas decorre do processo de discussão e da divulgação que elas receberam, ou seja, pelo fato de serem de domínio público, acessíveis por meio de leis, livros e revistas especializadas (Severino, 2007) e ainda, por tomar como referência os documentos legais. Resultados e Discussões

As políticas públicas e o Sistema Único de Saúde brasileiro Quando se discute o modelo e o tamanho do Estado, as chamadas políticas públicas merecem destaque. Mas o que são políticas públicas? Qual sua importância para o governo? Como a população participa de suas concepções e planejamento? São questionamentos necessários, a seguir apresentados, para melhor compreensão do tema em questão. Segundo Costa (...) política pública é o espaço de tomada de decisão autorizada ou sancionada por intermédio de atores governamentais, compreendendo atos que viabilizam agendas de inovação em políticas ou que respondem a demandas de grupos de interesses (Costa, 1998, p. 7). Na definição acima, três aspectos merecem destaque: a) o papel do governo na definição das políticas públicas; b) as agendas de inovações; e c) as demandas de grupos de interesses. Na condição de eleito pelo povo, o governo tem papel e autoridade preponderantes na propositura e na administração das políticas públicas. No entanto, nem sempre ele age em nome de quem o elegeu. Há, no Brasil, um jogo de interesses em questão e os eleitos se aliam à burguesia e ao capital industrial, visando tirar vantagens pessoais em prejuízo do interesse coletivo. Não obstante, quando comparada a mobilização social observada na Europa, a população brasileira não tem tradição de lutar por seus direitos. Da ditadura Vargas ao governo militar, pouco se viu de mobilização popular no Brasil. Em

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contrapartida, houve notória organização do capital industrial (aliado ao estrangeiro), principalmente nas décadas de 1950 a 1970, ou seja, do governo JK ao governo militar (Costa, 1998; Nascimento, 2007). Na luta pelos direitos, exceção foi a mobilização popular ocorrida após o golpe militar de 1964, quando os anseios populares foram cerceados pelo totalitarismo do Estado. Ela guarda relação com a luta pelas “Diretas já” e com o clima de redemocratização do processo constituinte de 1988, mas para não fugir aos objetivos do estudo não será aqui discutido. Sendo assim, até então, os governantes brasileiros sempre tiveram grande autonomia na administração do Estado, sancionando leis e autorizando decisões que priorizassem os interesses pessoais e/ou do capital industrial sem encontrar verdadeiros focos de resistência, salvo disputas internas dos grupos que se alternaram no poder. No que tange às agendas de inovações, pouco se observou de mudanças na política de saúde brasileira até a década de 1980. A assistência médica cabia àqueles que contribuíam com o sistema previdenciário; os não contribuintes ficavam a cargo de algumas poucas instituições filantrópicas, sem a cobertura devida (Costa, 1998; Negri, 2002; Carvalho & Santos, 2006). Nesse sentido, fazendo uso das palavras de Costa (1998), se pode afirmar que: A tradição institucional do corporativismo estatal, forjado na década de 1920, possibilita explicar que o desenvolvimento da assistência médica foi diretamente subordinado ao sistema previdenciário, sendo o vínculo contributivo condição indispensável para o direito à atenção à saúde. Esta restrição básica ao

acesso dos não-contribuintes vigorou no Brasil até a década de 1970 (Costa, 1998, p. 91). As demandas de grupos de interesses (médicos, indústria farmacêutica e empresas de tecnologia hospitalar) impunham um modelo curativo de assistência em que se dava maior atenção à doença já instalada que à atenção básica em saúde, conforme preconizado pela OMS – Organização Mundial de Saúde. Entretanto, Não se pode discutir a saúde independentemente de suas determinantes e condicionantes. A concepção de saúde como resultante de questões extra-setoriais mais abrangentes se contrapõe à concepção de que a doença (falta de saúde) é a causa de distúrbios e desvios em outros setores (Carvalho & Santos, 2006, p. 39). A agenda de inovações no setor saúde começa a ser ampliada com a “Abertura Política”, verificada no final do governo militar, pois se vivencia no país um período de organização popular nunca antes visto. Os partidos políticos se associam aos setores organizados da população na busca de interesses comuns, podendo se afirmar que, neste momento histórico, haja a defesa de uma agenda popular que contempla, em parte, um novo modelo de assistência à saúde. Para Nascimento, foi (...) no período de transição entre o regime autoritário e o regime democrático no Brasil, regime esse que resultou em novos cenários políticos e em cujo interior resultaram reações e rearticulações de forças sociais que delinearam projetos para o setor de saúde (Nascimento, 2007, p. 22).

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Muito se esperava de um “governo democrático”, mas a eleição do governo Sarney, dada sua fragilidade política, pouco acrescentou de inovação nas políticas públicas. No entanto, no final de seu governo, apoiando-se na força política dos governadores legitimados pelas urnas, coube a este governo empreender algumas reformas importantes, sendo as propostas de reformas do sistema de saúde sua grande conquista (Nascimento, 2007). Na VIII Conferência Nacional de Saúde, ganha corpo um grande movimento, oriundo nas lutas dos setores organizados da sociedade, em torno de um novo modelo de assistência à saúde para o Brasil, que, com o apoio de partidos políticos e de alguns governadores, começa a construir o projeto do Sistema Único de Saúde. Ela é considerada um março importante na vida política do país, pois contou com a participação de vários segmentos sociais, destacando a participação de representantes de sindicatos, dos prestadores de serviços públicos e dos profissionais vinculados ao setor, dentre outros. (Negri, 2002; Nascimento, 2007). Ao discutir os antecedentes do SUS, Negri (2002) ressalta a importância da Constituição de 1988 e da VIII Conferência na construção do projeto, para ele, A atual conformação do sistema público de saúde, universal, íntegro e gratuito começou a ser construído com o processo de redemocratização do país, e antes de sua criação pela Constituição de 1988. O evento mais marcante dessa construção foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada de 17 a 21 de março de 1986. Essa promoção, precedida por uma série de conferências prévias

estaduais e municipais, contou com expressiva participação da sociedade e a conclusão tornou-se referência pra os integrantes, balizando as mudanças que se seguiram (Negri, 2002, p. 16). Portanto, os determinantes e condicionantes do modelo de assistência à saúde passam necessariamente pela garantia de direitos conquistados na Constituição e pela revisão das políticas públicas adotadas no país. Seria impossível conceber um sistema de saúde que consumisse parte considerável do orçamento do governo, quando se propunha um Estado mínimo, livre das amarras da prestação de serviços e do peso das burocracias, sem a mobilização e a participação popular. Desse modo, começa a se constituir no Brasil um sistema de saúde com tendência à cobertura universal, mesmo antes da aprovação da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde). Isso foi estimulado, de um lado, pela crescente crise do financiamento do modelo de assistência médica da Previdência Social, e, de outro, pela grande mobilização política dos trabalhadores da saúde, de centros universitários e de setores organizados da sociedade, que constituíam o então ‘Movimento da Reforma Sanitária’ (Souza, 2002, p. 413). Em 19 de setembro de 1990, é promulgada a lei 8080/90, que regula, em todo território nacional, as ações e serviços de saúde executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas

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de direito público ou privado. Conhecida como a Lei Orgânica da Saúde (LOS). Imediatamente após, se institui o Sistema Único de Saúde, com comando único em cada esfera de governo, e se define o Ministério da Saúde como administrador da União, por meio da Lei 8142/90. No Capítulo II – Dos Princípios e Diretrizes, Art. 7º, ela estabelece como primeiro princípio do SUS a “(...) universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência”. O Sistema Único de Saúde é por definição constitucional um sistema público, nacional e universal, baseado na concepção de saúde como cidadania, na noção de unicidade e, a um só tempo, nas diretrizes organizadoras de: descentralização, com comando único em cada esfera de governo; integridade do atendimento; e participação da comunidade (Souza, 2002, p. 461). O modelo brasileiro de assistência à saúde tem inspiração em experiências bem sucedidas na Itália e no Canadá, notadamente nas diretrizes organizadoras do modelo canadense, quais sejam: padrões nacionais; universalidade; direito de transferência; acesso econômico; administração pública e comprehensiveness, ou seja, extensão (France, 2002). Considerando a cultura local e a tradição política do Brasil, foram adotados, como princípios do SUS, o acesso público à saúde, nacional e universal, baseado na concepção de saúde como cidadania. Como diretrizes reguladoras, foram adotadas a descentralização, com comando único em cada esfera de governo; integridade do atendimento; e participação da comunidade. Para Heimann e outros (2000),

O propósito dessas diretrizes configura um sistema de saúde formado por uma rede de serviços públicos e privados descentralizada, com comando único em cada esfera de governo, regionalizada e hierarquizada, na qual o setor privado deve ter uma participação complementar à do setor público, firmada por convênios e contratos, com prioridade de participação das instituições filantrópicas e sem fins lucrativos (Heimann et al., 2000, p. 32). Na definição dos papéis dos diversos atores das políticas públicas de saúde, tem destaque o setor privado, responsável por uma participação complementar à do setor público. Segundo a concepção do sistema, os produtos e serviços não disponibilizados pelo Estado poderiam ser contratados junto ao setor privado, em situações especiais, em função da necessidade do sistema público. Visando regular a imperfeição das relações entre um Estado mínimo, neoliberal, as iniciativas do mercado e a mobilização popular das classes organizadas, foram instituídas, em vários segmentos da gestão pública, as agências reguladoras. No segmento da assistência à saúde, esta agência é denominada Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Para Souza (2002), A ação reguladora da ANS é fundamentada no pressuposto de que o mercado da assistência à saúde é imperfeito e não pode ser livremente operado, demandando regras para garantir a prevalência do interesse público, e também para equilibrar a relação entre os consumidores, os

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prestadores de serviço e as operadoras (Souza, 2002, 461). Assim, com a participação popular e a garantia de acesso do setor privado ao vultoso orçamento público, se resolve em parte as antagonias entre o modelo de Estado e as demandas sociais, aparentemente contraditórias. Parte da tarefa foi cumprida, mas, depois de estabelecidos princípios e diretrizes organizadoras, faltava ainda colocá-las em prática, e foram muitas as dificuldades encontradas. Para começar, há que se ressaltar que a assistência à saúde no Brasil não tinha caráter universal e passou a ser um dos princípios básicos do SUS, implicando em mudanças profundas no modelo de assistência. Considerando as peculiaridades do país, apresentadas no início do presente estudo, como garantir a implantação do sistema de saúde em todo território nacional, com acesso universal e isonomia de tratamento? Segundo France (2002), (...) para serem nacionais os padrões não devam necessariamente depender do governo central – isto é, que padrões nacionais não seja o sinônimo de padrões federais – mas possam, ao contrário, ser negociados entre os governos locais com a assistência do governo central ou com sua participação igual com a dos outros governos (France, 2002, p. 79). Sabendo que as leis promulgadas estabeleceram os princípios, mas não definiram critérios, coube ao Ministério da Saúde, por meio das Normas Operacionais Básicas – NOBs – expedidas nos anos de 1991, 1992, 1993 e 1996, normatizar o sistema administrativo em seus diversos

níveis de gestão (federal, estadual e municipal), colocando o sistema em operação. Enfim, o modelo brasileiro de assistência à saúde foi sendo construído à medida que as dificuldades foram sendo enfrentadas e a implantação de cada princípio implicou numa batalha particular. Tendo em vista a importância e os percalços na implantação das diretrizes organizadoras do SUS e os limites do presente trabalho, a seguir serão tecidos breves comentários sobre cada uma delas, posto que seu detalhamento implicasse num artigo a parte. As diretrizes organizadoras do SUS Retomando o tema, as diretrizes organizadoras do SUS são: a) descentralização, com comando único em cada esfera de governo; b) integridade do atendimento; c) participação da comunidade. Talvez a descentralização tenha sido a tarefa mais árdua, visto que ela implicou na resistência de diversos órgãos da estrutura do governo. Mas depois de vencidas as resistências iniciais, ao final da década de 1990, se observou que provavelmente todos os municípios dispunham de autonomia jamais concedida (Negri, 2002). Para esse autor, A política de descentralização não é um mero programa de transferência de recursos do governo federal para as outras instâncias. É antes um processo que envolve também a transferência de decisões e responsabilidades quanto às políticas de saúde pública no país (Negri, 2002, p. 19).

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Consequentemente a adoção da política de descentralização levou a uma série de mudanças estruturais, dentre elas o comando único em cada esfera de governo. Os repasses de recursos federais ficaram atrelados à adoção de agendas mínimas de políticas públicas nos estados e municípios, negociadas e implantadas em consonância com as demandas locais, de tal forma que, sem a implantação dos serviços, não haveria o repasse das verbas federais (Souza, 2002). Segundo Heimann e outros (2000), no processo de implantação do SUS, o Ministério da Saúde do Brasil foi convidado, em 1996, pelo International Development Research Center (IDRC), do Canadá, a integrar o projeto multicêntrico Macroeconomic Adjustments Policies, Health Sector Reform and the Access to Utilization and Quality of Healthcare, desenvolvido em algumas distintas regiões do mundo. O convite foi aceito e o projeto desenvolvido com êxito, ajudando a reduzir o impacto das mudanças estruturais do sistema de saúde brasileiro. Quanto à integridade do atendimento e ao regionalismo da assistência, foram regulamentados pelas Normas Operacionais de Assistência à Saúde, expedidas nos anos 2001 e 2002. Estimulou-se a formação de consórcios intermunicipais de saúde, de tal maneira que as necessidades e características regionais pudessem fazer jus à integralidade do atendimento. Essa estratégia tem sido utilizada com relativo sucesso em todo o território nacional. A participação da comunidade na gestão do sistema se dá de três formas básicas: a) fazendo uso dos serviços de saúde; e b) participando dos conselhos de saúde implantados em todas as esferas de poder do governo. No entanto, na composição dos

conselhos como fóruns de importantes debates do setor assistência à saúde, nem sempre há representação dos diversos segmentos sociais; e c) pela ouvidoria, canal oficial de participação popular. Para que esta participação não se restrinja ao cumprimento formal de um requisito legal, o sistema de saúde necessita da mobilização popular, seja através da crítica à qualidade dos serviços prestados e/ou na composição dos referidos conselhos. Caso contrário, a tendência é prevalecer, nas políticas públicas brasileiras, o atendimento às demandas do “Estado Empresário”, reduzindo o investimento público no setor, ou seja, prevalecendo os interesses da economia de mercado em oposição aos interesses populares. Considerações finais Concluindo, se pode afirmar que há uma contradição entre o modelo de governo brasileiro, notadamente de inspiração neoliberal, e o Sistema Único de Saúde, conquista das camadas populares organizadas, quando da aprovação da Constituição de 1988. Não obstante, o SUS foi sendo gradativamente implantado com a superação de antagonismos observados na sociedade brasileira, e hoje o país conta com um sistema público de saúde avançado, democrático, de acesso universal, classificado entre os melhores do mundo, quando considerados seus princípios. Ele ainda apresenta consideráveis problemas estruturais, tais como: falta de recursos financeiros, materiais e humanos, superlotação de hospitais, desvios de verbas, privilégios na contratação de serviços da iniciativa privada, problemas no

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MOISÉS FERNANDES LEMOS

repasse de recursos financeiros entre as esferas federal, estaduais e municipais, dentre outros, merecendo discussão mais aprofundada a ser empreendida em outra oportunidade. Os antagonismos entre o público e o privado ficam evidentes quando se verifica que, influenciado pela imprensa e no interesse de algumas categorias, o grande público prefere a assistência à saúde oferecida pelo setor privado à assistência disponibilizada pelo governo, acreditando que esteja adquirindo um produto de melhor qualidade, posto que “(...) nossa sociedade ainda não compreendeu que a saúde é um direito devido pelo Estado, desejando comprar das seguradoras privadas aquilo que deveria reivindicar do poder público por direito” (Carvalho & Santos, 2006, p. 42). Como garantia de direitos sociais, a qualidade do SUS deve ser buscada a cada dia, em cada atendimento, em cada procedimento, exigindo mobilização popular em defesa da saúde pública preventiva, em constante contraposição aos interesses do capital, consubstanciados na prática da medicina curativa associada à medicina de alta tecnologia e ao avanço da indústria farmacêutica. Portanto, há que se levar na devida consideração que, em certo sentido, um elevado grau de popularidade do serviço de saúde o torna imune a eventuais tentativas

de mudanças drásticas. Cabe ao povo e aos atores governamentais assegurar o acesso universal à saúde que os representam, a defesa e a superação dos problemas enfrentados pelo SUS, que não são poucos, como condições necessárias à manutenção do direito de acesso universal à assistência à saúde, pois o direito à saúde está diretamente relacionado à condição cidadã, ao direito à dignidade da vida. Enfim, os dados pesquisados mostram que as contradições entre o modelo de Estado brasileiro e suas políticas públicas são históricas. Suas antagonias são emblemáticas, mas estão paulatinamente sendo enfrentadas e dirimidas à medida que se cultua a ampla defesa do contraditório, se assegurando espaço para os posicionamentos dos diversos segmentos envolvidos que compõem a nação. Dessa maneira, a partir dos estudos disponíveis sobre o tema do amor e do ciúme, bem como pelo que ouvimos de nossas entrevistadas, fomos, passo a passo, construindo uma compreensão do ciúme como um multifacetado e intrigante fenômeno de insegurança, desamparo e busca pelo controle da vida em comum que parece, ao mesmo tempo, denunciar e buscar contornar características igualmente intrigantes e múltiplas que a experiência amorosa apresenta em nossos dias.

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA A ESPERA INTERROMPIDA: A ELABORAÇÃO DA PERDA PELA MÃE DIANTE DO ÓBITO FETAL Fábia Tunísia Alves Xavier Luiz Carlos Avelino da Silva (UFU – Uberlândia – MG) Resumo Este trabalho objetivou compreender a vivência da perda fetal e as manifestações de luto nas gestantes. Justifica o estudo, o número alto de natimortos nos países em desenvolvimento, como o Brasil. A metodologia utilizada foi qualitativa e fez uso entrevistas semi-dirigidas, realizadas com quatro participantes. Após a transcrição procedeu-se a análise de discurso e chegou-se a quatro categorias: negação, perda, expectativas e luto. Foi possível concluir que a elaboração da perda de modo saudável e o reinvestindo em outros objetos ou pessoas somente foi possível após o sofrimento e a superação da dor de enfrentar a morte do filho antes que ele tivesse vida. Palavras chave: luto; natimortos; gravidez.

Abstract Waiting Interrupted: the develonpment of loss for the mother in fetal death This study aimed to understand the experience of fetal loss and the manifestations of grief in pregnant women. Justifies the study, the high number of stillbirths in developing countries like Brazil. The methodology was qualitative and made use of semi-directed interviews conducted with four participants. After transcription proceeded to discourse analysis and came up to four categories: denial, loss, grief and expectations. It was concluded that the development of loss in a healthy way and reinvesting in other objects or people was possible only after the overcoming of suffering and pain to face his son's death before he had life. Keywords: bereavement; stillbirths; pregnancy. Artigo Recebido em 05/04/2010 e Aprovado em 27/06/2012

Introdução Apesar do desenvolvimento dos diversos métodos para a avaliação e acompanhamento da vitalidade fetal e do grande arsenal terapêutico existente, o óbito fetal continua sendo um evento obstetrício comum. O óbito fetal ocorreu em mais de quatro mil das gestações em todo Brasil durante o ano de 2009 (MS/SVS/DASISSistema de Informações sobre Mortalidade- SIM,

2009). A mortalidade perinatal, que engloba óbitos fetais e óbitos neonatais precoces, é um indicador de saúde materno-infantil, refletindo tanto as condições de saúde reprodutiva da mulher, quanto à qualidade da assistência perinatal. Anualmente ocorrem cerca de 7,6 milhões de mortes perinatais no mundo, das quais 98% são em países em desenvolvimento. Nestes 57% são representadas pelos óbitos fetais, cuja

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queda de ocorrências tem sido muito lenta. (Fonseca & Coutinho, 2004). Em Uberlândia, Minas Gerais, foram registrados no setor de estatística e informações hospitalares do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia 234 natimortos durante o período de 01 de janeiro de 2005 a 31 de janeiro de 2010. Além dos números, é importante destacar o intenso sofrimento psíquico que pode acometer as gestantes com a perda de um filho e inclusive abrir caminhos para estados depressivos, caracterizados muitas vezes pelo desejo de morrer, como meio de se unir ao objeto de amor perdido. Ao contrário do que o termo óbito fetal parece sugerir, caracterizá-lo não é tão simples assim, já que existe uma heterogeneidade de conceitos para definilo. Nesse trabalho se seguira a definição utilizada no Brasil, como explicitada no CID-10: A morte de um produto da concepção, antes da expulsão ou de sua extração completa do corpo materno, independentemente da duração da gravidez; indica o óbito o fato de, depois da separação, o feto não respirar nem dar nenhum outro sinal de vida, como batimentos do coração, pulsações do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária (Organização Mundial da Saúde, 1993 V 2). É considerado aborto espontâneo quando há óbito de um feto por causas naturais antes de 20º semana de gestação. Quando o óbito ocorre após a 20º semana de gestação e é de um feto com mais de 500 gramas, este é denominado um

natimorto, o que implica obrigatoriamente em registro civil via as Declarações de Óbito, que se constituem, no Brasil, na fonte de informações relativas a esses eventos, conforme a Resolução CFM nº 1.779 de 11de novembro de 2005. A expressão morte fetal foi estabelecido pelo National Center for Health Statistics dos Estados Unidos e deve ser empregada em óbitos ocorridos a partir de 20 semanas completas de gestação, critério que é utilizado pela maioria dos autores. Classifica-se ainda o óbito fetal de acordo com a época do acontecimento em dois tipos: anteparto, quando ocorre antes do início do trabalho de parto e intraparto, quando ocorre na realização desse. A classificação do óbito fetal é de grande importância, já que exibem grandes diferenças no que diz respeito à etiologia, complicações maternas e assistência obstétrica. A despeito da importância evidente da morte fetal como um problema de saúde pública, pouca atenção tem sido dada a esse tema, principalmente quanto à sua epidemiologia e raramente se tem analisado a mortalidade fetal separadamente das mortalidades perinatal e infantil (Raymond, Cnattingius & Kiel, 1994). A ocorrência de uma perda perinatal tem um impacto significativo e duradouro nas famílias que a sofrem (Bennet, 2005). Esse é visível a nível individual, nas manifestações de sintomatologia ansiosa e depressiva (Bennett et al., 2005 & Fonseca, 2008), na diminuição da qualidade de vida física e psicológica (Fonseca, 2008), mas também na deterioração da relação conjugal (Glaser,

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et al., 2007) e da relação com a rede de apoio social. Também há registro da instalação de quadros de psicose, estados de ansiedade, fobias, idéias obsessivas e profundas depressões num período de dois anos em mães que vivenciaram mortes neonatais. O processo de luto pode durar anos, nos quais constantemente ocorre a evocação da sensação de perda. Quando as famílias não fazem adequadamente o luto de suas perdas, não conseguem seguir em frente com as tarefas do viver (Bromberg, 2000). Szejer e Stewart (1997) afirmam que a sociedade construiu o ideal de maternidade como um momento a ser exaltado por representar alegria e plenitude de um nascimento, no entanto o privilégio de dar vida é acompanhado pelo peso da história de vida familiar da gestante, as angústias, as faltas e as perdas que não foram simbolizadas e permaneceram suspensas podendo emergir na gestação, retomando o passado vendado. Segundo Lacan (1953), o bebê se inscreve imaginariamente como tentativa de restabelecer a ilusão de completude vivenciada pela mãe. Assim, o bebê receberá um nome, e esta imagem perfeita criada pela mãe ganhará formas pelas palavras, que significam e dão sentido a essa presença como objeto de amor antes mesmo que a criança nasça. Após o nascimento a mãe descobre que nem todos os seus desejos projetados foram satisfeitos, o que torna inevitável uma perda simbólica. Já no óbito fetal, há uma perda real que requer um redimensionamento do desejo e de seu destino. Esta morte é entendida como um descompasso na

seqüência natural do ciclo de vida pelo qual nos orientamos: o de que os pais morrem antes dos filhos e o de que o ser humano nasce para depois morrer. No caso do óbito fetal, morre-se antes de nascer (Souza, Wottrich & Seeling 2007). Segundo Stirtzinger e Stewart (1999), a significação da morte de um filho pode representar o desejo no qual ele foi presentificado, com o número de filhos que a mulher já tem, com a idade e estado civil desta mãe, com o apoio social que a mesma possui, com a atribuição da culpa desta morte e com obstáculos decorrentes do seu próprio psiquismo. No luto por óbito fetal, fatores relacionados ao diagnóstico e tratamento, motivações para a gestação e relativos ao seu planejamento serão determinantes no processo de elaboração da perda. O significado da criança para a gestante, assim como suas expectativas em relação ao futuro dela, sua rede de apoio social e possíveis perdas secundárias também serão fortes fatores de influência. O trabalho de luto exige um esforço psíquico para aquele que o sofreu possa resgatar as partes perdidas de seu ego projetadas no objeto. Segundo Freud, no luto ocorre a perda de um objeto real e o mundo se torna pobre e sem vida. Esta perda deverá ser elaborada simbolicamente e na conclusão ocorre à ligação da libido com outro objeto de amor. Já na melancolia, se perde algo do próprio ego, e é este que se torna morto, vazio (Freud 1917). O chamado curso consistente do luto inclui uma fase inicial de choque e descrença, na qual a pessoa tenta negar a perda e tenta se isolar contra o choque da realidade. A seguir, vem uma fase de

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crescente consciência de perda, marcada por efeitos dolorosos de tristeza, culpa, vergonha, impotência e desesperança; há também o choro, uma sensação de vazio, distúrbios de alimentação e de sono, às vezes, alguns distúrbios psicossomáticos associados à dor física, perda de interesse nas companhias ou atividades costumeiras, perda de qualidade na atividade profissional. Por fim, há uma prolongada fase de recuperação, na qual se dá a elaboração do luto, e o trauma da perda é superado e é restabelecido um estado de saúde. (Freitas, 2000 p. 27). Para a autora citada anteriormente existem duas formas de vivência desse luto. O primeiro tipo é caracterizado como normal, em que o impacto da perda pode ser diminuído em um breve espaço de tempo, pela formação de novos vínculos substitutivos, de investimentos produtivos em novas atividades e da aceitação do apoio social. O outro tipo é chamado de luto patológico, no qual o vínculo permanece intenso com a representação da pessoa morta, e o que não permite a pessoa enlutada a vitalização necessária para a sua manutenção saudável, abrindo o campo para reações como negação, ambivalência, distorção e permanência no passado, que levam ao desequilíbrio pessoal e à doença. Segundo Bromberg (2000). No processo de luto patológico não existe apenas uma resposta específica, mas sim uma alteração de estado, em que a depressão clínica pode ser considerada um tipo de reação patológica. É importante destacar que, apesar de neste trabalho se fazer uso da expressão luto patológico, pelo fato de ser mais divulgada e conhecida, que o psiquiatra britânico Colin Parkes (1998), denomina

de luto atípico a experiência de pessoas que desmontam após uma perda e são encaminhadas para atendimento psiquiátrico, reconhecendo nesse as formas do luto adiado, os ataques de ansiedade e de pânico, as auto-acusações, e o surgimento de sintomas somáticos Bowlby (1985) especifica o processo de luto por algumas fases, que não são consideradas definitivas e classificatórias, devido às muitas diferenças individuais, mas que devem ser considerada no propósito de diagnosticar o que se considera luto normal e luto patológico. As fases consideradas regulares parecem refletir o curso geralmente tomado pelo luto sem complicações. As fases são: entorpecimento, anseio ou protesto, desespero e recuperação e restituição e são descritas na obra de Bromberg (2000). A despeito de suas possíveis complicações o processo de luto é essencial para que se possa superar uma perda importante. A vivência de um momento como esse se constitui como uma crise na vida do sujeito. Cada um irá reagir e se expressar de acordo com suas próprias características. No entanto, existem alguns sentimentos e reações que são comuns entre as pessoas, e por isso, no processo de luto é normal à ocorrência de um período de tristeza (Fonseca, 2008). Pesquisas recentes sobre o tema têm sido realizadas tanto por enfermeiros como psicólogos. Rodrigues (2009), trabalhando com a teoria do luto e como referencial metodológico, o interacionismo interpretativo, analisou as narrativas de nove mães que passaram pela experiência de ter um filho natimorto e investigou a surpresa causada pela má

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notícia, a experiência de um parto sem sentido do qual se saiu de mãos vazias e o enfrentamento do luto social. Segundo as conclusões da autora, a morte do bebê no final da gestação, quando caracterizado como natimorto, é incompreensível para a mãe, ela sofre uma profunda dor emocional, acompanhada de um sentimento de vulnerabilidade que a impede de pensar no futuro ou na possibilidade de uma nova gestação. Indica ainda a delicadeza do momento de ver o filho natimorto, desejo que nem sempre as mães conseguem verbalizar e que o processo de luto é vivido de maneira solitária, porque sua tristeza não é compartilhada com a família e amigos, havendo uma preferência para o isolamento devido ao sentimento de vergonha por não ter conseguido gerar um filho sadio e por chorar o tempo inteiro. (Rodrigues, 2009). Machado (2010), considerando que a interrupção voluntária da gravidez por malformações fetais é um acontecimento doloroso e terrível que gera inúmeros sentimentos e comporta mudanças e reajustamentos na vida de quem o vivencia, realizou um estudo de natureza qualitativa e abordagem fenomenológica hermenêutica. Em seu estudo Machado entrevistou onze mulheres ao longo do período de maio a setembro de 2008, que realizaram a interrupção voluntária de gravidez de fetos com má formação no Centro Hospitalar do Porto – Unidade Hospital Santo António no Serviço de Obstetrícia/Ginecologia, em Portugal. Nas entrevistas as participantes desenvolveram um discurso livre, falando da sua experiência, durante o primeiro mês após a realização da interrupção da gravidez.

Seus resultados demonstram que cada mulher vivencia a interrupção voluntária da gravidez por malformações fetais de forma diferente. No entanto, a maioria manifestou dúvidas durante todo o processo e todas, de forma geral, consideram que é algo difícil de suportar, que gera inúmeros sentimentos, dificuldades no regresso a casa e na reorganização das suas vidas. Ximenes Neto et all (2011) procuraram descrever a percepção de mulheres atendidas em uma unidade hospitalar acerca da vivência de uma gravidez interrompida por diagnóstico de abortamento, em um estudo qualitativo realizado em um centro obstétrico na cidade de Sobral, no Ceará, no qual entrevistaram treze mulheres que procuraram assistência no período. Suas conclusões apontam que a gravidez interrompida aflora atitudes distintas em cada mulher, e que essas são afetadas pelas condições econômicas e sociodemográficas das gestantes. Este trabalho teve preocupações parecidas com os referenciados acima, buscando dar conta da experiência de mulheres que sofreram a interrupção da gravidez e cujo parto foi o de um natimorto, atendidas em uma Unidade de Saúde, de cuja equipe fazíamos parte como membros de um programa de residência multidisciplinar. Ele teve como objetivo geral compreender a vivência da perda fetal e as manifestações de luto nas gestantes; o que nos levou a delinear outros auxiliares, como investigar os sentidos da perda fetal para as mães que vivenciaram essa experiência, identificar as principais emoções presentes nas mães geradas pela

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perda de um filho e por fim, a ocorrência de luto normal ou complicado. Método O presente trabalho é um estudo qualitativo, de caráter exploratório e foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Uberlândia. Foi realizado no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia. Do levantamento realizado no Setor de Informações hospitalares, foram identificados 63 prontuários de mulheres com quadro clínico de óbito fetal no período de janeiro de 2009 a janeiro de 2010. Dessas, apenas quatro aceitaram participar do estudo. As colaboradoras Quatro gestantes, contatadas via busca ativa após consulta aos prontuários constituíram o grupo de colaboradoras deste estudo, pois se encaixaram nos critérios de inclusão, ou seja, há aproximadamente um ano atrás apresentaram um quadro clínico de óbito fetal. Elas foram apelidadas com o nome de pedras preciosas, com o intuito de preservar suas identidades. São elas: Ágata, de 26 anos, cujo bebê tinha 31 semanas de idade gestacional e mantinha uma relação homoafetiva, apresentando dois casos de filhos natimortos. Cristal, de 44 anos, perdeu seu bebê de 21 semanas, que seria seu segundo filho. Mantém um relacionamento estável. Rubi, de 19 anos, perdeu seu primeiro bebê com 34 semanas de gestação e é solteira. E por último, Safira, de 27 anos e que perdeu seu bebê de 39 semanas de gestação. É casada e

tem dois filhos vivos. As participantes tinham em média 30 semanas de idade gestacional , 2,25 gestações e 0,75 partos de nascidos vivos. Procedimento para coleta de dados e Instrumento O método de coleta de dados foi dividido em três etapas. A primeira consistiu no levantamento documental e estatístico de mulheres em idade reprodutiva que passaram pelo hospital há aproximadamente um ano com quadro clínico de óbito fetal; A segunda etapa foi o contato por telefone com aquelas selecionadas por meio dos prontuários; e terceira etapa consistiu em entrevistas das colaboradoras que aceitaram participar. A escolha das entrevistas deu-se pelo fato de elas serem um instrumento de investigação científica de largo uso em pesquisas sociais, psicológicas e em educação. Elas tiveram duração em torno de uma hora, foram semi-estruturadas com base em um roteiro que incluiu os temas: vivência da situação, sentimentos, expectativas em relação ao filho, mudanças produzidas na vida e situação de saúde após a perda, atribuição de causa sobre a perda e a procura de auxílio profissional a após a perda e aconteceram em um consultório do hospital de clínicas e na residência da participante Procedimento de análise das entrevistas A análise das entrevistas foi feita pelos autores. No processo foram transcritas, submetidas à leitura intensiva para assimilação e apropriação do discurso

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realizado e a identificação de frases e conteúdos que pudessem nos levar às categorias, as quais foram propostas após o aglutinamento de trechos a partir da semelhança e repetição de frases e/ou conteúdos, o que nos levou a inferir um determinado tema catalisador e a defini-lo. Nesse processo utilizaram-se tabelas no Microsoft Word, com uso de três colunas, sendo que na primeira alocava-se o texto original da entrevista, na segunda o fragmento selecionado e na terceira as observações dos pesquisadores, ligadas ao tema identificado, sua relação com os objetivos da pesquisa e observações relativas à literatura. O discurso das entrevistadas foi editado, sem alteração de seu conteúdo, para tornar compreensível na escrita, algo que foi proferido oralmente. Foi utilizada nesse processo a análise de discurso, em uma apropriação própria dos autores, na qual se buscou nas afirmações os recursos subjetivos para lidar com a perda e os sentidos inconscientes desses, ou seja, a partir das respostas das entrevistadas foram identificados os fatores presentes na elaboração da perda do natimorto. Nesse procedimento, orientou-se pelas construções da teoria psicanalítica. Apresentação, Análise e Discussão dos e Resultados A Análise das entrevistas permitiu a construção de quatro categorias: Negação, Perda, com as subcategorias perda física, perda o ideal de maternidade, perda da possibilidade de satisfazer o outro e sofrimento com a perda; Representações, expectativas e idealizações e Elaboração

da Perda. Uma breve descrição das categorias e subcategorias é apresentada antes do material analisado. Negação A categoria negação remete ao mecanismo de defesa utilizado para preservação do ego diante de um evento traumático. A negação foi encontrada nas falas das participantes a partir de sentenças que mostram a recusa em abordar o assunto, que é o recurso encontrado para não sofrer e também para não tornar público o sofrimento. A negação, segundo Freud (1916) é um processo pelo qual o inconscientemente não quer tomar conhecimento de algum desejo, fantasia, pensamento ou sentimento. Ele pode se manifestar de formas diferentes para finalidades especifica para o sujeito. No caso das mulheres que vivenciaram o óbito fetal, o processo tem o sentido de evitar os sentimentos gerados pela perda. Entretanto, no chamado curso consistente do luto, há uma fase inicial de choque e descrença, na qual a pessoa tenta negar a perda e tenta se isolar contra o choque da realidade, como se observa em Safira: “Ela falou que a neném estava morta, mas para mim ela estava enganada, porque eu sentia a bebê mexer, mas não era a bebê, era o meu corpo que a estava expulsando. Eu fiquei surpresa e vendo que ela não estava enganada, para mim o neném estava vivo” (Safira). Em Safira a negação se dá pela recusa do diagnóstico médico, ao que ela contrapõe os movimentos que observa em seu corpo, atribuindo-os a movimentação normal dos bebês. Aceitar a realidade

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apresentada pelo profissional que a assiste, é obrigar-se a reconhecer uma perda, naquele momento intolerável. No caso de Rubi, a negação se processa com a fuga do estado de vigília, no qual a ausência real a impede de negar a perda. Ela afirmou: “Durmo muito para não ver o que estou vivendo, prefiro guardar comigo” (Rubi). A negação faz parte do processo de perda. A elaboração a admite em um primeiro momento, mas quando essa negação é exacerbada, com duração muito longa e características obsessivas, como parece ser o caso de Rubi, sugere um processo patológico com luto do tipo complicado. Quando consideramos as discussões da Psicanálise a propósito dos mecanismos de defesa, entendemos o uso da negação não suprime a angústia suscitada pela perda, ainda que aparentemente garanta algum bem estar, em um primeiro e inevitável momento. No caso de Rubi, percebe-se que essa forma de se defender vai delineando um processo de luto que caminha para além do esperado. Aparentemente Safira assimilou melhor a perda. Perda A categoria denominada “Perda” remete a vários tipos de perdas. Distinguimos dois tipos de perda: as reais e subjetivas. Desse modo essa categoria expõe a singularidade e particularidade de cada participante diante do óbito fetal, o que implicou em quatro subcategorias as quais denominamos: a) perda física, b) perda do ideal de maternidade, c) perda da possibilidade de satisfazer o outro e d) reações a perda. a) Perda Física

Essa subcategoria trata da perda concreta do bebê em gestação, do útero, da saúde física etc. A perda concreta do bebe foi encontrado em todas as participantes do estudo, uma vez que o feto morreu. A perda do útero foi encontrada em Rubi com quem houve complicações no parto e foi necessário realizar uma histerectomia total. Já a perda da saúde foi encontrada em Cristal que, decorridos dois anos, ainda apresenta complicações no útero. Além disso, todas apresentaram uma infecção urinária após a perda. As falas de Cristal: “O método que eles usaram, eles acabaram com meu útero” e a de Rubi: “Acabou tudo, mais pela perda dela do que do útero, eu queria muito ela.” são elucidativas e mesmo que Rubi hierarquize, o fato é que teve duas perdas físicas. b) Perda do ideal de maternidade Essa subcategoria remete ao ideal de maternidade que a sociedade atribui às mulheres. No caso de nossas colaboradoras isso foi interrompido de forma abrupta junto com a gravidez, sendo um golpe para auto-estima de cada uma, marcada desde então por sentimentos de fracasso, incapacidade e inferioridade e pelo abalo em sua feminilidade. A perda constatada é a impossibilidade de construírem mulher sendo mães. A contenção química não suprimiu esse sentimento em Safira: “Me deram um relaxante e eu fiquei bem calma. “O que me marcou é que eu ouvia um bebê chorando com fome e meu peito estava cheio para o meu bebê que havia morrido” (Safira). Ela constata a

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inutilidade do leite gerado em seu peito durante a gravidez, e com isso, seu não lugar de mãe. Com Ágata, o que rui são suas fantasias de uma mãe idealizada: “ah eu pensava em ser a melhor mãe;, em mandar ele passar férias na avó dele. “Em sete meses eu fiz ultrassom umas 15 vezes para vê-l..., minha mãe ligava todo dia para saber como ele estava” (Ágata). A representação de mãe que cada uma das colaboradas têm aparece em sentimentos ligados a ações agora impossíveis: alimentar o filho no peito, propiciar bem estar e felicidade, compartilhada com a família, provavelmente da qual se esperava um reconhecimento pela completude alcançada na maternidade. Pensando com Bartilotti (1998), as repercussões emocionais pelo óbito do bebê são agravadas por uma sobreposição de perdas, que atingem a própria mulher, privada do lugar de mãe. c) Perda da possibilidade de satisfazer o outro Nesta categoria foi constatado que algumas participantes atribuíam à gravidez a função principal de atender a alguma demanda de outro. A criança natimorto era considerada pelas mães como um meio de trazer ou assegurar a presença de um parceiro amoroso, sendo que a sua principal significação não era a de um filho, mas a garantia que oferecia de um relacionamento. Essa perda subjetiva, da condição de satisfazer o outro ou a suposição dela, é causa principal do sofrimento. Observa-se aqui, a partir das considerações de Lacan (1953), que a preciosidade do bebê natimorto ia além de

seu significado humano, atingindo a condição de objeto de barganha, uma espécie de dote em um enovelamento afetivo. Particularmente no caso de Ágata, envolvida em relacionamento homoafetivo, e que havia prometido a sua parceira o filho perdido; projeto do qual não declinou nem diante da morte do bebê, como se percebe na sua afirmação: “Hoje mesmo a menina esta lá esperando, eu falei que depois que eu viesse aqui conversar com você daria a resposta a ela se teria um filho ou não” (Ágata). Esse tipo de perda também acontece com Cristal que tinha um relacionamento estável e via no bebê a possibilidade de ter um relacionamento mais formal com seu companheiro, uma vez que com o nascimento eles iriam morar na mesma casa, consumando o casamento. Com a perda, ela não pode mais realizar esse desejo como se percebe em sua fala: “No dia em descobriu que ela tinha problema ele falou para mim que não queria; ai que ela não mexeu mais mesmo. Não tive felicidade porque ele não queria (Cristal). No caso de Safira, mãe de um filho de outro relacionamento e com uma relação conjugal cheia de conflitos, o desejo era presentear o atual marido com um filho do sexo masculino e um dos sentidos da perda foi a impossibilidade de realizar isso: “Eu sabia que ele queria ter outro filho, a gente ia tentar um menino, ai eu tava sem tomar remédio e engravidei, foi uma gravidez muito triste, a gente até pensava em separar, teve alguns atritos sabe, daí foi uma coisa que uniu a gente mais” (Safira). Há que se destacar que no caso de Safira atribuía-se ao bebê uma responsabilidade que ela por si não dava

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conta de realizar: a manutenção de um relacionamento e a sua morte além de frustrar essa expectativa, colocava os conflitos matrimoniais em primeiro plano, ao mesmo tempo a desvalorizando como mulher capaz de geral um menino. Nos três casos, o papel das crianças é de moeda de troca, investida de um valor que as extrapola e expõe um dos sentidos que elas têm para suas genitoras. A se considerar Lacan (1953), a inscrição imaginária desses bebês natimorto negavalhe, no mínimo, uma mãe suficientemente boa, segundo a expressão clássica de Winnicott (1948), e reserva-lhes o lugar de objeto fálico que deveria suprir de faltas de seus pais, que jamais preencheriam, obviamente, com grandes possibilidades de comprometimento subjetivo caso nascidos vivos. d) Reações a perda Nesta subcategoria são apresentadas algumas das reações à perda de nossas entrevistadas diante do óbito fetal e os sentimentos que isso desencadeou: culpa, baixa estima, impotência, tristeza e processos de adoecimento. Expressam sentimentos e reações confusas, que de certa forma marcam o momento em que se toma consciência do que aconteceu, ou como se diz popularmente, em que se cai a ficha. Em Rubi, o sofrimento pela perda do filho se potencializa com a descoberta e constatação de que não poderá gerar outro filho novamente: “Minha reação foi dois dias depois, quando me dei conta de que não poderia ter mais filho por ter retirado o útero. Na hora eu quis morrer” (Rubi). A reação de Cristal evoca a própria morte

e o sentimento de ser culpada pelo acontecido. “A primeira coisa que quis foi me enfiar na frente de um carro. Eu saí de lá desesperada, chorava demais”. Ou como mostra esse outro trecho de sua entrevista, rememorando a visão da filha morta: “Eu me lembro de me mostrarem ela em uma toalha, pequenininha, olhando em mim com um olhinho triste como se ela tivesse me condenando sabe? Ai eu pensei, será que foi alguma coisa minha que fez ela morrer” (Cristal). Cabe observar que a reação das mães tem obviamente relação com a própria subjetividade de cada uma, com os recursos que adquiriram ao longo de sua vida para lidar com as perdas, como aponta Kovács (1997), mas é inegável que o sentido atribuído à criança e às consequências que tem a perda, tanto a subjetivamente como objetivamente, afetam a qualidade e intensidade da reação. Cremos que há muito mais coisas em questão além da perda do filho. Representação, expectativas e idealizações Esta categoria alude às representações, expectativas e idealizações que as mães fazem dos seus filhos. Como mostra a Psicanálise, o bebê se inscreve imaginariamente como tentativa de restabelecer a ilusão de completude vivenciada pela mãe. O bebê tem um nome, na fantasia da mãe sua imagem é perfeita e ganhará formas pelas palavras, que significam e dão sentido à sua presença como objeto de amor antes mesmo de nascer. Essa existência simbólica antes do nascimento é prenha de significações e produz efeitos sobre a mãe.

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Além disso, pode-se perceber investido na criança o desejo de que ela seja o que a mãe foi, ou mesmo de continuidade de sua existência. Os filhos natimortos de nossas colaboradoras também eram assim. Cristal dava a filha natimorta um sentido infantil, quase como o de um brinquedo natalino: “Ela seria uma arvorezinha de natal, ela seria minha parceirinha. Eu fico pensando nela ruivinha, olhinhos azuis, branquinha. Ia ser uma bonequinha que eu sempre quis...” Rubi advoga para si o lugar de cuidadora, o que de certa forma a promoveria como mãe amorosa, pelos cuidados antecipados preparados para a filha: “Eu já tinha berço, carrinho, cotonete, perfume, fralda, tudo que uma criança precisa e o que mais tinha era amor” (Rubi). Elaboração da Perda Essa categoria foi denominada elaboração da perda porque, se o estado de luto se dá de forma saudável, a perda esta sendo elaborada. Ao contrário, quando se trata de luto patológico as reações exacerbadas estão presentes na mulher. Relembramos, com Freitas (2000), que o luto que segue um curso denominado normal é quanto o impacto da perda pode ser diminuído em um breve espaço de tempo, pela formação de novos vínculos substitutivos, de investimentos produtivos em novas atividades e da aceitação do apoio social. Já no patológico, o vínculo permanece intenso com uma pessoa que, não estando mais viva, não permitirá à pessoa enlutada a vitalização necessária para a sua manutenção saudável, abrindo campo para reações como negação,

ambivalência, distorção e permanência no passado, que levam ao desequilíbrio pessoal e à doença. Segundo Freud (1916), essa perda deverá ser elaborada num nível simbólico e no desfecho, ocorrerá a ligação do afeto do sujeito a outro objeto de amor. Ágata, segundo seu relato, retomou a vida e projetos antigos: “Sou apaixonada em moto, se Deus quiser no final do ano eu vou adquirir a minha. Assim eu continuo, quero uma casa nessa cidade, eu odeio essa cidade, mas eu quero uma casa e ter um filho aqui”. Cristal, por sua vez, absorveu a perda valorizando o que tinha e dirigindo sua energia para sua filha viva: “Deus tirou uma, mas já tinha outro que precisava de mim”. Por outro lado, sem negar o sofrimento, vai deixando-se afetar pela dor que a perda causa, mostrando a compreensão de que se trata de um processo normal: “Não senti necessidade de falar, sofri algumas vezes, chorei, mas acho que foi sofrimento normal de um ser humano qualquer, eu não consigo chorar, fica um choro assim entalado...” Segundo Freitas (2000) existem no processo de elaboração do luto reações consideradas normais, como os sentimentos de tristeza, inibição e falta de interesse. Mas essa inibição e falta de interesse explica-se em razão do trabalho psíquico que o luto exige ao ego. Nas entrevistas com Safira, Cristal e Ágata encontramos momentos de inibição e falta de interesse, mas também foi possível identificar aspectos saudáveis do luto, uma vez que elas demonstram que estão conseguindo investir afetivamente em outros aspectos da vida.

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A experiência de Rubi se deu por outras vias. Ela assumiu uma postura equivocamente heróica, de quem considera que superar é não tocar no tema, mas dar conta do sofrimento sozinha, como se isso demonstrasse força e no que exclui o outro como interlocutor para elaborar a dor: “Eu prefiro não falar, prefiro guardar tudo pra mim. Pergunta para minha mãe, eu gosto de só eu carregar isso”. Obviamente, como demonstra a literatura, isso tem um preço que é cobrado em mal estar psíquico, em um estado que sugere um humor rebaixado, quase deprimido: “Depois que eu a perdi não tenho animo pra mais nada, eu saio de vez em quando, vou para as festas, mas não era como antes, a minha vontade é só dormir”. Sem a pretensão de qualificar o luto de Rubi de complicado, lembramos que nesse, já chamado de melancolia por Freud, o próprio ego é descrito como indigno de estima, incapaz de produzir, e moralmente condenado pelo doente, como lembra Freitas (2000). Observa-se no caso de Rubi algumas características do luto patológico, já que as reações do luto normal estão presentes, porém de forma intensa durante muito tempo, gerando características obsessivas e o aparecimento de doenças. No caso de Rubi essas características acentuam-se pela presença de sua mãe, também envolvida emocionalmente na gravidez e enlutada, de tal forma que cabe questionar se o luto de Rubi não toma um curso normal em função de sua mãe que não lhe permite um espaço psicológico para elaborar a sua perda, real ou subjetiva, cobrando-lhe um sofrimento além daquele causado pela perda.

Provavelmente isso pode ser uma das causas de sua recusa a comentar a própria dor. Sua mãe, segundo seu relato, faz questão de ampliar a dimensão da perda, atribuindo esse sentimento inclusive a outras pessoas. Assim, afirmar que o luto de Rubi é complicado é temerário, apesar de ser necessário chamar atenção para a presença de outro que insiste no sofrimento, apropriando-se dele e exigindo reciprocidade de quem teve a perda real do feto, como se isso mantivesse a existência da criança perdida e como se isso fizesse a mãe ‘fracassada’ repará-la pela perda. Parece-nos, pelo relato de Rubi, que sustentar esse estado significa para a sua mãe puni-la por fracassar na geração do neto. Essa constatação nos parece bastante relevante, na medida em que amplia a dimensão do luto, que mais que as pessoas diretamente afetadas pela perda atinge também outras pessoas, implicadas em complexa rede de relações que aumenta a dimensão social da questão. Obviamente, os serviços de saúde devem se preocupar com essas pessoas também. Conclusões Uma primeira constatação merece primazia: apesar do grande arsenal para o cuidado do feto percebe-se que o número de óbitos fetais no local investigado, 234 casos no espaço de cinco anos, ainda é grande, o que implica na necessidade de considerar as condições psicológicas da gestante na gravidez interrompida nos programas voltados à saúde maternoinfantil. Mesmo diante da impossibilidade de generalizar os dados de um estudo

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exploratórios, com quatro casos, cabe apontar que todas nossas colaboradoras, de alguma forma, demonstraram um afetar-se pela perda, que mais que elas próprias repercutiram em suas vidas familiares. Em relação ao nosso objetivo principal, entendemos que a experiência de cada uma das mães que entrevistamos, no processo de elaboração do luto pela perda fetal assume aspectos singulares, que mais que o sofrimento pela perda do filho, afeta a vida como um todo, o que inclui a própria saúde, projetos e outras pessoas ligadas à rede afetiva das gestantes. Assim, a experiência de cada uma das mães perpassa o sentido que tinha a criança morta, para a mãe, para esse entorno social e a função e papel simbólicos a ela atribuídos ainda antes do nascimento. As reações incluem alterações emocionais, como o constristamento, esperadas em qualquer processo de luto, mas que de modo geral coadunam com a experiência anterior de cada uma das colaboradoras, o que dá ao luto de cada uma um sentido próximo ao esperado em seu entorno social. Assim, consideramos que o sentido da perda somente pode ser levado em conta partir dos significados e desejo presentes no processo de gestação da criança. Em outras palavras, se há um ideal de maternidade presente, ele não se manifestou em nossas entrevistadas senão a partir de significações bem objetivas atribuídas por elas a esses filhos: completar-se como mulher, sustentar relações conjugais comprometidas e provar a possibilidade de ser mãe. Enfim, nenhuma delas cumpria cegamente o propósito de maternidade, mas atribuíam a

esse filho perdido um lugar concreto, de alguém que vai se inserir na vida tal como ela transcorre, ainda quando considerados um objeto de barganha. Nas mães que vivenciaram essa experiência e foram por nós entrevistadas, nota-se que a perda subjetiva predomina, mesmo diante de perdas concretas, como as físicas. No caso da perda do útero, essa se insere no realce ou estabelecimento do sentimento de incompletude das mulheres. Assim há uma significativa perda subjetiva e essa altera o rumo da história de vida da mulher. A morte abrupta de um filho ‘esperado’ interrompeu não somente uma gestação, mas todo investimento que a mãe – e porque não dizer, o seu companheiro/companheira – tinham nesse bebê; como solução de seus problemas, alívio de suas angústias, faltas e perdas que não foram simbolizadas e desejos.. Característica do luto normal, as mães conseguiram investir sua libido em outros objetos após a perda, apesar da predominância da tristeza como ressalta Fonseca (2008). Apenas uma das entrevistadas permaneceu ligada subjetivamente ao bebê morto, como forma de manutenção do vínculo com sua mãe, o que confirma a literatura sobre o tema, que mostra que os processos de elaboração do luto seguem contornos particulares, como apontado por Ximenes Neto et all (2011). Não é possível, com os dados que dispomos, sustentar que esse caso aparentado a luto complicado se daria, não fora a idade da gestante e a presença da avó cobrando sofrimento. Sobre as emoções presentes nas colaboradoras, foi possível encontrar-las encobertas defensivamente pela negação e sob a forma que a perda foi representada.

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Com a possibilidade de identificação dos sentimentos, repercussões na saúde, qualidade de vida e estado psíquico da mãe, foi possível identificar meios para elaboração do luto saudável e mais adaptativo visando à saúde reprodutiva e psíquica da mulher. Quanto ao nosso último objetivo, identificar o tipo de luto que ocorre, afirmar que a perda de um filho natimorto gera luto normal ou complicado diante da análise de quatro casos é uma temeridade. Sem dados para afirmar, indicamos sob a forma de hipótese, que o filho natimorto pode gerar lutos de diferentes tipos e que esses, mais que o motivo que o causou, dependerá das condições psicossociais de que o sofre. Com nossas colaboradoras foi possível reconhecer fatores que sugerem a ocorrência de um caso de luto complicado, justamente na colaboradora mais jovem, de 19 anos e três processos normais. Obviamente, essa questão

demandará mais pesquisas, sendo às respostas a que chegamos insatisfatória. Cabe, no entanto, chamar atenção para a relação da idade, e a experiência de vida que se tem, com o tipo de luto que se desenvolve. Por fim, é importante ressaltar que nessa inversão no ciclo natural da vida, morrer antes de nascer, que se dá com a morte fetal, morre-se a possibilidade de viver, como continuação da existência. Interrompe-se também o curso seguido até então por uma vida, a da mãe. Não somente uma espera ou desejo, mas uma vida psíquica que se desorganiza diante das perdas. Pensando com Bartilotti (1998), quando afirma a morte da mãe, diante da perda de seu filho: se a criança que perde a mãe é chamada de órfão, e isso demonstra linguisticamente seu sofrimento, perguntamos: a mãe que perde um filho deve ser chamada de que?

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Os autores: Luiz Carlos Avelino da Sílva é psicólogo, mestre em Psicologia pela UnB, doutor em Psicologia pela USP e professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia. Av. Pará, 1720, Bairro Umuarama, CEP 38405-320 – Uberlândia – MG. E. mail: [email protected] Fábia Tunísia Alves Xavier é psicóloga graduada pela Universidade Federal de Uberlândia, com Residência Multiprofissional em Atenção em Urgência e Emergência e cursa Especialização em Psicoterapia Clínica. Rua Venôngero Cabral de Melo, 65. Roosevelt. CEP 38401-230, Uberlândia –MG

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA A QUESTÃO DA AUTENTICIDADE NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA DE ORIENTAÇÃO HUMANISTA A PARTIR DE CARL ROGERS Pedro Gonçalves de Lima Adriano Furtado Holanda (UFPR – Curitiba - PR) Resumo A autenticidade, uma das condições necessárias e suficientes apresentada por Carl Rogers, quando presente na relação entre terapeuta e cliente, faz com que exista um caráter facilitador do crescimento pessoal. A autenticidade como característica tanto do terapeuta como também do cliente, permite um desenrolar da terapia muito mais verdadeiro. A relação entre autenticidade e o relacionamento psicoterapêutico é bastante intrínseca e quando presente faz com que o processo terapêutico siga o caminho do desenvolvimento. Na relação que se estabelece entre cliente e terapeuta, as atitudes são as principais responsáveis pela modificação terapêutica, entendendo que são mais importantes que a própria orientação teórica do terapeuta. Palavras-chave: autenticidade; relação terapêutica; Carl Rogers

Abstract The Question of Autenticity in the Therapeutic Relationship of Humanist Orientation from Carl Rogers The authenticity, one of the necessary and sufficient conditions presented by Carl Rogers, when present in the relationship between therapist and client, provides a facilitation of personal growth. The authenticity, as a characteristic of both the therapist and client, also allows a course of therapy much more real. The relation between authenticity and the psychotherapeutic relationship is very intrinsic and when present makes the therapeutic process follow the path of development. On the relation established between client and therapist, the attitudes are the main reasons for treatment modification, understanding that are more important than the very theoretical orientation of the therapist. Keywords: authenticity; relationship therapy; Carl Rogers. Artigo Recebido em 04/10/2011 e Aprovado em 30/05/2012

Introdução A relação terapêutica pode ser compreendida de diversas maneiras, justamente por haver diversas abordagens teóricas no campo da Psicologia que se

dispõem a estudá-la. A opção deste trabalho foi por estudar a relação terapêutica pelo viés da abordagem humanista, a partir do pensamento de Carl Rogers, por se entender que se trata de uma abordagem que se fundamenta numa preocupação com o homem, no sentido de valorizar

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PEDRO GONÇALVES DE LIMA, ADRIANO FURTADO HOLANDA

sua existência e buscar sua essência naquilo que ele possui de mais intímo e particular: sua experiência, sua vivência (Holanda, 1998, p.41). Costuma-se denominar de abordagem “humanista” os modelos teóricos e técnicos surgidos entre os anos 1940 e 1960, nos Estados Unidos, e ligados a nomes tais como Abraham Maslow, Carl Rogers, dentre outros (Holanda, 1998; Oro, 1993; Schutz, 1969). Por ser um movimento cuja identidade se expressa por um “rompimento” em relação às duas grandes tendências da Psicologia de época – o Behaviorismo e a Psicanálise – passou a ser conhecido como “terceira força”, fazendo frente ao que julgava ser uma desumanização determinista da imagem do ser humano, derivada dessas abordagens (Castanõn, 2007). Mas esse movimento possui raízes no pensamento europeu, O movimento humanista começou com a chegada aos Estados Unidos de emigrados da Europa por causa da Segunda Guerra Mundial, que levaram às Universidades o pensamento de filósofos e psiquiatras, em geral alemães, conhecedores dos pensamentos de Husserl e Kierkegaard (...). (Oro, 1993, p.119120). A abordagem humanista da Psicologia surgiu da necessidade de ampliação da visão de homem que se tinha a partir da atuação da Psicanálise e do Behaviorismo, que – na visão da maioria dos autores do movimento – privilegiavam aspectos particulares em detrimento do todo ou, em outras palavras, tratavam de partes de um todo e não conseguiam alcançar uma visão de ser humano que o considerasse em sua

totalidade. O foco da abordagem humanista é o próprio indivíduo e a sua existência e é na relação terapêutica que se pode estudar e observar mais consideravelmente o ser humano, sua existência e seu processo de tornar-se, entendendo-o em sua totalidade e não através de pressupostos mecanicistas, reducionistas e deterministas (Holanda, 1998). Carl Rogers levou esta filosofia humanista a fundo, aplicando-a à psicoterapia, redefinindo o papel do terapeuta na relação (...). Ao reposicionar o terapeuta na relação com seu cliente, Rogers redimensiona o valor e o papel do ser humano nas relações humanas e na sociedade (Holanda, 1998, p. 47). Partindo-se do pensamento de Carl Rogers, entende-se que uma das questões mais importantes ao se pensar a relação terapêutica é a autenticidade, caracterizada pela expressão tirada de Kierkegaard: ‘ser o que realmente se é’. Trata-se de um estado de integração da pessoa, no qual, somente seu potencial se encontra mais plenamente liberado para atuar (Amatuzzi, 1989, p. 96). O termo autenticidade aparece ao longo de toda a obra de Rogers, como uma condição da terapia, ou seja, como elemento “necessário e suficiente” para a mudança da personalidade e crescimento do cliente e como elemento constitutivo do próprio desenvolvimento do sujeito, de maneira que crescimento e desenvolvimento ocorrem a partir de um modo autêntico de ser (Rogers, 1974, 1985; Rogers & Kinget, 1975). A autenticidade aponta para algo que está além de uma fachada, além daquilo que a pessoa deve ser ou daquilo que os outros

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esperam, e além daquilo que simplesmente agrada aos outros. É um ser não determinado pelas expectativas de papel ligadas a uma situação concreta, expectativa geralmente anônima e despersonalizante (Amatuzzi, 1989). Para tratarmos especificamente do tema “autenticidade” na relação terapêutica de orientação humanista, estaremos nos centrando na perspectiva de Carl Rogers, lançando mão ainda de comentadores como Amatuzzi (1989), Castanõn (2007), Gobbi, Holanda, Justo e Missel, (2005), Holanda (1998), Messias e Cury (2006), Oro (1993), Schultz (1969) e Yalom (2002, 2007). A escolha desses autores se deu pelo fato de possuírem pensamentos que contribuem com o objetivo do trabalho e que vão ao encontro das idéias de Rogers acerca da relação terapêutica e da autenticidade, sendo utilizados, ao longo do trabalho, de maneira a complementar as idéias desenvolvidas. A intenção desse trabalho foi a de realizar uma reflexão deste tema tão importante para a prática do psicólogo, tanto na atuação clínica individual, como com grupos terapêuticos e oferecer uma reflexão teórica para estudantes de psicologia. A relação terapêutica para Carl Rogers Em qualquer orientação psicoterapêutica, segundo Rogers (1974), presta-se ajuda aos indivíduos, o que gera mudanças: O comportamento modifica-se, muitas vezes na linha de uma mais perfeita adaptação. A personalidade parece diferente tanto para os próprios como para quem os conhece (p.137).

Rogers e Kinget (1975) enunciam características da relação terapêutica e destacam que o terapeuta deve ser capaz de se empenhar em uma relação profundamente pessoal com o cliente; que o cliente seja tratado como um ser portador de valor incondicional qualquer que seja o estado, o comportamento ou as atitudes dele; que o terapeuta esteja e se mostre disponível ao cliente; que nenhum obstáculo interior impeça o terapeuta de participar das experiências do cliente; que o terapeuta seja capaz de confiar plenamente nas forças de crescimento do cliente, que tenha confiança nessas forças mesmo sem poder prever as direções que elas seguem, contentando-se em criar um clima suscetível para que elas se manifestem, permitindo ao cliente ser ele mesmo. Por mais diferentes e singulares que possam ser as relações interpessoais, elas partilham de certos aspectos fundamentais que formam uma estrutura característica e apresentam certas qualidades afetivas específicas, cuja variedade dá à relação sua singularidade. A estrutura define a relação em termos de seu objeto e de sua finalidade e também os papéis das partes envolvidas. Por mais que, a princípio, a estrutura da relação seja vista como independente das qualidades que a compõem, existem relações em que seu estabelecimento e sua continuação dependem da natureza dessas qualidades, onde, por mais adequada que seja a estrutura, se a qualidade não for sentida como positiva a relação deixa de existir (Rogers & Kinget, 1975). Rogers e Kinget (1975) entendem que a relação terapêutica se encontra nessa categoria, sendo um tipo de relação em que a significação e os efeitos são

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determinados por certas qualidades, ou verdadeiramente terapêuticas, ou simplesmente sentidas como agradáveis e estimulantes (p. 120). As qualidades são atributos essenciais da relação terapêutica, tal como a entende o “rogeriano”, sendo possível identificar quatro principais: respeito, tolerância, compreensão e aceitação. O respeito se apresenta como gratuito e incondicional, e se fundamenta sobre o fato de que o cliente é um ser único, portador de uma experiência única, e pelo fato de que o cliente se apresenta comprometido com o processo de melhora e cuidado do eu, revelando-se como alguém que escolhe verdadeiramente superar seu estado atual. A tolerância também é incondicional, no sentido que se estende a tudo que o cliente acredita ser necessário falar, podendo se tratar de confidências importantes ou coisas aparentemente banais. Quando o cliente descobre que pode se mostrar da maneira que sente sem que o terapeuta manifeste um tipo de julgamento, ele tem condições de se sentir mais à vontade na relação. A compreensão, mais delimitadamente chamada de compreensão empática, é de um esforço por compreender os dados fornecidos pelo cliente da maneira como o próprio cliente os compreende. A compreensão proporciona ao cliente um aprendizado sobre a verificação de suas percepções e possíveis correções destas. A aceitação pode ser entendida como uma atitude de acolhimento, onde o terapeuta considera não somente o material positivo e negativo, como também a configuração particular que este material apresenta no momento (Rogers & Kinget, 1975). Há uma tendência do paciente a iniciar a terapia olhando para si de maneira mais

crítica e julgando-se segundo padrões estabelecidos por outras pessoas. O paciente toma para si um ideal, mas considera-o muito diferente do que sente que é. De um ponto de vista emocional, o equilíbrio dos sentimentos pende para o lado negativo. Com a continuação da terapia, vivencia muitas vezes contradições em relação a si mesmo e à medida que as explora, torna-se mais realista na percepção de si e mais capaz de se aceitar. À medida que estas alterações ocorrem, o paciente sente-se mais espontâneo e faz a experiência de si como de uma pessoa mais real e mais unificada (Rogers, 1974). Segundo Rogers (2009), quando o processo terapêutico segue uma linha de crescimento e desenvolvimento é possível notar que as pessoas têm uma orientação positiva, que as pessoas trazem dentro de si a capacidade e a tendência para caminhar rumo a essa direção, descrita como positiva e construtiva, tendente à auto-realização e ao crescimento, progredindo para a maturidade. É uma tendência da qual toda psicoterapia depende, se constituindo como “mola principal da vida” (p. 40). Quanto à qualidade afetiva da relação, o bom resultado em psicoterapia está ligado à simpatia e ao respeito crescente entre cliente e terapeuta. As atitudes e sentimentos do terapeuta são mais importantes do que a sua orientação teórica, do que os procedimentos e técnicas que utiliza, e são as principais responsáveis pela mudança terapêutica (Rogers, 2009). Em sua atuação como terapeuta, Rogers centrava-se mais na vivência das duas pessoas ao interagirem na relação terapêutica do que no conteúdo verbal discutido, vivência que ocorre num presente imediato, num aqui e agora. O

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questionamento se dá no como ele experiencia. Sentimentos passados, fatos, vivências, idéias, situações, ou seja, qualquer coisa que o cliente venha a referir como conteúdo, tem pouca importância diante da experienciação presente, imediata. Focaliza-se o processo intersubjetivo e não a problemática discutida (Messias & Cury, 2006). Quando se aceita o cliente como algo definido, já diagnosticado e classificado, contribui-se para confirmar uma hipótese limitada, porém quando se aceita o outro como num processo de tornar-se quem realmente é está se contribuindo para confirmar ou tornar reais as potencialidades dele (Rogers, 2009). As condições para o processo terapêutico Rogers parte de alguns pressupostos importantes para destacar o processo psicoterapêutico. Preliminarmente, parte da idéia que o cliente é fundamentalmente responsável por si mesmo, além de uma confiança numa tendência ao desenvolvimento, o que delimita a necessidade de se criar um “clima” ou “atmosfera” facilitadores que permita ao paciente a vivência e expressão de si próprio (Rogers, 1946). Rogers parte da idéia que, se o cliente experienciar essas condições, ele poderá expressar atitudes, pensamentos, reações e sentimentos de forma mais plena, de modo mais consciente e mais responsável, adquirindo condições de apreensão mais clara de sua própria realidade, e terá mais condições de traçar metas e objetivos (Rogers, 1946). Basicamente, a razão para a previsibilidade do processo terapêutico está na descoberta – e uso esta palavra

intencionalmente – de que no interior do cliente residem forças construtivas cujo poder e uniformidade não têm sido reconhecidos inteiramente, como também têm sido bastante subestimados. É a nítida e disciplinada confiança do terapeuta nessas forças internas do cliente que parece explicar a ordenação do processo terapêutico, bem como sua consistência de um cliente para outro (Rogers, 1946, p. 417). Para Rogers (2007), as pessoas possuem dentro de si vastos recursos para a autocompreensão e para modificação de conceitos, atitudes e comportamentos próprios. Esses recursos podem ser ativados dentro do processo terapêutico se houver um clima de atitudes psicológicas facilitadoras por parte do terapeuta. Há três condições que devem estar presentes para que se crie um clima facilitador de crescimento. A primeira condição é a presença da “autenticidade”. Quanto mais o terapeuta for ele mesmo na relação com o outro, removendo barreiras profissionais e pessoais, vivendo abertamente os sentimentos e atitudes que fluem nele no momento, maior será a probabilidade de que o cliente mude e cresça de maneira construtiva. O cliente tem condições de ver claramente o que o terapeuta é na relação e não se defronta com qualquer resistência por parte dele (Rogers, 2007). É uma condição que envolve disposição para ser e expressar nas próprias palavras e comportamentos os vários sentimentos e atitudes que existem em si, sendo extremamente importante ser real (Rogers, 2009). Nas palavras de Rogers, a autenticidade – que também aparece em sua obra como “congruência” ou como “acordo

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interno” – seria uma condição que estabeleceria como: (...) o terapeuta deveria ser, nos limites desta relação, uma pessoa integrada, genuína e congruente. Isto significa que, na relação, ele está sendo livre e profundamente ele mesmo, com sua experiência real precisamente representada em sua conscientização de si mesmo. É o oposto de apresentar uma ‘fachada’, quer ele tenha ou não conhecimento disto (Rogers, 1957, p. 161). A segunda condição é o que Rogers chama de “consideração positiva incondicional”. Ela ocorre quando o terapeuta tem uma atitude positiva em relação ao que quer que o cliente seja no momento. O terapeuta tem uma consideração integral, positiva e não condicional pelo cliente (Rogers, 2007): [o terapeuta] deseja que o cliente expresse o sentimento que está ocorrendo no momento, qualquer que ele seja – confusão, ressentimento, medo, raiva, coragem, amor ou orgulho (...). O terapeuta tem uma consideração integral e não condicional pelo cliente (p. 39). A terceira condição é uma “compreensão empática”. Com ela, o terapeuta capta com precisão os sentimentos e significados pessoais da vivência do cliente e comunica a ele essa compreensão. O terapeuta pode ser capaz de esclarecer tanto aquilo que está consciente como também aquilo que se encontra abaixo do nível da consciência. (Rogers, 2007). É a capacidade de se imergir no mundo subjetivo do outro e de participar da sua experiência, na extensão em que a

comunicação verbal ou não-verbal o permite. É a capacidade de se colocar verdadeiramente no lugar do outro, de ver o mundo como ele o vê (Rogers & Kinget, 1975, p. 104). O clima sustentado por essas três condições desenvolve uma atitude de maior consideração das pessoas em relação a si mesmas. Quando as pessoas são ouvidas de modo empático, são capazes de um ouvir mais cuidadoso do fluxo das próprias experiências internas. E à medida que uma pessoa compreende e considera o seu eu, ela cria condições de lidar com suas próprias experiências de modo mais autêntico, tornando-se uma pessoa mais verdadeira (Rogers, 1983). Como aponta Rogers (2009): Quanto mais o cliente percebe o terapeuta como uma pessoa verdadeira e autêntica, capaz de empatia, tendo para com ele uma consideração incondicional, mais ele se afastará de um modo de funcionamento estático, fixo, insensível e impessoal, e se encaminhará no sentido de um funcionamento marcado por uma experiência fluida, em mudança e plenamente receptiva dos sentimentos pessoais diferenciados. A consequência desse movimento é uma alteração na personalidade e no comportamento no sentido da saúde e da maturidade psíquicas e de relações mais realistas para com o eu, os outros e o mundo circundante (p.77). Mesmo entendendo que as três condições são de extrema importância e que muito ainda pode ser discutido sobre elas, o presente trabalho tem como foco o primeiro aspecto: a autenticidade. Entende-se que os

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outros dois elementos são permeados por este e que não é por acaso que Rogers enuncia em suas obras a autenticidade antes das outras condições. A aceitação incondicional e a compreensão empática são permeadas pela autenticidade pelo fato de precisarem ser vivenciadas e transmitidas ao cliente, o que, se for feito de modo não autêntico, poderá prejudicar o processo terapêutico. Mesmo sendo apresentadas as condições terapêuticas de maneira generalizada, entendemos que cada cliente vivencia a relação de modo singular, tornando desnecessário e inútil uma manipulação das condições e da relação a fim de adaptá-las a diferentes indivíduos, o que somente prejudica o caráter autêntico da relação. O caráter mais importante e precioso da relação é que ela representa uma relação autêntica entre duas pessoas, em que cada uma se esforça, do melhor modo possível, em ser ‘ela mesma’ em sua interação com a outra (Rogers & Kinget, 1975, p. 183). É sobre o cliente que recai a tarefa de dirigir a exploração do eu e de propor as interpretações dos materiais descobertos, de modo que a significação da experiência acontece com freqüência no decorrer do processo, podendo o cliente modificar muitas vezes sua interpretação de dada experiência (Rogers e Kinget, 1975). É o próprio cliente que sabe aquilo de que sofre, qual a direção a tomar e quais problemas são cruciais, portanto, o melhor é deixar ao cliente a direção do movimento do processo terapêutico (Rogers, 2009). Na realidade, uma das principais contribuições de Rogers ao campo da psicoterapia, foi o fato de ter empoderado (ou re-empoderado) o cliente no processo, recolocando-o numa

posição de autonomia e responsabilidade na condução de sua própria vida (Holanda, 1998). A autenticidade na relação terapêutica Yalom (2002) afirma que a psicoterapia é um processo criativo e espontâneo moldado pelo estilo único de cada teoria e que é personalizado para cada paciente. Apropriamos-nos de alguns textos de Irvin Yalom, tanto por suas contribuições em relação ao tema aqui tratado, quanto pelo fato do próprio Rogers ser citado em algumas de suas obras, quando fala da preocupação com o paciente e com a relação terapêutica. Rogers (1985/2009) aponta que a transformação pessoal é facilitada quando o psicoterapeuta é aquilo que é, quando as suas relações com o cliente são autênticas e sem máscara nem fachada, exprimindo abertamente os sentimentos e atitudes que nesse momento fluem nele (p. 71). Quando as relações com o cliente são autênticas, o terapeuta pode viver os sentimentos e atitudes que o preenchem, assumi-los e comunicá-los ao cliente se for o caso (Rogers, 2009). É importante que o terapeuta seja plenamente ele mesmo em sua interação com o cliente, sejam quais forem os sentimentos e pensamentos que experimente, e se o terapeuta verifica que seus sentimentos o preocupam ao ponto de se sentir incapaz de se concentrar no cliente, se faz importante a expressão destes sentimentos (Rogers & Kinget, 1975). Ser o que realmente se é” é poder ouvir a si mesmo e aceitar-se e é essa aceitação de si mesmo que torna as relações mais reais e mais autênticas.

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Poder aceitar um sentimento ou um pensamento próprio torna mais plausível a aceitação dos pensamentos e sentimentos do outro, favorecendo o estabelecimento de relações autênticas. “É unicamente quando aceito essas atitudes como um fato, como uma parte de mim, que as minhas relações com as outras pessoas se tornam o que são e podem crescer e transformar-se com maior facilidade (Rogers, 2009, p. 21). Segundo Amatuzzi (1989), o ser humano surpreende-se sendo mais verdadeiro do que em um momento anterior ou, outras vezes, ‘sendo menos’ do que aquilo que realmente é. Rogers – em diálogo com Buber – afirma: “A pessoa pode estar expressando algo e de repente ser tocada por um significado de algo que vem de um lugar nele mesmo, o qual não reconhece. Em outras palavras, ele realmente é surpreendido por si próprio” (Rogers & Buber, 2008, p. 240). Rogers ainda aponta que quando uma mudança real ocorre na terapia em algum momento, ocorre porque houve um encontro real de pessoas no qual o momento foi experienciado da mesma forma dos dois lados (Rogers & Buber, 2008). Yalom (2007) comenta que quando se está com dificuldade de responder a um paciente, quando se está preso entre duas ou mais deliberações, dificilmente se estará cometendo um erro se expressar abertamente esse dilema com o paciente. Quanto mais autêntico for o terapeuta em uma relação, maior é a possibilidade de haver mudanças na personalidade do cliente. O que realmente se é e o que se sente servem de base para a relação terapêutica, para que então, como

consequência, o cliente possa vir a ser aquilo que é, mais abertamente e sem receio. É na relação com o outro que o cliente aprende a perceber quando vivencia seus comportamentos e sentimentos de um modo não autêntico, como sendo algo que não flui autenticamente, mas que na verdade constitui uma fachada, uma máscara, atrás da qual está se escondendo (Rogers, 2009). Um pensamento habitual sobre o modo autêntico de ser é de acreditar que ser o que realmente se é “significa ser mau, descontrolado e destrutivo” (Rogers, 2009, p. 201), sendo essa a concepção de quase todos os clientes recém chegados à psicoterapia. Porém, a vivência da relação terapêutica contraria esses receios e quanto mais o cliente for capaz de permitir que seus sentimentos fluam e existam nele, melhor estes se harmonizam (Rogers, 2009). A expressão ‘ser o que realmente se é’ também pode passar a impressão de que existe algo pronto e definido para se buscar e que aquilo que realmente se é precisa ser descoberto e não criado dentro de um novo modo de ser. Não se trata, porém, de uma identidade escondida que deve ser encontrada, mas sim de um outro modo de ser e de se relacionar, de um outro tipo de integração onde os elementos se relacionam de forma totalmente diferente (Amatuzzi, 1989). Rogers (2009) esboça algumas das tendências e direções tomadas pelos seus clientes no processo terapêutico. Observa em primeiro lugar que, de forma característica, o cliente demonstra uma tendência para se afastar do que ele não é, mesmo que não saiba para onde se encaminha, identificando fachadas com as quais ele esconde quem de fato ele é. Outra tendência do mesmo gênero apresentada

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pelo cliente é a de que ele se desvia de uma imagem que ele devia ser, construída de acordo com os outros e com aquilo que a cultura espera que ele seja, agindo de modo a se afastar daquilo que é esperado que ele faça e além do agradar os outros. De acordo com Yalom (2002), para o estabelecimento de uma relação autêntica entre terapeuta e cliente é essencial a revelação dos sentimentos do terapeuta para com o cliente no presente imediato. Porém, essa revelação não deve ser feita de modo indiscriminado, deve ser feita de acordo com o melhor interesse do cliente. É necessário descobrir uma maneira de transformar a percepção dos sentimentos em vantagem terapêutica. Qualquer atitude ou sentimento que se estiver vivenciando deve vir acompanhado por uma consciência desta atitude. Nesse momento se está sendo o que realmente se é e uma confiança é proporcionada aos outros a partir desse fator. Quando não ocorre essa vivência acompanhada da consciência da mesma, a comunicação se torna contraditória e confusa (Rogers, 2009). Quanto mais se conseguir ser autêntico na relação, mais útil esta será. Para isso deve-se estar consciente dos próprios sentimentos e não apresentar uma imagem externa que não condiga com o que realmente se pensa e acredita. Faz parte do ser autêntico uma disposição para ser e expressar, nas próprias palavras e nos comportamentos, os vários sentimentos e atitudes que existem dentro de si. Apresentando a realidade autêntica que está dentro de si, a outra pessoa pode então procurar pela sua própria realidade com êxito (Rogers, 2009). A proximidade no relacionamento terapêutico proporciona um porto seguro para os pacientes revelarem-se

a si próprios o mais inteiramente possível (Yalom, 2002). Segundo Rogers (2009), um princípio fundamental é poder confiar na própria experiência. É com essa “confiança no próprio organismo” (p. 133), que a pessoa descobre cada vez mais que pode confiar em si própria e que pode utilizar deste para, de modo autêntico, descobrir o comportamento mais satisfatório em determinada situação imediata. Entendemos a confiança na experiência como uma forma de experienciação, isto é, uma forma do indivíduo se relacionar com a própria experiência. Essa relação pode ser da maior qualidade (quando há confiança na experiência) ou de menor qualidade (quando não se confia na experiência) e de acordo com Messias e Cury (2006), quanto mais baixo o grau de experienciação, mais pobre é o contato da pessoa com a própria experiência subjetiva; quanto mais alto grau, maior a acessibilidade e capacidade de novas configurações (p. 357). Segundo Amatuzzi (1989), Rogers distingue uma experienciação plena e livre, que corresponde à autenticidade, de uma experienciação limitada e impedida de fluir. Essa experienciação não pode ser plena se não estiver assumida na totalidade integrada da pessoa, não pode ser total se o indivíduo não estiver desimpedido e sem barreiras para assumi-la. A autenticidade seria uma proximidade com “o que se passa dentro da pessoa”, como uma proximidade à experiência, sendo que experiência se refere a tudo que se passa com a pessoa em algum momento e que está potencialmente disponível à consciência. Porém, esse acesso à própria

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experiência não é simples e uma vez começado o processo, que é o próprio processo de busca da autenticidade, ele vai se revelando com uma inesperada e até inesgotável riqueza, mas que pode se apresentar como ameaçadora. Saber o que se passa dentro de si é uma tarefa para toda a vida e ninguém jamais está totalmente apto a entrar em contato sem dificuldade com o que acontece no cerne da própria experiência. Quando essa aproximação desencadeante da experiência se torna o modo de ser da pessoa, podemos dizer que ela passa a ser sua própria experiência, passa a ser aquilo que se passa com ela (Amatuzzi, 1989, p. 105). Outro princípio fundamental ao se pensar em relação terapêutica autêntica é a “abertura à experiência” (Rogers, 2009, p.130), que permite que o indivíduo se torne mais consciente de seus próprios sentimentos e atitudes, podendo vivê-los mais plenamente ao invés de tentar evitar que sejam percebidos ou disfarçá-los. O indivíduo, progressivamente, torna-se mais capaz de ouvir a si mesmo e de vivenciar o que se passa consigo, encontra-se mais aberto aos sentimentos como existem nele e é livre para tomar consciência deles. Tornase mais capaz de viver plenamente a experiência do seu organismo, ao invés de recusar-se a permitir que sejam percebidas. O indivíduo aberto à experiência, desprovido de atitudes defensivas, viveria cada momento da sua vida como novo, em uma tendênca crescente para viver plenamente cada momento. Ser o que verdadeiramente se é implica em uma tendência do cliente para viver numa relação aberta e amigável com sua

própria experiência, o que desemboca numa abertura e aceitação das outras pessoas. Na medida em que um cliente “se torna capaz de assumir sua própria experiência, caminha em direção à aceitação da experiência dos outros” (Rogers, 2009, p. 198). A busca da autenticidade é uma busca existencial, no sentido que envolve o ser todo e não uma parte dele apenas (Amatuzzi, 1989). Considerações finais Uma relação terapêutica autêntica viria a ser aquela em que – tanto o terapeuta quanto o cliente – buscam ser verdadeiramente aquela experiência que tem de si mesmos. Ambos estariam presentes no momento e dispostos a se relacionar da maneira mais verdadeira possível. Sentimentos de raiva ou de inveja, por exemplo, presentes na relação seriam abordados na própria relação de modo que o trabalho com essas questões contribui com o caráter autêntico da relação. A autenticidade como caráter da relação terapêutica aparece quando não há manipulação de fatores, informações ou sentimentos presentes na relação. Deve-se procurar ser o mais autêntico possível na relação, tanto o terapeuta quanto o cliente, tendo-se como intenção o crescimento pessoal e terapêutico. Para o terapeuta, o interesse do cliente tem de ser levado em conta na revelação dos seus sentimentos no momento imediato não devendo ser feita de maneira indiscriminada e sim de acordo com o melhor interesse do cliente. Essa relação terapêutica autêntica se caracteriza por desempenhar um papel importante no desenvolvimento e crescimento pessoal, “na libertação e no

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processo de facilitação da tendência do organismo para um desenvolvimento psicológico ou para sua maturidade” (Rogers, 2009, p.70). Se, em uma dada relação, se é suficientemente autêntico; se não há sentimento velados na relação, podese considerar que se trata de uma relação construtiva (Rogers, 2009). Para que se possa estabelecer uma relação terapêutica autêntica, é importante que as pessoas envolvidas sejam autênticas consigo mesmas, possam aceitar sua espontaneidade e suas intuições e confiar nelas; é ainda preciso estar confortável consigo mesmo para poder falar e exprimir sentimentos, pensamentos, vontades e desejos. Questões como preocupações, receios, preconceitos e cautelas limitam a autenticidade e as possibilidades de crescimento na relação. A existência dessas questões impede uma maneira autêntica de ser, por estabelecer uma influência negativa no foco desejado. Evitar ou não abordar uma determinada questão importante faz com que outras questões não sejam abordadas plenamente. Poder falar de questões desta natureza ajuda a superar limitações de relacionamento. Assim como afirma Yalom (2007), se algo importante na relação terapêutica não é

falado, tanto pelo terapeuta como pelo paciente, nada mais de importante será discutido. Semelhante à clássica epígrafe de Lacan, quando diz que o que não é falado vira sintoma. Ao discutir a mudança na relação terapêutica, Rogers (1974) aponta que: (...) a alteração faz-se no sentido de uma maior unificação e integração da personalidade; um menor grau de tendências neuróticas; uma diminuição da ansiedade; um maior grau de aceitação de si e da emotividade como parte de si; uma maior objetividade ao lidar com a realidade (...) (p. 181). Todo esse movimento observado é facilitado pela autenticidade no processo terapêutico. É a partir de uma relação autêntica entre terapeuta e cliente que o crescimento e o desenvolvimento pessoal ocorrem. A intenção deste trabalho não foi de concluir uma discussão e as idéias e reflexões levantadas não visam um fechamento, mas seguramente estas abrem caminho para novas discussões que possam desvelar sentidos para o processo psicoterapêutico.

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA UM ESTUDO DE CASO SOBRE A ADAPTAÇÃO DE TÉCNICAS TERAPÊUTICAS COGNITIVOCOMPORTAMENTAIS INFANTIS1 Maura Ribeiro Alves (UFG – Catalão - GO) Resumo A proposta deste artigo é apresentar uma intervenção psicoterapêutica infantil sob a luz da terapia cognitivo-comportamental. Inicialmente são apresentados os aspectos teóricos que fundamentam essa modalidade terapêutica e, posteriormente será apresentado um estudo de caso com a adaptação de técnicas infantis usadas por pesquisadores dessa linha teórica. Essas técnicas foram utilizadas durante o atendimento terapêutico visando mudanças de contingências, modificações de repertórios comportamentais e treinamento de habilidades específicas. Os resultados alcançados no processo de intervenção, através da aplicação das técnicas, foram significativos e os objetivos terapêuticos traçados inicialmente foram alcançados com êxito. Palavras-chave: terapia cognitivo-comportamental; técnicas infantis; estudo de caso.

Abstract A case study on the adaptation of therapeutic techniques cognitive-behavioral child. The purpose of this paper is to present a child psychotherapeutic intervention in light of cognitivebehavioral therapy (CBT). Initially we present the theoretical aspects underlying this therapeutic approach and subsequently present a case study with techniques adapted for children, used by researchers in CBT. These techniques were conducted during therapeutic intervention aiming to change contingencies, change behavioral repertoires and train specific skills. The results achieved in the intervention process, by applying the techniques were significant and the therapeutic goals initially outlined were met with success. Keywords: cognitive-behavioral therapy; techniques for children, case study. Artigo Recebido em 20/11/2011 e Aprovado em 16/06/2012

Introdução A terapia cognitivo-comportamental tem sido extensamente estudada desde sua criação. Sua aplicabilidade, com resultados positivos, em vários tipos de transtornos psicológicos e em diferentes populações tem demonstrado um êxito significativo com relação ao tratamento psicoterapêutico. Essa modalidade terapêutica foi

inicialmente construída para o tratamento de síndromes psicológicas em adultos e os modelos de intervenção foram estruturados levando em consideração as especificidades dessa população, (Friedberg, R.D., McClure & J.M, 2001). Entretanto, uma das populações que tem sido foco de pesquisas nas últimas décadas é a criança, sendo que foi necessário à adequação e adaptação teórica e metodológica para utilização da

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terapia cognitivo-comportamental nessa faixa etária. Critérios como, idade, desenvolvimento cognitivo, afetivo, comportamental e contexto interpessoal/ambiental passaram a ter uma importância fundamental nas intervenções clínicas infantis, (Ronen, T., 1997). A terapia cognitiva de Aaron Beck derivou de seus esforços para testar os pressupostos de Freud que pregava a essência da depressão como uma raiva voltada contra o self. Beck observou que esses pacientes tinham repetidamente sentimentos de fracasso associados a um viés para a negatividade, o que contrapunha a teoria freudiana. Com base nesses estudos, Beck concluiu que a depressão é produto de interpretações negativas de si, do ambiente e do futuro. Esses achados foram os alicerces para o desenvolvimento de sua teoria cognitiva mais geral dos transtornos emocionais a qual explica que mudanças no processamento da informação são essenciais à psicopatologia, (McGinn, L.K.; Young, J.E. apud Salkovskis, P.M., 2005). Após esses postulados Beck estabeleceu a idéia fundamental do modelo cognitivo: as emoções experimentadas pelos indivíduos são produtos do modo pelo qual os eventos são interpretados. Assim, é o significado dos eventos que desencadeia as emoções e não as emoções em si, ou seja, a maneira como os indivíduos se sentem está associada ao modo como eles interpretam e pensam sobre os eventos, (Beck, J.S., 1997). Os fundamentos epistemológicos da terapia cognitiva descrevem três tipos de pensamento: pensamento automático, crenças intermediárias e crenças centrais. Pensamentos automáticos são espontâneos e aparecem em nossa mente a partir dos acontecimentos do dia-a-dia. Eles não são,

geralmente, acessíveis à consciência, porém podem ser identificados após um treinamento adequado. Pessoas com transtornos psicológicos interpretam erroneamente situações neutras ou até mesmo positivas, sendo assim, seus pensamentos automáticos são tendenciosos. Pensamentos automáticos disfuncionais são quase sempre negativos e usualmente breves, o cliente está mais ciente da emoção que sente em decorrência do pensamento do que do próprio pensamento. Está emoção geralmente está conectada ao conteúdo do pensamento automático, (Beck, J., 1997). As crenças secundárias ou intermediárias refletem idéias mais profundas e resistentes a mudanças do que os pensamentos automáticos. Elas não são diretamente relacionadas às situações e ocorrem sob a forma de suposições ou regras. Essas suposições caracterizam-se por um estilo de pensamento condicional do tipo “Se...então”. As regras geralmente incluem declarações associadas a “dever”. Esse tipo de crença constitui uma forma que o cliente encontra para diminuir o sofrimento provocado pelas crenças centrais, (Rangé, 2001). Já as crenças centrais são consideradas o nível mais profundo da estrutura cognitiva e são constituídas por idéias absolutistas, rígidas e globais que os sujeitos tem sobre si, os outros e o mundo que o cerca. Essas crenças são desenvolvidas na infância, através dos contatos interpessoais, circunstâncias muito traumáticas ou experiências freqüentes que se tornam convincentes na vida adulta, mesmo diante de evidências contrárias. Essas crenças tornam-se o conteúdo dos esquemas que são definidos como estruturas cognitivas que direcionam a pessoa para lidar com as situações auxiliando-a a

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selecionar detalhes do ambiente e recordar questões relevantes, (Rangé, 2001). A partir desses conceitos fundamentais, a terapia cognitiva tem como proposta terapêutica auxiliar o cliente a construir mudanças cognitivas que viabilizem modificações no pensamento e no sistema de crenças visando promover mudança emocional e comportamental duradoura. Beck não só modelou a pesquisa e tratamento em relação à psicopatologia adulta, mas teve grande influência sobre a pesquisa em transtornos psicológicos infantis, (Kendall, P.C.; Warman, M.J. apud Salkovskis, P.M., 2005). Vários princípios da teoria cognitiva com adultos são aplicados à psicoterapia infantil, como o empirismo colaborativo, a descoberta guiada e a sessão estruturada com o estabelecimento da agenda e evocação de feedback. A tarefa de casa é também um elemento central que permite a criança praticar as novas habilidades aprendidas durante a terapia. Outra semelhança é que a terapia com crianças continua focalizada no problema, ativa e orientada a metas. Entretanto, existem diferenças significativas que norteiam a terapia cognitiva infantil. Uma delas é que as crianças vêm à terapia trazidas pelos responsáveis, e muitas vezes não reconhecem os próprios problemas. Além disso, muitas são levadas à terapia devido às dificuldades que geram em alguns ambientes que fazem parte como, escola e convívio familiar. Elas também raramente exercem controle em algum processo da terapia, pois não podem escolher quando iniciar ou terminar o tratamento, (Friedberg, R.D.; McClure, J.M., 2001). Outra característica da terapia cognitiva infantil é que é empírica e focaliza os problemas cotidianos atuais e em fluxo que

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a criança está vivenciando. Assim, os terapeutas infantis devem analisar as questões existentes no âmbito familiar, escolar e outros grupos específicos que a criança tem contato. Essa investigação é importante, pois esses ambientes podem reforçar ou extinguir habilidades adaptativas que tenham função de controle e modelagem dos comportamentos da criança. É também necessário considerar cuidadosamente a idade da criança, a capacidade de linguagem, assim como suas habilidades sociocognitivas. A investigação dessas variáveis servirá como orientação para o estabelecimento do plano de ação terapêutico e o uso de técnicas cognitivocomportamentais durante o período de intervenção, (Friedberg, R.D., McClure, J.M., 2001). O grande desafio da terapia cognitivocomportamental infantil é conciliar as técnicas utilizadas no tratamento com o nível cognitivo da criança, além de ser fundamental considerar o desenvolvimento em relação aos esquemas afetivo, motivacional, cognitivo, comportamental e de controle da criança. Sendo assim, o terapeuta infantil deve ter um bom conhecimento sobre psicopatologia infantil e teorias de desenvolvimento cognitivo, emocional e físico voltadas à criança. Para se ter êxito na construção de técnicas interventivas infantis na terapia cognitivocomportamental é necessário considerar os aspectos evolutivos do desenvolvimento cognitivo. Outro ponto importante é desenvolver as técnicas considerando o objetivo a ser alcançado durante o tratamento, (Lopes, R.F.F., Santos, S.A., et al, 2003). Os objetivos principais desse estudo é apresentar a adaptação e utilização de

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técnicas cognitivo-comportamentais infantis em um estudo de caso com o propósito de avaliar suas funcionalidades e propor um modelo de intervenção para casos clínicos semelhantes. Os atendimentos foram realizados com a criança e o cuidador no período de março a setembro de 2007, totalizando 16 sessões com a criança e 16 sessões com o cuidador. As sessões ocorreram semanalmente e com duração de cinqüenta minutos e possibilitaram a aplicação das técnicas adaptadas assim como sua avaliação em termos de funcionalidade para o caso específico. Nesse artigo são apresentadas somente as sessões realizadas com a criança, uma vez que os objetivos são as demonstrações das técnicas adaptadas no atendimento infantil. Método O delineamento dessa pesquisa foi estruturado de forma descritiva e em formato de estudo de caso, conforme proposta de classificação de pesquisas em Gil (2002). A pesquisa descritiva é um estudo, análise, registro e interpretação dos fatos do mundo físico sem a interferência do pesquisador. Ela é, para Galliano (1986), apresentar por meios de palavras um objeto, um procedimento, uma experiência, da maneira mais objetiva possível e mediante a exposição de seus aspectos mais característicos. Assim, ao descrever é necessário evidenciarem-se os pormenores que distinguem a especificidade da coisa descrita possibilitando ao leitor configurar com maior exatidão o que está sendo escrito. Participante

A criança que participou desse estudo de caso é descrita pela letra L por motivo de sigilo. É do sexo feminino e tem cinco anos de idade e cursa a pré-escola. L nasceu de uma relação esporádica entre seu pai (D) e uma garota de programa (J). Após seu nascimento, ela e a mãe foram morar com a familia materna (mãe de J, a irmã e o padrasto). Segundo o relato da avó paterna (M), a mãe da criança sempre foi displicente em relação aos cuidados com a criança. Por esse motivo M levou-a para morar com ela e seu pai. Eventualmente a mãe entrava em contato com L, embora passasse até dois meses sem procurar a filha. Às vezes ela buscava a criança para passar o final de semana com a família materna e sempre que a menina voltava do convívio com a mãe apresentava comportamentos agitados, inquietos, desobedecendo às ordens de M e “dando mais trabalho que o habitual”. Atualmente a guarda da criança está com a mãe e fez-se um acordo informal entre os cuidadores para ela morar com o pai. Queixas principais A avó paterna procurou atendimento psicológico devido a comportamentos inadequados de L (impulsividade, agitação, inquietação, falta de limites, contar mentiras, desobediência a ordens). Esses são expressos em todos os ambientes de convívio da criança. Até o momento do atendimento psicológico, L não apresentou problemas escolares relativos à aprendizagem, entretanto a avó foi chamada a escola diversas vezes devido às reclamações de maus comportamentos, como briga com os colegas, desobediência à professora, agitação durante as aulas e contar mentiras.

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Conceitualização do caso Segundo os critérios de diagnóstico do DSM IV (0000), esse estudo de caso pode ser assim categorizado: Eixo I: nenhum diagnóstico Eixo II: nenhum diagnóstico Eixo III: anemia Eixo IV: Problemas com o grupo de apoio primário: desde os dois anos de idade a criança mora com a avó paterna e o pai, anteriormente ela morava com a mãe e sua família. A avó tem muitos problemas de saúde impossibilitando-a de participar e compartilhar das atividades e brincadeiras com a neta. O seu modo de disciplinar L é autoritário, crítico e sem afeto. O pai não tem uma parceira fixa e já saiu de casa para ir morar com outras mulheres, deixando a filha aos cuidados da avó. A avó descreve que está muito cansada e insatisfeita com os problemas de comportamento apresentados pela criança, pensando inclusive em devolvê-la para a mãe. Eixo V: AGF: 55. A criança apresenta dificuldade moderada no funcionamento familiar, escolar e social. Instrumentos: Para as sessões com a criança foram utilizados materiais de papelaria (cartolina, lápis de cor, giz de cera, tintas, entre outros), brinquedos e a sala de atendimento do CENPS/UFU. Procedimentos Os atendimentos foram realizados por duas psicólogas: MRA responsável pelo atendimento da criança e SSS responsável pelo atendimento do cuidador.

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As sessões com a criança e cuidador foram realizadas semanalmente, com duração de aproximadamente 50 minutos no período de março a setembro de 2007. As sessões foram estruturadas da seguinte forma: - 1ª a 5ª sessões: avaliação inicial Procedimentos: Agenda; aliança terapêutica; obtenção de dados; apresentação do processo terapêutico; identificação do problema; introdução do relaxamento. - 6ª a 15ª sessões: intervenção Procedimentos: Técnicas visando mudança de contingência e modificação do repertório comportamental da criança; treinamento de habilidades específicas. - 16ª sessão: finalização Procedimento: Feedback do tratamento enfatizando os pontos principais e pontuando mudanças obtidas com a intervenção.

Na fase de avaliação inicial, entre a primeira e a quinta sessão os objetivos principais foram fornecer um conhecimento acerca do processo terapêutico; explicar o que faz o psicólogo e porque algumas crianças precisam fazer psicoterapia; explicar sobre o sigilo; identificar as emoções para que a criança seja capaz de discernir os sentimentos experimentados de acordo com cada situação; treinar o relaxamento; ensinar o conceito de mudança das coisas e do ambiente enfatizando que ela pode mudar seus problemas com alguma ajuda. Para esses objetivos foram adaptadas às técnicas seguintes: Técnica da Metáfora “Luz do Coração”: O objetivo principal desta técnica foi ensinar o processo terapêutico explicando que a criança vai ao terapeuta quando está com a luz do coração apagada e este vai ajudá-la a acender novamente. Outro objetivo é

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auxiliar a identificar os problemas apresentados pela criança, perguntando a ela o que faz com que a luz de seu coração fique apagada. Essa técnica foi utilizada no primeiro contato do psicólogo com a criança, embora ela possa ser usada em qualquer momento do processo terapêutico. Ela auxilia na identificação dos problemas enfrentados pela criança e na construção de metas e planos de ação, assim como na reformulação de novas metas para o tratamento psicoterápico. Técnica da Vela e da Flor: o objetivo central dessa técnica foi ensinar o relaxamento à criança através da respiração adequada. Para isso desenhou-se uma vela e uma flor e pediu a ela para cheirar a flor enquanto inspirava e soprar a vela no momento da expiração. A técnica foi apresentada e praticada durante a sessão e instruiu-se a criança a realizá-la fora da sessão, (Austin, L., 1991). Esse procedimento técnico foi adotado devido às queixas de agitação e impulsividade apresentadas pela avó e percebidas pela psicóloga durante os atendimentos; foi introduzida na segunda sessão e exercitada com a criança nas sessões posteriores. Essa técnica também pode ser utilizada para pacientes que apresentam queixas de ansiedade e em crianças de qualquer faixa etária. Trabalhando Com as Emoções: O modelo cognitivo pressupõe que o pensamento ativa sentimentos, comportamentos e alterações fisiológicas congruentes com a atribuição de significado que está sendo dada para a realidade presente. As crianças entendem bem o que são as emoções, embora nem sempre consigam conceituá-las ou descrevêlas de maneira adequada. Essa dificuldade pode gerar falta de compreensão da

comunicação da criança pelo adultocuidador e consequentemente dificultar a relação entre ambos. Por isso optou-se por trabalhar os sentimentos, especificamente seus conceitos, em que situações ocorreram e com que frequência. A técnica usada para esses objetivos foi a seguinte: Livrinho dos Sentimentos: esta técnica foi realizada na quinta sessão e consistiu em ensinar os vários sentimentos e seus significados à criança partindo do conhecimento que ela já possuía. Usaramse faces de rosto indicando emoções como, tristeza, raiva, medo e alegria. Conceituouse cada emoção com a criança e pediu a ela para revelar uma situação em que a sentiu. Como ela ainda não era alfabetizada usou-se desenhos, colagens e figuras recortadas de revistas para identificar os contextos em que sentiu determinada emoção. Para crianças maiores e alfabetizadas pode-se pedir a ela que escreva a situação que precipita o sentimento. Na fase de intervenção do processo terapêutico as técnicas adaptadas tiveram o objetivo principal de promover mudança de contingência, aumentando os comportamentos adequados, como controle do impulso, percepção de limite e virtudes como obediência, paciência, respeito e amor, através de reforço positivo. Para esses objetivos foram adaptadas as seguintes técnicas: Técnica Quadro de Rotina: nesta técnica construiu-se um quadro onde se colocou os dias da semana, os períodos do dia (manhã, tarde e noite) e as atividades que a criança deveria executar em cada período. Essas atividades e a definição dos horários que elas seriam realizadas foram estabelecidas com o cuidador e a criança em uma sessão em conjunto. O quadro foi levado para a

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casa da criança e a avó foi a responsável por monitorar se as tarefas estavam sendo feitas. Se a criança executasse a maior parte das atividades estipuladas para o dia, o cuidador pregaria uma flor na folha de monitoração e seria dada semanalmente uma premiação durante as sessões, caso a criança tivesse acima de cinco flores registradas. Essa premiação foi brinquedos, balas, chocolates e outros objetos significativos para a criança, (Friedberg, R.D., McClure, J.M., 2001). Essa técnica foi introduzida na sexta sessão e foi praticada até o final dos atendimentos. Mesmo após o término do tratamento a terapeuta orientou para que a cuidadora continuasse a usar o quadro de rotinas. Técnica Jardim das Virtudes: essa técnica teve como objetivo trabalhar habilidades afetivo/cognitivo/comportamentais como: paciência, obediência, respeito e amor com o intuito de promover mudança de comportamento frente às situações que precipitavam ações impulsivas e desobediência como, ficar mais tranqüila durante os eventos da igreja, obedecer aos pedidos da avó, obedecer à professora, entre outros. A primeira etapa desta técnica foi ensinar o significado de cada virtude à criança, enfatizando os comportamentos correspondentes. Cada virtude foi simbolizada por uma flor a qual foi possível para a criança pregá-la no jardim construído em um isopor. Em seguida ensinou-se que as flores só poderiam ser plantadas no jardim se os comportamentos referentes à virtude estivessem sendo executados pela criança. A monitoração foi feita pelo cuidador e apresentada à terapeuta nas sessões, (Said, S., 2002). O importante nesse tipo de técnica é utilizar situações que são cotidianas para a criança e que fazem

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parte de seu repertório. Essa técnica foi introduzida no nono atendimento e também foi praticada até o findar das sessões de psicoterapia. Técnica Conhecendo o Pequeno e o Grande Eu: esta técnica teve como finalidade proporcionar à criança a percepção de comportamentos funcionais e disfuncionais, assim como as conseqüências que cada um pode ter e o que fazer para não se comportar de forma a não produzir contingências aversivas. Para a execução da técnica desenhou-se um menino pequeno representando o pequeno eu e um menino grande representando o grande eu. Em seguida utilizou-se um fantoche para contar a estória dos eus: temos dois eus dentro de nós: um pequeno e outro grande, o pequeno eu é sozinho, pois se comporta muito mal diante das pessoas (nesse momento relataram-se os próprios comportamentos disfuncionais da criança); o grande eu é feliz, tem vários amigos (descreveu-se quais comportamentos são característicos do grande eu e aqueles que a criança devia realizar, enfatizando a recompensa que ganhará caso reagisse como o grande eu), Austin, L., 1991. Todos os comportamentos relatados na estória do “Pequeno e o Grande Eu” eram retirados da história de vida da criança, assim como a própria consequência que eles ocasionavam no ambiente da mesma. Essa técnica foi realizada durante a décima segunda sessão com a criança. Técnica Jogo do Elogio: esta técnica foi adaptada para propiciar um vínculo afetuoso entre a avó e a criança. O objetivo era introduzir um contato mais prazeroso e afetivo entre as duas e desenvolver a capacidade de elogiar uma a outra. Construiu-se um jogo de tabuleiro simples, composto de 20 casas em que o jogador ia

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caminhando pelas casas de acordo com a quantidade de números definidos em um dado. Algumas casas tinham marcações diferenciadas e quando o jogador parasse nessas casas teria que pegar uma ficha e executar o comportamento descrito. As ações executadas pela avó e a neta foram: dar um beijo, dar um abraço, dizer que ama a pessoa com quem está jogando, dizer que a pessoa com quem está jogando é especial, entre outros comportamentos. A técnica foi feita durante a décima quinta sessão com a criança e o cuidador juntos. Na fase de finalização o objetivo das sessões foi promover um feedback dos atendimentos realizados enfatizando os pontos principais trabalhados e os objetivos alcançados durante o processo terapêutico. Para esses objetivos foram adaptadas as seguintes técnicas: Técnica Livrinho da Terapia: nessa técnica foi construído, pela terapeuta, um livro que ilustravam situações que acendiam a luz no coração, como brincadeiras em grupo, momentos prazerosos com a avó, elogios da professora, entre outros. Também trazia, em desenhos, as virtudes que foram trabalhadas e as possíveis consequências que essas geravam para a criança, por exemplo, “ao obedecer minha avó e minha professora elas vão me elogiar e isso me deixará feliz”. Para finalizar foi ilustrada também no livrinho a técnica Pequeno Eu e Grande Eu através de desenhos explicativos que tinham a pretensão de registrar os comportamentos funcionais e disfuncionais da criança e suas consequências no seu ambiente. À medida que foi revisto cada ponto do livro com a criança, a terapeuta fazia perguntas a ela a respeito das mudanças afetivo/cognitivo/comportamentais obtidas durante os atendimentos. O livrinho foi

entregue a criança para que levasse para casa como uma recordação desse momento de importantes aprendizagens. Resultados Os resultados alcançados no estudo de caso foram significativos e demonstraram a funcionalidade das técnicas utilizadas durante o processo terapêutico. Eles foram avaliados pela terapeuta através das mudanças afetivo/cognitivo/comportamentais observadas nas sessões de atendimento com a criança e nos relatos da avó e da sua professora. A técnica metáfora do coração foi muito importante no processo de comunicação da terapeuta com a criança, uma vez que ela passou a contar a esta questões que a incomodavam, deixavam-na triste, feliz, com raiva ou medo. A criança disse várias vezes durante as sessões que precisava dizer algo à psicóloga que tinha apagado ou acendido a luz de seu coração. Outra técnica que teve resultados efetivos foi o treino do relaxamento, este procedimento foi fundamental para que a criança controlasse sua agitação, impulsividade e dificuldade de focalizar a atenção os quais eram visíveis inclusive no contexto clínico. Antes do exercício do relaxamento a criança apresentava comportamentos como, falar várias coisas num curto espaço de tempo e sem a espera da resposta da terapeuta, pegar brinquedos e objetos sem envolver-se realmente com estes trocando-os de forma repentina e frequente. Após o treino percebeu-se uma melhora por parte da criança da função atencional que se apresentou mais dirigida e focalizada; esta prestou maior atenção nas

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falas da terapeuta, esperava a sua vez para falar, conversava de forma mais pausada e pontual sem mudar de assunto antes de ter terminado o primeiro e se envolveu mais com as brincadeiras. O relaxamento foi realizado tanto nas sessões quanto em outros contextos, como casa e escola. Esse êxito também foi observado com a técnica Quadro de Rotinas, uma vez que ele contribuiu para que a criança começasse a seguir regras e tivesse uma rotina diária mais definida e capaz de deixá-la menos agitada, inquieta e sem orientação. O quadro também era utilizado durante a sessão de terapia. Em todas as sessões a terapeuta apresentava à criança as atividades que seriam feitas naquele atendimento e o tempo que cada uma teria de duração. Isso possibilitou um melhor manejo dos comportamentos impulsivos da criança e na sua dificuldade atencional. Assim, a própria sessão era uma contingência modeladora para a criança no sentido de que esta apresentava uma sequência e ordem estabelecidas previamente e que deveriam ser cumpridas. Ao final de casa sessão, todas as vezes que as atividades previstas eram cumpridas com êxito a criança poderia escolher uma atividade que quisesse fazer e na maioria das vezes ela escolhia o desenho ou brincar com a casa de bonecos. As técnicas utilizadas posteriormente foram fundamentais para que a criança identificasse seus próprios comportamentos disfuncionais e com isso foi possível construir um repertório comportamental com o intuito de modificar as contingências atuais vigentes, como: relacionamento ruim com a avó e a professora, brigar com colegas da escola, contar mentiras para conseguir aquilo que quer, entre outras. Com a técnica Jardim das Virtudes, a

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criança aprendeu o significado de virtudes como: paciência, obediência, respeito e amor. Essas virtudes foram escolhidas mediante o relato da cuidadora, como: “é uma menina muito agitada, não para quieta, não obedece quando eu peço alguma coisa a ela e me desrespeita demais”; relatos da professora: “ela não me obedece quando peço alguma coisa”, “tira a atenção dos colegas durante as atividades”, “é muito agitada”, “conta muitas mentiras”. O treinamento dessas habilidades possibilitou à criança conhecer os comportamentos expressados por alguém amoroso, paciente, obediente e que tenha respeito ao próximo, enfatizando sempre as conseqüências que se tem comportando dessa maneira, como: ter amigos, ter um relacionamento saudável com a avó e/ou ser elogiada pela professora. Para avaliar a efetividade dessa técnica, a terapeuta fez encenações representando situações de conflito entre a criança, a avó, os coleguinhas da escola e sua professora e perguntava a ela o que poderia ser feito para resolver o problema. Outra forma foi utilizar histórias nas quais o personagem emitia comportamentos inadequados semelhantes aos da criança e pedia-se a ela para identificar se eram adequados ou não. A criança respondeu assertivamente a todas as questões apontadas, demonstrando claramente que tinha percepção dos seus próprios comportamentos disfuncionais e as possíveis consequências que eles lhe causavam, como: a avó ficar nervosa com ela, a professora colocá-la de castigo, os colegas não brincarem com ela, entre outros. Esses resultados também puderam ser observados com a técnica Grande Eu Pequeno Eu, na qual também se pode trabalhar com a criança as conseqüências negativas de seu comportamento

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inadequado e como ela poderia agir para obter consequências mais prazerosas. Outra técnica utilizada com o intuito de treinar habilidades foi o Jogo do Elogio. Através desse jogo, a criança e a avó puderam expressar comportamentos mais afetuosos uma com a outra e isso estimulou maior vínculo e contato físico entre as duas como: beijar, abraçar, fazer carinho. Essa técnica foi bem interessante, pois possibilitou à terapeuta avaliar inicialmente o quanto era difícil para as duas envolverem-se em comportamentos afetuosos, mas que no decorrer do jogo os abraços e beijos começaram a ser mais espontâneos e sem muitas resistências. Para finalizar os atendimentos construiu-se um livro ilustrativo contendo as questões mais importantes trabalhadas durante todo o processo terapêutico. Na apresentação do livro à criança, a terapeuta fez perguntas como: “o que fazer para que o pequeno eu se transforme no grande eu?”, e a criança respondeu: “arrumar os brinquedos; não bater nos meus coleguinhas porque eles não vão querer brincar comigo e isso vai me deixar triste; ajudar minha avó nas tarefas de casa, pois ela está doente; obedecer a minha professora e não fazer bagunça na aula”; “não contar mentiras para minha avó nem para minha professora porque elas não vão acreditar mais em mim”. Essas colocações feitas pela criança sinalizaram alterações nos níveis afetivo/cognitivos. Mudanças mais amplas e contextuais também foram relatadas pela avó como, “ela me obedece mais agora”, “a professora disse que ela está mais calma e atenta”. Os resultados apontados parecem indicar uma mudança substancial no que tange às queixas iniciais trazidas pelo

cuidador e pela própria criança. Isso viabiliza concluir que as técnicas adaptadas e utilizadas nesse caso puderam contribuir para a melhora nas relações dos principais contextos sociais da criança (família e escola) e também na funcionalidade cognitiva da atenção que estava prejudicada em função de manejos inadequados ou mesmo desconhecimento da influência que as contingências vigentes estavam causando nos processos atencionais da criança. Considerações finais A terapia cognitivo-comportamental é frequentemente utilizada com crianças pequenas. Segundo Stallard (2004), foi feito uma revisão de 101 estudos de intervenções utilizando a terapia, na qual se descobriu que 79% incluíam crianças menores de 10 anos com problemas como, encoprese, enurese, rejeição a escola, dor abdominal, transtornos de ansiedade generalizada, fobias, abuso sexual e problemas comportamentais pré-escolares. Entretanto, apesar da aplicabilidade, o desafio do atendimento infantil é traduzir conceitos abstratos em exemplos lúdicos e metáforas simples, concretas e compreensíveis que representem o cotidiano da criança. Além disso, outro ponto relevante e extremamente contundente para o êxito do processo terapêutico é adaptar técnicas condizentes com o desenvolvimento cognitivo, emocional, físico e sócio-ambiental da criança. O estudo de caso apresentado demonstrou resultados significativos com a aplicação das técnicas cognitivocomportamentais adaptadas. Essas técnicas contribuíram, em especifico, para uma maior compreensão das contingências

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vigentes (idade da cuidadora e seus problemas de saúde, manejo parental muitas vezes disfuncional que provavelmente influenciaram no desenvolvimento e manutenção dos comportamentos inadequados da criança) e possibilitou criar repertórios afetivo/cognitivo/comportamentais mais

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funcionais e menos prejudiciais para a criança. Apesar dos resultados positivos dessa pesquisa são necessários maiores investigações sobre a utilização das técnicas que foram adaptadas nesse estudo em casos com queixas semelhantes para averiguar e comparar outros resultados.

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Referências Austin, L. (1991). O pequeno eu o Grande eu, Os 7 segredos. São Paulo: Texto novo. Beck, J. (1997). Terapia Cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed. Caballo, V. E. & Simon, M. A. (2004). Manual de psicologia clínica infantil e do adolescente: transtornos gerais. São Paulo: Editora Santos. Friedberg, R.D. & Mcclure, J.M. (2001). A prática clínica de terapia cognitiva com crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed. Galliano, G. A. (1986). O método científico: teoria e prática. São Paulo: Harbra. Gil, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisas. São Paulo: Atlas. Lopes, R.F.F., Santos, S.A., Souza, R.B., Mendes, L.R., Florêncio, E. & Faria, C.A. (2003). O Desenvolvimento e a Adaptação de Técnicas Para a Terapia Cognitiva Com Crianças. Revista da Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro, 7 (1 e 2) Jan./Jun. e Jul./Dez. Moura, C.B. & Venturelli, M.B. (2004). Direcionamento Para a Condução do Processo Terapêutico Comportamental Com Crianças. Revista Brasileira de Terapia Comportamental Cognitiva, 6, (1). Papalia, D. E. & Olds, S.W. (2000). Desenvolvimento humano. Tradução de Daniel Bueno. 7 ed. Porto Alegre: Artmed. Rangé, B. (2001). Psicoterapias cognitivo-comportamentais: um diálogo com a psiquiatria. Porto Alegre: Artmed. Ronen, T. (1997). Cognitive developmental therapy for children. New York: Wiley. Said, S. (2002). Meu coração perguntou II. O poder secreto das virtudes. Petrópolis: Vozes. Salkovskis, P. M. (2005). Fronteiras da terapia cognitiva. São Paulo: Casa do Psicólogo. Stallard, P. (2004). Bons pensamentos bons sentimentos: manual de terapia cognitivocomportamental para crianças e adolescentes. São Paulo Artmed. 1

Esse artigo é produto da monografia realizada para conclusão do Curso de Especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental na Universidade Federal de Uberlândia em 2007. Os atendimentos foram realizados na clínica escola da referida instituição de ensino e os pacientes foram comunicados sobre o uso do caso clínico para pesquisa e sua publicação em periódicos científicos. A autora:

Maura Ribeiro Alves formou-se em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia em 2005. É Especialista em Terapia Cognitiva Comportamental pela Universidade Federal de Uberlândia e Mestre em Processos Cognitivos pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é professora da Universidade Federal de Góias/Catalão. Endreço: Av. Dr. Lamartine Pinto de Avelar nº 1120, Setor Universitário, Fones (64) 3441-5300 ou 3441-5323 CEP: 75.704-020 CATALÃO – GO. E.mail: [email protected].

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA MORTES POR SUICÍDIO EM UBERLÂNDIA (MG): CARACTERÍSTICAS DE GÊNERO, FAIXA ETÁRIA E FORMAS DE SUICÍDIO Cristiana Nelise de Paula Araújo Maria Lúcia Castilho Romera Paulo Roberto de Oliveira Pedro Henrique de Oliveira Viadanna (UFU – Uberlândia - MG) Resumo Trata-se de um estudo descritivo e qualitativo, com objetivo de realizar análises epidemiológicas e psicanalíticas de mortes por suicídio em Uberlândia-MG, entre 2004-2008, com ênfase em gênero, faixa etária e métodos. Foram investigadas fichas de autópsia de pacientes que cometeram suicídio nesse período. Resultados mostraram que, pela classificação internacional de suicídio (OMS), Uberlândia apresentou média taxa de mortalidade por lesões autoprovocadas. A maioria dos casos correspondia ao sexo masculino e a faixa etária 13-36 anos mostrou índices crescentes. O método mais utilizado nos suicídios foi o enforcamento, para ambos os sexos, principalmente pelos homens. Percebe-se que estas taxas revelam não só aumento de mortes por suicídio, mas que no mundo contemporâneo cada vez o espaço é menor para a expressão da dor e da falta, condições inerentes e fundamentais do humano ou da humanidade. Ocorrendo a valorização do parecer, de relações impessoais e virtuais, da tecnologia e competitividade. Para esta sociedade não basta viver a vida é preciso testar os limites desta, muitas vezes, por meio do suicídio e/ou comportamentos autodestrutivos. Frente esses achados, os autores destacam necessidade de pesquisas continuadas sobre o tema e preparação de profissionais para assistir populações que apresentam maior risco de suicídio. Palavras chave: autodestruição; epidemiologia; psicanálise; suicídio; Uberlândia.

Abstract Suicide mortality in Uberlândia – MG: ways, age and gender aspects of suicide This is a descriptive and qualitative research, that aims epidemiological and psychoanalytic studies of suicide deaths in Uberlândia, Minas Gerais, between 2004-2008, with emphasis on gender, age and methods. We investigated autopsy records of patients who committed suicide during these periods. Results showed that, for the international classification of suicide (WHO), Uberlândia presented an average mortality rate for intentional self-harm. Most cases were males and aged between 13-36 years showed increasing rates. The method most often used in suicide was hanging for both sexes, especially by men. It is observed that these rates have shown not only increased deaths from suicide, but that in the contemporary world there is almost no space for the expression of pain and lack, inherent and fundamental conditions of humanity, leading to enhancement of impersonal and virtual relationships, technology and competitiveness. For this society is not enough to live life, you need to test the limits of it, often through suicide and / or self-destructive behaviors. Facing these findings, the authors highlight the need for continued research of the topic and preparing professionals to assist populations at greatest risk of suicide. Keywords: epidemiology; psychoanalysis; self-destruction; suicide; Uberlândia. Artigo Recebido em 26/11/2009 e Aprovado em 04/04/2010

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CRISTIANA NELISE DE PAULA ARAÚJO, MARIA LÚCIA CASTILHO ROMERA, PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA, PEDRO HENRIQUE DE OLIVEIRA VIADANNA

Introdução Suicídio é o ato deliberado de se matar, sendo assim, entende-se comportamento suicida como toda ação pela qual o sujeito inflige lesão a si mesmo, considerando os diversos graus de intenção fatal e de consciência da verdadeira razão dessa ação. Esta noção permite conceber o comportamento suicida como um continuum que inicia com pensamentos de autodestruição, passa das ameaças e gestos às tentativas de suicídio e, finalmente, consuma o ato suicida (Werlang & Botega, 2004). Herrmann (1976) considerou a tentativa de suicídio como um gesto que tanto remete à manifestação da liberdade humana em seu limite extremo como a uma autodestrutividade. Podemos efetivar a conjugação destes dois sentidos para pensar que tal ato dentre outros significados, personifica no suicida o limite extremo da destrutividade humana da sociedade. Para o autor anteriormente referido o suicídio é uma decisão e um sintoma. Estamos, portanto em um universo com limites tênues entre a vida e a morte. Tanto uma como a outra podem nos dizer muito acerca da humanidade, assim como o suicídio. É neste sentido que pretendemos ou pretende-se que este estudo, para além da epidemiologia, seja tratado em uma perspectiva psicológica. Ou seja, pretendese um estudo das representações suscitadas pelo levantamento estatístico próprio a abordagem epidemiológica. O ato suicida como forma de manejar as dificuldades propicia repercussões preocupantes, à medida que, segundo (Kalina & Kovadloff, 1983), quando um sujeito comete o suicídio, padecem com ele

a proposta da sua família, de um grupo, de uma comunidade e de uma sociedade. O ambiente do qual fazia parte a pessoa suicida, passa a conviver com o significado que pode ser dado a este ato na direção de falência, incompetência, inabilidade e outros. Isto aponta a existência de uma profunda relação entre o sujeito que comete suicídio, a família deste e, por conseguinte a sociedade na qual estava inserido. Assim, é possível reconhecer que a sociedade pode contribuir para o aumento do suicídio e das categorias de comportamentos nele implícitas. Uma sociedade altamente competitiva, onde o que importa é vencer, contribui para sentimentos onipotentes e seu contra-ponto, a menor valia. Na contemporaneidade, identificar fatores de risco ganha ênfase como questões relacionadas à autodestruição (Fensterseifer & Werlang, 2006). Tais como: depressão, a desesperança, o uso e o abuso de substâncias, tais como álcool e drogas (dependência química), pânico, agressão, terrorismo, corrupção, a presença de uma dor psicológica insuportável, caracterizada por Shneidman (2004) como emoções negativas, podem conduzir o indivíduo ao suicídio. O suicídio é avaliado pela OMS (2002) como problema de saúde pública, pois, estimou-se que no ano 2000 aproximadamente um milhão de pessoas cometeram suicídio no mundo. A cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo e a cada 3 segundos ocorre uma tentativa de suicídio. O suicídio é uma das dez causas de morte mais freqüentes em todas as idades e em todos os países, estando entre as três principais causas de morte entre pessoas com faixa etária entre 15-35 anos, perdendo apenas para os

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acidentes de trânsito e homicídios. Segundo Mello (2000), estimativas revelaram que para cada suicídio, ocorreram pelo menos dez tentativas relevantes, que necessitavam de atenção médica e de cada tentativa de suicídio registrada, existiram pelo menos quatro não conhecidas. Segundo Cassorla (1994), a mortalidade por suicídio no país é sabidamente subestimada, devido às inúmeras causas que levam uma pessoa ao ato suicida, pode ser consciente ou inconsciente, e assim, fazem com que as pessoas se matem de maneira que podem ser interpretadas nos exames pós-mortem como assassinatos, causas naturais, acidentais, e não propriamente como um comportamento autodestrutivo intencional. No Brasil, o problema também é preocupante, conforme Souza, Minayo e Malaquias (2002) observaram um aumento de 35,5% na taxa de mortalidade por suicídio entre jovens de 15 a 24 anos nas principais capitais brasileiras nos anos de 1979 e 1998. Sendo que, segundo o sistema de dados do Ministério da Saúde (D‘Oliveira, 2005), em 1996 a 2002, a região sudeste apresenta taxa aproximada de mortalidade por suicídio igual a 4,5/100.000 habitantes, percentual semelhante ao que caracteriza o país. Em relação ao sexo, na maioria dos países, os homens apresentam uma freqüência de suicídio três vezes maior do que as mulheres. Sendo que esta relação é constante nas diferentes faixas etárias (Werlang & Botega, 2004). De acordo como o sistema de dados do Ministério da Saúde (D‘Oliveira, 2005), o percentual dos óbitos por suicídios relacionados ao gênero e as formas

utilizadas no Brasil e regiões, de 1996 a 2002, foram de 43.8% por arma de fogo, 34,1% por enforcamento e 15,2% por medicamentos e substâncias biológicas entre o sexo masculino, e entre o sexo feminino, 41% por enforcamento e estrangulamento, 19% pesticidas e produtos químicos e 14% por armas de fogo. Dessa maneira pode-se perceber que o gênero masculino procura métodos mais letais de suicídio que o gênero feminino. A Portaria N°1.876, de 14 de agosto de 2006, do Ministério da Saúde, instituiu diretrizes nacionais para a prevenção do suicídio, por: considerar o fenômeno do suicídio um grave problema de saúde pública, que afeta toda a sociedade e que pode ser prevenido; avaliar a importância epidemiológica do registro das mortes e tentativas de suicídio e reconhecer a necessidade de promoção de estudos e pesquisas na área de prevenção do suicídio. Pesquisas mostraram que a prevenção do suicídio é uma atividade possível, mas apresenta resultados a longo prazo e envolve uma série de atividades. As ações variam desde a melhoria das condições de vida para a criação das crianças e dos jovens, tratamento mais efetivo dos transtornos mentais, capacitação de profissionais para assistir os diferentes grupos etários indo dos aspectos curativos e da organização de assistência efetiva, até o controle dos fatores de risco ambientais. A divulgação adequada da informação e a conscientização são princípios fundamentais para o sucesso de programas de prevenção do suicídio (OMS, 2003). Neste contexto complexo é que encontramos justificativa para nossa pesquisa: por representar um sério problema de saúde pública devido aos altos índices de

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incidência mundial, o suicídio exige atenção, mas sua prevenção e controle, infelizmente, são tarefas difíceis de serem alcançadas. Ressaltando que, até o momento, inexistem estudos sobre o tema no município Uberlândia-MG, que ofereçam subsídios visando medidas principalmente preventivas e também remediativas no sentido de atenção à família do suicida. O objetivo deste trabalho foi descrever, em uma perspectiva interdisciplinar, os aspectos epidemiológicos dos casos de morte por suicídio entre 2004 a 2008, ocorridos em Uberlândia – MG, com ênfase nas diferenças entre gênero, faixa etária e formas de suicídio. A partir disso, promoveu-se uma compreensão das condições de possibilidade dos atos suicidas e analisou-se psicanaliticamente a lógica destas mesmas condições. Metodologia Em sintonia com a busca de atingir as metas almejadas por estas diretrizes, nosso trabalho se projetou com uma metodologia típica das pesquisas quantitativas epidemiológicas, mas procurando alçar os sentidos advindos dos levantamentos feitos e dos contextos onde o fenômeno suicídio se configurava. Por meio da interpretação psicanalítica colocou-se em diálogo a pesquisa quantitativa e a qualitativa. Para a realização desta pesquisa, foram utilizadas fichas de autópsia do Instituto Médico Legal de Uberlândia-MG de pacientes residentes da mesma cidade que cometeram suicídio entre os anos de 2004 a 2008. Para realização do estudo longitudinal foi criado um formulário epidemiológico onde constaram os seguintes itens: idade,

gênero, procedência e forma de suicídio, a ser preenchido conforme a descrição das fichas de autópsia do paciente. Sendo que a pesquisa foi devidamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa protocolo registro CEP/UFU 150/09. Tal estudo foi realizado no município de Uberlândia, localizado na região do Triângulo Mineiro, na porção sudoeste do Estado de Minas Gerais. Possui área total de 4.115,09 km2, sendo que 219,00 km2 são ocupados pela zona urbana e 3.896,09 km2 pela zona rural. Com uma população de mais de 600 mil habitantes é a maior cidade do interior mineiro (Silva, 2003). Para classificação dos suicídios foi utilizada a Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) na qual o suicídio encontra-se no capítulo de causas externas de morbidade e mortalidade, com a denominação de “lesões autoprovocadas voluntariamente” sob os códigos X60 e X 84. A partir da análise estatística, foi calculado o coeficiente anual de mortalidade para classificação do suicídio na cidade entre faixas previamente definidas pela OMS (baixa, média e alta). Para cálculo das taxas populacionais, utilizou-se a população extraída do censo e projeções intercensitárias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2009). Um mapeamento da lógica de produção das ações suicidas foi delineado durante o percurso investigativo, dentro da perspectiva psicanalítica-interpretativa. Resultados e Discussões A população total da cidade variou de 570.042 a 622.441 habitantes para o período de 2004 a 2008. É uma população em

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MORTES POR SUICÍDIO EM UBERLÂNDIA (MG): CARACTERÍSTICAS DE GÊNERO, FAIXA ETÁRIA E FORMAS DE SUICÍDIO

Figura I. Mortalidade por suicídio em Uberlândia, de 2004 a 2008. suicidio para cada 100.000 habitantes 8 7 6 5 4 3 2 1 0

suicidio para cada 100.000 hab Linear (suicidio para cada 100.000 hab)

2004

2005

2006

2007

2008

Segundo OMS (2003) a classificação da mortalidade por suicídio os coeficientes inferiores a 5/100.000 são considerados baixos, entre 5/100.000 e 15/100.000 são médios, entre 15/100.000 e 30/100.000 são altos e acima de 30/100.000 são muito altos. Baseando nesse critério de classificação a mortalidade por suicídio em Uberlândia, nos anos de 2004 e 2006, encontra-se com índices inferiores a 5/100.000 considerados baixos. E nos anos de 2005, 2007 e 2008 os índices foram considerados médios, com valores situados entre 5/100.000 e 15/100.000. Sendo que a média dos índices de suicídio encontrados no período de 2004 a 2008 foi um índice médio, 5,12º/0000. Em Uberaba, cidade localizada também no Triângulo Mineiro, Silveira (2010) encontrou índices médios para o suicídio entre os anos de 1996 e 2006. No Rio Grande do Sul, índices semelhantes foram

obtidos por Meneghel, Victora, Faria, Carvalho e Falk (2004) para o período de 1980 a 1999 (média de 10,2º/0000), o que apontou o este estado como o de maior incidência no país. Assim, a média dos índices de suicídio encontrados em Uberlândia deve ser considerada relevante e preocupante por estar no mesmo intervalo do estado que possui os índices mais altos do Brasil. Em Uberlândia-MG o número total de mortes por suicídio foi de 164, das quais 74% eram do sexo masculino e 26% do feminino. Sendo que, a razão homem:mulher foi em 2,8:1. As retas de tendência construídas com os coeficientes de mortalidade revelam tendências ascendentes, com média correlação (R²=0.495) para o suicídio entre homens e levemente descendentes para o suicídio entre mulheres (R²=0,251) Figura II). Figura II. Taxa de mortalidade por lesões autoprovocadas, segundo sexo. Uberlândia-MG, 2004-2008. 6

óbitos /100 m il hab.

crescimento, que tem apresentado taxas crescentes de suicídio (Figura I), servindo como alerta para a sociedade no sentido da aplicação de políticas de prevenção dessa forma de violência. Tal resultado pode estar relacionado ao fato desta cidade estar em crescimento populacional devido ao seu alto índice de industrialização regional, contudo não está preparada quanto à infraestrutura de saúde e moradia.

5 4

feminino

3

mas c ulino

2

L inear (feminino)

1

L inear (mas c ulino)

0 2004

2005

2006

2007

2008

a nos

Tais índices estão de acordo com os dados obtidos pela OMS (2002) acerca da epidemiologia do suicídio quanto a relação homem:mulher equivalente a 3:1 para quase todos os países que possuem dados disponíveis. O Ministério da Saúde (2007), em sua análise de 2007, sobre a situação da saúde no Brasil, encontrou prevalência das mortes por suicídio entre os homens, que

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Figura III. Taxa de mortalidade por autoextermínio, segundo idade e ano. Uberlândia-MG, 2004-2008. 3 13-24 2,5

25-36 37-48

óbitos/100 mil hab.

correspondeu a 79% do total dos óbitos de 2005. Isso caracterizaria o Brasil com uma razão homem:mulher de 3,7:1. Em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, no período de 2004 a 2006, foi encontrado resultado semelhante, os casos de suicídio foram maiores entre os homens com taxa de 77,23% (Rocha, Sousa, Paulino, Castro & Correa, 2007). No entanto, a literatura consultada relata que as mulheres cometem tentativas de suicídio três a quatro vezes mais do que os homens (Werlang & Botega, 2004). Segundo Monteiro (1985), embora entre as mulheres se registre maiores taxas de tentativas de suicídio, entre os homens predominam maiores taxas de sucesso nas tentativas, por utilizarem métodos mais fatais do que as mulheres. Essa incidência pode variar de entre países, por exemplo, nos Estados Unidos, a taxa de suicídio entre mulheres diminuiu à medida que as condições econômicas e sociais melhoraram (Serrano, 2003). A China é um dos poucos países onde a taxa de suicídios femininos ultrapassam a taxa de suicídios masculinos (OMS, 2000). Na Figura III, pode-se observar que a faixa etária mais prevalente foi 37-48 anos, seguida de 25-36, 13-24, 49-60, 61-72, 7384, e 85-89 para os anos 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008, respectivamente. No entanto, as retas de tendência da faixa etária 37-48 anos apresentam caráter descendente. As retas de tendência das faixas etárias 13-24 e 25-36 apresentam características ascendentes, e as demais faixas etárias mostram retas tendencionando para estabilidade

49-60

2

61-72 73-84

1,5

85-89 Não relatada

1

L inear (13-24) L inear (25-36) L inear (37-48)

0,5

L inear (49-60) L inear (61-72)

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L inear (73-84)

2004

2005

2006

2007

2008

L inear (85-89)

a nos

Em Uberlândia-MG os maiores coeficientes de mortalidade segundo grupo etário ocorrem entre população adulta de meia idade (37-48 anos), corroborando com a média de idade de ocorrência de óbito por suicídio do Brasil, no ano de 2005, encontrada pelo Ministério da Saúde (2007), de 40,5 anos para ambos os sexos. Em Campinas-SP, a taxa prevalente de suicídio foi para os adultos de 35-54 anos, no período 1997-2001 (Marín-León & Barros, 2003). Em Belo Horizonte, no período de 2004 a 2006, a população mais atingida foi a de até 40 anos para ambos os sexos, representando 58,05% (Rocha et al., 2007). Porém estamos assistindo um aumento simultâneo de violência heteroinflingida (homicídio) e autoinflingida (suicídio) nas pessoas com idade entre 15 e 39 anos. Sendo que os jovens (15-30 anos) são considerados pela OMS (2002), como grupo etário de alto risco para suicídio. Observa-se que a tendência ascendente de suicídio para pessoas dos 13 aos 36 anos, em Uberlândia—MG, tem acompanhado outros países como Canadá, Sri Lanka, Áustria, Finlândia e Suíça onde o suicídio em adolescentes e adultos jovens está formando um padrão epidêmico (Diekstra & Gulbinat, 1993). Evidenciando uma sociedade em que existem escassas perspectivas para a

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da Saúde (2007), no Brasil em 2005, a forma mais utilizada para se cometer suicídio foi o enforcamento entre os homens (60,1%) e entre as mulheres (42,6%). No Rio Grande do Sul, entre1980 e 1999, as taxas de suicídio por enforcamento foram as mais altas para os dois sexos (Meneghel et al., 2004). No extremo oeste do estado de Santa Catarina, no período 1980-2005, encontrou-se resultado semelhante a forma de suicídio prevalente, tanto para o sexo masculino como para o feminino, foi o enforcamento (Schmitt, Lang, Quevedo & Colombo, 2008). É importante ressaltar que Brasil é um país de tamanho continental, onde peculiaridades regionais podem mostrar realidades diferentes, como no caso do Rio Grande do Sul e no extremo oeste de Santa Catarina, onde houve prevalência semelhante de enforcamento tanto pelo sexo feminino, quanto masculino (76% para homens e 73% para mulheres no extremo oeste de SC e 62% de média geral no RS). Portanto, é provável que aspectos culturais e antropológicos estejam envolvidos na forma preferencial de suicídio (Schmitt et al., 2008). Figura IV. Método de auto-extermínio utilizado pelos pacientes autopsiados pelo Posto Médico Legal de Uberlândia-MG, entre 2004-2008.

F E MININO Nº MA S C UL INO Nº L inear (F E MININO Nº) L inear (MA S C UL INO Nº)

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90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 -10 -20

In

população mais jovem, na qual vigora a cultura cada vez mais valorativa da simulação onde o que importa é a aparência e, às vezes nem mesmo isso, mas o parecer resulta em relações des-substancializadas, e que não facultam sustentações sólidas para o enfrentamento dos momentos difíceis na/da vida. Isso nos remete ao fato de que a sociedade contemporânea tem vivido a recusa dos valores, da angústia substantiva, da dependência dos outros, dos limites humanos e da incompletude humana. Sob o disfarce de um Eu único e absoluto capaz de suprir todas as suas próprias necessidades. As pessoas vivem, hoje, uma verdadeira alienação da incompletude humana, e em meio a extrema violência, ganham forças as tecnologias, as drogas, as relações virtuais e os comportamentos autodestrutivos em geral como negação da fragilidade psíquica que constitui o homem. E para fugir da dependência substantiva do ser humano, este recorre a dependência do trabalho, do dinheiro, da pornografia e da química. Tal dependência tem tido como desdobramento os comportamentos autodestrutivos e suicidas (Romera & Torrecillas, 2000). A Figura IV mostra que, em relação ao método, o enforcamento (64,2% e 50,0% para homens e mulheres) foi o mais utilizado por ambos os sexos, principalmente pelos homens que optaram quase quatro vezes mais por esse meio que as mulheres. A ingestão de produto químico e medicamentos foram responsáveis por 17,5% das mortes em homens e 27,3% em mulheres. Seguido do uso de arma de fogo para os homens (11,7%) e ateamento de fogo ao corpo pelas mulheres (2,3%). Estes achados estão em consonância com os resultados obtidos pelo Ministério

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Na pesquisa sobre suicídio em Uberlândia descobrimos quão complexa é esta definição e como gestos e intenções suicidas podem ficar mascaradas, por assim dizer, diminuindo, por certo o número de registros de mortes por suicídio. Constatamos que vivemos em um regime de relações que poderia ser caracterizado como o de “morte suicida”. As relações se estruturam em moldes precários gerando desconfiança e sentimentos paranóides alucinatórios. Vínculos efêmeros e que podem desaparecer quase instantaneamente. Importa notar que há um corpo social que se expressa nestes atos inicialmente considerados individuais. Para Hillman (1993) citado por Meneghel et al. (2004) este subregistro está relacionado aos valores sócio-culturais de cada sociedade. Talvez isto possa estar relacionado ao estigma presente no ato suicida, pois, muitas pessoas tendem a recusar a ocorrência de um gesto que vai à contramão do sentido natural da vida. O que contribui para o registro de mortes por suicídio como causa externa do tipo ignorado, aumentando a subnotificação das estatísticas. Segundo Rocha et al. (2007) um dos motivos que interfere na fidedignidade do mapeamento dos dados de mortes por causa externa são o grande volume de laudos preenchidos inapropriadamente. Pois se tem conhecimento de que os óbitos por suicídio notificados são duas a três vezes menores que os verdadeiros (Meneghel et al., 2004). Acredita-se que em meados da década de 90, aproximadamente 10% dos casos de morte por causas externas no Brasil não continham informações suficientes para classificá-las como decorrentes de

homicídio, suicídio ou acidente (Miller, 2003). Considerações finais O presente estudo aponta que, pelos critérios internacionais, Uberlândia-MG apresentou média taxa de mortalidade por lesões autoprovocadas voluntariamente entre sua população, no período de 2004 a 2008. A cidade reproduziu a realidade de muitos países e estados brasileiros quanto ao número de suicídios. As taxas de suicídio foram mais altas entre os homens, com um índice de mortalidade médio aproximadamente duas vezes maior que o sexo feminino. Os nossos resultados mostram que os jovens (13-36 anos) apresentam índices crescentes de morte ao longo dos anos. O principal meio utilizado para o suicídio, tanto por homens quanto por mulheres, foi o enforcamento, seguido pela ingestão de medicamento ou substâncias tóxicas e uso de arma de fogo pelos homens e ateamento de fogo pelas mulheres. O aumento das mortes violentas entre a população, dentre elas o suicídio, é um dos problemas que ocorre no mundo contemporâneo e inclusive no Brasil. Na contemporaneidade é banal estarmos expostos a toda a forma de violência. Somos massacrados pela indústria da beleza, do consumo, do ter e do prazer. Nunca se quis tanto em troca de tão pouco. Convivemos com a ameaça da violência 24 horas por dia. Nossa principal defesa vem sendo o anestesiamento pelo medo da violência auto-inflingida e hetero-inflingida, violência social, política e econômica. Ainda sim sabe-se que as taxas de suicídio são subestimadas. Por isso a

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necessidade de treinamento adequado para os profissionais da área de saúde e pesquisa continuada sobre o assunto. É preciso que profissionais da saúde, psicólogos, médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, e da educação exerçam um trabalho multidisciplinar. Indo além dos sentidos curativos e individuais, e buscando novos sentidos contribuindo para a prevenção. Capacitação de profissionais que busquem fazer frente a realidade da sociedade contemporânea e assim oferecer assistência efetiva a população.

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CRISTIANA NELISE DE PAULA ARAÚJO, MARIA LÚCIA CASTILHO ROMERA, PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA, PEDRO HENRIQUE DE OLIVEIRA VIADANNA

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Os autores:

Cristiana Nelise de Paula Araújo é aluna do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, endereço: Av. Brasil, n° 4477, apto 2, bairro Umuarama, Uberlândia – MG - CEP 38405-305, endereço eletrônico: [email protected] Maria Lúcia Castilho Romera é docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, endereço: Av. Pará, 1720 / Campus Umuarama - Bloco 2C - Uberlândia – MG - CEP 38400-902, endereço eletrônico: [email protected] Paulo Roberto de Oliveira é docente da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia, endereço: Av. Pará, 1720 / Campus Umuarama - Bloco 2T - Uberlândia – MG - CEP 38400-902, endereço eletrônico: [email protected] Pedro Henrique de Oliveira Viadanna é mestrando em Patologia Experimental e Comparada da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, endereço: Av. Orlando Marques de Paiva, 87, Cidade Universitária, São Paulo/SP – CEP: 05508-270, endereço eletrônico: [email protected]

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA GRUPOS DE ENCONTRO COM MORADORES DE RUA DA CIDADE DE JATAÍ-GO: UMA EXPERIÊNCIA PSICODRAMÁTICA Érico Douglas Vieira Bárbara Maria Oliveira Assis Denice Resende Silva Fernanda Silva de Meira João Victor Bueno Lopes Maykon Richard Miranda de Moura Zélia Borges Souza Rocha (UFG – Jataí – GO) Resumo O trabalho descreve a promoção de grupos de encontro semanais realizados durante um ano com público alvo de moradores de rua e pessoas em situação de risco social da cidade de Jataí-GO. Os encontros foram planejados adotando-se a metodologia do Psicodrama que permitiu a leitura do processo grupal bem como ferramentas técnicas para as intervenções. O foco adotado foi a criação de um espaço para reflexão e trocas de experiências com o foco na promoção da autonomia da população atendida. Observamos uma transformação do grupo que, no início se comportava de modo fechado e resistente. Um crescente processo de responsabilização pela própria vida foi um resultado importante observado entre os membros do grupo. Palavras-chave: moradores de rua; psicodrama; autonomia.

Abstract Groups meeting with homeless people of Jataí (GO): an experience psychodramatic The paper describes the promotion of group meetings held weekly for one year with the target audience of homeless people and social risk in the city of Jataí-GO. The meetings were designed by adopting the methodology of psychodrama that allowed the reading of the group process and tools and techniques for intervention. Another focus was to create a space for reflection and sharing experiences with a focus on promoting the autonomy of the population served. We observed a transformation of the group that at first he behaved so close and resistant. A growing process of accountability for their lives was an important result observed among group members. Keywords: homeless; psychodrama; autonomy. Artigo Recebido em 08/10/2011 e Aprovado em 30/05/2012

Introdução “Eu sustento que a finalidade da ciência é aliviar a miséria humana”. B. Brecht

O presente artigo consiste em um relato de experiência sobre um trabalho de natureza interventiva cujo público alvo consiste de população de rua e pessoas em situação de risco social da cidade de Jataí GO. Realizaram-se intervenções com 122

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encontros semanais em grupo coordenados e planejados pelo docente e discentes que integram a equipe. Representa um trabalho de extensão com vistas a cumprir o objetivo da Universidade de servir e se aproximar da comunidade. Como objetivo principal, temos a promoção da autonomia dos usuários através do trabalho de grupo. Ainda buscamos oferecer um espaço para reflexão sobre o projeto de vida bem como facilitar a troca de experiências de maneira que um possa ser agente terapêutico do outro (Moreno, 1959). Finalmente, pretende-se a promoção de um espaço para a emergência de um processo de responsabilização pela própria vida. O nosso marco teórico e técnico de referência é o Psicodrama, especialmente o conceito de espontaneidade e a metodologia de trabalho em grupo. O presente trabalho cumpre com a expectativa de que haja uma aproximação da Universidade Federal de Goiás com a comunidade através dos projetos de extensão. Visa levar a Universidade para além de suas fronteiras, no intuito de entrar em contato com a realidade concreta e integrar a teoria com a prática. Reveste-se de importância, ainda, na medida em que coloca os estudantes frente a uma população excluída e pauperizada, na tentativa de sensibilizar os futuros profissionais para a atuação com setores da população em situações precárias. O projeto propõe intervenções de caráter emancipatório com uma população que não recebe nenhum atendimento por parte do poder público de Jataí - GO. Não existem políticas públicas na cidade para atender a população de rua. As únicas intervenções são de caráter assistencialista de iniciativa da sociedade civil. Portanto, é importante a

realização de um trabalho que almeje resgatar a autonomia de uma população excluída e assistida de maneira assistencialista. Ainda constata-se a relevância teórica do projeto, pois existem escassos trabalhos que descrevem e promovem uma reflexão sobre a população de rua de pequenas cidades. Geralmente encontram-se pesquisas realizadas com moradores de rua de grandes metrópoles (Varanda, 2004; Alvarez, 2004; Brito, 2006). Como resultado, teremos um panorama das especificidades dos moradores de rua de uma cidade pequena de aproximadamente 87 mil habitantes, material inexistente na literatura especializada. O objetivo principal seria a criação de um espaço para reflexão e trocas de experiências com o foco na promoção da autonomia da população atendida. O público-alvo freqüenta a instituição Nosso Lar – Casa de Apoio e nesta recebe diariamente alimentação, cuidados básicos de higiene e saúde (corte de cabelo, banho, curativos, etc.). Além disso, existe um espaço de oração e amparo religioso. A instituição é coordenada por Maides Abadia Nogueira que também é sua fundadora. O Nosso Lar conta com auxílio financeiro da Prefeitura Municipal de Jataí, doações e trabalho voluntário. No momento, doze voluntárias trabalham no Nosso Lar no preparo das refeições que são servidas diariamente de segunda à sexta-feira. A maioria dos usuários é do sexo masculino, alguns moram nas ruas, outros são os chamados “trecheiros” que percorrem trechos de uma cidade a outra em busca de oportunidades. Há ainda os que possuem casa, mas vivem em situação sócio-

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econômica precária. Em média, sessenta pessoas são atendidas diariamente. O nosso lar Após esta breve introdução, passemos a descrever a história da instituição Nosso Lar – Casa de Apoio. A idealizadora e atual dirigente da instituição é dona Maides que nos relata como teve início o seu trabalho. Ela mora em frente a uma praça localizada no centro da cidade, que é freqüentada por muitos moradores de rua. Dona Maides começou a sensibilizar-se com a situação precária em que se encontravam e passou fazer marmitas e oferecer aos moradores de rua. Durante dois anos ela obteve auxílio por meio de doações de supermercados e voluntários. Aos poucos o número de atendidos aumentou, fato que fez com os vizinhos queixassem à Prefeitura de Jataí. Dona Maides, então, pediu apoio à Prefeitura para preparar e fornecer as refeições em outro local. Uma casa foi alugada pela Prefeitura no início de 2009, necessitando de reparos e melhorias que foram feitos com o auxílio dos usuários e voluntários. Atualmente o compromisso da Prefeitura é o pagamento do aluguel, todo o restante é obtido por meio de doações. Segundo depoimento de Dona Maides, algumas voluntárias procuram o trabalho como forma de combate à própria depressão. Os moradores de rua Passemos a descrever e caracterizar os usuários da instituição. Os moradores de rua geralmente são pessoas que não têm mais documentos, não possuem trabalhos formais

nem moradia fixa e também se encontram com vínculos familiares e sociais rompidos. Estas rupturas conduzem esta população a um estado de crescente degradação e vulnerabilização. Podemos entender como população de rua aquela que supre necessidades de alimentação, sono e outras na rua. Adotamos a definição de Martins et al. (2006) que caracterizam os moradores de rua como aqueles que não possuem moradia, que moram nas ruas e também aqueles que vivem em albergues, abrigos e ainda os que vivem em lugares inseguros e precários. Esta definição é semelhante à adotada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) e retrata adequadamente o público com o qual trabalhamos. A situação de vulnerabilidade em que se encontra a população de rua é agravada pelas atuais polarizações econômicas, a reestruturação demográfica e pelas novas dinâmicas do trabalho que criam uma situação propícia para a concentração de riqueza no mundo e particularmente no Brasil, deixando graves seqüelas sociais sem a contrapartida do Estado diante da miserabilidade crônica da população. Mesmo que no Brasil existam soluções informais e às vezes ilícitas para se enfrentar os problemas da moradia – através da ocupação de áreas de mananciais e ocupação de prédios públicos, ou ainda para enfrentar o desemprego – através do trabalho informal, como é o caso dos ambulantes, um grande número de pessoas acaba nas ruas com a ausência de políticas públicas de apoio (Varanda, 2004). Agora passemos a discutir a terminologia da população de rua, segundo Varanda (2004). Geralmente, estes termos são utilizados pela própria população de rua. Os maloqueiros são aqueles que

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dormem nas ruas, nas chamadas malocas, isto é, locais onde pequenos grupos ficam durante o dia ou na noite que são compostos por colchões velhos, algum canto reservado para os pertences pessoais (roupas e documentos) e, às vezes, utensílios de cozinha. O usuário de albergue ou albergado é quem se refugia em albergues. "Trecheiro" ou andarilho é o termo vindo dos trabalhadores que transitavam de uma cidade para outra a procura de trabalho, e que continua sendo usado pejorativamente por uns e naturalmente por quem já teve a experiência de trecho. Em geral, as viagens são tipicamente padronizadas e não aleatórias. "Pardais" são os moradores de rua que se fixam e não trabalham. Os usuários de álcool são denominados de bêbado, alcoólatras ou bebuns. Na visão destes, as outras pessoas que utilizam outras drogas, como a maconha, o crack e a cocaína são os “nóias”, especificadamente os que usam crack são conhecidos pelo nome de "pedreiros". Há também os doentes mentais que sobrevivem principalmente aceitando doações, catando comida no lixo e mendigando. Na sua rotina de vida não incluem o uso de álcool e droga, são os mais reclusos e socialmente isolados até pelos próprios “vizinhos” de calçada. É importante ressaltar que atualmente a população de rua não mais se restringe à figura do mendigo, tendo seu perfil se tornado mais variado. Percebem-se nas ruas, desempregados, doentes mentais, idosos, dependentes químicos, migrantes, dentre outros (Martins e colaboradores, 2006). Esta população encontra-se entregue às drogas, ao consumo excessivo de álcool, à violência e criminalidade. Alvarez (2004) aponta as situações existenciais extremas a que estão

submetidos os moradores de rua. Estes vivem sem proteção para os próprios corpos, expostos a violências, mendicância e embriaguez. Em um estudo realizado pela autora, com um grupo da cidade de São Paulo, percebe-se o sentimento de vergonha em face da situação em que viviam. Outro sentimento preponderante é a desconfiança na sociedade e na própria capacidade para enfrentar necessidades urgentes. A cidade possui, de um lado, o segmento dos integrados, com melhores e mais justas oportunidades. Do outro lado, os que sobrevivem às sobras do banquete dos eleitos. Estes excluídos colecionam perdas que podem os levar à criminalidade ou à drogadicção, como aponta a autora: Muitos dos moradores de rua, os caídos pertencentes a esse segmento social de excluídos, perderam-se de si mesmos. Junto às perdas de endereços, certidões de nascimento, carteiras de identidades – símbolos de cidadania – entrecruzam-se as perdas de esperança, do sentido da vida, da vontade de viver (Alvarez, 2004, p. 50) Em decorrência desta situação os moradores de rua podem se envolver com a criminalidade, fato que os retira de uma situação de invisibilidade. A violência se apresenta como resposta à falta de reconhecimento social. Desta forma, passam a ser vistos na categoria de “bandido” que deve ser banido da sociedade para as prisões. Outra forma de lidar com a falta de sentido seria o consumo de álcool e drogas que representa uma busca de anestesiar a dor psíquica, mas que termina por afundar o usuário em desespero e vergonha. Brito (2006) por outro lado, faz uma análise de que a rua não representa um

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espaço de solidão, sendo um espaço de organização de uma rede de camaradagem e convivência. As pessoas e grupos profundamente empobrecidos, lesados em sua dignidade e autonomia, sem os recursos básicos necessários à subsistência, utilizam a rua como espaço simbólico como afirma a autora: A apropriação do espaço público por esses “noveaux pauvres” para o desenvolvimento de atividades de mendicância, mercantil, criativa ou moradia se fundamenta em um sistema de classificação que acaba por delimitar “arenas” cujas regras de convivência estão constantemente abertas ao debate entre eles e os concorrentes usuários desses espaços, que são os donos e trabalhadores de empresas, residentes e cidadãos que por aí transitam no cotidiano. A coexistência de usos, de interesses e atividades diversas no espaço público torna-se possível através de negociações recorrentes, que objetivam a construção de acordos ou consentimentos forçados (Brito, 2006, p.322). A vida nas ruas depende de negociações que geram regras de convivência nas quais é preciso fazer uso da força física e da criatividade para a sobrevivência. Em relação à maneira como são vistos pela sociedade, observam-se duas reações que vão da piedade ao temor (Mendes & Machado, 2004). Os vizinhos e transeuntes que convivem com os moradores de rua ora enxergam estes como vítimas, que sofrem e precisam da misericórdia alheia. Neste ponto, podem originar-se ações assistencialistas em direção a população de rua, muitas vezes entremeadas por questões

religiosas. Outro tipo de caracterização seria a de que o morador de rua pode ser violento, colocando o outro numa posição de medo e ameaça. O temor pode gerar ódio como forma defensiva, expondo a população de rua a humilhações e violências. Exemplo disto são os recentes ataques sofridos por moradores de rua, geralmente perpetrados por grupos de jovens de classe média alta. Diante do exposto este trabalho de extensão teve como intuito contrapor as soluções assistencialistas na tentativa de promover um espaço para que os usuários possam refletir sobre as próprias vidas e responsabilizarem-se por elas. O intuito é que a população atendida pudesse resgatar sua dignidade e autonomia através das trocas de experiências no grupo. Como convite à responsabilização os moradores de rua são compelidos a saírem da posição de vítimas, de quem sempre precisará da ajuda dos outros. Psicodrama e autonomia Pode-se dizer que temos dois pilares que sustentaram o nosso trabalho. Um deles seria a noção de autonomia, o outro seria o conceito de espontaneidade do Psicodrama. Adota-se o conceito de autonomia tendo como base o pensamento de Paulo Freire (Afonso, Vieira-Silva & Abade, 2009). A ideia de autonomia apóia-se na liberdade do ser humano. Neste caso, as práticas educativas devem ser direcionadas para que o ser humano possa rever, avaliar e até mesmo mudar os conceitos culturais que são recebidos na socialização. A concepção antropológica do ser humano como um projeto inacabado, sem uma essência predeterminada, leva-nos a entender que cada pessoa deve completar a sua

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socialização para se humanizar. A autonomia permite a construção de uma capacidade crítica que possa avaliar os conceitos culturais recebidos, exercendo um posicionamento diante deles. Outro pilar do nosso trabalho é o conceito de Espontaneidade que também se baseia no princípio da liberdade do ser humano. Espontaneidade é o estado produtor de todo processo criativo. Vejamos a definição de espontaneidade para Moreno, criador do Psicodrama: É a capacidade de um indivíduo para enfrentar adequadamente cada nova situação ou dar novas respostas para situações antigas” (Moreno, 1975, p. 132). Quando Moreno refere-se à adequação da ação, ele quer dizer que o indivíduo espontâneo enfrenta novas situações utilizando-se livremente dos seus recursos inteligência, memória, percepção, sentimentos, dentre outros - com um mínimo possível de restrições exteriores e entraves internos. Nesse caso, o indivíduo experimenta um estado de autonomia e liberdade, um livre fluxo de sentimentos, em que sua ação está em sintonia com seus sentimentos e pensamentos. Naffah-Neto (1997) estabelece uma revisão dos conceitos elaborados por Moreno e questiona a questão da adequação da resposta. O autor argumenta que subjaz no conceito de espontaneidade de Moreno uma relação de exterioridade do sujeito com relação à sociedade. Como o Psicodrama é uma abordagem existencialista a relação do sujeito com a sociedade não seria de oposição e sim como ser-no-mundo. Assim, espontaneidade seria uma relação de compromisso entre sujeito e mundo, num esforço de recuperação de uma presença

atuante e integrante da situação. Dentro desta perspectiva, este trabalho objetivou, através da realização dos grupos de encontro, promover entre os moradores de rua a capacidade de recuperação da presença atuante e da abertura para o real. Em termos morenianos buscou-se, através das reflexões proporcionadas pelas trocas de experiências em grupo, que os usuários pudessem alcançar e desenvolver a capacidade de dar novas respostas às situações antigas. Em vista do exposto acima, é importante salientar que temos uma visão crítica com relação aos trabalhos assistencialistas que podem manter as pessoas em um estado de indigência, como aponta Brito Na falta de uma política consistente, apresentam-se muitas vezes, nas ruas, os mais variados segmentos sociais caritativos, que acabam por realizar, com o desprendimento e boa vontade que lhes são próprios, a proeza de cuidar, mantendo as pessoas em um estado de indigência, humilhação e assujeitamento, alimentando um processo que poderíamos denominar institucionalização da população na rua (Brito, 2006, p. 322) Tanto o nosso trabalho quanto os referidos trabalhos caritativos encontram enormes barreiras e limites devido à péssima distribuição de renda no país que concentra excessivamente a renda em uma camada privilegiada da população, a inexistência de uma política governamental de geração de trabalho e a ausência de uma política digna de saúde, educação e habitação. Ademais, os trabalhos caritativos proliferam como forma de compensação a toda esta carência de políticas públicas adequadas a esta população. O grande

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problema é que este tipo de trabalho mantém esta população refém de uma posição de quem sempre espera a ajuda do outro. Deste modo, o morador de rua perde a oportunidade de acionar saídas singulares e autônomas para seus obstáculos. Intervenções em grupo A proposta divide-se em dois momentos e espaços. Temos um espaço de supervisão com reflexões embasadas em artigos especializados para que se integre teoria e prática. Neste espaço, no qual participam o docente e os alunos que integram a equipe, são discutidos os encontros e analisadas as dificuldades e progressos na condução do grupo. Há ainda um momento no qual o próximo encontro é planejado. O outro espaço são os encontros em grupo com os moradores de rua realizados na instituição Nosso Lar. O relato a seguir refere-se às intervenções realizadas com os moradores de rua. A estrutura do encontro foi planejada tendo-se sempre em foco os objetivos do trabalho. Utiliza-se a estrutura dentro do referencial do Psicodrama (Vieira, 2009). Desta forma, os encontros passam por três fases: - O aquecimento que seria a preparação do grupo com vistas à busca de um problema em comum e do protagonista adequado. Geralmente utilizamos técnicas para estimular o corpo para atitudes e atuações espontâneas. - A fase da ação propriamente dita. Nesta fase propomos ao grupo jogos dramáticos e exercícios de dinâmica de grupos coerentes com o tema planejado. - O compartilhamento no qual estimulamos os membros do grupo a

fazerem uma reflexão sobre a contribuição do encontro para as suas vidas. Os temas trabalhados foram: perspectivas e sonhos para o futuro, linha da vida (acontecimentos importantes), como lido com a ansiedade, como posso dar novas respostas para antigos problemas, será que é possível reparar erros do passado, identidade, dentre outros. Os encontros em grupo aconteceram de maio de 2009 a maio de 2010. Os encontros eram abertos, ou seja, novos membros poderiam participar no decorrer do trabalho. A idade dos participantes foi bastante variada, desde jovens até idosos integravam os encontros. A grande maioria dos participantes era do sexo masculino. Como o público era muito flutuante, tentamos planejar os encontros de forma que pudéssemos dar um fechamento em cada intervenção. Procedemos aos moldes das primeiras sessões de Psicodrama realizadas por Moreno, nas quais ele não tinha a pretensão de fazer um trabalho processual; cada sessão tinha um valor em si mesma (Moreno, 1959). Relataremos, a seguir, alguns resultados observados do trabalho. Para a apresentação dos resultados, ilustraremos com trechos das falas dos participantes. Nos primeiros encontros pode-se observar que os membros do grupo estavam fechados e resistentes com relação ao trabalho. Alegavam que tinham “vergonha” em se expressar em grupo. No nosso entendimento, talvez não estivesse muito claro, até então, a nossa proposta. Estabelecemos um contrato com eles, explicando que se trata de um trabalho de extensão da UFG, envolvendo alunos e professor. Explicamos, também, que o objetivo de desenvolver o trabalho no Nosso

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Lar tem ligação com um valor do grupo que é o de levar os conhecimentos da psicologia para quem não pode pagar este serviço. Parece que depois desta explicação o vínculo de confiança entre nós e eles começou a ser construído. Pôde-se perceber que o grupo passou de uma fase de indiferenciação no qual se encontrava caótico e indiferenciado até o momento em que houve uma diferenciação dos participantes com espaço para a manifestação das singularidades (Yozo, 1996). O vínculo desenvolvido e o envolvimento da equipe de trabalho com os usuários foram muito importantes para a emergência da organização grupal. Trabalhamos, então, fazendo um levantamento sobre os temas que eles julgavam importantes para serem tratados nos próximos encontros. O tema do alcoolismo se destacou como o mais importante ao longo dos encontros. Eles nos apresentaram uma demanda de auxílio no que diz respeito ao alcoolismo, além de pedirem um espaço para que pudessem refletir sobre erros que cometem sem terem consciência. Através de nossas observações constatamos que os moradores de rua adotam modos de existência rígidos com defesas psicológicas que os levam a uma condição de anestesia e congelamento. Talvez como reação à rejeição vinda da sociedade e da solidão diante dos laços familiares rompidos. O consumo excessivo de álcool pode ter uma função de defesa, anestesiando sentimentos penosos. Este congelamento fomentado pelo alcoolismo pode contribuir pela perda gradativa da espontaneidade. Retomamos o conceito de espontaneidade desenvolvido por NaffahNeto (1997) de que esta seria uma relação de compromisso entre sujeito e mundo.

Buscamos preparar os encontros de forma a promover a recuperação da presença ativa e da abertura para as possibilidades da existência. Nas intervenções eram estimuladas reflexões de que é possível “recuperar o tempo perdido”. Fizemos algumas dramatizações nas quais trabalhamos situações inacabadas do passado, projetos para o futuro, como forma de recuperar a relação de compromisso com a situação presente que é onde emergem as possibilidades de recriação de si mesmo. Outro tema que foi trazido com bastante ênfase foi a importância da instituição Nosso Lar, que representa um local de refúgio, de convivência e de reflexão sobre a própria vida, conforme se percebe na seguinte fala: “Sou liberto do álcool porque tive ajuda dessa casa aqui”. Os encontros possibilitaram a troca de experiências ente eles, um torna-se o agente terapêutico do outro. De acordo com Moreno (1959), um dos fatores responsáveis pela eficácia de um trabalho em grupo é o fato de que os membros podem ser agentes terapêuticos um do outro, ou seja, o potencial terapêutico não se realiza somente nas intervenções do coordenador do grupo. A troca de experiências entre os componentes do grupo pode levá-los a uma experiência na qual um aprende com o outro e cada membro do grupo não se percebe isolado em sua problemática. O nosso trabalho tem como foco intervenções que proporcionem um crescente processo de responsabilização por parte dos usuários. Como já foi dito anteriormente, estes sujeitos recebem benefícios de práticas assistencialistas que, de acordo com Brito (2006), culminam por manter este público em uma situação de assujeitamento e humilhação. O nosso

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GRUPOS DE ENCONTRO COM MORADORES DE RUA DA CIDADE DE JATAÍ-GO: UMA EXPERIÊNCIA PSICODRAMÁTICA

projeto tem como objetivo romper com este tipo de prática com o intuito de promover um espaço para a responsabilização dos sujeitos pela própria vida. Entendemos que esta população vive em condições de risco social, mas a nossa intenção é levá-los a refletir sobre o que podem fazer dentro das suas condições. Alguns resultados já podem ser observados neste sentido, conforme é demonstrado pelas seguintes falas: Não vou desistir. Vou correr atrás e arrumar um serviço”; É preciso ter calma ir devagar em cima do problema, iniciativa para resolver seus problemas... “Não esperar cair do céu... A reflexão “não esperar cair do céu” foi bastante recorrente no grupo. Em alguns encontros os membros do grupo dizem que não se pode ficar esperando a ajuda de Deus sem que cada um faça a sua parte, que cada um tome a iniciativa de melhorar a própria vida. Parece-nos que a capacidade de dar novas respostas para situações antigas foi sendo alcançada pelos usuários do Nosso Lar. Considerações finais O vínculo construído entre a equipe e os moradores de rua parece ter contribuído para o resgate da dignidade destes. Os usuários do Nosso Lar sentiram-se acolhidos e compreendidos sem o julgamento de que geralmente são alvos. O espaço de reflexão proporcionado pelos encontros em grupo permitiu a ruptura com

comportamentos e pensamentos estereotipados. A cristalização em que se encontravam esperando a ajuda divina com a percepção de falta de saída foi sendo gradativamente quebrada. A equipe de trabalho conseguiu diminuir a distância que tinham com relação à população de rua. Nas supervisões, os discentes relataram que, antes da realização do trabalho, tinham muito preconceito em relação aos moradores de rua. Sentimentos de medo ou pena foram sendo substituídos por uma relação de cumplicidade, em que os alunos perceberam que tinham muito em comum com os moradores de rua. O projeto foi bem sucedido no sentido de sensibilizar os futuros psicólogos para o trabalho com parcelas da população pauperizadas. Constatamos a necessidade urgente do desenvolvimento de políticas públicas para a população de rua. Como um grupo social que sofre forte padrão discriminatório, fazse mister a construção de tratamento diferenciado e especial. Existe uma grande indiferença do Estado em relação a esta população, que não aparece como uma prioridade das políticas públicas, refletindo a situação de invisibilidade que os moradores de rua se encontram. Eles não têm acesso a programas de transferência de renda, porque é exigida a residência fixa nestes casos. Essa omissão dos governos em relação ao morador de rua demonstra que eles representam o “lixo” urbano contemporâneo.

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ÉRICO DOUGLAS VIEIRA, BÁRBARA MARIA OLIVEIRA ASSIS, DENICE RESENDE SILVA, FERNANDA SILVA DE MEIRA, JOÃO VICTOR BUENO LOPES, MAYKON RICHARD MIRANDA DE MOURA, ZÉLIA BORGES SOUZA ROCHA

Referências Afonso, M. L. M.; Vieira-Silva, M. & Abade, F. L. (2009). O processo grupal e a educação de jovens e adultos. Psicologia em Estudos. 4, 707-715. Alvarez, A. M. de S.; Alvarenga, A. T. & Fielder-Ferrara, N. (2004). O encontro transformador em moradores de rua na cidade de São Paulo. Psicologia & Sociedade. 3, 47-56. Alvarez, A. M. S.; Alvarenga, A. T. & Rina, S. C. S. A. D. Histórias de vida de moradores de rua, situações de exclusão social e encontros transformadores. Saúde e Sociedade. 2, 259-272. Brito, M. M. M. (2006). A abordagem e a clínica no atendimento aos moradores de rua portadores de sofrimento psíquico. Psicologia Ciência e Profissão. 2, 320-327. Martins, M. P.; Monterio, A. V.; Benine, G. C.; Campos, L. C.; Carvalho, R. S. & Lima, S.S. Como os moradores de rua percebem a si mesmos? Revista CES Juiz de Fora. 1, 169177. Mendes, A. A. & Machado, M. F. (2004). Uma clínica para o atendimento a moradores de rua: direitos humanos e composição do sujeito. Psicologia Ciência e Profissão 3, 100105. Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. São Paulo: Cultrix. Moreno, J. L. (1959). Psicoterapia de grupo e psicodrama. São Paulo: Mestre Jou. Naffah-Neto, A.(1997). Psicodrama: descolonizando o imaginário. São Paulo: Plexus Editora. Varanda, W. & Adorno, R. C. F. (2004). Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade. 1, 56-69. Vieira, É. D. (2009). Psicodrama: Introdução à Teoria, Prática e Pesquisa. Revista da Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro. 13 (1) 88-93. Yozo, R. Y. K. (1996). 100 jogos para grupos:uma abordagem psicodramática para empresas, escolas e clínicas. São Paulo: Ágora.

Os autores:

Érico Douglas Vieira é psicólogo pela UFMG; Mestre em Psicologia pela PUC Minas; Professor do curso de Psicologia da UFG – Campus Jataí; Rua Dona Esmeralda, 606 – St Vila Fátima - Cep: 75803-095 - Jataí - GO Fone: (64) 3606-8127 E-mail: [email protected] Bárbara Maria Oliveira Assis; Denice Resende Silva; Fernanda Silva de Meira; João Victor Bueno Lopes; Maykon Richard Miranda de Moura; Zélia Borges Souza Rocha são discente do curso de Psicologia da UFG – Campus Jataí; Rua Riachuelo, 1530 – Setor Samuel Graham- CEP: 75804-020- Jataí - GO Fone: (64) 3606-8127.

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REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA O PAPEL DOS AFETOS NAS RELAÇÕES ESCOLARES DE ADOLESCENTES Jeferson Carlos Bordignon Vera Lucia Trevisan de Souza (PUCAMP – Campinas – SP) Resumo O presente artigo tem por objetivo relatar uma pesquisa1 que buscou investigar a influência dos afetos nas relações escolares de adolescentes, tendo como aporte teórico-metodológico a Psicologia Histórico-Cultural. De natureza empírica e desenvolvida em uma escola pública municipal, teve como sujeitos 52 alunos do nono ano do ensino fundamental, com os quais se desenvolveram discussões a partir de dois filmes abordando questões da adolescência. Como resultado, constatou-se que a não satisfação de necessidades afetivas próprias dos adolescentes prejudica seu desenvolvimento pessoal e acadêmico. O que indica a necessidade de se criar espaços para a expressão, discussão e reflexão sobre afetos e afetividade. Palavras-chave: afetividade; adolescência; psicologia histórico-cultural; brincadeiras; agressividade.

Abstract The role of the affects in adolescents school relations This article aims to report research that sought to investigate the influence of affects in adolescent school relations, with the theoretical and methodological Historic-Cultural Psychology. Empirical and developed in a school had 52 students as subjects of the ninth year of elementary school, with whom discussions were developed from two films addressing issues of adolescence. As a result, it was found that the non-satisfaction of emotional needs of adolescents affect their own development, both in the personal and academic skills. This indicates the need to create spaces for expression, discussion and reflection on feelings and affection. Keywords: affection; adolescence; historical-cultural psychology, joking, aggressiveness. Artigo Recebido em 02/01/2012 e Aprovado em 30/09/2012

Introdução Todo trabalho que se proponha científico deve deixar sua perspectiva teórico-metodológica bem clara, de modo que o leitor possa apreender não apenas seus resultados e conclusões, mas, também, o porquê de ter sido realizado de dada maneira. Desta forma, achamos por bem iniciar este relato explicitando nossa orientação teórica por meio da apresentação

dos pressupostos teórico-metodológicos que fundamentam a presente pesquisa. O ponto de vista científico aqui adotado comunga com os pressupostos de uma psicologia de base materialista dialética, apoiado mais especificamente em ideias de dois autores. O primeiro é o soviético e pioneiro da Psicologia Histórico-cultural, Lev S. Vigotski e o segundo é o francês Henri Wallon, que se dedicou à psicologia do desenvolvimento.

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Conforme assinalam Mahoney, Almeida e Almeida (2006), é possível desenvolver trabalhos tomando Wallon e Vigotski como referência pois a produção de ambos, ainda que apresentem muitas especificidades, compartilham do mesmo referencial epistemológico, ou seja, o materialismo histórico-dialético como método de investigação dos fenômenos psíquicos. Além destes teóricos, dialogamos também com alguns autores brasileiros que desenvolvem trabalhos dentro desta perspectiva teórico-metodológica e produzem referências para o tema abordado, qual seja, o papel que assumem os afetos para os adolescentes em suas relações escolares. O pressuposto que fundamenta a psicologia histórico-cultural, ou seja, o materialismo histórico e dialético permite que ela seja considerada de uma perspectiva crítica. A dialética é crítica em dois sentidos: não toma a realidade como se apresenta, questionando-a até descobrir seus nexos internos constitutivos; e, ao mesmo tempo, toma criticamente as explicações existentes sobre esta realidade, sendo a realidade compreendida como movimento e transformação em dependência recíproca. Os fatos da realidade podem ser explicados na medida em que se compreende a trama de relações em que se inserem. Neste sentido, o ser humano é compreendido como fato social e multideterminado, relacionando-se com pessoas e instituições com modos próprios, objetivando características do local e época em que vive e construindo-se à medida que também constrói a sociedade (Ianni, 1984). Para Vigotski, as determinações biológicas predominam sobre as culturais apenas no início da vida. A partir de um

dado momento, por volta dos dois anos, quando pensamento e fala se cruzam dando origem ao pensamento verbal, esta predominância se inverte e passam a prevalecer as determinações de origem social, sendo a fala o principal meio de acesso ao social. Tanto a fala como o pensamento e a consciência se desenvolvem a partir do e no trabalho, entendendo-se trabalho no sentido marxista, como ação no mundo (Palangana, 1994). Por sua vez, Wallon considera o desenvolvimento humano como partindo de uma fusão de pulsões indiferenciadas para a progressiva diferenciação na medida em que a pessoa se relaciona com os “outros” nos meios e grupos de que participa. Para fins de descrição científica, divide o estudo do desenvolvimento da pessoa, que é íntegra, em quatro conjuntos funcionais: o conjunto afetivo, o conjunto do ato motor, o conjunto cognitivo e a própria pessoa, que seria a integração dos outros conjuntos em suas inúmeras possibilidades (Mahoney & Almeida, 2005; Wallon, 1975). Por este se tratar de um trabalho que investiga o papel e a importância dos afetos no meio escolar, nos deteremos mais sobre o conjunto afetivo. Este compreende as noções de emoção, que é a exteriorização da afetividade, sua expressão mais primitiva, sentimento, entendido como a expressão representacional da afetividade e paixão, a ativação do autocontrole para dominar uma dada situação (Mahoney & Almeida, 2005). Para ambos os autores, portanto, as interações sociais assumem um papel crucial no desenvolvimento do ser humano, seja nos aspectos afetivos, cognitivos, motores ou relacionais. Adotando estes pressupostos para se estudar os sujeitos,

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cabe explicitar de que especificamente estamos falando.

sujeito

A adolescência e o adolescente A adolescência como se concebe hoje é um fenômeno recente, dentro da também recente disciplina científica que é a psicologia. Os primeiros estudos sobre o assunto remontam ao início do século XX. Desde então, a adolescência assume um aspecto indissociável de “tormenta e drama”, um momento turbulento em que o sujeito (adolescente) passaria por uma série de mudanças físicas e psicológicas repentinas e dramáticas, além de crises pessoais profundas (Palácios, 1995). Esta concepção encontrou eco principalmente em produções de cunho psicanalítico, que evidenciam este aspecto turbulento, o que acabou contribuindo para uma visão patologizante sobre uma etapa do desenvolvimento humano (Aguiar, Bock & Ozella, 2007). Contudo, apesar de ser uma concepção hegemônica, esta não é a única. Estudos de orientações mais culturais e antropológicas vieram contribuir para a compreensão da adolescência e do adolescente como realidades cuja origem e desenvolvimento remetem à sua cultura (Palácios, 1995). Esta é a posição aqui adotada, por se tratar de uma perspectiva científica crítica, que considera os fatos e fenômenos contextualmente. O adolescente e a adolescência são aqui concebidos sóciohistoricamente, ou seja, a adolescência é compreendida como uma etapa da vida que se desenvolve na sociedade, uma fase do desenvolvimento e uma etapa na história da humanidade, tal como a postula Vigotski (1996).

Esta concepção “despatologiza” o desenvolvimento humano na medida em que o torna histórico. É a sociedade, criada por nós mesmos, que nos permite “ser” ou “não ser” de um determinado modo, e a “normalidade” é compreendida como o que os homens valorizam como “normal” e não um estado natural e eterno (Aguiar, Bock & Ozella, 2007). Por compreender que a concepção sócio-histórica contribui para uma nãonaturalização de fenômenos sociais e para uma compreensão mais contextual e histórica destes fenômenos, é que ela é aqui adotada. Resta saber como compreendemos os afetos na escola, seu papel e importância para o desenvolvimento e as relações do adolescente que estuda. Os afetos e as relações Eescolares O afeto encontra-se na base de todo comportamento, é o que dá condição para a cognição e o ato motor se desenvolverem. E é nas relações que se desenvolvem. Por afetividade, entende-se a capacidade do ser humano de ser afetado pelo meio externo ou interno, por sensações ligadas a tonalidades agradáveis ou desagradáveis e de reagir interna ou externamente a estas sensações despertadas. Há três momentos marcantes na evolução da afetividade: emoção (ativação fisiológica), sentimento (ativação representacional), paixão (ativação do autocontrole). Os três momentos resultam de fatores orgânicos e sociais (Mahoney & Almeida, 2005). Compreendendo a emoção como o primeiro - e mais primitivo, no sentido genético - elo entre o sujeito e o mundo, pode-se afirmar que é nas relações com os grupos que o sujeito se desenvolve,

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entendendo como grupos a família, a escola e a própria sociedade (Wallon, 1975). À escola cabe transmitir o conhecimento historicamente construído aos alunos por meio do processo de ensino-aprendizagem, que, como todas as demais relações humanas, também está pautado pela afetividade. Neste sentido, a qualidade das relações que o adolescente vivencia na escola, seja com o próprio objeto de estudo, seja com os professores e colegas é o que irá contribuir para um desenvolvimento mais ou menos pleno e saudável do adolescente, assim como para sua formação como sujeito ativo na sociedade e na própria vida (Dér & Ferrari, 2000). Objetivo O presente trabalho teve como objetivo conhecer e analisar os afetos presentes nas relações escolares de adolescentes, focalizando a natureza desses afetos, de modo a compreender sua influência na vida dos adolescentes e na dinâmica das relações com os professores, com a aprendizagem e com seus pares. Método Para Vigotski (2004), o método em uma pesquisa está extremamente imbricado com seu objeto. Para ele, o objeto de estudo da psicologia é o sujeito histórico, inserido em inúmeras relações com seu meio e seus pares. Portanto, é nas relações que os sentidos se configuram e é a partir da observação e análise das relações e de sua historicidade que os sentidos se revelam. O que se deve buscar no processo de análise são os motivos, necessidades e desejos que

se escondem por trás do que é dito ou expresso pelos sujeitos. A análise envolve a explicação, que é estabelecer uma conexão entre vários fatos ou vários grupos de fatos, referir uma série de fenômenos à outra, definir em termos de causas. Instituição e sujeitos de pesquisa O presente trabalho foi desenvolvido em uma escola da rede municipal de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, que oferece o Ensino Fundamental, ciclo I e II e Educação de Jovens e Adultos. Atende por volta de 1300 alunos, que pertencem à classe socioeconômica de baixa renda. O campo é o mesmo em que ocorrem outras pesquisas do grupo Processos de Constituição do Sujeito em Práticas Educativas (PROSPED), ao qual a presente pesquisa se vincula. Os sujeitos envolvidos na pesquisa cursavam o nono ano do ensino fundamental, distribuídos em quatro classes com a média de 24 alunos por sala. Não é possível precisar o número exato de participantes da pesquisa, visto que os alunos faltavam excessivamente á escola. As idades dos adolescentes variavam de 14 a 16 anos, sendo que havia sujeitos de 17 e até 18 anos. Procedimentos As atividades tiveram início com a apresentação do projeto para os professores e os alunos. Foram utilizadas duas aulas de cada sala para observação, cujos apontamentos resultaram em diários de campo das atividades. Posteriormente, foi exibido um documentário para duas salas de cada vez,

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sendo que a exibição deste tomou duas aulas. As reações dos adolescentes durante a exibição do filme foram registradas. As aulas subseqüentes foram utilizadas para a discussão do filme, que ocupou uma aula de cada sala. As discussões, quando foi possível, foram gravadas em áudio e depois transcritas para compor o conjunto de informações. Quando não houve a possibilidade de gravação, foram utilizados apontamentos como forma de registro. Na sequência, foi exibido o segundo filme, cujos procedimentos corresponderam aos acima apontados. Encerradas as exibições e discussões dos filmes, permanecemos na escola até o término do ano letivo, fazendo observações em sala de aula. Nesta fase, aplicamos o instrumento de complemento de frases a 52 alunos, sendo 25 meninos e 27 meninas. Após, fizemos o desligamento e encerramento das atividades de campo. Resultados e Discussão A experiência desta pesquisa nos permitiu constatar que a dimensão afetiva é preponderante nas atitudes dos adolescentes na escola e que parece determiná-las. Este modo de funcionar guiado pelo afetivo se objetiva em condutas que assumem um aspecto de descompromisso, apatia e indisciplina na visão daqueles que convivem no cotidiano com o público adolescente, sobretudo os professores. Condutas como toques corporais abundantes, com tonalidades que vão da agressão ao cuidado, conversas incessantes, atividades alheias à aula, xingamentos recíprocos e outros são exemplos classificados pelos professores como indisciplina ou violência.

Porém, apesar desse aparente aspecto negativo que caracteriza essas condutas, o que se observa é que os adolescentes as vivenciam como brincadeira, o que nos faz pensar que estes comportamentos se configuram, para além de um aspecto violento, como um modo próprio dos adolescentes pesquisados se relacionarem e se comunicarem na escola. E como compreender esta maneira tão particular de relacionamento que atrela violência e convivência, agressão e brincadeira no âmbito escolar? Cabe analisar como os adolescentes representam para si a escola para depois voltarmos à questão da comunicação propriamente dita. A escola para e pelos adolescentes As respostas do complemento de frases que dizem respeito a como os adolescentes configuram para si a escola foram organizadas em “afetos de tonalidade positiva” e “afetos de tonalidade negativa”. Entre as manifestações com tonalidade afetiva positiva (que são minoria) encontrase que os alunos consideram a escola “importante”, “boa para o futuro”, “legal”. Porém, inspirando-se na psicologia histórico cultural, pode-se considerar que estas respostas expressam um discurso socialmente apropriado pelos adolescentes no que diz respeito à escola ou aos estudos, visto que o comportamento deles em sala de aula contradiz os sentidos positivos atribuídos à escola: via de regra, a conduta dos adolescentes durante as aulas revelam desinteresse e descompromisso. Porém, entre as respostas com tonalidade afetiva negativa, encontram-se manifestações sui generis que coincidem com os comportamentos observados em sala

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de aula. Consideram a escola como “cadeia”, “tortura”, “lixo”, além de diversas expressões chulas que não cabe reproduzir aqui, mas que evidenciam o quanto os adolescentes depreciam a escola. Entre os sentimentos vivenciados nela, figuram “tédio”, “raiva” e “vontade de ir embora”. Uma hipótese que poderia explicar esses sentimentos em relação à escola é o fato de a escola, a família ou quaisquer outros meios sociais não oferecerem espaço para os jovens expressarem e elaborarem suas emoções, que assumem relevância nesta fase de transição que caracteriza a adolescência. A impossibilidade de elaborar as emoções, de modo a significá-las e atribuir-lhes sentido prejudica o próprio processo de ensino-aprendizagem, o que se expressa, no caso da presente pesquisa, na falta de domínio pelos alunos da forma culta da língua portuguesa, por exemplo, apesar de estarem no último ano do ensino fundamental. Há que se considerar, também, o fato de que o adolescente é um sujeito vivendo em determinada época e cultura, e na nossa cultura tudo o que é veiculado sobre a adolescência remete à rapidez, imediatismo, transitoriedade, etc. O modo como os jovens vivenciam essas experiências se reflete em suas atitudes em relação à escola. O fato de a escola se caracterizar como local em que a cognição e a reflexão são privilegiadas, exigindo do estudante que pense, reflita e preste atenção, enfim, que dedique tempo e esforço para se apropriar dos conhecimentos veiculados em sala de aula, parece ser o que faz com que a escola seja encarada como chata, vista como cadeia e vivida como tortura, sendo um fardo permanecer nela e um alívio o sinal do intervalo e do término das aulas.

Entretanto, este modo de conceber a escola parece em parte produzido pela própria escola, na medida em que não corresponde à velocidade e dinamismo atribuídos ao “ser adolescente”. Essa compreensão de como a adolescência é produzida pela cultura e como, a um só tempo, também a produz, sobretudo na escola, é fundamental para que se avance na superação dos problemas enfrentados neste contexto social. Comunicação dos adolescentes na escola Para analisarmos mais de perto os fenômenos relativos à comunicação dos adolescentes na escola, dividiremos esta grande categoria em subcategorias representadas como conflitos e presentes nas modalidades de relação que seguem abaixo. Em cada uma dessas subcategorias uma forma de relação assume a prevalência e será a partir delas que empreenderemos nossa análise. Relação professor/aluno: envolvimento X alheamento A) Ficamos todos em silêncio novamente e a professora, que novamente havia se sentado do lado de fora da roda, me ajudou, ela disse aos alunos que sabia por que eles estavam quietos e até os entendia, mas o que achava que iria ajudar na discussão era pensar sobre a questão do preconceito envolvendo estes assuntos (homossexualidade). (DC17) Este exemplo caracteriza o conflito envolvendo a relação professor/aluno como envolvimento versus alheamento, pois a

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professora, apesar de conhecer a classe e se envolver com ela na questão discutida, senta-se do lado de fora da roda de discussão, limitando-se a intervenções pontuais a respeito de um ou outro assunto. Há uma hesitação entre o envolver-se realmente com os adolescentes no que diz respeito às suas demandas afetivas e dificuldades de relação e o permanecer alheia, cumprindo o papel do modelo socialmente difundido de professora detentora do saber, em que o conhecimento é cindido do afeto. Esse modelo, que possivelmente foi apropriado por esta professora no seu modo de lidar cotidiano com sua atividade profissional/educacional, parece difícil de ser rompido, ainda que se busque facilitar sua interação com os alunos. Entretanto, uma outra forma de relação entre professor e alunos convive no mesmo contexto escolar: B) O professor comenta que somente a educação poderia quebrar este ciclo de gravidez que continua se repetindo geração após geração, fala sobre a importância do lúdico e da brincadeira na vida das pessoas e sobre a importância também de carinho e atenção. “Saiu na chuva é para se molhar, por isto precisa estar preparado, senão rebola” diz ele e rebola, junto com mais uma aluna. (DC-5) O trecho acima relata um momento da aula de um professor que parece conseguir articular conhecimento e afeto em sua ação docente. Ao mesmo tempo em que explica a matéria, incitando seus alunos a refletirem sobre o conteúdo ensinado, utiliza-se de um modo de expressão semelhante ao utilizado pelos adolescentes, e acaba por facilitar a

apropriação do conteúdo pelos alunos e o engajamento dos jovens nas atividades escolares. Prova disso é que a matéria ministrada por esse professor é apontada pelos alunos como significativa para a vida deles, em depoimentos dados ao conselho de classe e também como o que há de “melhor” ou “mais fácil” na escola, nas respostas do complemento de frases. A professora do exemplo “A”, por manter-se numa postura hesitante entre o envolvimento e o alheamento não contribui para que os conteúdos por ela transmitidos sejam bem assimilados pelos alunos e o complemento de frases vem reforçar este aspecto no sentido de que a matéria que ministra é uma das apontadas como o que há de “pior” ou “mais difícil” na escola, sendo também apontada pelos alunos como matéria difícil no conselho de classe. Ou seja, a postura dos professores no que concerne ao envolvimento e implicação com o ensino e com os alunos, posturas que revelam a presença de afetos positivos ou negativos na ação docente, interferem diretamente na aprendizagem dos alunos e nas relações que estabelecem com o conhecimento ensinado, além do modo como representam os professores e a escola. Relação aluno/conhecimento: envolvimento X alheamento C) A professora começa então a dar a aula que é sobre “Problemas Ambientais”. Há uma certa dispersão dos alunos. Um aluno começa a ler o texto do livro didático em voz alta, para toda a sala, mas se irrita com uma colega que lê o texto em voz baixa e pede para ela ler, que ele não leria mais. Ela também se recusa, fica

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tímida e a professora escolhe outra garota para ler e esta lê o texto até o final. Durante a leitura do texto, reparei que uma garota tinha um fone de ouvido em uma das orelhas. (DC2) D) Perguntei então o que mais eles lembravam do filme, citaram a situação da homossexualidade do pai de Mano (personagem protagonista do filme), perguntei então o que eles achavam disto, e novo silêncio, J. e o rapaz sentado ao seu lado disseram que os pais deles eram homossexuais e namoravam entre eles, e que ambos iriam se namorar também. Esperei mais comentários e ninguém se manifestava, então duas garotas, sentadas uma ao lado da outra disseram que não aceitariam se os pais delas fossem homossexuais como o de Mano. Devolvi a situação à sala, repeti o que as garotas disseram e perguntei o que achavam. Ninguém se manifestou novamente, ficaram em silêncio, comentei com eles que era engraçado que quando eu ia fazer as observações na sala todo mundo conversava, e agora que a proposta era conversar, ficava todo mundo quieto. (DC-17) O exemplo “C” ilustra uma situação de aula e o exemplo “D” uma das discussões sobre o filme realizada com a sala. Neles está expressa a situação conflitiva de envolvimento versus alheamento que os adolescentes pesquisados apresentam na sua relação com o conhecimento. Assim como os professores se mostram hesitantes em se envolver ou não com os alunos, estes por sua vez hesitam em se envolver ou não com

o conhecimento, sendo que a característica mais marcante é o alheamento. Apenas alguns se envolvem realmente com as aulas ou as discussões propostas, a maioria ou se envolve de maneira alienada, representando o papel social de aluno que acredita que deva cumprir (permanecer na aula, mesmo dormindo ou conversando, ouvi-la, ainda que num dos ouvidos haja um fone, ler o texto didático mecanicamente, fazer troça com o conteúdo, etc.), ou se alheia totalmente frequentando o mínimo de aulas e realizando o mínimo de atividades escolares necessárias para “passar de ano”. Para Vigotski (2006), o desenvolvimento de todas as funções psicológicas superiores no adolescente tem como centro o desenvolvimento do pensamento categorial, por conceitos. É somente a partir do desenvolvimento desta modalidade de pensar que se desenvolvem as outras funções psíquicas (percepção, atenção, memória, vontade, etc) que passam a operar racionalmente, por abstrações, conceitos. Na medida em que os adolescentes pesquisados não se envolvem com o conhecimento veiculado na escola, relacionando-se mecanicamente com ele, ou não se envolvem nas discussões propostas, fazendo troça ou simplesmente silêncio, perdem a oportunidade de elaborar racionalmente o conhecimento, que não é apropriado pelos adolescentes, assim como fica barrado o desenvolvimento do pensamento categorial, conceitual, permanecendo os jovens num modo acrítico, alienado de lidar com o conhecimento e a realidade. Relação aluno/aluno: brincadeiras X agressão

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E) (...) enquanto isto alguns alunos começam a jogar bolas de papel um no outro, de modo que a prof não percebesse. Um grupo de quatro meninos aproxima-se do garoto sentado atrás de mim com gestos dramáticos: os ombros arqueados e os braços chacoalhando, a cabeça baixa, mas com os olhos mirando a “vítima” (estilo “rapper”, “hip hop”). Começam a exigir balas do garoto, como se o estivessem assaltando: “Passa a bala aí rapaz” e este entrega algumas balas para os outros meninos. Parece que todos encararam isto mais como uma brincadeira do que como violência. Os alunos se tocam bastante, mas nesta sala os toques assumem um tom mais agressivo, muitos tapas entre os alunos, meninos e meninas. Alunos também se ofendem verbalmente, mútua e constantemente, mas estas ofensas, toques e tapas assumem, na maioria das vezes, um tom de brincadeira. Inclusive foi isto que eu mais reparei nesta sala: violência e brincadeira andam juntas, pois parecem se divertir brigando. (DC-2. F) (...) dois garotos em atitude de muita cumplicidade, durante o filme se tocam, se beliscam, apóiam-se nos ombros um do outro e trocam pequenos tapas e socos, momentos adiante fizeram cócegas e entrelaçaram as pernas um com o outro. Continuaram perto um do outro e diversas vezes conversaram entre si. Um deles estava com um boné preto, o outro tinha um cabelo

arrepiado com luzes, brinco alargador e piercing no nariz. (DC-9) Este modo de se relacionar é o mais significativo no presente trabalho, pois revela uma forma muito particular de comunicação e interação dos adolescentes pesquisados, objetivados no conflito brincadeiras versus agressão. O exemplo “E” apresenta uma situação de sala de aula, em que a professora se ocupa com os exercícios de alguns alunos, o exemplo “F” ilustra uma das exibições de filme. Alheios ao conteúdo desenvolvido em sala de aula, pela impossibilidade de acessá-lo no ambito da compreensão e, logo, de operar no campo do conhecimento, parece que o que resta a eles é se relacionarem entre si e uma vez que não há espaço para que reflitam sobre seus afetos e modos de ser, se comportam segundo os padrões apropriados da cultura. Assim, brincam, mas brincam de maneira agressiva na maioria das vezes. Parece que agem deste modo como resposta à falta de cuidado para com suas próprias demandas afetivas, às suas singularidades, às questões da sexualidade e envolvimento efetivo com o meio. Então se atacam mutuamente, assumindo a atribuição feita pela escola (e muitas vezes pela sociedade) de agressivos, revoltados e indisciplinados. Esta visão é também por eles apropriada, como demonstram os complementos de frase quando apontam que o que há de “pior” ou “mais difícil” na escola é “a bagunça”, “alunos bagunceiros”, “desrespeito”. Se por um lado há uma culpabilização do outro pela bagunça, por outro não há um processo de reflexão que permita identificar onde exatamente está o desrespeito e em que medida o próprio

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sujeito adolescente contribui ou não para que haja esta bagunça. Apontado pela literatura (Pereira, Amparo, & Almeida, 2006) como modo de expressão infantil, o brincar aqui é entendido como única via de comunicação que os adolescentes encontram no meio opressivo em que vivem. E por ser opressivo o meio e por serem eles mesmos representados de maneira opressiva (bagunceiros, marginais), apropriam-se destas representações e as expressam nos seus modos de se relacionar, como bem demonstrado nos exemplos acima, tanto na cena em que as bolas de papel são atiradas, quanto na encenação do “assalto”, ou mesmo nos toques de tonalidade agressiva que praticam entre si. A contradição que vivenciam entre as demandas afetivas que urgem serem satisfeitas e o meio opressor que os desvaloriza (desrespeita, despreza), faz com que a relação entre os adolescentes fique estancada no conflito brincadeiras versus agressão, conflito este que não permite o desenvolvimento de maneiras mais elaboradas de expressão dos afetos e comunicação e que colabora para a manutenção da representação do sujeito adolescente como problemático e violento. Caberia oferecer um espaço de expressão e reflexão sobre estes modos de se relacionar, comunicar e se expressar, para que assim, rompendo a alienação com que são pautadas as suas relações na escola, viessem a desenvolver uma maneira mais elaborada de se relacionar tanto entre si, quanto com o meio e, sobretudo, com o conhecimento, elemento fundamental para que avancem em seu processo críticoreflexivo.

O que dizer sobre o que encontramos: algumas considerações É somente através de um trabalho que se proponha a ouvir os adolescentes em suas mais diversas manifestações de afeto que se chega à análise dos resultados aqui apresentados. Cabe tecer ainda mais uma crítica ao modo patologizante com que vem sendo representado o adolescente e suas manifestações de afeto. A representação do adolescente como problemático, envolvido em crises, vivendo uma fase pouco produtiva e que deve se esperar que passe acaba por anular o adolescente de participação construtiva na cultura, visto que envolto em problemas “próprios da idade” não teria nada com o que contribuir e não caberia ouvi-lo. Negar esta concepção foi um dos objetivos deste trabalho, que buscou demonstrar que apenas ouvindo o adolescente tal como ele é e se apresenta em nossa cultura, respeitando-o como ser humano que vive em determinada época, e que tem modos próprios de subjetivação e objetivação, é que se pode quebrar esta imagem tão fortemente construída do “adolescente problema”. E é buscando compreender a trama dos nexos constitutivos deste fenômeno singular (sujeito adolescente), através da análise de sua história, buscando as relações causais que colaboram para sua emersão tal qual se apresenta que se chega a uma explicação satisfatória do fenômeno. A análise dialética que empreendemos nesta pesquisa nos leva a considerar que, se por um lado os adolescentes se expressam de maneira agressiva, por outro, eles também são tratados desta forma por alguns professores e pela escola de modo geral, o

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que impossibilita que se transformem as condições de convivência, de ensino e de apredizagem que caracterizam o contexto escolar, visto que suas necessidades afetivas não se expressam ou não são atendidas, assim como não são atendidas as necessidades afetivas dos professores, que seriam os modelos a serem apropriados como modo de funcionar no âmbito da afetividade. Para Wallon (1995, p. 94), seria a emoção “um elo intermediário entre o automatismo e o conhecimento”, sendo o conhecimento parte da “vida intelectual, que, procedendo por representações e símbolos, pode fornecer à ação motivo e meio diferentes dos do instante presente e da realidade concreta (p.88).” É justamente esta “vida intelectual” capaz de controlar as manifestações emocionais primitivas que se encontra pouco desenvolvida nos adolescentes pesquisados, como demonstra a análise do complemento de frases e dos dados do diário de campo. Vigotski concebe a adolescência como idade de transição, em que entra em jogo toda uma nova forma de funcionar do sujeito. Este é movido por novas necessidades e atrações diferentes das da infância, ainda que em seu modo de atuar sejam semelhantes, devido a hábitos já adquiridos e que posteriormente e nas relações com o social se transformam em novas necessidades e interesses. A raiz genética de tais atrações se encontra na nova configuração biológica pela qual passa o adolescente, frente ás transformações de seu corpo e o despertar do interesse sexual, porém o caminho desenvolvimental das novas necessidades e interesses do adolescente é indissociado de sua história sócio-cultural (Vygotski, 2006).

Ele separa o desenvolvimento do adolescente em duas fases: a “morte” das necessidades e interesses infantis e o “nascimento” de novas necessidades e interesses, a partir das quais o sujeito em desenvolvimento se reestrutura em uma nova maneira de agir no mundo, embasada nos novos interesses. Segundo o bielo russo, são características próprias da fase de “morte” as atitudes hostis perante si e o outro, infrações de regras, inquietude constante, tendência ao isolamento, baixo rendimento escolar, tristeza, angústia e uma aberta e desavergonhada atração pelo sexo e o sexual. Encaradas como “sintomas negativos” pelos circundantes do adolescente, Vigotski considera que as causas principais das manifestações violentas de tais sintomas são as deficiências da abordagem pedagógica (Vygotski, 2006). Essa interpretação do autor parece bem ilustrada nos trechos de diário de campo apresentados, quando se evidenciam conflitos entre comportamentos infantis – como as brincadeiras, por exemplo, e agressividade – como o xingar, bater, etc. Contudo, como tais comportamentos são vistos como negativos, assumindo algumas vezes conotação patológica, não se investe na mediação pedagógica que possibilitaria a apropriação de um modo de funcionar sustentado por novos interesses, como o conhecimento, por exemplo. Visto que a fase anterior caracteriza-se por uma disposição egocêntrica ou egodominante, a segunda fase é a fase da afirmação dos interesses culturais. Vigotski considera que se até então o sujeito criança se desenvolvia através dos jogos e brincadeiras, a partir da adolescência, a vivência com o real se dá através de um

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“jogo sério” em duas áreas principais: a erótica e a das relações sociais. Nesta segunda fase, de “nascimento” de um novo sujeito, o que entra em jogo são as novas atrações, necessidades e interesses do adolescente, que devem ser direcionadas para o social e o cotidiano, para o estudo e trabalho, para o mundo circundante (Vygotski, 2006). Diz Vigotski: Lo personal, que debe ser el punto de partida, ha de completarse, enriquecerse y ser orientado a los intereses sociales; hay que partir de lo lejano, de los grandes intereses del adolescente, sin dejar de incitarle en esse sentido, orientar y transformar poco a poco sus intereses, su trabajo, incluyéndolos con más insistencia en una actividad corriente, cotidiana. Si no tomarmos en consideración (...) esas dos dominantes fundamentales, no conseguiremos interesar al adolescente ni por lo cotidiano, ni por lo social, y no los podrá utilizar em su desarrollo general.(Vygotski, 2006, p.40) Conforme apontam Pereira, Amparo, & Almeida (2006), o jogo constitui atividade crucial no desenvolvimento da criança. O brincar não é visto como uma forma de se distrair, mas a própria atividade da criança e conforme esta vai se desenvolvendo, atravessando suas crises e transições, as relações que antes tinham com o jogo vão sendo internalizadas (seguir regras, fantasia, manipulação de objetos) e passam a constituir parte do próprio psiquismo do sujeito em transição. O fato de observaremse tantas brincadeiras com tonalidade

agressiva entre os adolescentes nos permite supor que estas ainda não foram internalizadas para a via do psíquico, do pensamento representacional, por isso eclodem com tanta vivacidade no meio escolar. Ao mesmo tempo, não se tratam mais de brincadeiras infantis, visto que estas envolvem xingamentos, ameaças, incitação sexual e palavreado chulo, o que pode ser compreendido como uma tentativa de elaboração de comportamentos do mundo adulto como é por eles compreendido e apropriado. Entende-se, por fim, que medidas mais amplas que auxiliem na compreensão e desenvolvimento do adolescente, além da criação de espaços de escuta e expressão dos adolescentes, seriam a inclusão da afetividade nos planos político-pedagógicos das escolas, a criação de políticas públicas que contemplem o adolescente enquanto sujeito que pensa, sente e age e o desenvolvimento de projetos e pesquisas que contemplem o adolescente e a adolescência de um ponto de vista histórico e cultural, que estejam comprometidos com o desenvolvimento do adolescente, ao mesmo tempo em que estejam comprometidos com o desenvolvimento da educação e da sociedade como um todo. Notas de Rodapé 1

Pesquisa realizada no âmbito da Iniciação Científica, com bolsa PIBIC, no período de agosto/2010 a julho/2011.

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COMUNICAÇÕES BREVES O MÚLTIPLO ALCANCE DE UM PLANTÃO PSICOLÓGICO REALIZADO POR ACADÊMICOS GUIADOS PELO ENFOQUE PSICANALÍTICO Jéssica Bezerra Soares Martha Franco Diniz Hueb (UFTM – Uberaba - MG) Resumo Atualmente tornam-se cada vez mais relevantes ações que visem o progresso da sociedade atingindo áreas como educação e saúde, indispensáveis quando se pensa em desenvolvimento. Ao encontro disso crescem a cada dia as práticas acadêmicas focadas na comunidade, capazes de permitir paralelamente o aprendizado dos alunos e a oferta de um serviço de qualidade a população. Neste estudo discorremos acerca da experiência de uma acadêmica dentro do Serviço de Plantão Psicológico realizado na clínica da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, buscando a correlação entre as vivências relatadas pela paciente e a teoria psicanalítica baseada sobretudo nos estudos de Freud. Palavras-chave: plantão psicológico; psicanálise clinica; supervisão clinica.

Abstract The multiple range of a psychological shift made by academics led by the psychoanalytic approach Nowadays it’s becoming increasingly relevant actions to achieve progress in society mainly in education and health areas, especially when talking about the development of society. Puting this all together academic’ pratices focused on the community it’s growing every day, allowing parallel student learning and offering a quality service to the population. In this study we discuss the experience of having academic research donne twenty four hours a day in the Department of Psychological Services performed in the clinic of Federal University of Triangulo Mineiro. Through this correlation has been drown between the experiences reported by the patient and the psychoanalytic theories based largely on the studies of Freud. Keywords: psychological duty; psychoanalysis clinic; clinical supervision.

Comunicação Breve Recebida em 23/08/2012 e Aprovada em 29/9/2012

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Introdução Discussões acerca da saúde nunca perdem seu lugar de destaque, em decorrência da grande relevância do tema, e de suas fortes implicações sociais e econômicas. Tendo isso em mente cada vez mais instituições de governo e ensino têm buscado por avanços na área. Assim, desde os anos 70 a Promoção de Saúde vem ganhando cada vez mais destaque nas políticas públicas, devendo ser encarada como um processo que capacita as pessoas a controlarem fatores determinantes de sua saúde, tendo como objetivo uma melhor qualidade de vida, o que repercute na sociedade como um todo (Carvalho, 2004). Nesse cenário a psicologia, enquanto profissão e ciência tem se engajado em atender as demandas sociais que surgem a cada dia, em uma tentativa de romper com a visão que muitos têm da mesma como sendo um serviço prescindível. Uma forma de promover o compromisso social de futuros profissionais é a prestação de atendimento a comunidade dentro de clínica-escolas. O serviço destaca-se pela sua dupla abrangência: acadêmicos e comunidade (Paparelli & Nogueira-Martins, 2007; Coelho, Peres, & Oliveira, 2005). Dentro dessa perspectiva apresentam-se os Serviços de Plantão Psicológico. Seu principal objetivo consiste em uma tentativa de possibilitar que a pessoa que necessita de apoio psicológico alcance maior controle sobre seu bem-estar. Para Furigo, Almendro, Sampedro, Zenelato e Ballalai (2005, p. 87) esta nova possibilidade de atendimento psicológico busca “auxiliar na resolução de conflitos psicológicos, focando em questões emergentes/urgentes, as quais

nem sempre precisam de acompanhamento prolongado”. O intuito final é que o trabalho realizado em conjunto com a pessoa que procura pelo plantão possa auxiliá-la a lidar com suas angústias, tornando-as suportáveis a fim de que soluções possam ser pensadas com mais calma. Em alguns casos torna-se possível ainda a resolução do conflito apresentado, que ao reincorporar-se ao psiquismo promove o crescimento pessoal. Para o paciente é a partir da relação terapêutica e do vínculo que se estabelece que são criadas condições que tornam possível o desenvolvimento emocional e o equilíbrio afetivo, levando a compreensão e amenização de dores psíquicas (Coelho, Peres & Oliveira, 2005). Já para o estagiário é a partir do contato com o paciente que o verdadeiro ensino de técnicas psicoterápicas se dá. Nesse momento, é onde muitas vezes surgem as contradições entre teoria e prática, e onde o aluno passa a compreender os conceitos estudados em sala de aula. Faz-se então imprescindível a presença do supervisor de estágio; atualmente, segundo a lei 11.788 de 25 de setembro de 2008, denominado de professor orientador de estágio; uma figura com experiência e que auxiliará os alunos a compreenderem as singularidades de cada caso, ensinando-os e auxiliando-os na elaboração de hipóteses diagnósticas. Sendo ainda a pessoa responsável por potencializar a capacidade do aluno de questionar e inovar (Coelho, Peres & Oliveira, 2005). Nesse sentindo, discutiremos acerca da relevância da experiência de atendimento dentro de um plantão psicológico, vivenciada por uma acadêmica. Buscando ilustrar por meio de trechos dos atendimentos realizados a ligação entre

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teoria e prática que se fez presente no desenrolar clínico. Metodologia O serviço de plantão psicológico abordado nesse estudo teve início no ano de 2011, inserido na disciplina de Vivência Profissional VII do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), sendo cursada por acadêmicos do 7° período. Os atendimentos ocorrem na clínica-escola da Universidade, o CEPPA (Centro de Estudos e Pesquisa em Psicologia Aplicada). Cada aluno tem a oportunidade de se inscrever para realizar o atendimento segundo a abordagem teórica com a qual tem mais afinidade, sendo que posteriormente é feita uma seleção dos alunos pelo professor responsável. Toda semana são realizadas supervisões que duram em torno de duas horas, estas são conduzidas em grupos de até quatro alunos, e neste relato específico teve como teoria norteadora a psicanálise. É nesse momento que se dão as ligações entre a prática vivenciada no consultório e a teoria, sendo muitas vezes discutidos autores como Freud, Bion, Klein, Winnicott dentre outros. Utilizou-se ainda de autores contemporâneos tais como Zimmerman, explorando suas visões e releituras, acerca de grandes autores. No contrato terapêutico com o paciente é estabelecida uma média de cinco sessões, já que o plantão psicológico visa o acolhimento, ou seja, um espaço para que aquele que o procura possa “ventilar” suas ideias, sentimentos e angústias, de forma a dar resolutividade ao seu sofrimento psíquico; no entanto, pode algumas vezes culminar em outros encaminhamentos. Os

pacientes são ainda esclarecidos acerca de faltas, e de questões referentes ao sigilo. A paciente em questão, aqui nomeada de Dália, possui 27 anos de idade, veio medicada e encaminhada por um psiquiatra com o diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Generalizada. Foram realizados cinco atendimentos, sendo um por semana. No entanto foram disponibilizados 10 horários para a paciente, já que ela foi frequente até o 3° atendimento, apresentando duas faltas justificadas depois. Em seguida, compareceu em mais duas sessões, e quando foi apontado o desligamento, inicialmente comunicado no contrato terapêutico, não compareceu as três ultimas sessões agendadas, embora confirmasse por telefone que viria para o encerramento, não tendo sido possível assim o desligamento e o encaminhamento do caso. Resultados e Discussão Em uma publicação realizada em 1920, Freud expõem a intrínseca relação que se estabelece entre prazer e desprazer. Tendo como principio o fato de que o prazer consistiria em uma diminuição na excitação do psiquismo e o desprazer ao aumento da mesma. Apresentaríamos então uma forte tendência a busca pelo prazer, o que é apontado como sendo primitivo e até mesmo perigoso. Nos atendimentos realizados o que se notou foi uma explicitação desse fato. Quando estava se sentindo bem a paciente dizia que as coisas estavam perfeitas, que sentia que agora as coisas estavam realmente se endireitando. Nesses momentos era exposto a ela que a vida é feita de altos e baixos, e que as coisas nunca estarão “cem por cento”, que o

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importante é que nós tenhamos recursos e capacidade para atuar diante dessas situações. Em termos técnicos, o importante é que diante de situações desagradáveis tenhamos maturidade para atuar segundo o principio da realidade. No último atendimento em que Dália compareceu, relatava estar sentindo-se muito bem, que a relação entre ela e o companheiro havia melhorado, que inclusive pretendia mudar para uma casa maior com o filho e o namorado. Podemos levantar a hipótese de que as faltas que se seguiram a partir daí possivelmente estão relacionadas com uma dificuldade diante do real. Tal associação decorre do fato de que nessa mesma sessão, foi abordada a superproteção dela para com o filho, tema que a incomodava bastante, uma vez que essa era a forma vista por ela para proteger o filho de abusos e situações semelhantes as que ela passou. Para além da queixa inicial relatada, Dália já em seu primeiro atendimento relatou um estupro sofrido aos cinco anos de idade pelo padrasto, somando-se a esse fato, verificou-se a péssima relação que a mesma estabeleceu com a família, mas principalmente com a mãe, que a culpava pelo abuso sofrido. Acontecimento que adquiriu a característica de um trauma, primeiramente por ser algo inesperado e em segundo lugar por atuar contra o desenvolvimento neurótico. Situação que colocou ainda Dália em um estado de ansiedade prolongado, onde ela estava sempre se preparando para um perigo eminente que na verdade, na maioria das vezes era desconhecido (Freud, 1920). Seguindo esse meio de funcionamento Dália passou a vida “abandonando, para não ser abandonada”. Ao chegar para o primeiro

atendimento relatou, por exemplo, que via o namorado como um “estepe”, já que a noite, momento em que tinha mais medo de que as crises de ansiedade acontecessem, a presença dele a acalmava. Relatava ainda que diante de momentos difíceis, como uma internação pela qual o filho passou, preferia que o companheiro não estivesse por perto, paralelo a isso, queixava-se por não ter ninguém quando precisa. É seguindo essa linha que a paciente deixa o atendimento antes mesmo do encerramento, mesmo após as muitas chances que foram dadas para que ela comparecesse para a finalização. Freud (1920) em seus estudos sobre neurose traumática já apontava para o fato de que em seu dia-a-dia as pessoas tendem a evitar qualquer lembrança que lhes apresente como traumática, sendo exatamente isso, a nosso ver, o que Dália procurava fazer. Segundo Coppus e Faveret (2008) tudo o que o sujeito não é capaz de significar terá repercussões sobre si. Podendo acontecer tentativas de afastamento, lamentos, ou a incorporação deste fracasso como uma confirmação de impotência. Na articulação entre pulsões e o real o sintoma surge para aplacar a angústia; no caso de Dália, o Transtorno de Ansiedade Generalizada e as dificuldades para dormir tomavam forma. O sintoma faz surgir o sujeito que habita o corpo, que o ultrapassa (Coppus & Faveret, 2008). Busca-se dessa forma o trabalho com o corpo pulsional, principalmente com a pulsão de morte, pois é por meio dela que abordamos “desarticulações, encenações, despedaçamentos e disfunções que o corpo nos apresenta na clínica.” (Coppus & Faveret, 2008 , p. 17).

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Para Prata (2000) a pulsão de morte busca baixar o desprazer interno, sendo observada clinicamente por meio de repetição daquilo que é desprazeroso, da culpa, da punição e do sofrimento. O que era ilustrado quando Dália relatava sua atual relação com a família, sendo ela sempre chamada a resolver problemas, crises, dentre outros. Por mais que ela relatasse não gostar dessas situações, sempre comparecia quando chamada, o que reforçava um ciclo vicioso. Tal observação vai ao encontro de Freud (1920) que nos diz que todo desprazer neurótico é na realidade uma forma de prazer, apesar de não ser sentido como tal. Consoante a isso o discurso da paciente deixa de focar o diagnóstico inicial, sendo que em alguns atendimentos questões referentes ao mesmo nem ao menos foram discutidas. Começaram então a ganhar destaque outras questões que se apresentavam a ela como extremamente angustiantes, além do estupro: situações de violência física e verbal desferida por parte de familiares, inclusive por parte da mãe que a expulsou de casa; dificuldades amorosas e uma superproteção sobre o filho de oito anos. Assim ao longo dos cinco atendimentos efetivamente realizados ficou claro a transposição da teoria para a prática de ideias e conceitos discutidos em sala de aula e durante as supervisões. Fato que ressalta ainda mais a importância do plantão de acolhida para a formação do futuro profissional. Para, além disso, o acadêmico tem a oportunidade de contribuir para a sociedade por meio de um serviço gratuito, e de qualidade. Considerações finais

Todo material recalcado passa a fazer parte do id, comportando-se como se fosse um acontecimento inédito. A análise procura tornar conscientes esses fatos para que assim eles possam ser encarados como passados, sofrendo desvalorização e perdendo energia (Prata, 2000). Assim a sessão era oferecida a paciente como um momento no qual ela poderia externalizar seus pensamentos, angústias e incertezas, mesmo não apresentando objetivos analíticos de longo prazo. Como a própria Dália expressou no atendimento, em alguns momentos, falava de coisas que antes ficavam somente no plano do pensamento, que ela não comentava com ninguém e que poder falar com alguém que tinha uma escuta diferenciada a fazia muito bem, na medida em que lhe permitia refletir sobre suas ações e possibilidades. Apesar de não se caracterizar como um serviço de psicoterapia, ao longo dos atendimentos tendo como base teórica a psicanálise, procurou-se sempre adotar uma postura de investigação de conflitos, mesmo quando não era possível resolvê-los. O que confirma que o conflito não deve ser negado deve ser encarado e clarificado (Andrade, 2009), já que a repetição enquanto um dos sintomas da neurose traumática coloca-se sempre presente na análise, fazendo-se foco da intervenção do psicanalista (Rudge, 2006). Assim, as pulsões nos levam ao que é o real da clínica, a dimensão do sujeito que deve ser cuidada. Apostamos em uma função clínica para a pulsão: ela traz à cena, ao enquadre analítico, através da queixa e das demandas do analisando, uma dimensão da alteridade radical, da

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surpresa, da descontinuidade, do ultrapassamento do sujeito, de sua vacilação. (Coppus & Faveret, 2008, p.19). É sobre esse sujeito que se desnuda diante de nós na clínica que procuramos intervir visando à prestação de um serviço de qualidade, que seja capaz de auxiliá-lo na resolução de conflitos. Ao mesmo tempo o serviço permite a formação de psicólogos com consciência clínica, não excluindo aspectos sociais, na medida em que os mesmos são determinantes do sujeito que se apresenta. O serviço desenvolvido no CEPPA mostra-se assim benéfico para ambas as partes envolvidas, tanto para os acadêmicos, já que promove o ensino, a pesquisa e a extensão, quanto para a população, que tem suas necessidades atendidas.

Nessa perspectiva faz-se essencial que pensemos sobre a expansão do serviço, por meio do aumento de divulgação do mesmo para a comunidade. Outra possibilidade seria o aumento do número de pacientes atendidos por aluno, já que a proposta do atendimento inclui um número reduzido de sessões, cada aluno poderia atender mais pacientes por semestre. Nota-se então necessidade da expansão de serviços escola como o descrito, capazes de colaborar na atenção as necessidades da comunidade, que muitas vezes encontra-se falha por parte do governo. É de investimentos como este, capazes de contribuir não só no campo da saúde, mas também da educação que o país necessita para seu crescimento.

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Jéssica Bezerra Soares é aluna do curso de Psicologia da UFTM. Praça Doutor Thomas Ulhôa 340, Abadia, 38025-050 Uberaba, MG. E-mail: [email protected] Martha Franco Diniz Hueb é professora adjunta e coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisa em Psicologia Aplicada (CEPPA) da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Chefe do Departamento de Psicologia Clínica e Sociedade do Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas, e Sociais (IELACHS). Mestre em Psicologia Clínica e Doutora em Ciências Médicas. Departamento de Psicologia Clínica e Sociedade da UFTM. Rua Cruzeiro do Sul, 106, 38020110 Uberaba, MG. E-mail: [email protected]

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RESENHAS DESAFIOS PARA O ENSINO DE PSICOLOGIA AZZI, Roberta Gurgel; GIANFALDONI, Mônica Helena Tieppo Alves. (Orgs.). (2011). Ensino de Psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo. (Série ABEP formação) Walter Mariano de Faria Silva Neto Raquel Souza Lobo Guzzo (PUCCAMP – Campinas – SP) Resenha Recebida em 23/08/2012 e Aprovada em 25/9/2012

A questão do ensino de Psicologia vem chamando, cada vez mais, a atenção de psicólogos, professores e pesquisadores, pois se observa uma crescente e desordenada expansão da oferta de cursos de graduação e pós-graduação na área nas últimas duas décadas no Brasil. A abertura de cursos de Psicologia no país, sobretudo na rede privada é, também, objeto de preocupação e discussões importantes dentro dos Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, num momento em que se percebe que tal expansão se dá seguindo o modelo econômico neoliberal, formando profissionais para um mercado que, além de não seguir esta tendência de crescimento, ainda mantém uma tradição de atendimento clínico individual. O sistema “Conselhos” posicionado em uma direção política definida se opôs à abertura indiscriminada de cursos superiores para atender a uma demanda do Banco Mundial como foi a análise do que se estabelecia àquela época. Dos debates promovidos no âmbito dos Conselhos e das Associações Brasileiras de pesquisa foi criada, sem consenso, no ano de 1998, a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP, que tinha, originalmente, como missão “Promover o acesso e a disseminação do conhecimento no ensino de Psicologia, propondo políticas e subsidiando atividades que entrelacem os diversos públicos da entidade e da sociedade.” (http://www.abepsi.org.br/portal/?page_id=4). Embora a ideia original tenha sido a criação de uma associação que organizasse as instituições de formação básica de Psicologia, aos moldes da ANPEPP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, a ABEP iniciou suas atividades com dificuldades em congregar de modo consistente os cursos de graduação funcionando no país. Durante os últimos anos, a ABEP vem desenvolvendo, nos âmbitos nacional e internacional, uma série de discussões acerca do ensino de Psicologia junto a entidades governamentais e não governamentais; estudantes e profissionais da área,

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por meio de intervenções nas discussões sobre temas diversos, destacando-se a formação de psicólogos e sua relação com o atual mercado de trabalho. Neste sentido, como parte destas propostas, foi criada a Série ABEP formação, que tem como primeira temática discutida, a questão do Ensino de Psicologia, como resultado da preocupação com as novas Diretrizes Curriculares de 2011, aprovadas em março deste ano. O volume é composto por treze capítulos e está dividido em três partes: Na Parte I, intitulada “Percursos históricos da Psicologia e Educação”, composta por três capítulos, são resgatados no Capítulo 1, de autoria de Mitsuko Aparecida Makino Antunes, aspectos da histórica relação entre a Psicologia e Educação no Brasil, com início na discussão e esclarecimentos sobre o uso dos termos Psicologia Educacional, Psicologia da Educação, Psicologia na Educação, Psicologia do Escolar, dentre outros, seguida de uma análise histórica acerca dos períodos em que esta área se desenvolveu: 1) Pré-institucional (Período Colonial); 2) Institucional (século XIX), 3) Autonomização (1890-1930); 4) Consolidação (1930-1962) e 5) Profissionalização (1962 em diante), considerando que um novo período se encontra em gestação na atualidade, com as demandas voltadas para o compromisso social da Psicologia com a Educação, através da contribuição com a formulação de políticas públicas no setor. Em seguida, no capítulo 2, de autoria de Regina Helena de Freitas Campos, são trabalhados os elementos históricos ligados, especialmente, à Psicologia e Educação no século XX, com ênfase no olhar dos especialistas europeus e estadunidenses sobre a cultura brasileira, que ensejou a criação dos primeiros laboratórios dentro das escolas normais, representada por importantes expoentes brasileiros, como Lourenço Filho e Helena Antipoff. Finalmente, no terceiro capítulo, escrito por Diva Lúcia Gautério Conde, é trabalhada a história da presença da Psicologia nos currículos escolares, formalizada a partir do ano de 1850 no Imperial Colégio de Pedro II, no Rio de Janeiro, pois esta atendia às exigências da época sobre a confiabilidade de suas contribuições, sobretudo ao campo das dificuldades escolares, para o qual prestou à época, um grande serviço. Na Parte II, intitulada “Aproximações teóricas entre Psicologia e Educação”, são desenvolvidos seis capítulos, dentre os quais, quatro são dedicados à análise das contribuições de alguns autores para a Educação. No capítulo 4, é colocado por Lino de Macedo, como Jean Piaget concebe as formas com as quais um sujeito interage com outras pessoas, com os objetos e consigo mesmo, a partir do conceito de abstração reflexionante. Em seguida, no capítulo 5, são explicados por Laurinda Ramalho de Almeida e Abigail Alvarenga Mahoney, os estágios de desenvolvimento de acordo com Henri Wallon e suas implicações pedagógicas e psicológicas, sobretudo ao abordar o papel do meio e dos grupos neste desenvolvimento. No capítulo 7 é trabalhada por Mônica Helena Tieppo Alves Gianfaldoni, Denize Rosana Rubano e Maria de Lourdes Bara Zanotto, a forma como os homens aprendem, a partir da Análise do Comportamento e dos estudos sobre a aprendizagem, conforme os estudos de Burrhus Frederic Skinner, principalmente no que tange à organização do ensino. No capítulo 8, é abordada por Roberta Gurgel Azzi e Soely Aparecida Jorge Polydoro, a perspectiva psicológica de Albert Bandura na sua Teoria Social Cognitiva, em que é desenvolvida a compreensão dos processos presentes na constituição do comportamento, como no caso dos conceitos de autoeficácia e autorregulação. Já no capítulo

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6, Marilda Gonçalves Dias Facci e Nadia Mara Eidt, ao invés de utilizar teorizações específicas de autores, como nos capítulos anteriores, problematizam como se dá a formação do psicólogo para a atuação nas instituições de ensino, enfatizando as concepções tradicionais em Psicologia Escolar, que trazem temas importantes à tona, como o fracasso escolar e algumas contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para a compreensão da queixa escolar e do papel do psicólogo em seu atendimento. Do mesmo modo, no capítulo 9, é trabalhada por Marisa Lopes da Rocha, a relação da macro e micropolítica, como um desafio da Psicologia e Educação, em que se considera a análise do cotidiano na produção dos saberes histórico-políticos que também produzem as práticas escolares. Na Parte III, intitulada “Desafios cotidianos em contextos educativos”, composta por quatro capítulos, são desenvolvidos temas diretamente ligados à Psicologia em contextos educativos específicos. No capítulo 10, é apresentada por Adriana Marcondes Machado, de forma contundente, a questão do discurso da necessidade da mudança, presente no discurso educacional atual, mas feito a partir do seguinte questionamento: se existe um desejo de mudança, a quem ele se destina? Porque no caso da concepção medicalizante, os diagnósticos são instrumentos de totalizações operadas dentro de um exercício de poder que visa o enquadre do outro. No capítulo seguinte, é tematizada por Maria de Lourdes Trassi Teixeira, a exclusão dos jovens ante ao processo educativo, principalmente com relação a como se pode pensar de outra forma a inclusão, dentro de uma perspectiva transdisciplinar, que leve em conta os anseios desses jovens excluídos com relação, primeiramente, à cidadania. No capítulo 12, é enfatizada por Raquel Souza Lobo Guzzo, a importância de se pensar num novo modelo de formação, no qual seja levadas em conta as contradições da formação em Psicologia, num contexto em que se tem cada vez mais formado para um mercado que não é capaz de absorver os profissionais formados, tornando a Psicologia uma profissão de desempregados, além da problematização de formas de atuação que possam ir além do consultório privado, rumo à desigualdade social. Por isso, a autora defende um novo modelo de formação que leve em conta diferentes fundamentos filosóficos, psicológicos e metodológicos para a atuação específica nos contextos educacionais. Por fim, no capítulo 13, é apresentada por Ana Mercês Bahia Bock, a Psicologia em alguns países da América Latina, observando aspectos comuns nos diferentes países analisados, quando se pensa nas humilhações que os alunos das classes menos favorecidas sofrem em seu processo de escolarização, dentro de um modelo educacional inserido em uma sociedade de produção e lucro, que segrega essa camada e dentro de uma desigualdade social produzida e legitimada dentro da escolarização, sobretudo a pública. E ensejando a necessidade de pensarmos em como mudar este contexto no qual, certamente a Psicologia poderá ter um papel de destaque. O volume apresentado faz um movimento interessante, ao iniciar com aspectos históricos, passando pelas concepções históricas, teórico-metodológicas e, por fim, no foco aos aspectos de um entendimento prático que tenta superar as amarras criadas dentro da própria área, com vistas ao reconhecimento do papel da ciência psicológica, da formação de psicólogos que levem em conta múltiplos olhares. É uma obra importante não só para a Psicologia e psicólogos, mas para todos que se interessam pela relação da Psicologia e Educação e pelas possibilidades de intervenção visando à mudança social. É importante 154 Revista Perspectivas em Psicologia, V. 15 n.1. Jan / Jun 2011

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reconhecer a importância do movimento da ABEP em produzir e sistematizar o conhecimento que pode propiciar um avanço real do debate dentro das salas de aula da formação básica do Psicólogo para a intervenção na realidade brasileira.

Os autores:

Walter Mariano de Faria Silva Neto possui graduação em Psicologia - Formação de Psicólogo, Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Federal de Uberlândia (1996) e Mestrado em Psicologia Escolar pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1999). Atualmente é aluno do programa de doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, bolsista CAPES, membro do grupo de pesquisa: Avaliação e intervenção psicossocial: prevenção, comunidade e libertação Raquel Souza Lobo Guzzo possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Estudos Comunitários e Prevenção pela University of Rochester, USA. Professora titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia. Coordenadora do GT de Psicologia Escolar e Educacional da ANPEPP. Endereço para correspondência: Endereço: Rua Santa Monica, Email: [email protected]

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Jd.

Santa

Marcelina.

Campinas/

SP,

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Brasil.

CEP

13100-101,

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ERRATA Atendendo a um pedido dos autores gostaríamos de complementar a seção “Método” do artigo “Estresse psíquico em jovens jogadoras de voleibol” da Revista da Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro, v. 14, n. 1, jan/jun 2010. No artigo, na seção “Método”, sub-item “Escala”, consta: Seguindo as recomendações de Silva (2006) e Carretero-Dios e Pérez (2005), as assertivas da Escala para Análise do Estresse Psíquico no Voleibol (AEP-V) foram criadas a partir de entrevistas com técnicos e jogadores de voleibol, além da revisão e análise da relevância das assertivas apresentadas por outras escalas, de acordo com o objetivo de nosso estudo. Além disso, buscou-se relacionar a Escala para Análise do Estresse Psíquico no Voleibol - AEP-V com os quatro estágios do estresse apontados por Mc Grath (1970). Conforme consta no trabalho original que deu origem ao artigo, gostaríamos que as seguintes informações fossem incluídas na mesma seção: A presente Escala para Análise do Estresse Psíquico no Voleibol - AEP-V foi criada tendo como modelo o Teste de Estresse Psíquico para Voleibol (TEP-V) utilizado por Noce e Samulski (2002). Não utilizamos este mesmo Teste, pois o TEP-V foi validado, tendo uma Amostra bastante específica e diferente da presente neste estudo. A Amostra para validação do TEP-V foi composta somente por atacantes, homens e mulheres, todos profissionais e participantes da Superliga (competição máxima do Voleibol Nacional). A partir da Revisão Bibliográfica, tivemos acesso a outros Testes e Escalas que também tiveram grande importância na criação da Escala para Análise do Estresse Psíquico no Voleibol - AEP-V, como o Teste de Estresse Psíquico para Futebol (TEP-F) utilizado por Samulski e Chagas (1992), o Teste de Estresse Psíquico para Tênis (TEP-T) utilizado por Lima (1996) e o Teste de Carga Psíquica de Frester utilizado por Gouvêa (2003 a e b). Este último se aproxima bastante da Escala apresentada neste estudo (AEP-V), porém não leva em consideração o comportamento adotado pela atleta mediante a situação estressante e tampouco a análise subjetiva do comportamento adotado. Todos estes Instrumentos citados apresentavam informações importantes e um dos fins da pesquisa, foi exatamente, trabalhar as ideias de todos estes Instrumentos e os dados colhidos nas entrevistas com técnicos e atletas de voleibol em uma nova Escala, que pudesse ser aplicada em atletas de voleibol, independente da posição e que estivesse inserida dentro da realidade da Categoria Infanto-Juvenil, surgindo assim a Escala para Análise do Estresse Psíquico no Voleibol - AEP-V criada por Trapé (2008). Os Instrumentos citados acima, já haviam passado por um processo de validação anteriormente ou foram validados na própria pesquisa. No caso desta investigação, criou-se 156 Revista Perspectivas em Psicologia, V. 15 n.1. Jan / Jun 2011

uma Escala e, portanto a mesma ainda não havia sido validada. O trabalho consistiu validála. Além das entrevistas com técnicos e atletas, e o acesso a outras Escalas e Instrumentos através da Revisão Bibliográfica, buscou-se relacionar a Escala para Análise do Estresse Psíquico no Voleibol - AEP-V com os quatro estágios do Estresse, apontados por Mc Grath (1970) (...) Noce, F. & Samulski, D. (2002). Análise do estresse psíquico em atacantes no voleibol de alto nível. Revista Paulista de Educação Física,16 (2) 113-29. Trapé, A. A. (2008). Criação e validação de uma escala para análise do estresse psíquico em atletas infanto-juvenis de voleibol feminino. TCC, Faculdade de Educação Física, UNICAMP, Campinas – SP.

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A REVISTA PERSPECTIVAS EM PSICOLOGIA Apresentação A Revista Perspectivas em Psicologia é uma revista científica semestral, publicada pela da Sociedade de Psicologia do Triângulo Mineiro, pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro e pela Universidade Federal de Uberlândia e seu Conselho Editorial aprovou as seguintes normas para os colaboradores: Os textos enviados devem ser inéditos, reservando-se a revista a prioridade de sua publicação. Podem ser encaminhados para publicação relatos de pesquisa, relatos críticos de experiência profissional, resenhas, registros informativos e artigos de críticas sobre teorias e/ou constructos. Não serão aceitos projetos de pesquisa em andamento. A publicação de artigos está condicionada a pareceres dos Consultores da Revista Perspectivas em Psicologia ou outros colaboradores ad hoc. Os artigos enviados serão inicialmente apreciados pelo editor, caso estejam de acordo com as Normas para Publicação serão encaminhados para avaliação de pelo menos dois Consultores ou colaboradores ad hoc. Os consultores “ad hoc” serão escolhidos pelo editor entre pesquisadores reconhecidos na área da publicação e não serão informados das identidades dos autores e de suas afiliações institucionais. Os autores também não terão conhecimento das identidades dos consultores. Após análise dos artigos, os consultores emitem por escrito os pareceres: aprovado, aprovado com recomendações e/ou sugestões ou rejeitado para publicação. A revista Perspectivas em Psicologia conta com consultores qualificados que procuram emitir pareceres construtivos aos trabalhos dos autores. As cópias dos pareceres dos consultores serão fornecidas na íntegra aos autores do trabalho. Ao editor caberá, após análise dos pareceres emitidos, aceitar ou rejeitar o texto, encaminhando-o para publicação, bem como, eventualmente, sugerir modificações ao autor. Por outro lado, o editor reserva-se o direito de fazer pequenas e simples modificações nos textos, para agilizar o processo de publicação. O editor informará os autores o mais rápido possível sobre o parecer final e possível data de publicação. Os originais dos trabalhos enviados não serão devolvidos. Por esse motivo, recomenda-se aos autores guardar cópias de seus textos. O copyright dos artigos publicados não está sendo cedido à Revista Perspectivas em Psicologia e, portanto, pertence aos seus autores; caso esses artigos venham a ser publicados em outros veículos, recomenda-se que a primeira publicação na Revista Perspectivas em Psicologia seja mencionada. Os autores receberão um exemplar da revista na qual seu artigo foi publicado Preparação dos manuscritos 1) O manuscrito a ser submetido à revista Perspectivas em Psicologia não pode ter sido publicado em outro veículo de divulgação (revista, livro, etc.) e não pode ser simultaneamente submetido ou publicado em outro lugar. 2) Todas as submissões de manuscritos devem seguir as Normas de Publicação da APA: Publication Manual of the American Psychological Association (5ª edição, 2001), no que diz respeito ao estilo de apresentação do manuscrito e aos aspectos éticos inerentes à realização de um trabalho científico. 3) Para o início do processo editorial, a cópia do parecer do Comitê de Ética em Pesquisa, quando pertinente, deverá ser encaminhada juntamente com a submissão do manuscrito.

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4) Os textos originais deverão ser submetidos via internet mediante o seguinte e-mail: [email protected] 5) Como a revisão dos manuscritos é cega quanto à identidade dos autores, é responsabilidade destes a verificação de que não há elementos capazes de identificá-los em qualquer outra parte do manuscrito, inclusive nas propriedades do arquivo. O e-mail com os dados dos autores não será encaminhado aos consultores ad hoc. 1. Apresentação dos Manuscritos 1) Os manuscritos devem ser apresentados em formato doc e não exceder o número máximo de páginas (iniciando no Resumo como página 1) indicado para cada tipo de manuscrito (incluindo Resumo, Abstract, Figuras, Tabelas, Anexos e Referências, além do corpo do texto), que seriam: 1.1. Artigos (10-25 páginas): relatos de pesquisas originais, baseadas em investigações sistemáticas e completas. Também serão aceitos, porém em número restrito, artigos teóricos ou de revisão com análise crítica e oportuna de um corpo abrangente de investigação, relativa a assuntos de interesse para o desenvolvimento da Psicologia, preferencialmente numa área de pesquisa para a qual o(a) autor(a) contribui. 1.2. Comunicações breves (5-9 páginas): relatos breves de pesquisa ou de experiência profissional com evidências metodologicamente apropriadas; manuscritos que descrevem novos métodos ou técnicas serão também considerados. 1.3. Resenhas (2-4 páginas): revisão crítica de obra recém publicada, orientando o(a) leitor(a) quanto as suas características e usos potenciais. Autores devem consultar a Editora Geral antes de submeter resenhas ao processo editorial. 2. Diretrizes Gerais 2.1. Papel: Tamanho A4 (21 x 29,7cm). O manuscrito, sendo um artigo, ao todo não deve passar de 25 páginas, desde o Resumo até as Referências, incluindo as Tabelas, Figuras e Anexos. 2.2. Fonte: Times New Roman, tamanho 12, ao longo de todo o texto, incluindo Referências, Notas de Rodapé, Tabelas, etc. 2.3. Margens: 2,5 cm em todos os lados (superior, inferior, esquerda e direita). 2.4. Espaçamento: espaço duplo ao longo de todo o manuscrito, incluindo Folha de Rosto, Resumo, Corpo do Texto, Referências, etc. 2.5. Alinhamento: esquerda 2.6. Recuo da primeira linha do parágrafo: tab = 1,25cm 2.7. Numeração das páginas: no canto direito na altura da primeira linha de cada página. 2.8. Cabeçalho de página: as primeiras duas ou três palavras do título devem aparecer cinco espaços à esquerda do número da página. O cabeçalho é usado para identificar as páginas do manuscrito durante o processo editorial. Usando MS Word, quando o número da página e o cabeçalho são inseridos em uma página, automaticamente aparecem em todas as outras. 2.9. Endereços da Internet: Todos os endereços "URL" (links para a internet) no texto (ex.: http://pkp.sfu.ca) deverão estar ativos. 2.10. Ordem dos elementos do manuscrito: Folha de rosto sem identificação, Resumo e Abstract, Corpo do Texto, Referências, Anexos, Notas de Rodapé, Tabelas e Figuras. Inicie cada um deles em uma nova página. 3. Elementos do manuscrito: 3.1. Folha de rosto sem identificação: título em português (máximo 15 palavras, maiúsculas e minúsculas, centralizado) e o título em inglês compatível com o título em português. 3.2. Resumos em português e inglês: Parágrafos com no máximo 120 palavras (artigos), ou 100 palavras (comunicações breves), com o título Resumo escrito centralizado na primeira linha abaixo do cabeçalho. Ao fim do resumo, listar pelo menos três e no máximo cinco palavras-chave em português (em letras minúsculas e separadas por ponto e vírgula), preferencialmente derivadas do Terminologia em Psicologia, da Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia. O resumo em inglês

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(Abstract), que deve ser fiel ao resumo em português, porém, não uma tradução "literal" do mesmo. Ou seja, a tradução deve preservar o conteúdo do resumo, mas também adaptar-se ao estilo gramatical inglês. O Abstract deve ser seguido das keywords (versão em inglês das palavras-chave). 3.3. Corpo do Texto: Não é necessário colocar título do manuscrito nessa página. As subseções do corpo do texto não começam cada uma em uma nova página e seus títulos devem estar centralizados, e ter a primeira letra de cada palavra em letra maiúscula (por exemplo, Resultados, Método e Discussão, em artigos empíricos). Os subtítulos das subseções devem estar em itálico e ter a primeira letra de cada palavra em letra maiúscula (por exemplo, os subtítulos da subseção Método: Participantes, ou Análise dos Dados). 3.3.1. As palavras Figura, Tabela, Anexo que aparecerem no texto devem ser escritas com a primeira letra em maiúscula e acompanhadas do número (Figuras e Tabelas) ou letra (Anexos) ao qual se referem. Os locais sugeridos para inserção de figuras e tabelas deverão ser indicados no texto. 3.3.2. Sublinhados, Itálicos e Negritos: Sublinhe palavras ou expressões que devam ser enfatizadas no texto impresso, por exemplo, "estrangeirismos", como self, locus, etc e palavras que deseje grifar. Não utilize itálico (menos onde é requerido pelas normas de publicação), negrito, marcas d'água ou outros recursos que podem tornar o texto visualmente atrativo, pois trazem problemas sérios para editoração. 3.3.3. Dê sempre crédito aos autores e às datas de publicação de todos os estudos referidos. Todos os nomes de autores cujos trabalhos forem citados devem ser seguidos da data de publicação. Todos os estudos citados no texto devem ser listados na seção de Referências. 4. Exemplos de citações no corpo do manuscrito: 4.1. Citação de artigo de autoria múltipla: 4.1.1. Artigo com dois autores: cite os dois nomes sempre que o artigo for referido:  Rogers e Zappulla (2006) fizeram a análise...  Esta análise (Rogers & Zappulla, 2006)... 4.1.2. Artigo com três a cinco autores: cite todos os autores só na primeira citação e nas seguintes cite o primeiro autor seguido de et al. (sem sublinhar e com um ponto após al) e o ano se for a primeira citação da referência naquele parágrafo:  Wasserstein, Zappulla, Rosen, Gerstman, e Rock (1994) constataram ... [primeira citação do texto]  Wasserstein et al. (1994) constataram [subseqüente primeira citação por parágrafo] 4.1.3. Artigo com seis ou mais autores: cite no texto apenas o sobrenome do primeiro autor, seguido de "et al." e da data. 4.1.4. Na seção de Referências Bibliográficas todos os nomes dos autores deverão ser relacionados. 4.1.5. Citações de obras antigas e reeditadas  De fato, Skinner (1963/1975)  ...na explicação do comportamento (Skinner, 1963/1975). 4.1.6. Na seção de referências, citar  Skinner, B. F. (1975). Contingências de reforço. São Paulo: Abril Cultural. (Original published in 1963) Importante: Citações com menos de 40 palavras devem ser incorporadas no parágrafo do texto, entre aspas. Citações com mais de 40 palavras devem aparecer sem aspas em um parágrafo no formato de bloco, com cada linha recuada 5 espaços da margem esquerda. Citações com mais de 500 palavras, reprodução de uma ou mais figuras, tabelas ou outras ilustrações devem ter permissão escrita do detentor dos direitos autorais do trabalho original para a reprodução. A permissão deve ser endereçada ao autor do trabalho submetido. Os direitos obtidos secundariamente não serão

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repassados em nenhuma circunstância. A citação direta deve ser exata, mesmo se houver erros no original. Se isso acontecer e correr o risco de confundir o leitor, acrescente a palavra [sic], sublinhado e entre colchetes, logo após o erro. Omissão de material de uma fonte original deve ser indicada por três pontos (...). A inserção de material, tais como comentários ou observações devem ser feitos entre colchetes. A ênfase numa ou mais palavras deve ser feita com fonte sublinhada, seguida de [grifo nosso]. Atenção: Não use os termos apud, op. cit, id. ibidem, e outros. Eles não fazem parte das normas da APA (2001, 5ª edição). 5. Referências: 5.1. Inicie uma nova página para a seção de Referências, com este título centralizado na primeira linha abaixo do cabeçalho. Apenas as obras consultadas e mencionadas no texto devem aparecer nesta seção. Continue utilizando espaço duplo e não deixe um espaço extra entre as citações. As referências devem ser citadas em ordem alfabética pelo sobrenome dos autores, de acordo com as normas da APA (veja alguns exemplos abaixo). Utilize o Publication Manual of the American Psychological Association (2001, 5ª edição) para verificar as normas não mencionadas aqui. 5.2. Em casos de referência a múltiplos estudos do(a) mesmo(a)autor(a), utilize ordem cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recente. Nomes de autores não devem ser substituídos por travessões ou traços. 6. Exemplos de referências: 6.1. Artigo de revista científica  Campos de Carvalho, A. M. (1997). O desenvolvimento social da criança e seus contextos de emergência. Temas em Psicologia, 3, 27-31. 6.2. Artigo de revista científica paginada por fascículo  Proceder de acordo com o indicado acima, e incluir o número do fascículo entre parênteses, sem sublinhar, após o número do volume. 6.3. Artigo de revista científica editada apenas em formato eletrônico  Silva, S. C. da (2006, February). Estágios de Núcleo Básico na formação do psicólogo experiências de desafios e conquistas. Psicologia para América Latina, 5, 2006, Retrieved in May 12, 2006, from http://scielo.bvs-psi.org.br 6.4. Livros  Koller, S. H. (2004). Ecologia do desenvolvimento humano: Pesquisa e intervenção. São Paulo: Casa do Psicólogo. 6.5. Capítulo de livro  Dell'Aglio, D. D., & Deretti, L. (2005). Estratégias de coping em situações de violência no desenvolvimento de crianças e adolescentes. In C. S. Hutz (Ed.), Violência e risco na infância e adolescência: pesquisa e intervenção (pp. 147-171). Säo Paulo: Casa do Psicólogo. 6.6. Obra antiga e reeditada em data muito posterior  Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original published in 1979). 6.7. Autoria institucional  American Psychiatric Association (1988). DSM-III-R, Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3a ed. revisada). Washington, DC: Autor. 6.8. Anexos: Evite. Somente devem ser incluídos se contiverem informações consideradas indispensáveis, como testes não publicadosou descrição de equipamentos ou materiais complexos. Os Anexos devem ser apresentados cada um em uma nova página. Os Anexos devem ser indicados no texto e apresentados no final do manuscrito, identificados pelas letras do alfabeto em maiúsculas (A, B, C, e assim por diante), se forem mais de um. 6.9. Notas de rodapé: Devem ser evitadas sempre que possível. No entanto, se não houver outra

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possibilidade, devem ser indicadas por algarismos arábicos no texto e apresentadas após os Anexos. O título (Notas de Rodapé) aparece centralizado na primeira linha abaixo do cabeçalho. Recue a primeira linha de cada nota de rodapé em 1,25cm e numere-as conforme as respectivas indicações no texto. 6.10. Tabelas: Devem ser elaboradas em Word (.doc) ou Excel. No caso de apresentações gráficas de tabelas, use preferencialmente colunas, evitando outras formas de apresentação como pizza, etc. Nestas apresentações evite usar cores. Cada tabela começa em uma página separada. A palavra Tabela é alinhada à esquerda na primeira linha abaixo do cabeçalho e seguida do número correspondente à tabela. Dê um espaço duplo e digite o título da tabela à esquerda, em itálico e sem ponto final, sendo a primeira letra de cada palavra em maiúsculo. Não devem exceder 17,5 cm de largura por 23,5 cm de comprimento. 6.11. Figuras: Devem ser do tipo de arquivo JPG e apresentadas em uma folha em separado. Não devem exceder 17,5 cm de largura por 23,5 cm de comprimento. A palavra Figura é alinhada à esquerda na primeira linha abaixo do cabeçalho e seguida do número correspondente à figura. Dê um espaço duplo e digite o título da figura à esquerda, em itálico e sem ponto final, sendo a primeira letra de cada palavra em maiúsculo. 6.12. As palavras Figura, Tabela e Anexo que aparecerem no texto devem, sempre, ser escritas com a primeira letra em maiúscula e devem vir acompanhadas do número (para Figuras e Tabelas) ou letra (para Anexos) respectivo ao qual se referem. A utilização de expressões como "a Tabela acima" ou "a Figura abaixo" não devem ser utilizadas, porque no processo de editoração a localização das mesmas pode ser alterada. As normas da APA (2001, 5ª edição) não incluem a denominação de Quadros ou Gráficos, apenas Tabelas e Figuras. Endereço para encaminhamento de manuscrito Universidade Federal de Uberlândia Instituto de Psicologia Av. Pará, 1720 - Campus Umuarama, Bloco 2C - Sala 2C-42 CEP- 38400-902 – Uberlândia – MG. Solicita-se permuta. Números avulsos poderão ser adquiridos ao preço de R$15,00.

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