Auto da Pimenta de Rui Veloso e Carlos Tê como desmitificação do mito imperial português.

May 29, 2017 | Autor: Maciej Chojnowski | Categoria: História e Canção, Estudos Pós-Coloniais, Salazarismo, Historia Dos Descobrimentos
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UNIWERSYTET MARII CURIE-SKŁODOWSKIEJ W LUBLINIE WYDZIAŁ HUMANISTYCZNY Instytut Filologii Romańskiej

Maciej Chojnowski Nr albumu 210513

Auto da Pimenta de Rui Veloso e Carlos Tê como desmitificação do mito imperial português

Praca licencjacka napisana pod kierunkiem dr Renaty Díaz-Szmidt

LUBLIN 2012

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ÍNDICE INTRODUÇÃO...............................................................................................................3 I.

A construção do mito e da visão ortodoxa dos Descobrimentos no século XVI........................................................................................................................9

II.

A visão heterodoxa dos Descobrimentos na literatura portuguesa do século XVI e XVII – Brás da Costa, Francisco Sá de Miranda, Gil Vicente (Auto da Índia), Luís Vaz de Camões e O Episódio do Velho do Restelo (Os Lusíadas), os relatos de naufrágios (História Trágico-Marítima), Fernão Mendes Pinto (Peregrinação)............................................................................12

III.

As duas visões dos Descobrimentos, ortodoxa e heterodoxa, durante o Estado Novo (1933-1974) e depois da Revolução dos Cravos (1974)............20

IV.

A análise crítica das letras das canções de Carlos Tê.....................................27 1. Sete Partidas (Cantiga de amigo)...................................................................28 2. S. Miguel.........................................................................................................30 3. Cabo Sim Cabo Não.......................................................................................31 4. Lançado...........................................................................................................32 5. Canção de marinhar.......................................................................................35 6. Cruzeiro do sul................................................................................................36 7. Faena de mar..................................................................................................37 8. Calmaria.........................................................................................................41 9. Praia das lágrimas..........................................................................................42 10. Mulher D’armas...........................................................................................45 11. Trovas vicentinas..........................................................................................46 12. País do gelo...................................................................................................47 13. Nativa............................................................................................................51 14. O ourives mestre João..................................................................................53 15. À sombra da tamareira.................................................................................55 16. Logo que passe a monção.............................................................................57 17. Memorial.......................................................................................................60 18. Brizas do Restelo...........................................................................................62

CONCLUSÕES FINAIS...............................................................................................66 BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................69 STRESZCZENIE (RESUMO DA TESE)....................................................................73 ANEXO (as letras das canções do Auto da Pimenta)..................................................75 2

Introdução. O presente trabalho tem como objetivo a análise crítica e interpretação das letras das canções do disco Auto da Pimenta (1991) de Rui Veloso, um dos músicos portugueses com mais êxito no seu país. O álbum, inteiramente dedicado ao tema dos Descobrimentos Portugueses, constitui um ponto de referência importante no panorama da cultura portuguesa. As canções do disco são estudadas nas escolas, nas aulas de literatura e de história. A letra para a canção À sombra da Tamareira aparece, com o número 2941, na Sebástica - Bibliografia geral sobre D. Sebastião (2002), editada pela Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. As canções do disco são dezoito e as letras foram escritas por Carlos Alberto Gomes Monteiro, melhor conhecido como Carlos Tê, letrista, jornalista e escritor português. No nosso trabalho procuraremos dar relevo especial à relação dos textos analisados com a história dos Descobrimentos e à atitude que o autor das letras tomou quanto ao tema. É de ressaltar que a história da expansão portuguesa no século XVI costumava e continua a ser lida de duas maneiras distintas: uma que se caracteriza pela idealização e engrandecimento das glórias e dos heróis nacionais, e outra que não teme revelar as sombras, os erros e as consequências negativas daqueles acontecimentos. A maneira idealizada de ver a história dos Descobrimentos quase sempre foi favorecida pelo poder estatal, convertendo-se na versão oficial do Estado, muitas vezes apoiada pela censura e pela propaganda. Aquele pensamento ortodoxo dominou o discurso oficial, ao mesmo tempo marginalizando as expressões culturais subalternas que visavam mostrar o outro lado da versão oficial e chamar para os aspetos censuráveis da história da expansão portuguesa. A Contra-Reforma no século XVI e a propaganda salazarista do Estado Novo (1933-1974) são os exemplos mais significativos da hegemonia da visão ortodoxa sobre o pensamento heterodoxo e subversivo. Na capa traseira do disco Auto da Pimenta podemos ler: "Esta obra foi encomendada pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses", o organismo fundado em 1986 por ocasião do quingentésimo aniversário de alguns dos acontecimentos marcantes dos Descobrimentos: a passagem do cabo da Boa Esperança (1487), a chegada à Índia (1498) e a descoberta do Brasil (1500). Será que o disco encomendado pelo Estado em 1991 apresenta uma visão ortodoxa da história? Ou terá sido lançado no momento histórico em que já se aceitavam as vozes que discordavam da versão hegemónica?

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A fim de compreender o momento histórico português em que se estreou Auto da Pimenta, o que nos ajudará no nosso estudo, permitimo-nos citar um excerto de um texto da escritora portuguesa Lídia Jorge. Na verdade, o que sucedia a Portugal em 1974 era alguma coisa mais do que passar dum estado de ditadura para uma democracia. Em 25 de Abril de 74 assistia-se ao encerramento dum ciclo imperial iniciado no século XV, e que vinha a prolongar-se em agonia com a ditadura. Isto é, o país de dois milhões de habitantes que havia liderado os Descobrimentos marítimos ibéricos e europeus, e que havia dilatado a sua geografia pelo Mundo, era obrigado, naquela madrugada de 74, a confrontar-se com o apoucamento do seu corpo imperial fantasmático até à dimensão do núcleo original— umas centenas de milhares de quilómetros de costa atlântica, no extremo oeste do continente europeu. O que significava que iria ser forçoso escolher outro apoio e outro compadrio geográfico, e que a nossa hiperidentidade iria ser posta à prova face à Europa que nos viria a acolher. O que significou também que o nosso projeto de futuro, do novo futuro, ficaria em causa e em discussão. E que o passado precisaria de ser revisto e de novo narrado. A Guerra Colonial sonegada, o exílio, o isolamento da juventude portuguesa, bem como a ocultação, todas as ocultações, passando pelo número dos mortos e estropiados, até outras mais subtis, como era a ocultação dos sentimentos da memória e a ocultação do corpo, de súbito, tudo isso poderia ser revelado. (JORGE 1999 : 162)

Consideramos cruciais as duas últimas frases do texto citado acima, porque indicam-nos que no final do século XX em Portugal se assistiu a uma grande mudança de paradigmas em relação ao modo de ver a história do país. Depois da morte de António de Oliveira Salazar (1970) e, com mais intensidade, depois da Revolução dos Cravos (1974), observou-se na cultura portuguesa o processo da "má digestão [...] do mito do Império" (GOMES 2007 [em linha]), da libertação de pensamento e do combate contra a herança do Estado Novo, que foi "uma poderosa máquina construtora de mitos e fazedora de heróis que muito bem unia a história à ideologia" (PIMENTEL 2008 : 17). Aquele processo deixou a sua marca mais forte na literatura porque o discurso da literatura e o discurso paraliterário [...] são [...] as práticas que mais expressiva e consequentemente podem induzir o conhecimento responsável de si mesmo e dos outros [...], por forma a que os traumas sejam enfrentados com coragem, os mitos sejam sujeitos a um franco processo de revisão e a História seja refigurada sob o signo da ficção. (REIS, 2010 [em linha])

Por outras palavras, a transformação de paradigmas e a criação de novas atitudes sociais realizou-se através do discurso literário. Os escritores, na atitude da relativização e da incerteza, descompuseram os mitos nacionais após a queda do Império, desempenhando o papel dos arautos da mudança na consciência do povo. A título de exemplo, eis um fragmento do texto intitulado Lá vai o português de José Cardoso Pires que bem ilustra essa atitude: Lá vai o português… lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos. (PIRES 1977 : 19)

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Encontramos no fragmento citado acima um certo pessimismo do autor face à condição do povo português e também uma certa preocupação sua pela história e pela identidade portuguesas. A literatura do pós-25 de Abril, em sua grande parte, consistia em combater os grandes mitos nacionais e constituia uma tentativa de desmitificar o passado heroico, por meio de mostrar o "outro lado" dele. Em muitos livros publicados naquela época, o passado entrelaçava-se com o presente com o fim de repensar a história oficial e criticar os erros cometidos durante a expansão marítima, que até aquele momento tinham sido sonegados. Os escritores, como José Cardoso Pires, procuravam ajustar as contas com o passado em busca de uma nova identidade.1 O objetivo da nossa tese é analisar as letras de canções para averiguar se encontramos nelas a mesma atitude da desmitificação da história, tão presente na literatura portuguesa nos últimos quarenta anos. Cabe mencionar que, antes do lançamento do Auto da Pimenta, já se tinham publicado em Portugal outros álbuns musicais que continham a crítica aos Descobrimentos. Uma das obras musicais ligadas a este tema viu a luz do dia em 1942. Naquele ano Fernando Lopes-Graça, um dos maiores compositores portugueses, compôs a cantata História Trágico-Marítima a partir de poemas de Miguel Torga "numa clara tomada de posição contra a valorização oficial do pendor colonialista dos Descobrimentos, presente, aliás, nas faustosas comemorações de mais um centenário da independência de Portugal, em 1940". (MURTINHEIRA 2010 [em linha]) Em 1969, Adriano Correia de Oliveira, um dos representantes mais significativos do "canto de intervenção"2, lançou o álbum O Canto e as Armas com as letras do poeta Manuel Alegre. Na época da guerra colonial a aventura marítima dos portugueses adquiriu um novo significado. O império desfazia-se de uma forma trágica. Denunciando os erros dos poderosos, Manuel Alegre fez uma referência clara aos acontecimentos históricos, apresentado o seu lado trágico nas canções intituladas A batalha de Alcácer Quibir e Peregrinação. Mário César Lugarinho afirma, referindo-se a Manuel Alegre, que o poeta "decididamente recusou ler a História de Portugal pelo seu sentido mítico, mas que não recusou ler a história" (LUGARINHO 1999 [em

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Para além do José Cardoso Pires podemos também mencionar José Saramago (Jangada de Pedra), António Lobo Antunes (As Naus), Lídia Jorge (O Cais das Merendas), Almeida Faria (Tetralogia Lusitana, O Conquistador) e Helder Macedo (Partes de África, Vícios e Virtudes). Na poesia encontramos um novo modo de pensar a Pátria e a Historia em tais autores como Jorge de Sena, Manuel Alegre, Miguel Torga e Saramago (Fala do Velho do Restelo ao astronauta), entre outros.

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Um fenómeno musical, surgido no princípio dos anos sessenta do século XX e liderado por José Afonso, que assumiu um papel sociopolítico na consciencialização e luta contra a ditadura salazarista 5

linha]). Outro músico que dedicou a sua obra aos Descobrimentos, para mostrar o "outro lado" daquela época, é Fausto. Inicialmente um dos representantes do "canto da intervenção", em 1979 começou a compor Por Este Rio Acima, álbum que se baseia, na sua totalidade, na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Esta obra de Fausto foi lançada em 1982 e é considerada um dos álbuns mais marcantes da música popular portuguesa. A intenção do artista foi mostrar que os portugueses durante as suas conquistas muitas vezes "falharam e também mataram" (apud HALPERN 2010 : 11). Por Este Rio Acima, o primeiro disco da planeada trilogia, intitulada Lusitana Diáspora, encontrou a sua continuação nas Crónicas da Terra Ardente de 1994. O último disco do tríptico, intitulado Em Busca das Montanhas Azuis, chegou ao mercado no final do novembro de 2011. Podemos ver claramente que nos três autores mencionados são muito visíveis as tendências que observamos na literatura do pós-25 de Abril, isto é depois da queda do Império Colonial Português. Por isso, para entender da melhor maneira possível as letras do Auto da Pimenta, lançado em 1991, vamos inspirar a nossa investigação na perspetiva metodológica pós-colonial que oferece diversos instrumentos para compreender a história de um modo inovador e reinterpretá-la, procurando as "fendas" no discurso oficial com tendências totalizantes. O vasto campo dos estudos póscoloniais (sociológicos, políticos, literários) não constitui um método científico homogéneo mas antes uma base intelectual que favorece a abordagem crítica do passado e do presente. Ao adotar a perspetiva pós-colonial, podemos resgatar as vozes que se opunham à visão imperial da história, vozes até então silenciadas. A desconfiança frente à história oficial pode levar o investigador às conclusões originais e interessantes, dado que contribui para a complexidade e não simplificação da ánalise3. Nos três primeiros capítulos, que constituem a parte teórica da nossa tese, apresentaremos os conceitos que nos possibilitarão a leitura apropriada do objeto da nossa análise. Como o nosso objetivo é encontrar os traços da crítica frente aos Descobrimentos no Auto da Pimenta, no capítulo primeiro, intitulado A construção do mito e da visão ortodoxa dos Descobrimentos no século XVI, vamos descrever brevemente a história das Grandes Navegações, assim como a projeção desses

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Ver: "Estudios Postcoloniales. Ensayos fundamentales" realizado por Javier Mateo Girón, publicado na revista Relaciones internacionales (Número 11, junio 2009), Ewa Domanska, "Badania postkolonialne", em: Leela Gandhi, Teoria postkolonialna, Poznan: Wydawnictwo Poznanskie, 2008 6

acontecimentos na cultura, dando um relevo especial à obra de Luís Vaz de Camões que escreveu a epopeia Os Lusíadas. As nossas considerações serão baseadas principalmente em dois livros: As Navegações e a sua projeção na ciência e na cultura (1987) de Luís de Albuquerque e Camões no Portugal de Quinhentos (1981) de José Sebastião da Silva Dias. As características da obra camoniana serão apresentadas com base na História da Literatura Portuguesa (1996) de António José Saraiva e Óscar Lopes. No capítulo II, intitulado A visão heterodoxa dos Descobrimentos na literatura portuguesa do século XVI e XVII, realizaremos uma revisão das obras contemporâneas à obra de Camões que discordavam da doutrina oficial e nas quais se inspirou Carlos Tê ao compor as letras das canções para o Auto da Pimenta. Com este fim, faremos uso do livro História da Literatura Portuguesa (1996) de António José Saraiva e Óscar Lopes para falar sobre Brás da Costa, Fransisco Sá de Miranda e Gil Vicente. Para caracterizar o conteúdo e o significado da História Trágico-Marítima (que apesar de ter sido publicada no século XVIII, recolhe os relatos escritos no princípio do século XVII) apoiaremo-nos no livro Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séc. XVI e XVII (1979) de Giulia Lanciani. Os trabalhos Fernão Mendes Pinto. Sátira e AntiCruzada na «Peregrinação» (1981) e A sátira social de Fernão Mendes Pinto. Análise crítica da «Peregrinação» (1978) de Rebecca Catz proporcionaram-nos informações sobre Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Durante o período de três ou até quatro séculos que separam os autores mencionados de Carlos Tê, o tema dos Descobrimentos na literatura não deixou de existir. Ao longo de todo esse tempo apareceram muitas obras, tanto glorificadoras como críticas, mas decidimos por não comentá-las, dado que Carlos Tê nas suas letras só se refere aos autores quinhentistas e seiscentistas. Com o fim de sublinhar a continuidade desse tradição literária, comentaremos brevemente o livro As Naus de António Lobo Antunes, autor contemporâneo a Carlos Tê. O capítulo III, As duas visões dos Descobrimentos, ortodoxa e heterodoxa, durante o Estado Novo (1933-1974) e depois da Revolução dos Cravos (1974), tem como objetivo esboçar o momento histórico e social próximo à estreia do Auto da Pimenta. Com esse fim, mostraremos como a ditadura salazarista em Portugal idealizava a época da Expansão Marítima, ignorando os "lados obscuros" dela, e como o clima intelectual mudou depois da queda do regime. Apresentaremos o pensamento do filosófo português Eduardo Lourenço e de outras figuras de relevo, cujas reflexões sobre a identidade portuguesa nos possibilitarão o entendimento do processo da desmitificação do mito das Grandes Navegações. No capítulo em questão faremos uso 7

do livro Camões e a identidade nacional (1983) que recolhe as intervenções a propósito de Camões de várias figuras de relevo do pós-25 do Abril (Vergílio Ferreira, Jorge de Sena, Fernando Namora e outros). Serão também úteis para as nossas considerações os ensaios Uma Outra História de Regressos: Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (2007) de Margarida Calafate Ribeiro e O mito e o espelho: A ideia de Europa em Eduardo Lourenço (2008) de José Eduardo Franco. A parte prática constitui uma tentativa de análise possivelmente mais abrangente de todas as dezoito canções. Todo o conjunto vai tornar possível uma abordagem multifacetada dos textos e extrair significados que podem, à primeira vista, parecer ocultos. Cada uma das canções vem antecedida por uma epígrafe. Todos os textos analisados se encontram no anexo da presente tese e vão ser citados ao longo do trabalho sem referência bibliográfica.

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I. A construção do mito e da visão ortodoxa dos Descobrimentos no século XVI Os Descobrimentos Portugueses foram o conjunto das viagens e explorações marítimas realizadas pelos portugueses entre 1415 e 1543. Iniciados no Norte da África, converteram-se logo na exploração sistemática da costa ocidental africana, o que no final levou os portugueses à entrada no Oceano Índico e chegada à Índia. Mais tarde a exploração portuguesa estendeu-se pela costa asiática até à China e ao Japão. Em 1500, na segunda viagem para a Índia, Pedro Álvares Cabral desviou-se da rota na costa Africana e aportou no Brasil. O auge daquela conquista do mundo foi atingido durante o reinado de Dom Manuel I (1495-1521), que se intitulou "Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc." Para além de serem um acontecimento histórico, os Descobrimentos constituem também um dos elementos essenciais, senão o mais decisivo, na formação da identidade nacional portuguesa. Com base naqueles acontecimentos históricos criou-se um ambiente intelectual que levou à formação da ideologia oficial do Estado. Os portugueses desde o reinado de Dom João II (1481-1495) sentiam um enorme orgulho de ter progredido tanto na arte de navegar que foram capazes de descobrir novas terras e quebrar o monópolio do comércio das especiarias. Na época manuelina "aquele ambiente ufânico de heroísmo […] assumiu proproções de delírio" (SPINA, BECHARA 1973 : 13). O resultado final daquele ambiente foi o poema épico Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões em que o vate imortalizou as façanhas dos portugueses nos mares "nunca dantes navegados". Com o propósito de esboçar o clima intelectual vigente durante todo o período quinhentista antecedente à publicação d'Os Lusíadas, vamos basear as nossas considerações principalmente em dois livros: As Navegações e a sua projeção na ciência e na cultura de Luís de Albuquerque e Camões no Portugal de Quinhentos de José Sebastião da Silva Dias. De acordo com um dos maiores especialistas na temática dos Descobrimentos

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portugueses, Luís de Albuquerque, os cronistas portugueses "desde Azurara4 se compraziam em sublimar os grandes feitos dos seus compatriotas, deixando na penumbra as desventuras que podiam ofuscá-los" (ALBUQUERQUE 1987 : 119). Os cronistas da época manuelina (1495-1521), também se espraiavam em louvores às vitórias alcançadas pelos portugueses. João de Barros escreveu as suas Décadas com a intenção de "erguer um monumento aos feitos portugueses no Oriente, no estilo do que Tito Lívio levantou à grandeza de Roma" (SARAIVA, LOPES 1996 : 278). Nos prólogos das Décadas, o cronista expõe a sua conceção de história como espelho de exemplaridade heroica. Adapta também o preceito de Cícero, segundo o qual o amor da verdade não deve ir até ao ponto de revelar os vícios e as fraquezas dos heróis. João de Barros segue a doutrina oficial, só reparando nos acontecimentos heroicos e permanecendo cego aos outros. Outros cronistas também preferiam divulgar as informações falsas sobre alguns acontecimentos do que contar a verdade que podia manchar a imagem dos heróis. Convertiam os fracassos militares em glórias, acrescentando as histórias dos milagres que o Deus Cristão fez para combater os Mouros. A ideologia oficial da Coroa considerava a gesta dos portugueses um resultado evidente de uma interferência divina. Na euforia resultante desse clima de sublimação dos Descobrimentos e dos seus resultados cometiam-se exageros intencionais. Segundo os cronistas, Dom Manuel I tinha mais poder do que os Césares Romanos e Alexandre. Procuravam-se também raizes duvidosas para os fundamentos do Reino em tempos demasiadamente remotos. Os matemáticos Pedro Nunes (1502-1578) e Diogo de Sá, levados pela euforia, afirmavam (erroneamente) que os Descobrimentos nunca tinham sido feitos ao acaso. Convergiam também na opinião, embora divergentes em certas particularidades da filosofia e da matemática, de que as navegações portuguesas excediam todas as até então realizadas e mereciam os mais encomiásticos qualificativos (ALBUQUERQUE 1987 : 127). Concluindo as considerações citadas, permitimo-nos citar uma vez mais a Luís de Albuquerque, que constata que "em todo o período quinhentista antecedente à publicação d'Os Lusíadas existiu em Portugal um clima de sublimação dos Descobrimentos e dos seus resultados" (Ibidem : 129). Quando a expansão portuguesa no mundo atingiu o zénite, surgiu a necessidade de realizar um poema heroico sobre os feitos dos lusitanos. No início do século XVI Garcia de Resende, no prólogo do Cancioneiro Geral, lamentava que os 4

Gomes Eanes de Azurara (1410-1474), historiador português e cronista real a partir de 1450, em substituição de Fernão Lopes, autor da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné 10

Descobrimentos não estivessem condignamente cantados. Humanistas, como António Ferreira, instigavam para ressuscitar o genéro de epopeia, um dos mais nobres moldes greco-romanos. Este desejo cumpriu-se em 1572, quando Luís Vaz de Camões levou a cabo aquele objetivo, publicando uma epopeia clássica segundo o padrão homérico. A célebre obra camoniana é um tema demasiado vasto para poder comentá-la exaustivamente nesta tese, por isso vamos limitar-nos a algumas características principais ou opiniões de só alguns investigadores. Os Lusíadas contam toda a história dos portugueses (segundo os humanistas, descendentes de Luso, filho ou companheiro de Baco), com a sua culminação na viagem de Vasco da Gama (1498). Camões "vê a história de Portugal como uma cruzada, iniciada por Afonso Henriques, que deveria servir de exemplo aos outros estados cristãos (…)" (SARAIVA, LOPES 1996 : 332). Quanto aos heróis, constatam Saravia e Lopes, que todo o poema é "um friso de nomes aristocráticos em constante paralelo emulador com outros da Antiguidade" (Ibidem : 334). Em Os Lusíadas domina a valorização exclusiva dos feitos de guerra e conceção da história nacional como uma sequência de proezas de heróis militares (Ibidem). Camões escreveu o seu poema de acordo com as ideias que o rodeavam e publicou-o no momento que se requeria. Sem reparar nos pormenores, podemos constatar, citando José Sebastião da Silva Dias, que "por qualquer lado que o encaremos, o pensamento político de Camões não se aparta das linhas tradicionais, nem contrasta com as conceções dominantes no País, nem tãopouco com a estratégia e a argumentação oficial" (DIAS 1981 : 85). O engenho poético com o que o Vate compôs a sua obra, deu-lhe imensa fama. Embora não escrito por encomenda do Estado, conciliou-se perfeitamente com a demanda cultural da época da Expansão. Filipe II de Espanha mandou traduzir Os Lusíadas para espanhol e publicar duas edições da obra em 1580. Além disso, o rei concedeu a Camões o título honorífico de "Príncipe dos poetas de Espanha". Assim começou a apropriação da obra camoniana pelo Estado que não iria acabar nunca. Tal como Filipe II tinha utilizado a epopeia para assegurar a legitimidade da sua política no século XVI, António de Oliveira Salazar fez o mesmo no século XX. O mito de Camões como símbolo nacional, que teve origem na época filipina, tornou-se especialmente importante no século XIX, quando foi fortalecido por alguns dos expoentes do Romantismo. Até a biografia do poeta foi readaptada e romantizada de acordo com a demanda cultural vigente na altura. Só no século XX, e especialmente depois do ano 1974, alguns dos investigadores resgataram os componentes da obra camoniana que se opunham à ideologia oficial, mas antes tinham sido silenciados. No 11

capítulo seguinte apresentaremos alguns fragmentos d'Os Lusíadas que parecem mostrar que Camões tinha a consciência dos outros lados da faceta dos Descobrimentos.

II. A visão heterodoxa dos Descobrimentos na literatura portuguesa do século XVI e XVII Como mostrámos no capítulo anterior, o louvor dos Descobrimentos foi uma prática dominante no pensamento dos homens de letras do século XVI. Mas ouviam-se também outras vozes na discussão sobre a expansão marítima. Algumas, mais suaves, como as de Gil Vicente ou de Sá de Miranda, apareceram já durante a época manuelina, tão unanimemente triunfalista. Outras, cada vez mais fortes, surgiram com o tempo, quando, pouco a pouco, vieram à luz do dia os sintomas, cada vez mais alarmantes, da quebra do Império. Já nos anos quarenta do século XVI, teve lugar a primeira descolonização portuguesa, com o abandono das praças africanas, realizou-se também o crescimento da atividade dos corsários contra a frota portuguesa. Tudo isso levou ao colapso financeiro do Estado e à perda do controle nacional sobre o cómercio dos produtos orientais (DIAS 1981 : 9-10). As consequências negativas das conquistas portuguesas culminaram em 1578, quando o Rei D. Sebastião iniciou a guerra em Marrocos e perdeu a vida na batalha de Alcácer-Quibir, o que levou Portugal à perda da independência para a dinastia Filipina. Como afirma a investigadora Rebecca Catz, referindo-se a Camões e Fernão Mendes Pinto: "Talvez esteja certo que um século que começou em glória e acabou em derrota tenha produzido duas extraordinárias obras primas, uma glorificando a ideologia da cruzada (embora não omitindo o seu reverso) e outra condenando-a" (CATZ 1981 : 6). Mas, por outro lado, como escreve Catz mais adiante, "continua sendo (…) uma das ironias da história que, ao mesmo tempo que Camões escrevia a sua grande epopeia, Fernão Mendes Pinto escrevesse a sua grande antiépica" (Ibidem : 12). Para o melhor entendimento das letras do disco Auto da Pimenta, vamos apresentar várias vozes críticas na literatura do século XVI e XVII, que muitas vezes constituiam uma fonte de inspiração para Carlos Tê. Cabe ainda dizer que muitos dos autores que vamos apresentar foram perseguidos pela Inquisição, estabelecida em Portugal em 1531 e depois fortalecida por Dom João III em 1547. Depois da morte de Dom João III em 1557, a principal figura do Reino foi o cardeal-infante D. Henrique, ao mesmo tempo inquisidor-geral. Como 12

afirma José Sebastião da Silva Dias, "com a subida de D. Sebastião ao trono, em 1568, a Contra-Reforma consolidou duradoiramente a sua implantação vertical e horizontal em todo o país. À medida dessa implantação, produziu-se na terra lusa uma ambiência cultural hostil às expressões mentais de raiz progressista, sem margem sequer para uma tolerância estreita e precária" (DIAS 1981 : 16). Realizaram-se os primeiros processos inquisitoriais e sairam as primeiras listas de livros em desacordo com a ortodoxia tridentina. Entre os autores proibidos ou amputados pela Censura contam-se Gil Vicente e Sá de Miranda. Expressar as suas dúvidas ou críticas acerca dos Descobrimentos, era na altura não só incomum, mas também mesmo perigoso. Os primeiros traços da crítica aos Descobrimentos encontramos durante a leitura do Cancioneiro Geral (1516) de Garcia de Resende. Brás da Costa, um dos poetas palacianos, revela uma forte postura antiexpansionista. Vê a empresa ultramarina como origem de desmoralização, desastres e fadigas aborrecidas (SARAIVA, LOPES 1996 : 161). Declara não querer pimenta e contentar-se apenas com a vida que vai preservando ("Por passar tanta tormenta,/tempo, e vida tam forte,/e tam perto ser da morte,/antes nom quero pimenta./Cá farei minha guarida/em escrever e notar,/e me quero contentar/co'a vida"5). Ao mesmo tempo que os restantes poetas do Cancioneiro Geral elogiavam os feitos dos portugueses, Brás da Costa apresentou uma voz isolada que discordava com a política oficial do Estado. Francisco Sá de Miranda (1481-1558), outro frequentador do Paço, foi um humanista e um prezador da superioridade do culto das letras sobre o das armas. Também se deu a conhecer como um crítico das viagens ultramarinas. Cerca de 1530 retirou-se da Corte para a sua terra no Alto Minho. Seguindo o pensamento de autores da Antiguidade clássica, elogiou a simplicidade rústica e o cultivo da terra. Mostrou-se como um amador da paz que desdenhava as guerras e a cobiça do ouro que as originava. Na Carta a António Pereira, Senhor do Basto expressou a sua opinião sobre os Descobrimentos: Não me temo de Castela Onde guerra inda não soa Mas temo-me de Lisboa Que ao cheiro desta canela O Reino nos despovoa (...) Os marinheiros vadios Que vilmente a vida apreçam pelas cordas dos navios volteiam como bugios 5

O poema de Brás da Costa está disponível na página web: http://letrario.no.sapo.pt/Literatura_classica/poesia_palaciana/da_caca_que_se_caca_em_portugal.htm , (Consultado em: 12/01/2012) 13

inda que vos al pareçam (…) 6

Nos fragmentos citados acima está bem patente o antibelicismo do autor que está em contradição com a ideia da expansão marítima. Para ele, as viagens ultramarinas não terão consequências positivas e só trarão desgraças para Portugal. Sá de Miranda parece não ter nenhuma estima pelos marinheiros, e não hesita em compará-los a macacos. Também Gil Vicente (1465-1536?), dramaturgo português, revela vários traços do pensamento heterodoxo frente ao pensamento oficial. Nas suas obras manifesta o seu anticlericalismo muito forte e serve-se da sátira social para condenar os vícios dos cortesãos. Como nos indicam António José Saraiva e Óscar Lopes (1996 : 204), Gil Vicente, mesmo que não possa ser considerado erasmista, nas suas críticas das indulgências vendidas pelo papado, do culto dos santos ou das superstições, aproximase ao pesamento reformador do grande humanista neerlandês. A crítica aos Descobrimentos aparece na farsa Auto da Índia. A personagem principal da obra é uma mulher que engana o marido que participa na missão militar no Oriente. O propósito de Vicente foi o de mostrar uma das consequências negativas das viagens ultramarinas, neste caso o adultério feminino. O marido da adúltera, por sua vez, numa passagem onde descreve a sua viagem a Índia, confessa que o seu próposito único foi o de enriquecer com a pilhagem guerreira. Desse modo, Gil Vicente desmente o espirito da Cruzada, na altura tão vigente em Portugal. Descreve também as condições severas da viagem e os perigos que se encontravam no mar: Fomos ao rio de Meca, Pelejámos e roubámos, E muito risco passámos: A vela, a árvore seca (...) Lá vos digo que há fadigas Tantas mortes, tantas brigas, E perigos descompassados, Que assi vimos destroçados. Pelados coma formigas (…) (VICENTE [1562] : 20)

Podemos constatar, que, por meio das palavras dos seus personagens, Gil Vicente alerta para os perigos de uma sociedade que o mar transformou e arrastou para uma viagem sem retorno possível. O poema épico de Luís Vaz de Camões, que na sua totalidade foi e continua a ser lido como um "monumento" aos heróis, contém, contudo, alguns elementos que se opõem à visão idealizadora dos Descobrimentos portugueses. O mais conhecido é o episódio do Velho do Restelo (Os Lusíadas, Canto IV, 94-104) que até hoje suscita 6

Edição digitalizada das obras de Sá de Miranda está dispónivel em: http://books.google.pl/books?id=SNwFAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pl&source=gbs_ge_su mmary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false (Consultado em: 12/01/2012) 14

discussões. Os críticos de literatura divergem quanto à interpretação desse fragmento da obra camoniana. Durante muito tempo as palavras do Velho do Restelo foram interpretadas como uma voz de uma parte passiva da sociedade que se opunha à expansão marítima, e cuja postura Camões tentou criticar. Apenas recentemente se tem reparado mais detalhadamente no conteúdo da fala da personagem camoniana e na provável intenção crítica de Camões frente à expansão. Segundo esta segunda perspetiva, o Velho do Restelo é uma pessoa prudente que se dá conta dos riscos resultantes da expansão e também parece não ter ilusões quanto aos verdadeiros motivos que levaram os portugueses para o além-mar. Eis umas estâncias do fragmento em questão: Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C'uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas! (...) Deixas criar às portas o inimigo, Por ires buscar outro de tão longe, Por quem se despovoe o Reino antigo, Se enfraqueça e se vá deitando a longe? Buscas o incerto e incógnito perigo Por que a fama te exalte e te lisonge, Chamando-te senhor, com larga cópia, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia? "Ó maldito o primeiro que no mundo Nas ondas velas pôs em seco lenho, Dino da eterna pena do profundo, Se é justa a justa lei, que sigo e tenho! (CAMÕES 2000 [1572] : 190-192)

Segundo José Sebastião da Silva Dias, autor do livro Camões no Portugal de Quinhentos, o Velho do Restelo não é um porta-voz do Épico mas constitui antes um reflexo do pensamento de uma parte da sociedade portuguesa de cuja existência Camões se dava conta. Aquela parte da sociedade eram os defensores do culto do passado e da expansão no Norte da África em vez de Oriente. O episódio em questão, segundo Silva Dias, está ligado à disputa do Baco (que simboliza o passado) e Vénus (o porvir) sobre o projeto ultramarino de Portugal. Desta maneira, o estudioso chega à conclusão que a intenção do Vate foi a de criticar a recusa da aventura marítima, dado que é Vénus que vence Baco, possibilitando a Vasco da Gama a chegada à Índia. Por outro lado, Roger M. Walker, no ensaio intitulado Baco ou Vénus? Pergunta de Camões ainda sem resposta, defende que o autor d'Os Lusíadas não fazia o juízo negativo nem da personagem do Baco, nem da do Velho do Restelo. Afirma que Camões tinha "pelo menos […] certa compreensão pela atitude reacionária" (WALKER

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1979 : 104). Segundo o estudioso, Camões expressou, por meio das figuras do Baco e do Velho do Restelo, o seu próprio receio que a arrogância e a ambição dos portugueses resultassem em conflito e derramamento de sangue. Walker acrescenta também, em favor da sua tese, que "à parte do desabafo do Velho do Restelo há outros passos n'Os Lusíadas mostrando não ser Camões glorificador da guerra desprovido de senso crítico" (Ibidem : 105). No mesmo tomo encontramos também outro ensaio, desta vez da autoria de Luís de Sousa Rebelo, intitulado Camões e o Sentido de Comunidade. Rebelo afirma que Camões se ia apercebendo da chaga colonial que deixaram os Descobrimentos (REBELO 1979 : 71). Segundo o estudioso, as apreensões do Velho do Restelo "manifestam a consciência dos riscos e dos males, que o Império traria consigo e põem audaciosamente em causa a ideia de progresso que por via de regra se lhe atribuiu" (Ibidem). Comentando outro episódio, A praia das lágrimas, que analisaremos na parte prática, ao interpretar uma das canções, Rebelo ressalta que "o alto preço que a comunidade portuguesa teria de pagar em vidas e sacrifícios sem nome, é proclamado com uma veemência, que mostra que o poeta jamais ignorou a outra face da expansão e do domínio colonial" (Ibidem : 72). No fim do seu ensaio, o estudioso conclui que "truncar (…) qualquer episódio da narrativa do poema, ou singularizar um deles (…) seria viciar o sentido da mensagem camoniana (Ibidem : 75). No cápitulo III mostraremos como o poema foi truncado e a mensagem camoniana viciada pelas leituras superficiais impostas pela propagando do Estado Novo. Ao longo dos séculos XVI e XVII circulavam em forma dos folhetos de "cordel" curtas narrativas de naufrágios que depois vieram a ser reunidas por Bernardo Gomes de Brito no volume intitulado História Trágico-Marítima (1735-36). Os relatos, baseados em episódios verídicos, evocam os sacrifícios, lágrimas e lutos que constituiam o preço das "carreiras da Índia". De acordo com Maria Leonor Carvalhão Buescu "se Os Lusíadas haviam sido uma epopeia de glória, a História Trágico-Marítima não é menos uma epopeia, mas de morte e de pavor" (CARVALHÃO BUESCO 1992 : 156). Nas páginas das narrativas enumeravam-se as causas dos naufrágios, como a largada fora da época regulada pelas normas, as excessivas dimensões e a má construção dos navios, o exagero das cargas e a sua má distribuição; as tempestades, a deficiência das bombas de água, a carência de velas sobressalentes, a inexperiência, a ignorância e a incapacidade dos pilotos, a falta de solidariedade entre os navios, em virtude de ambição de chegar primeiro aos portos de destino e os ataques de inimigos – piratas, corsários e navios de

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frotas adversas (francesas, inglesas, holandesas e turcas).7 Para a História Trágico-Marítima existe um interessante estudo de Giulia Lanciani, intitulado Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séc. XVI e XVII. Segundo a investigadora, História Trágico-Marítima "ilustrava os dramas do mar numa ótica já não imperialista e glorificante, mas, pelo contrário, redimensionadora do tom heroico adotado pelos cronistas oficiais e, na verdade, em certos aspetos, desmitificante (…)" (LANCIANI 1979 : 33). O "reverso da medalha" das exaltantes crónicas oficiais é composto pelas "naus engolidas pelas ondas, equipagens dizimadas pelas doenças, sofrimentos inauditos de mulheres, velhos, crianças, magros ganhos para os mais afortunados, que conseguirão por vezes sobreviver a uma viagem mas que morrerão na seguinte. Nenhum fascínio pela aventura, raros e postiços os motivos de exaltação nacionalista (…)" (Ibidem : 130). Para os autores dos relatos de naufrágios "a expansão ultramarina não é uma «dilatação da fé e do império», não tem o crisma da missão confiada por Deus mas é mesquinha ânsia humana do lucro, cobiça e opressão, na ausência de qualquer sentimento humanitário" (Ibidem : 130-131). Na nossa opinião, o autor que mais inspirou as letras de Carlos Tê para o Auto da Pimenta, foi Fernão Mendes Pinto (c.1509/14-1583). Por isso, também nós vamos dedicar mais atenção ao autor da Peregrinação. António José Saraiva considera o livro em questão "o mais interessante livro de viagens do século XVI português, e um dos mais interessantes da literatura mundial" (SARAIVA, LOPES : 297). Mas foi também, durante muito tempo, um livro, em certo modo, "incómodo" e por isso esquecido, desconhecido, ignorado ou ainda menosprezado. O velho trocadilho ligado ao nome do autor: "Fernão, Mentes? Minto", inventado no século XVII até hoje é o "ferro em brasa" na reputação de Mendes Pinto. Quem não foi capaz de compreender a obra de Pinto, reduziu-a a uma mentira. A Peregrinação teve um enorme êxito durante o século XVII (dezanove edições em seis idiomas) mas não foi valorada positivamente, sendo uma antiepopeia e não uma nova epopeia à boa maneira clássica que se esperava. São várias as características que diferenciam a narrativa de Mendes Pinto de entre os restantes homens de letras da sua época, especialmente dos que elogiavam os Descobrimentos. Segundo José da Silva Dias, "é (…) a acutilância crítica [de Mendes Pinto], coroada com o distanciamento em face da visão épica da expansão portuguesa, que o afasta da generalidade dos intelectuais do seu tempo, desde Fernão Lopes de Castanheda a Luís de Camões"(DIAS 1981 : 30).

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Ver: http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/f04.html 17

Outra estudiosa, Maria Teresa Vale, deu um título muito significativo ao livro com excertos de Peregrinação por ela redigido: Fernão Mendes Pinto. O outro lado do mito. No prefácio, a estudiosa defende que Mendes Pinto não é um cronista, com toda a exatidão, precisão e rigor que aos cronistas se atribui, mas sim um romancista. Admite que existem na Peregrinação erros, contradições e discrepâncias cronológicas, mas comenta também que alguns investigadores, como Rebecca Catz, veem nelas contribuintes indispensáveis para a ambiguidade satírica. Segundo Maria Teresa Vale, Fernão Mendes Pinto "ultrapassou o seu tempo (…) a vários níveis. Caminhou à frente do seu século, na crítica indireta que pôs na boca de orientais, no papel que atribuiu à mulher na sociedade (…), na descobreta de que o homem, posto em situações extremas, resvala para o roubo, o crime, a antropofagia, em suma, para a desumanização (…), no nível de língua utilizado, no aproveitamento que fez do exótico" (VALE 1985 : 26). Muitas dessas características são também vísiveis nas letras de Carlos Tê, como poderemos ver nas análises apresentadas na parte prática. Existem dois interessantíssimos livros da autoria de Rebecca Catz que tratam do tema da Peregrinação: um deles intitulado Fernão Mendes Pinto. Sátira e Anti-Cruzada na «Peregrinação» e outro A sátira social de Fernão Mendes Pinto. Análise crítica da «Peregrinação». No primeiro trabalho, que foi a tese de doutoramento, a autora apresenta o livro de Mendes Pinto como uma sátira corrosiva que expõe com agudeza as incongruências da ideologia oficial portuguesa. Com base na análise exaustiva, a Peregrinação surge como uma denúncia das instituções políticas e religiosas do Portugal do século XVI e da ideologia das cruzadas – "a charneira vital, mitificada, do império marítimo português" (CATZ 1978 : 15). É uma obra que põe em dúvida "a moralidade das conquistas ultramarinas portuguesas, que o autor considera como atos de bárbara pirataria" (Ibidem). Catz defende que Mendes Pinto adotou o género da crónica como um "disfarce literário", um recurso de que o autor se serviu como "escudo protetor", "numa época em que a sua verdade o expunha aos maiores perigos" (Ibidem : 16). No segundo livro, seguindo a mesma linha de análise, a investigadora afirma que Mendes Pinto estava "preocupado com os Portugueses, cuja missão de conquistar e converter foi, na sua perspetiva, um ideal falso e corrupto. Assim foi levado a conceber, como sua missão própria, corrigir e reformar os seus compatriotas" (CATZ 1981 : 8). Segundo Catz, o narrador da Peregrinação assume várias "personas" ou várias "vozes" para exercer as suas críticas. Uma dessas voz é a voz do "pícaro". João Palma Ferreira (1981) e Saraiva e Lopes (1996) também relacionaram a obra de Mendes Pinto com o chamado "romance picaresco". Na parte prática utilizaremos este conceito para referir18

nos ao conteúdo de algumas das canções analisadas. É de ressaltar que a obra de Fernão Mendes Pinto inspirou muitos artistas do século XX e XXI. Em 2010, para celebrar os quinhentos anos do nascimento do autor da Peregrinação, "Jornal de Letras, Artes e Ideias" (Ano XXX, Número 1050), dedicoulhe o Tema, que inclui vários ensaios. Em um deles, Manuel Halpern recorda as obras de teatro, música, televisão, BD e artes plásticas inspiradas no livro de Pinto. Comenta também que Fernão Mendes Pinto "não é o herói que gostaríamos de ter, mas foi o antiherói que tivemos. Longe da euforia mítica d'Os Lusíadas, da glorificação d'A Mensagem, mostra-nos, mais ainda do que a História Trágico-Marítima, o lado B do Descobrimentos" (HALPERN 2010 : 11). Com base na análise das letras do Auto da Pimenta, mostraremos como Carlos Tê realizou a sua crítica dos Descobrimentos à maneira de Mendes Pinto. Todos os autores mencionados constituiram uma fonte de inspiração para as letras escritas por Tê. Sem dúvida, não toda a literatura de viagens marítimas apareceu nos séculos XVI e XVII. O tema dos Descobrimentos, tão importante para os portugueses, influenciou também na literatura das épocas posteriores. O final do século XX trouxe um verdadeiro "renascimento" do pensamento heterodoxo sobre esse tema. O melhor exemplo do modo sátirico de reescrever a história é o livro As Naus (1988) de António Lobo Antunes, um dos autores portugueses contemporâneos mais famosos. Lobo Antunes é um autor marcado pela sua experiência da Guerra do Ultramar (entre 1971 e 1973 foi um médico do Exército em Angola). Em As Naus mistura a história antiga dos Descobrimentos com a história moderna do retorno dos colonos portugueses a Lisboa depois da guerra colonial. Segundo os críticos literários, o livro constitui uma verdadeira anti-epopeia de toda a experiência ultramarina portuguesa8. Todos os mitos aparecem destruidos, os personagens "heroicos" ficam rebaixados, todos os erros e as impotências antes ocultados são postos a nu. Lobo Antunes ridiculariza as figuras de descobridores, reis, evangelizadores, até escritores como Camões, com uma impiedosa mordacidade irónica. Mostrando o estado deplorável das pessoas consideradas ilustres (como Vasco da Gama, São Francisco Xavier, rei D. Manuel), o autor ajusta contas com a versão heróica e epopeica da história. Talvez As Naus sejam o exemplo mais "cruel" da desmitificação do passado em toda a literatura portuguesa. Mesmo que Carlos Tê não tenha sido tão cruel nas suas críticas, com certeza inspirou-se na obra de Lobo Antunes.

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Ver: Inara de Oliveira Rodrigues, "As Naus, de António Lobo Antunes, e o percurso anti-épico da história portuguesa", Disponível em: http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num4/ass01/pag01.html, Consultado em: 12/01/2012 19

III. As duas visões dos Descobrimentos, ortodoxa e heterodoxa, durante o Estado Novo (1933-1974) e depois da Revolução dos Cravos (1974) Para poder analisar e interpretar as letras que foram escritas no século XX, temos que introduzir também o contexto histórico e cultural mais moderno. Como já assinalámos na introdução da presente tese, o disco deve ser visto como um efeito das transformações e mudanças que se realizaram em Portugal depois da queda do Estado Novo. Podemos dizer que o mito imperial, existente em Portugal desde o século XVI, ainda se intensificou durante o regime salazarista por causa da política colonial da ditadura. As vozes críticas surgiram, então, como uma reação à euforia que pouca relação tinha com a realidade. De certo modo no século XX repetiu-se em Portugal a história do país no século XVI. O Estado procurava sustentar a imagem ideal dos feitos dos portugueses, mas ouviam-se vozes que censuravam as ações dos seus compatriotas. Da mesma maneira que o século XVI tinha acabado na derrota de Alcácer-Quibir e na perda de independência, o século XX acabou na guerra colonial sangrenta e no colapso vergonhoso do projeto colonial. O Estado Novo foi o regime ditatorial vigente em Portugal no período entre 1933 e 1974. Sendo autoritário, conservador, nacionalista e colonialista, propôs uma versão da história de Portugal feita só de glórias. Com esse fim, interpretou abusivamente o passado do país, ressuscitando os tempos remotos e proclamando o presente como a continuação deles. O projeto colonial de manter o domínio português sobre vastos territórios dispersos por vários continentes precisava de uma imagem ideal da pátria e de heróis sem defeitos. Os lemas "Tudo pela Nação, nada contra a Nação" e "Deus, Pátria, Família" deixam claro que não era aceite nenhum pluralismo nem

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heterodoxia do pensamento. O regime apoiou-se na propaganda e na censura para "defender a moral e os bons costumes". Eduardo Lourenço comenta que os salazaristas "souberam utilizar com inegável habilidade o recurso à mitologia patriótico-clerical". (LOURENÇO 1992: 31) Tratava-se de reescrever e simplificar a história, deixando de lado tudo o que podia destruir a imagem ideal da pátria. Nas palavras de Mário César Lugarinho: "O Estado punha todas as suas forças concentradas nesta imagem, nesse aparato colonialista que lhe dava o sentido e a grandeza para a dominação" (LUGARINHO 1999 [em linha]). O regime considerava-se o herdeiro da "história gloriosa" dos Descobrimentos do século XVI. Engrandecia a herança histórica para elogiar o regime político presente. Uma boa ilustração daquele processo é o Monumento aos Descobrimentos, erguido em 1940 para a Exposição do Mundo Português e reerguido em 1960. Aquele gigantesco monumento (50 metros de altura, 20 de largura e 46 de cumprimento) pretendia sintetizar um passado glorioso e simbolizar a grandeza e a obra de D. Henrique e de outras figuras envolvidas no processo dos Descobrimentos. Outros exemplos desse tipo de obras comemorativas saídas da asa da "máquina patriótica" do salazarismo são o Monumento ao Esforço Colonial Português no Porto e o Portugal dos Pequenitos9. Durante o Estado Novo Os Lusíadas de Camões foram utilizados para fortalecer a ideologia colonial. Não foi difícil utilizar a obra épica camoniana com esse fim porque Camões realmente tinha louvado a grandeza e as proezas dos portugueses, mas o que a propaganda propôs foi uma leitura superficial e simplificadora que distorcia a mensagem camoniana. Margarida Calafate Ribeiro comenta que, durante o Estado Novo, Camões foi "perturbadoramente usado e abusado pelo regime de Salazar como símbolo da dimensão imperial portuguesa" (RIBEIRO 2007 : 7). Nas palavras de Enéias Farias Tavares: "no poder, Salazar fez uso do poema de Camões, Os Lusíadas, como suporte ideológico e demagógico com o objetivo de elevar o sentimento de superioridade do povo português. Além disso, Salazar lia o poema como uma comprovação de que pertencia ao homem português conquistar, dominar e explorar, como fez a nação portuguesa nos séculos catorze e quinze" (TAVARES 2009 : 2). Com o fim de igualar a obra-prima de Camões com a sua visão, a propaganda do Estado Novo decidiu truncar as últimas estrofes d'Os Lusíadas nas quais o Vate dá-se conta da decadência de Portugal (Os Lusíadas, Canto X, 145).

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Ver um interessante estudo de Teresa Pinheiro, intitulado Memória Histórica no Portugal Contemporâneo [em:] O Colóquio Diálogos com a Lusofonia, 10 e 11 de dezembro de 2007. Livro das Atas, Universidade de Varsóvia 21

Camões não foi o único poeta que o regime lia superficialmente. A obra de Fernando Pessoa (1888-1935) também foi apropriada por ideólogos do salazarismo. Em 1935, o Secretariado da Propaganda Nacional concedeu ao autor da Mensagem o Prémio Antero de Quental, na categoria de "poema ou poesia solta". Na Mensagem Pessoa relembra o passado glorioso de Portugal, dedicando poemas a várias figuras de relevo da história de Portugal, especialmente às da época dos Descobrimentos. Faz também referência ao mito do sebastianismo e a outros mitos portugueses. Por outro lado, Pessoa não se considerava salazarista, nem foi a sua intenção apoiar o regime. O simbolismo e a mitificação da Mensagem são muito individuais, da mesma maneira que a sua exortação do Império é sobretudo interior e espiritual. Além disso, no último poema, intitulado Nevoeiro, tal como nas últimas estrofes d'Os Lusíadas, está bem patente o clima da decadência nacional. O regime salazarista, por meio da leitura superficial da Mensagem, utilizou o obra de Pessoa com o fim de que em Salazar, tal como em D. Sebastião, "[se depositassem] as esperanças de fazer de Portugal um Império Universal com base no cristianismo" (LELLI 2010 : 193). Ao mesmo tempo distorçou a intenção de Pessoa que pensava no plano mítico-espiritual e não real.

Como assinalámos na introdução, depois da Revolução dos Cravos que pôs fim ao regime ditatorial de António de Oliveira Salazar, realizou-se em Portugal uma grande mudança de paradigmas. Surgiu uma necessidade de repensar Portugal e reescrever a história do país. Observou-se um certo revisionismo histórico e uma intenção polémica frente à história. Na nossa opinião, o disco Auto da Pimenta está colocado nesse contexto da pós-revolução que "acaba desembocando na problemática da própria busca de identidade de um Portugal que (...) precisa novamente voltar-se para si mesmo" (RODRIGUES 2002 [em linha]). Todas estas tendências podem ser facilmente observadas nas intervenções proferidas ao longo dos anos 1977-82 por várias figuras de relevo aquando da realização do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. O tomo que recolhe essas intervenções tem por título Camões e a identidade portuguesa e foi publicado em 1983. Permitimo-nos citar e comentar algumas frases de vários autores, para mostrar que o discurso colonial deixou de existir depois do ano 1974, abrindo passo à procura da nova identidade. Depois de um largo período de tempo em que não se podia falar abertamente, realizou-se uma mudança que possibilitou a atitude crítica frente ao Império. A figura de Camões, tão abusada durante o Estado Novo como um símbolo do imperialismo, começou a servir como uma fonte de inspiração para o pensamento 22

heterodoxo e subversivo. O primeiro dos participantes no debate sobre as novas leituras da obra de Camões, Vergílio Ferreira, disse na sua intervenção em 1977: "É nos grandes valores, disse alguém, que melhor pode abrigar-se a hipocrisia; é nos grandes valores, direi eu, que melhor pode abrigar-se o ridículo" (FERREIRA 1983 : 14). Encontramos nessas palavras uma tendência oposta às práticas do salazarismo que colocava os grandes valores em primeiro lugar, muitas vezes caindo na hipocrisia. Nesse mesmo ano, Jorge de Sena fala na sua intervenção sobre a "campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência" (SENA 1983 : 27). No fragmento citado está bem visível a necessidade de quebrar os laços com o passado colonial. Mais adiante Sena afirma, com uma impiedosa atitude crítica, que "os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso de mãezinha" e têm "o desejo de ter um pai transcendente que [lhes] livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, partido, ou D. Sebastião" (Ibidem : 30). Mais adiante afirma, distanciando-se da herança do Estado Novo, que "Camões não tem (...) culpa de ter sido transformado em símbolo de orgulhos nacionais, em diversos momentos da nossa História em que esse orgulho se viu deprimido ou abatido" (Ibidem : 32). Acrescenta também o seu próprio testemunho: "Quando, no liceu, líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler (e não estudávamos) as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita desta mesma sociedade de sujeitos felizmente desvergonhados que fingem lamentavelmente possuir a virtude que não têm, e vivem a perseguir ou reprimir os pecados alheios" (Ibidem : 33). Em 1978 Fernando Namora fez perguntas sobre a identidade portuguesa: "nós, que sempre nos repartimos e afadigámos pelos cinco cantos do mundo, que espécie de povo somos? Quais as seivas comuns, que, na variedade de destinos e de opções que tem sido a nossa, nos identificam? Que é, afinal, uma Nação?" (NAMORA 1983 : 47). Um ano mais tarde, Vitorino Magalhães Godinho colocou outras perguntas, ainda mais provocantes: "Até que ponto tínhamos o direito de conquistar outros povos? Até que ponto tínhamos ou não o direito de oprimir?" (GODINHO 1983 : 75). Relembra Peregrinação de Fernão Mendes Pinto que tratava de "criticar o que se passava em 23

Portugal", a História Trágico-Marítima que "conta os naufrágios, as misérias, as mortes de toda essa gente que fez a descoberta do mundo" e a obra de Camões que canta a expansão, mas por outro lado castiga-a e ataca-a "porque vai [ela] contra valores humanos fundamentais". David Mourão-Ferreira em 1980 constata que "a dementada crença numa unívoca linearidade do discurso camoniano já levou ao nefasto contrassenso de se ter querido converter o poeta em padroeiro de requentadas «glórias» imperiais" (MOURÃO-FERREIRA 1983 : 93) Por meio daquelas afirmações e muitas outras parecidas, fixou-se no Portugal do pós-25 de Abril um clima intelectual favorável para o pensamento aberto e crítico. A personalidade cujas reflexões nos parecem especialmente importantes é Eduardo Lourenço. Nascido em 1923, filosófo e escritor, é um dos mais interessantes ensaístas portugueses da autognose nacional. Foi galardoado com o Prémio Camões em 1996 e com o Prémio Pessoa em 2011. Revela-se nas suas obras como um mestre da desmitificação e da desconstrução dos fantasmas nacionais. Sempre foi um pensador descomprometido, eclético, com uma visão inquietante sobre o país. Em 1949, sendo assistente na Universidade de Coimbra, ousou publicar um livro em que assumia, desde o título e o prólogo, o "espírito de heterodoxia", em constraste com as formas da ortodoxia dominante. Na Heterodoxia I, deu conta do atraso de Portugal face a outros países da Europa e mostrou a sua preocupação pelo distanciamento de Portugal em relação ao mundo europeu. Procurou fazer o diagnóstico da situação portuguesa e formulou a ideia do diálogo e do progresso. Mais tarde introduziu no seu pensamento sobre Portugal o conceito de "psicánalise mítica" com o propósito de combater os mitos que impossibilitavam o progresso de Portugal. Podemos aqui mencionar a sua obra fundamental, intitulada O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português (1988). Lourenço foi o primeiro a designar o problema que, segundo ele, Portugal tem com a "hiperidentidade". Criticou o mito de sebastianismo que, para ele, não tem, afinal, outro conteúdo que não o regresso sem fim de Portugal ao seu estatuto onírico de olhar-mundo que foi outrora (FRANCO 2008 : 15). Criticou também toda a fantasmagoria portuguesa, desconstruindo o seu imaginário de si, o seu excesso de memória e o peso problemático do seu passado em nome do reencontro de Portugal consigo mesmo nas condições reais do seu presente, com o fim de construir o futuro possível e realisticamente desejável (Ibidem). Eduardo Lourenço propõe a inquietação em vez da consagração, o seu objetivo é ajudar aos portugueses a sair da "crise de identidade" por meio de reduzir a carga do passado. No seu livro Nós como futuro descreve este problema português afirmando que o passado mitificado "é apenas a 24

máscara dourada da (…) impotência presente" (LOURENÇO 1998 : 22) e impossibilita o caminho para o futuro. Segundo Mário César Lugarinho, "a reflexão de Lourenço é valiosa, porque era necessária a dissociação do mito e do místico com a História a fim de que o tamanho de Portugal pudesse aparecer, despido das armadilhas retóricas e desprovido do fantasma do sentido. Em 1974, recusou-se o destino, e o novo AlcacerQuibir, para se buscar a História" (LUGARINHO 1999 [em linha]). Lourenço também foi convidado, em 1980, para comemorar o Dia de Portugal e apresentou muitas observações inquietantes, opostas à ortodoxia do Estado Novo. Naquela ocasião, disse na sua intervenção: "Mas que aconteceu com as folhas vivas daquela Fé e daquele Império a quem Camões consagrou a essência mesma do seu Canto? Já não somos o anjo da História à janela do Ocidente com a missão exclusiva de levar a mensagem cristã às praias do Oriente. Já não somos, sobretudo, aquela belígera gente a quem Marte e Neptuno obedeciam" (LOURENÇO 1983 : 106). Aquelas palavras constituem um reflexo da diagnose de Lourenço, que disse que em Portugal pós-colonial se tinha realizado uma "crise de identidade"10. Falando sobre Camões, disse o filosófo que "talvez lhe custasse a imaginar que um dia todos os seus amores e todos os seus heróis seriam sombra da sua sombra e que para memória do que fomos e símbolo do que nós sonhamos de melhor, ele se convertesse no primeiro dos nossos intercessores" (Ibidem : 100). Perguntou como ler o poema camoniano "sem sucumbir à tentação de um narcisismo que nos perverteria a nós e diminuiria o Poema, convertendo-o em espelho deformado de um nacionalismo cego, fonte de irrealismo histórico e de esquizofrenia ideológica e cultural?" (Ibidem : 101) Chamou para "não consumir" Os Lusíadas "na paz erudita de uma devoção de encomenda ou de uma admiração necrófila" (Ibidem). Todas estas afirmações incitam para uma nova perspetiva de ler a história, abrem passo para interpretações críticas e originais. Outro filósofo que analisou a identidade portuguesa de uma maneira parecida à de Eduardo Lourenço é José Gil. Em 2004 lançou o livro Portugal, Hoje: O Medo de Existir e em 2009 outro, intitulado Em Busca da Identidade: O Desnorte. Para o autor, o mal português é a hiperidentidade, construída em boa parte no período da ditadura salazarista. Segundo Gil, o salazarismo forneceu um discurso e sobretudo uma série de narrativas que, de certa maneira, satisfaziam a identidade. Na entrevista para a revista brasileira Trópico em 2009 disse: "A nossa identidade é um delírio. A nossa identidade, 10

Ver: Eduardo Lourenço, "Crise de identidade ou ressaca imperial?" Prelo. Revista da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, n. 1, p. 15-22, out./dez. 1983 25

segundo Salazar, é um delírio. É um delírio histórico. O que ele construiu é toda uma construção delirante, que ele aplicou, que ele teve a possibilidade de efetuar e de fazer encarnar em cada um. O resultado é que criou uma sociedade patológica, uma sociedade neurótica"11. A única maneira de sair desse "labirinto de saudade"12 é destruir a identidade obsoleta e passar pela verdadeira metamorfose. As considerações que apresentámos servirão-nos de base para a interpretação das letras do disco Auto da Pimenta, no sentido de que nos oferecem uma perspetiva da crítica e da desconfiança frente ao mito dos Descobrimentos. O nosso objetivo é verificar se as canções analisadas fortalecem o mito da "vocação imperial" de Portugal ou antes contribuem para o confronto do povo português com a verdade sobre a história do país. Serão as letras de Carlos Tê ortodoxas ou heterodoxas?

11

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Ver: "Portugal e a doença da identidade", entrevista a José Gil realizada por Renato Mendes, Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3132,1.shl, Consultado: 12/01/2012 Ver: Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português, Publicações D. Quixote, 3a ed., Lisboa, 1988. 26

IV. A análise crítica das letras de canções de Carlos Tê. Antes de passar à análise das canções é crucial considerar o título do álbum. Auto da Pimenta constitui uma referência clara à obra de Gil Vicente. O autor do Auto da Índia e muitos outros autos é, de acordo com o que apresentamos na parte teórica, um dos primeiros e mais famosos críticos da expansão portuguesa do século XVI. O vocábulo "auto", na época medieval, era sinónimo de qualquer peça de teatro, isto é, poderia denominar uma farsa, uma moralidade, um mistério, um milagre, uma tragicomédia etc. Na maioria dos casos, o auto era um género breve que podia focalizar tanto um assunto religioso como um assunto profano. As personagens dos autos de Gil Vicente apresentam-se como tipos e caricaturas, aparecem também algumas personagens alegóricas. Frequentemente, o humor dos autos deriva desta tipicidade de personagens. "Quanto à linguagem que falam, observa-se um «coloquialismo variado»". (JÚNIOR 2010 [em linha]). Os autos visavam satirizar as pessoas e procuravam passar uma mensagem moralizadora. Talvez fosse com a mesma visão de sátira social que Carlos Tê escreveu as letras que vamos analisar em seguida e por isso escolheu este vocábulo para o título. O auto que ele oferece pode ser visto, essencialmente, como uma exposição ligeiramente sátirica dos Descobrimentos portugueses, simbolizados pela pimenta que de tão longe os atraiu e tão longe os levou. A pimenta é uma das mais antigas especiarias conhecidas. O comércio da pimenta desenvolveu-se na Índia. Os mercadores muçulmanos traziam-na para o Ocidente e vendiam-na aos genoveses e venezianos. Em séculos passados o seu valor chegava a ser tão alto que era utilizada como moeda. Foi por causa dela que os

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portugueses iniciaram a busca do caminho marítimo para a Índia. Então, a pimenta é um símbolo do império português no Oriente. O que é também significativo, a carga excessiva dos barris de pimenta, muitas vezes foi a causa direta dos naufrágios dos navios. A combinação destas duas palavras fornece-nos uma ideia sobre o possível conteúdo dos textos cuja interpretação apresentaremos em seguida. Será, então o Auto da Pimenta uma sátira sobre a era dos Descobrimentos, cheia de personagens-tipos e com uma mensagem moralizadora? Ou talvez se inscreva na tradição do enaltecimento que narrou a relação dos lusitanos com as viagens marítimas? É esta a questão que vai dirigir a nossa análise nos subcapítulos que se seguem.

1.

Sete Partidas (Cantiga de amigo) A primeira canção do disco remete-nos ao início da época das navegações

portuguesas. No fragmento escolhido como epígrafe, encontramos a figura do Infante D. Pedro I durante a sua passagem por Veneza em 1428. D. Pedro, irmão do infante D. Henrique "O Navegador", admira os navios e as riquezas da cidade italiana. Dedica uma atenção especial às especiarias, nas quais naquela época Veneza abundava, já que controlava as rotas comerciais entre a Europa e o Oriente. Portugal, por sua parte, estava ainda na primeira etapa da expansão, só uns treze anos depois da conquista de Ceuta (1415). O título da canção – Sete Partidas (Cantiga de amigo) faz-nos pensar outra vez no Infante D. Pedro, Duque de Coimbra, que é conhecido como o "Infante das Sete Partidas", devido às suas numerosas viagens ao estrangeiro. A palavra "partidas" significa aqui "partes" ou "regiões", e sete, um número considerado mágico, designa uma grande quantidade. "As Sete Partidas do mundo" é simplesmente o mundo inteiro. O príncipe é chamado assim porque durante dez anos viajou por quase todo o mundo então conhecido. A primeira palavra da canção é um verbo na primeira pessoa do singular, o que nos leva à hipótese de que é D. Pedro quem fala neste texto. Independentemente de ser esta suposição verdadeira ou não, o que vamos averiguar em seguida, podemos ter a certeza de que estamos perante uma narração na primeira pessoa, realizada por um narrador-personagem, que participa nos eventos narrados. O sujeito lírico pode também ser variável, quer dizer, é possível que a canção tenha vários sujeitos líricos. Ouço uma voz que me canta velhas canções esquecidas 28

e embala o meu sonho num cais de sete partidas como água morrente no longe vai e vem o madrigal Provença que soas ainda nas noites de Portugal.

Parece que, nos primeiros quatro versos, quem fala não é o Infante, mas os versos constituem antes uma invocação do sujeito lírico, que podemos identificar com o autor do texto – um português contemporâneo. Dirigindo-se aos leitores com estas palavras, o autor explica a sua ligação com o passado, ao qual se desloca por meio dos seus textos que relembram uma época remota. A memória do passado tem aqui a forma de uma "velha canção esquecida" que faz com que a pessoa que a ouve se desloque no tempo até aos inícios do século XV, período de transição entre a Idade Média e o Renascimento. A relação íntima do autor com o passado que constitui o objeto da sua narração pode ser observada na linguagem. Podemos constatar que para ele a época a que se refere é um passado muito distante, meio esquecido, mas que continua a ressoar na atualidade. Nos versos seguintes ("viajantes de Alexandria mostram laca e seda fina") a viagem através do tempo já está realizada e estamos a observar Veneza a partir da perspetiva de D. Pedro. O Infante fica estupefacto com os bens mostrados pelos mercadores: laca, seda, ouro, pimenta, marfim, porcelana e musselina. São-lhe contados os relatos míticos sobre o Preste João13. Sente-se instigado pelo sonho de possuir as riquezas e toma a decisão de mandar uma expedição a África. Desta maneira, o autor mostra-nos que a motivação direta dos portugueses para começar a exploração do mundo foi a cobiça do poder económico. A crítica está também presente na evocação da personagem lendária do Preste João que pertence ao imaginário da Idade Média, já evocado nesta canção por expressões e palavras como "cantiga de amigo"14, "madrigal"15 ou "Provença"16. Estamos, em consequência, perante uma mentalidade medieval, cheia de fantasias sem fundamento que o homem europeu projetava sobre o desconhecido. O refrão pode pertencer tanto ao plano do passado como ao do presente. Quem "acorda todas as manhãs com ecos desta canção" (canção esta que fala sobre as glórias e as riquezas) é D. Pedro, e são também os portugueses de hoje. O sonho da grandeza estonteia-lhes e converte-se em obssessão. As bases deste pensamento são instáveis, 13

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Preste João foi um lendário rei cristão do Oriente. Nunca foi encontrado mas a sua lenda e a vontade de o ter como aliado contra o Islão motivou uma série de viagens em busca do seu reino. Um dos géneros da lírica galego-portuguesa medieval, que se distingue pela presença de um sujeito enunciador feminino. Termo originalmente italiano, usado no século XIV pelos poetas palacianos e que consistia numa composição de dois ou três tercetos, seguidos de um ou dois dísticos, em verso decassílabo. Uma região francesa (sul da França atual) onde no século XII nasceu o trovadorismo. 29

compostas dos mitos e símbolos obscuros: "sete partidas" e "cinco chagas" que são "vãs". Não podemos esquecer que o autor destas palavras é um português dos finais do século XX que conhece a história completa dos Descobrimentos com todas as suas consequências, e pode julgá-la a partir da perspetiva de quinhentos anos de história. Tomando esta perspetiva, são os resultados dos Descobrimentos que ele considera vãos. O símbolos de glórias passadas ("cinco chagas" de Cristo, elemento da lenda do Milagre do Ourique, que são representadas na bandeira nacional portuguesa) são justapostos à expressão "água morrente" que simboliza a falta da importância e a decadência. No refrão o autor ridiculariza o pensamento medieval ainda presente na mentalidade dos portugueses de hoje. Os navegadores pediam ao sonho que os levasse ao Preste João, que os deslocasse no espaço sem eles saberem de que maneira. Similarmente, na época moderna os portugueses sonham em voltar aos tempos remotos. Têm saudades daquele tempo e querem viajar simbolicamente a esta época esquecida. 2.

S. Miguel A segunda canção – S. Miguel – parece à primeira vista ser um texto pequeno e

muito simples que descreve a descoberta de uma das ilhas do arquipélago dos Açores. No entanto, analisando-a pormenorizadamente, podemos encontrar nela palavras e expressões interessantes que nos indicam a atitude que tomou o autor com respeito ao tema. Esta canção está relacionada com a anterior porque aqui também encontramos elementos do pensamento mítico e o ambiente de sonho e fantasia. O sujeito lírico desta canção é provavelmente o capitão de um navio que tinha obtido o mandato de procurar "as ilhas perdidas". A história da descoberta do arquipélago dos Açores é muito complicada, mas destaca nela o fato de que, durante muitos séculos, estas ilhas foram consideradas parte das lendas medievais acerca das terras perdidas. O autor, mostrando o pensamento medieval do capitão do navio, que acredita naquelas lendas, propõe uma imagem interessante dos inícios das navegações. Vemos que a expansão marítima não está planeada, mas baseia-se antes em fracas indicações, rumores geralmente pouco fidedignos como as "velhas cartografias" ou palavras de "um Corso Galego que um dia as viu e perdeu". Chama a nossa atenção o baixo nível de arte de navegar dos portugueses naquela época. O capitão pergunta "como ter fortuna de achar" as ilhas "no mar oceano sem fim". Parece que a descoberta de S. Miguel resulta mais de coincidência do que de qualquer forma de intenção. Nada depende dos marinheiros, são eles que dependem do vento. Não sabem onde estão nem aonde se dirigir, seguem o vôo das aves porque é o único que podem fazer. Vale também 30

a pena reparar na expressão "aves que tomamos por Açores". Desta maneira chegamos a conhecer a origem do nome do arquipélago, mas esta origem é muito prosáica. Esta frase inscreve-se numa das teorias sobre a denominação dos Açores que deriva da identificação errada das aves vistas pelos marinheiros portugueses. Trata-se de fenómenos pouco heroicos como: um equívoco, um acidente, uma incompetência, um engano. Nesta canção, que descreve um acontecimento que geralmente é considerado um dos primeiros sucessos dos navegantes portugueses, não há menção nenhuma de instrumentos ou técnicas de navegação, o que nos leva a pôr em dúvida as bases científicas daquelas descobertas. Constatamos, então, que foram feitas ao acaso. No final da canção encontramos uma expressão da ligação bastante rudimentar do sujeito lírico com a religião, como outro elemento do pensamento medieval omnipresente. O simples capitão batizou a ilha recém-descoberta somente por causa do achamento dela ter caido no Dia de São Miguel, o que, de resto, dá conta do papel formal que tinha a fé ao longo dos Descobrimentos. 3.

Cabo Sim Cabo Não Cabo Sim Cabo Não é o título da canção seguinte. Já o título indica os

sentimentos dominantes, isto é, a incerteza e a hesitação. Mais uma vez, trata-se do relato, na primeira pessoa do singular, de um marinheiro simples. Ele descreve a sua exploração da costa africana e as dobragens de vários cabos que efetuou. Vacila perante cada cabo e não tem nenhuma crença no sucesso do empreendimento da tripulação. Na primeira estrofe encontramos uma acumulação dos elementos que pertencem ao imaginário medieval. Carlos Tê, dando voz ao seu personagem, expõe a ignorância e a intolerância deste. Há nas suas palavras a antiga crença no "limite de Criação" e no "Mar das Trevas" que fica além deste limite. Tem uma visão do mundo e do homem simplificada e baseada exclusivamente na fé e na religião. Divide os homens em duas categorias: "mouros" e "Cristãos", colocando os segundos por cima dos primeiros, até mediante a diferença na grafia (maiúsculas e minúsculas). Perante a ameaça das "brumas" o marinheiro "encomenda-se aos Céus", deixando o seu destino nas mãos de Deus sem poder controlá-lo por sua conta. No refrão muito simples o sujeito lírico expressa, como no título, a incerteza e a hesitação. Este estribilho repete-se depois de cada estrofe, mas mudam-se os nomes dos cabos. Esta mudança corresponde ao progresso da viagem mas a ideia central de incerteza permanece até ao final da canção. Nesta canção observamos um pequeno contraste em relação à anterior. São aqui descritas algumas técnicas de navegação, os primeiros sinais de um saber científico 31

mais desenvolvido ("anotei ventos e águas na carta de marear", "cabotamos mais abaixo", "rumo à estrela do sul"). Mas por outro lado, isto não é uma mudança já realizada por completo, porque nas estrofes 2, 3 e 4 reaparecem elementos fantásticos em que o sujeito lírico continua a acreditar. Carlos Tê evoca aqui várias crenças comuns naquele tempo e delas constrói a mentalidade do seu personagem. Depois de dobrar um cabo, os navegantes encontram outro pior e mais perigoso que sempre é visto por eles como o fim do mundo. O Cabo Bojador "brame com um trovão" e é "cem vezes" mais escuro do que o cabo anterior. O mar é "caldo de enxofre que ruge furibundo" e "traga barcos e homens". Evocando estas imagens, o autor define os navegantes não como heróis destemidos, mas antes como homens supersticiosos e medrosos. Na última estrofe o navio chega ao Cabo Verde. As terras descobertas estão cheias de inocência e de pureza, nunca foram marcadas pela civilização nem pela religião. É uma terra primitiva cujos habitantes são diferentes tanto dos mouros como dos cristãos. Este primitivismo na maneira de olhar para os povos com que os portugueses entram em contacto pode ser visto como antecedente e pedra angular do pensamento colonial, simplificado e tosco. 4.

Lançado A seguinte canção – Lançado – é muito importante para o nosso entendimento

de toda a abordagem do tema dos Descobrimentos feita por Carlos Tê. Aqui aparece o primeiro de uma série de personagens que se inscrevem na tradição picaresca, que constitui no fundo uma negação da tradição épica e heroica. Notamos, portanto, uma analogia entre os personagens de Carlos Tê e o narrador da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Esta canção é, em realidade, uma autobiografia fictícia de um participante anónimo de uma das viagens marítimas. Temos que salientar o caráter individual deste texto. Estamos perante uma pessoa rude, um sujeito lírico ingénuo, no sentido de que não se dá conta em absoluto da sua própria rudeza. Parece-nos necessário introduzir neste momento o conceito de "persona" que se coloca dentro do género literário chamado sátira. Como comenta Rebecca Catz no seu livro Fernão Mendes Pinto. Sátira e Anti-Cruzada na «Peregrinação», "persona" "é uma personagem fictícia ou identidade assumida pelo historiógrafo para exercer as suas críticas" (CATZ 1981: 11). Mais adiante explica que se deve entender o processo de construir uma "persona" como "um artifício literário que separa o autor «literal» (o historiógrafo) do narrador satírico (literário)" (Ibidem). Depois a investigadora citada enumera vários tipos de vozes que 32

pode assumir a "persona". Uma delas é a voz do "ingénuo", "que suscita a nossa simpatia apresentando uma imagem de si como inocente de coração simples" (Ibidem : 12). A "persona" apresentada por Carlos Tê na canção Lançado não é inocente no sentido literal, porque cometeu um "crime de amor", mas a simplicidade e ingenuidade com que confessa a sua vida convence-nos de que podemos identificá-la com o "ingénuo" descrito por Rebecca Catz. O "lançado" da canção é um homem simples, direto, que não consegue compreender as regras do funcionamento do Império. Nada depende da sua vontade, o fado determina a sua vida, é como uma peça pequena na máquina dos Descobrimentos. O inocente e simpático pícaro conta a sua história como se ela fosse a mais normal do mundo, tratando os leitores como seus confidentes (Ibidem : 26). O autor, falando através desta "persona", revela a vilania dos amos do pícaro e chama a atenção para o mal que permeia o mundo humano ao redor do pícaro. A motivação do sujeito lírico para embarcar num navio foi muito prosáica. Confessa que cometeu um crime de amor e foi condenado à morte17. As mesmas autoridades que o tinham condenado logo propuseram-lhe a troca da sua pena por um navio que partia para a Guiné. Destas palavras tomamos também conhecimento do tipo de pessoas que participavam nos Descobrimentos, bem como da composição algo aleatória das tripulações, que não consistiam, por vezes, em marinheiros profissionais. O nosso anti-herói descreve a missão que lhe foi proposta como "a missão de à sorte ser lançado na má terra do gentio/ sozinho e abandonado durante meses a fio". Como podemos ver, não se tratava de viagens propositadas, mas antes de deveres cujo cumprimento era uma obrigação. O Império crescente, no pleno processo de colonização, precisava de pessoas com que pudesse povoar as terras já descobertas. Com esse fim, o Reino mandava os degredados (autores de certos crimes aos quais tinha sido imposta uma pena de exílio ou desterro) para que cumprissem o seu castigo nas colónias. Carlos Tê, no papel do historiógrafo, dando a voz à sua "persona" inventada, evoca este procedimento pouco glorioso. Os lançados embarcavam nos navios sem nenhuma inspiração patriótica, eram deixados na costa para aprenderem a língua e iniciarem contactos com os nativos, deixados sem nenhuma ajuda, expostos a todo tipo de perigos. Por isso tanto se assemelham aos pícaros, também "lançados" a uma vida em solidão, sem nenhuma segurança, sozinhos perante o azar. 17

Nesta frase subjaz uma referência discreta à vida de Luís de Camões que, segundo as fontes, feriu um empregado de Paço, foi condenado à prisão e em consequência, partiu para a Índia. Este episódio da vida de Camões não coincide com a sua imagem idealizada e por isso é interessante do nosso ponto de vista. 33

A missão do lançado não tem nada de glória. Para ele é o inferno, talvez pior do que o cadafalso e o algoz ("entre o inferno e o algoz dançava meu triste fado"), isto é, pior do que a morte. Ele sabe bem que vai para a perdição e que vai sofrer muito, mas como quer continuar a viver, escolhe embarcar para a Guiné. Depois de cometer o crime, fica sujeito à prestação de um serviço ao rei como castigo, e tem que aceitar o seu "triste fado". Vejamos a ironia na linguagem usada por Carlos Tê. Uma das técnicas satíricas mais utilizadas chama-se "justaposição" e consiste em colocar ao mesmo nível coisas de importância desigual, de maneira que o "elevado" torna-se mais ruim ao ser justaposto com o que elevado não é. No relato do lançado lemos que foi deixado nas costas da Guiné com "biscoito, medo e fé". Podemos ver como a fé, conceito muito elevado e edificante, em particular no contexto da cruzada cristã, está colocado ao mesmo nível que os instintos mais básicos – o medo e a fome, o segundo simbolizado, ademais, pelo pobre "biscoito". Desse modo, a ideologia da cruzada fica rebaixada por completo. Nos versos seguintes o ingénuo lançado, dá conta aos leitores da ordem que tinha recebido, revelando, à maneira do pícaro, que os seus mandatários são motivados pela cobiça ("saber das fontes do ouro"), encoberta pela hipocrisia ("haver língua com todas as criaturas e conhecer essas culturas"). No refrão, o sujeito lírico apresenta-nos o seu destino difícil e cruel. Mas não se queixa, simplesmente descreve. Isto coincide com a filosofia própria dos pícaros "de que longamente discorrem, professando a paciência e até a indiferença perante os revezes da vida e tendendo a uma moralização pragmática e objetiva sobre a existência em geral" (PALMA-FERREIRA 1981 : 10). Das suas palavras tomamos conhecimento sobre os perigos que tinha que encarar ("as feras") e as duras condições de vida ("o mato foi a minha casa"; "era sempre um estio em braza"). Nos primeiros versos da segunda estrofe enumera outros perigos que encontrou e venceu: "as febres do mato", "o veneno das cobras", o fato de ser "cativo" e levar "mau trato". Neste ponto Carlos Tê retoma os motivos e usa as palavras exatas que com facilidade encontramos na Peregrinação e na História Trágico-Marítima. O narrador na obra de Mendes Pinto diz que foi "treze vezes cativo e dezasseis vendido" (Peregrinação, capítulo I). Os sobreviventes do naufrágio no relato Relação da mui notável perda do galeão Grande S. João encontram-se no mato e são comidos pelas feras. O sujeito lírico, o pícaro, constrói através das suas palavras uma imagem de si mesmo como um indivíduo inocente e faz com que simpatizemos com ele, também por causa de ele reconhecer a sua culpabilidade. A título de exemplo, afirma que, passando 34

por vários perigos, "pagou pelas suas obras". Por ser tão simples como a população nativa a que foi lançado, tornou-se amigo dela e sem nenhum problema "juntou fazenda" com uma mulher. O pícaro conseguiu melhorar as suas condições de vida e estava feliz. Pensava que a sua missão já estava cumprida e que o degredo tinha chegado ao fim. Voltou para Portugal e queria ficar na pátria-mãe. Mais uma vez, o uso da narração autobiográfica e a "persona" de ingénuo fazem com que o leitor fique do seu lado e queira que se cumpra o desejo do lançado. Mas como obstáculo aparecem as autoridades. El-Rei concedeu ao desterrado o seu perdão em reconhecimento do seu "sucesso" mas, afinal de contas, mandou-o de regresso. O pícaro é enganado pelas autoridades, tem de voltar "às feras", ao inferno, de nada lhe serviu contar ao Infante "tudo do que pudera indagar". Não há justiça em Portugal – as penas são severas e os méritos não são premiados. Um pequeno delinquente torna-se "uma pequena peça na máquina grande colonial" e não pode fugir dela de nenhuma maneira. As autoridades, sempre empurradas pela cobiça insaciável, exploram os lançados até ao fim. Na realidade, são piores do que eles. O pobre lançado sempre depende dos poderosos que controlam a conquista territorial e espiritual das novas terras. Na última estrofe notamos uma crítica forte à Igreja Católica e aos regentes. O lançado começa uma missão de cristianizar "em companhia de abade". A expressão "aumentar a cristandade", por ser muito coloquial, caracteriza de forma eficaz o nível intelectual dos "cruzados". O Papa é satirizado e criticado: "«Que boa colheita de almas!» disse de contente o Papa/ao ver as chagas de Cristo a tomar conta do mapa". A face evangelizadora da ideologia da Cruzada está aqui reduzida ao poder que em nada se diferencia do poder político, expondo de forma nítida a hipocrisia da conquista religiosa. Por fim o lançado recebe o seu prémio: "em paga dos meus serviços ali fui feito feitor". Mais uma vez encontramos uma ação desprestigiante da Coroa Portuguesa, neste caso o facto de fazer de um criminoso feitor. O pícaro fica contente, o império torna-se ridículo e ficam patentes as bases instáveis sobre as quais assenta. 5.

Canção de marinhar Uma canção de marinhar é uma canção que os marinheiros cantavam nas

tabernas. Mas o texto analisado refere-se também aos chamados "livros de marinharia" – apontamentos dos navegadores nos quais registavam os mais diversos elementos necessários para a navegação, desde noções de cosmografia e diários de viagens a tábuas de declinação do Sol, roteiros, regimentos das estrelas mais importantes,

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informações referentes às marés e calendários18. Aqueles apontamentos pertenciam à primeira fase das navegações e continham o saber mais rudimentar da arte de navegar. Aquela primeira fase de fraco conhecimento era dominada pelo praticismo, que se caracterizava pela aplicação de procedimentos (mais do que conhecimentos) concretos que serviam para conduzir um navio a bom porto. Decorreu até ao final do século XVI e era encarnada por um sistema de regras práticas, tão simplificadas quanto possível, que funcionavam mas que não eram completamente compreendidas pela maioria dos pilotos19. O autor da canção analisada constrói-a de acordo com as características dos "livros de marinharia" que têm, na sua origem, um caráter pessoal, pressupondo muitos saberes não expressos sem nenhuma coerência científica ou didática, e cuja leitura deixa-nos a impressão de uma enorme insuficiência técnica. O que nos interessa mais nesta descrição é o caráter pessoal dos apontamentos de navegantes. Mais uma vez, Carlos Tê não nos mostra heróis senão pessoas simples. A canção divide-se em oito estrofes de dois versos e dois estribilhos. Todas as estrofes contêm verbos no modo imperativo: "tome-se", "dê-se", "imaginem-se", "rume-se", etc. Assumem, portanto, o aspeto de um conjunto de instruções criadas para pessoas inexperientes. É também significativo o tipo de estrofe usado – o dístico. A estrofe de dois versos, que apresenta rimas aparelhadas, é a mais fácil de memorizar. Do mesmo modo, chama a nossa atenção a linguagem e a sintaxe simplificadas. Na realidade é como se fosse uma transcrição do registo falado: "costume de gente e feitio tudo fique em relação", "navegue-se por fora e por dentro como se fosse um país". Tudo isto dá ao texto o aspeto de uma ajuda para a memória, já que a linguagem e as rimas são facilmente memorizáveis para os marinheiros. Os marinheiros dependem totalmente do conjunto de normas, não têm nenhum conhecimento da arte de navegar, a sua única tarefa é aprender de cor as instruções e atuar de acordo com elas ("Proceda-se sempre de acordo como manda o regimento, fazendo um diário de bordo por causa do esquecimento"). Nas canções anteriores encontrámos muitos elementos do pensamento medieval, nesta notamos uma mudança na mentalidade, na direção de uma atitude mais racional e razoável ("já não oiço as sereias"). Fazendo uso das palavras da canção, parece que "o senso aclarou o que medo inventou". Ou será que o marinheiro somente repete o que aprendeu de cor, mas na realidade não deixou de crer na existência dos seres fantásticos? Não obstante, a viagem parece-lhe mais fácil com as regras reunidas no 18 19

Ver: http://www.infopedia.pt/$livros-de-marinharia,2 Constultado em: 12/01/2012 Ver: http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/a25.html Constultado em: 12/01/2012 36

"livro de marinhar". Pode com tranquilidade pensar nos lucros que obterá quando chegar à Índia cujos "bazares de canela e pimenta" simbolizam a cobiça tão característica para os navegantes portugueses. É de reconhecer que esta canção também pode ser interpretada como uma descrição fiel da evolução das navegações portuguesas, sem nenhum elemento crítico, mas esta não é a única interpretação possível. A nossa intenção foi de divergir dos cánones épicos, ressaltar a falta de heroicidade nesta descrição e sugerir que o texto da canção espelha uma imagem dos portugueses como gente rude e sem conhecimento. 6.

Cruzeiro do sul A voz lírica da seguinte canção desde as primeiras palavras apresenta-se-nos

como "um pobre timoneiro", perdido na "noite imensa do mar". Para começar, é de ressaltar que nenhum "pobre timoneiro" aparece entre as figuras do Padrão dos Descobrimentos erguido por Salazar e, igualmente, nenhum protagoniza as páginas do célebre poema épico de Camões. É uma outra personagem que se pode comparar com o narrador da Peregrinação de Mendes Pinto, que se descreveu a si mesmo como um "pobre de mim". A mudança consiste em que, desta vez, não estamos perante uma pessoa rude e inculta mas perante um caráter sensível, um poeta talvez. Notamos um certo lirismo na canção quando o timoneiro descreve o céu ou utiliza uma metáfora ("o medo dança com as sombras"). Com certeza, não é um "herói de pedra" – clássico, destemido, e livre de defeitos, porque fala da sua solidão e do medo que sente. Está muito cansado da viagem e começa a duvidar do sentido de tal emprendimento. "Eu não sei onde é que isto vai parar" – diz o timoneiro, que não se identifica com a sua missão. No meio do mar sente-se perdido, não no sentido geográfico porque sabe rumar-se ao Cruzeiro do Sul, mas perdido na sua incerteza. Diz que está longe do destino e longe de casa também, parece que preferiria estar em casa. Não nos fala de nenhumas riquezas que vá descobrir, nada lhe atrai nos mundos desconhecidos. As suas palavras são uma outra maneira de desmitificar a época das descobertas, por meio de uma voz de um homem perdido na grandeza do império, abandonado pela sua pátria e pelos seus companheiros ("estou sozinho junto ao leme"). Consideramos de maior importância para a interpretação desta canção a frase: "não é tempo de poetas, já tombaram mais de dez". Aqui fala-se da morte, das vítimas das viagens marítimas, mas também da condição do poeta. Será que está expressa nessas palavras a crítica dos poetas que cantavam a glória dos Descobrimentos? Desde esta perspetiva, "não é tempo de poetas" pode comunicar a ideia de que não faz sentido 37

glorificar e mitificar eventos e atos que na realidade estão cheios de violência e morte, não têm fim nem consequências positivas. "Nos ainda aqui às voltas/ procurando coisas/ que Deus não fez" – os objetivos deste tipo de viagens são totalmente incertos e o desenlace desconhecido. Cruzeiro do Sul é um poema de desencanto e grande dúvida. 7.

Faena de mar Nesta canção Carlos Tê volta a utilizar a autobiografia fictícia como método

narrativo – procedimento que coincide com a literatura picaresca (PALMA-FERREIRA 1981 : 27-28). Constrói a sua personagem atribuindo-lhe características próprias do pícaro o que vamos averiguar em seguida. O toureiro da canção Faena de mar sem nenhuma vergonha conta os passos da sua vida pouco heroica. O sujeito lírico encaixase perfeitamente na descrição do "desgraçado emigrante num século de pretensas heroicidades, incapaz de ações próprias e joguete das circunstâncias em que se vê implicado" (Ibidem : 28). É um camponês ribatejano que se junta à expansão marítima por acaso, sem o querer. A sua profissão de toureiro também aparece entre os ofícios típicos para os pícaros enumerados por Palma-Ferreira: "ajudantes ou bichos de cozinha, picadores de touros, moços de recados e de fretes, madaretes, criados, sacristães e auxiliares de estrebaria" (Ibidem : 7). Como no caso do pícaro típico, as suas ações são motivadas pela pobreza ("sem um chavo na algibeira"), pela fome ("picado pela fome") e pelo desejo de melhorar as condições de vida ("fugir da peste negra"). A personagem picaresca não é um ser corajoso, por isso, quando está em perigo, salva-se fugindo. Com o objetivo de "aprender um ofício e fazer uma carreira" o toureiro deslocase a Lisboa mas "ao fim de três semanas" acaba por viver "de caridade com a turba de mendigos que pedia pela cidade". Com isso revela mais características do pícaro descritas por Palma-Ferreira que o apresenta como "criatura mais ou menos andrajosa que se dedica a ofícios desprezíveis ou transitórios, quase sempre nómada, embora talvez por pícaro se entendesse também o ladrão comum e o simples busca-vidas" (Ibidem: 8). É também um analfabeto, fato que chegamos a conhecer por meio de uma expressão muito significativa "ouvi ler". O que "ouviu ler" era um edital "a pedir gente de brega soldados e marinheiros". Sendo um camponês e não um soldado nem marinheiro, apenas podia encaixar-se no primeiro grupo das três classes mencionadas na ordem real. A palavra "brega" segundo o dicionário da Porto Editora, é um brasileirismo

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que significa "ordinário, saloio, piroso, de mau gosto"20. Estas características coincidem perfeitamente com as atribuidas por Palma-Ferreira ao pícaro, "homem que se dedicava, à margem consentida da vida organizada, às tarefas indignas" (Ibidem : 9). Já temos uma imagem quase completa da personagem do pícaro que, nos textos analisados de Carlos Tê, se torna num meio de satirizar as navegações portuguesas. Depois de ouvir o edital, a "persona" criada por Carlos Tê decide deixar a "carreira" de mendigo e "juntar-se aos efetivos" da empresa marítima. As suas motivações são de novo picarescas, prosáicas e terrestres: o dinheiro e a comida, o que o assemelha ao narrador da Peregrinação. Seguindo o pensamento de António José Saraiva, Palma-Ferreira comenta que "na singeleza com que Fernão Mendes Pinto revela os objetivos que o levaram ao Oriente (fazer fortuna) está um dos elementos do pícaro, cinicamente despojado de outros interesses que não sejam os materiais" (Ibidem : 27). O fato de não ter medo, de empreender qualquer aventura, por mais perigosa que seja, também é uma característica picaresca, não sendo forçosamente um traço positivo, porque esta intrepidez deriva da falta de prudência. Descrevendo a realidade com ingenuidade, o sujeito lírico realiza, sem dar-se conta, uma crítica do meio social em que vive. Segundo Palma-Ferreira o pícaro exibe a vida humana "como um «exemplo» ao revés" (Ibidem : 23). Para embarcar num navio e construir o império basta "dar o nome ao escrivão". As autoridades não têm requisitos nenhuns. Aceitam as pessoas sem conhecimentos e sem competências, as pessoas que, como o toureiro ribatejano, "improvisam a sua finta" e fazem tudo "sobre o joelho". A escolha do vocabulário efetuada por Carlos Tê revela uma forte intenção crítica. A sua personagem é uma pessoa muito simples, cujos horizontes são limitados às atividades relacionadas com o touro. Por isso, sempre interpreta novas experiências e fenómenos previamente desconhecidos de acordo com a sua própria realidade, expressando-o com uma linguagem também retirada do seu meio campesino ("o touro é sendeiro escorrega muito a arena"). A segunda estrofe é uma descrição da largada dos navios feita pelo ribatejano que, até àquela altura, só tinha assistido às largadas de touros. Carlos Tê joga com o sentido da palavra "largada", revelando uma criatividade inesgotável. Podemos considerar a estrofe em questão como uma paródia das descrições da partida de Vasco da Gama para a Índia que Luís Vaz de Camões colocou n’Os Lusíadas. Para verificar esta hipótese vamos contrastá-la com esta oitava do canto IV da epopeia nacional:

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http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa-ao/brega Constultado em: 12/01/2012 39

Pelas praias vestidos os soldados De várias cores vêm e várias artes, E não menos de esforço aparelhados Pera buscar do mundo novas partes. Nas fortes naus os ventos sossegados Ondeiam os aéreos estandartes; Elas prometem, vendo os mares largos, De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos. (CAMÕES 2000 [1572]: 188) Veio o dia da largada ondulavam os pendões faltava gente à armada tiveram de ir às prisões arrebanhar voluntários entre a nata da escumalha rufiões e salafrários grandes barões da navalha.

O único elemento comum que encontramos são os pendões que ondulam. No excerto da obra de Camões domina o tom solene. Os soldados vão à procura de novas partes de mundo, as naus são fortes. Carlos Tê, na sua canção Faena de mar, constrói o mundo ao invés. A sua personagem dá-nos outra visão das despedidas no cais. Admite abertamente que "faltava gente à armada/ tiveram de ir às prisões". Mais uma vez, tratase dos degredados, "lançados" às colónias por causa dos seus crimes. Os "Barões assinalados" de Camões são substituidos pelos "barões de navalha". Neste fragmento da canção analisada, notamos uma ironia fortíssima e a utilização da técnica satírica de justaposição. "Arrebanhar voluntários", "nata de escumalha" e "barões de navalha" – são expressões nas quais as palavras contrastam entre si, dando em resultado uma grande dose de humor mas também uma crítica profunda. Na perspetiva da canção, os marinheiros portugueses eram, na realidade, "rufiões e salafrários". O pícaro desempenha aqui o seu papel, que na tradição literária consistia em criticar os cavaleiros e os clérigos e outras figuras de destaque. A atmosfera desta largada do navio é completamente despejeda da solenidade e da glória que tem no canto camoniano. O papel da fé fica drasticamente rebaixado na expressão "foi tudo benzido a bordo" que coisifica as pessoas por meio do uso do pronome indefinido "tudo". A "cerimónia" da bênção é efetuada de maneira rápida e totalmente despreocupada. Também o conhecimento científico dos mares outra vez fica ridicularizado na frase: "dizem que azul é o mar mas quem me diz onde é bombordo", que põe a nu a ignorância e a estupidez dos marinheiros. Na segunda estrofe chegamos a conhecer ainda mais características do pícaro. Referindo-se às despedidas no cais, diz que era "triste e feliz por ninguém chorar por mim". Segundo Palma-Ferreira um dos ingredientes básicos da novela picaresca é "a quase total ausência de preocupações sentimentais" que constitui a " armação estoica da moralidade picaresca" (PALMA-FERREIRA 1981 : 13). O pícaro geralmente está de

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bom humor e tem uma opinião positiva sobre a sua própria pessoa: "Aprendi depressa as lides como deve um bom peão". Procura sempre o melhoramento das suas condições de vida sem se esforçar muito: "conhecer a manha ao bicho é ter meia salvação". A sua linguagem está cheia de palavras e expressões coloquais representativas da personagem do pícaro ("bicho", "marujo", "tirar a pinta", "fazer das tripas coração"). O final da canção é muito significativo e contém uma crítica muito forte aos integrantes das viagens que Carlos Tê constrói com base no contraste. A tripulação, já que foi descrita como uma turba de criminosos da pior espécie, agora é nomeada de "armada tão vistosa e colorida/ com tão nobre guarnição". Mas é Carlos Tê que, conscientemente, põe estas palavras na boca da sua personagem, referindo-se também a história mais recente. A frase: "a Pátria é pequena mas o improviso não" pode ser contrastada com um dos lemas do regime salazarista – "Portugal não é um país pequeno", com um resultado irónico. Os portugueses sempre improvisaram e vangloriaram-se de ser mais do que eram na realidade: tanto no século XVI quanto na época de Salazar. O império não existia, o que existia era o improviso e um conjunto de terras fracamente controladas por um poder colonial igualmente fraco. A frase que fecha a canção: "aprende-se mais com Portugueses num dia/ do que se aprende com romanos em cem anos", posta na boca do pícaro e contrastada com a imagem apresentada de uma "viagem dos néscios" ao longo do texto, tem unicamente o sentido irónico. É neste caso uma polémica com Camões que com toda a seriedade, e sem a intervenção de nenhuma personagem picaresca, elogiava os lusitanos na sua obra, elevando-os ao estatuto dos antigos:"Cessem do sábio Grego e do Troiano/ As navegações grandes que fizeram". 8.

Calmaria Na seguinte canção também estamos perante um narrador que fala na primeira

pessoa, mas notamos uma mudança das características que lhe são atribuidas. A linguagem do sujeito lírico é muito diferente da linguagem do pícaro. Fala com muita correção, o seu vocabulário é rico, até utiliza metáforas. É uma pessoa culta que lê livros e tem conhecimento do mundo. Também é uma pessoa sensível, talvez um poeta. Pelo seu próprio caráter, tão distante do pícaro, as suas palavras são dignas de crédito. Nesta canção Carlos Tê trata dos perigos das viagens por alto mar: as tempestades e as calmarias. A crítica não se realiza através da sátira mas através das descrições diretas e cortantes dos lados escuros da "aventura marítima": as doenças, os sofrimentos físicos, mas também o aborrecimento mortífero, difícil de aguentar para alguns marinheiros. Depois da descrição da "medonha" tempestade, que quase "engoliu" 41

a nau ("já eu pensava na morte"), o sujeito lírico fala da calmaria que a canção tem por título. A falta do vento deixou os marinheiros à deriva, isto é, perdidos, forçados a se entregar às mãos do destino. Incapazes de se mover, permanecem no mesmo sítio, expostos aos perigos. O sujeito lírico descreve as atividades que os marinheiros inventam para "matar" o tempo da espera. Primeiro reparam os danos nas velas e depois de fazê-lo, chegam à conclusão que não tem "nada mais a inventar". O refrão, só um verso, "era medonha a calmaria", sugere que vai acontecer algo mau. Na segunda estrofe o sujeito lírico descreve os seus entretenimentos que o ajudam a suportar a situação díficil ("segui vôo de albatroz/ fisguei peixe voador/ cantei para ouvir a minha voz"). Mostra a sua face de poeta, pessoa sensível à beleza do mundo ("li a noite constelada/ na folha do firmamento"). Parece-se a Camões, à outra face dele – a do poeta-marinheiro e não a do cantor das glórias pátrias, quando diz: "recapitulei cada amor". É um tipo de personagem com quem nos identificamos facilmente. Nota-se um grande individualismo na sua atitude. Não se identifica com o resto da tripulação, prefere estar sozinho. Passa o tempo a fazer pequenas coisas insignificantes. Mas obedece às ordens do capitão que tenta apoiar-se na religião, mandando fazer uma procissão, cantar missa e novena. Não obstante, as preces não têm resultado nenhum. A ideia grosseira e repugnante de pescar um tubarão, cegá-lo e fingir que é touro numa tourada também não melhora a situação. A fé superficial e jogos bestiais como o descrito acima talvez pudessem fortalecer os espíritos pouco exigentes das pessoas rudes como as descritas na canção anterior, mas não de um poeta como o sujeito lírico desta canção. A "escumalha" não precisa de muito para se entreter, enquanto o poeta, aborrecido, não é capaz de lidar com a situação e submerge-se no desespero. Fica doente por causa do sol, torna-se vítima da calentura – uma febre com delírio. Não pode aguentar mais e decide "pôr fim à sua viagem", suicida-se saltando nas águas do mar. Num dos textos anteriores (Cruzeiro do sul) disse outro personagem criado por Carlos Tê: "não é tempo de poetas/ já tombaram mais de dez". Desta forma, cria-se uma ligação conceitual entre as canções, e as palavras de uma entretecem-se com as de outra. Na versão idealizada dos Descobrimentos fala-se do fim glorioso da viagem, do momento da chegada ao destino, omitindo o processo, o caminho difícil que na realidade estava repleto de tragédias humanas. Esta canção mostra um outro fim – individual, muito triste e sobretudo mortal – de um caminho aborrecido e nada glorioso. É o outro lado do mito da preponderância lusitana nos oceanos que faz com que "a história dos portugueses no Índico [tenha] muito de «história trágico-marítima»" (FONSECA 1998 : 135). 42

9.

Praia das lágrimas Esta é a primeira das três canções no Auto da Pimenta que têm um sujeito lírico

feminino. O facto de esta classe de textos aparecerem no disco em questão é fulcral para ter a imagem completa do conjunto. A voz da mulher era praticamente inexistente nos relatos e publicações sobre os Descobrimentos. Na literatura relacionada com as viagens marítimas não encontramos muitos exemplos da figuras femininas. As poucas que se podem observar não desempenham nenhum papel importante. Maria Teresa Vale, no seu prefácio para os exertos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, considera verdadeiramente revolucionário o papel que atribuiu ele à mulher em comparação com o resto da literatura do seu tempo (VALE 1985 : 26). Auto da Pimenta inscreve-se naquela tradição e segue os passos do autor da Peregrinação na construção das imagens femininas. Não obstante, Praia das lágrimas é um texto fortemente influenciado pela tradição literária portuguesa. Primeiro temos que salientar que, introduzindo a voz feminina nos seus textos, Carlos Tê estabelece um laço com a tradição da Idade Média, na qual os trovadores e jograis faziam as mulheres cantar nas cantigas de amigo. As características formais da cantiga de amigo são: o uso do refrão, do paralelismo e dos esquemas estróficos breves. Na canção analisada aparecem todas estas características: o paralelismo anafórico, as estrofes de dois versos com rimas simples e o refrão. Mais especificamente, podemos estabelecer uma relação entre Praia das lágrimas e um subgénero da cantiga de amigo chamado a barcarola ou a marinha. As barcarolas são cantigas de amigo que se referem ao mar ou ao rio e nas quais a mulher, durante a ausência do seu amado, pede às ondas notícias dele, esperando ansiosamente os navios para tornar a vê-lo. O próprio título Praia das lágrimas é uma expressão conhecida na cultura portuguesa. Com ela designa-se a praia de Belém em Lisboa, de onde partiam naus para a Índia (designação descrita por João de Barros na sua Década I, 1552). É também o título atribuido posteriormente a um dos episódios d’Os Lusíadas de Camões (Canto IV) em que é narrada a despedida dos marinheiros. Neste episódio Camões introduz personagens femininas (reduzidas, porém a personagens-tipo): "Mães, esposas, irmãs" que "cum choro piadoso" (CAMÕES 2000 [1572] : 189) se despedem dos homens. Ao longo de duas oitavas21 deixa-as falar na primeira pessoa (uma mãe e uma esposa), o

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Canto IV, oitavas 90 ("Qual vai dizendo: – «Ó filho, a quem eu tinha/ Só pera refrigério e doce emparo/Desta cansada já velhice minha [...]") e 91 ("Qual em cabelo: – «Ó doce e amado esposo,/Sem 43

que com certeza serviu de base para Carlos Tê quanto à criação da personagem que fala na sua canção. O episódio chamado A praia das lágrimas e o contíguo Velho do Restelo são os mais conhecidos exemplos da multidimensionalidade das facetas da obra camoniana e da sua consciência dos riscos que o império traria consigo. Parece que a motivação de Carlos Tê para introduzir a voz feminina nas suas canções foi a de mostrar o lado escuro da época das descobertas, o da nostalgia e da dor da perda. A apresentação dos factos em Praia das lágrimas difere, por isso, da obra de elogio dos Descobrimentos por excelência, referindo-se ao mesmo tempo a ela. No primeiro dístico da canção de Carlos Tê ("Ó mar salgado eu sou só mais uma/das que aqui choram e te salgam a espuma") reconhecemos também uma alusão ao poema Mar Portuguez da Mensagem (1934) de Fernando Pessoa, do mesmo modo inspirado na descrição camoniana da despedida na praia de Belém: Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!

Mensagem que, na sua totalidade, é considerada uma obra que glorifica o periodo dos Descobrimentos, contém este fragmento que mostra o "outro lado da moeda" destes acontecimentos. Ao contrário de todo o Auto da Pimenta, a obra pessoana clássica contribui para o mitismo que rodeia essa época remota. Carlos Tê utiliza este tópico literário mas, ao mesmo tempo, muda a narração em terceira pessoa para uma narração mais individualizada e dá um passo adiante na construção da perspetiva da mulher. Numa apóstrofe o sujeito lírico dirige-se ao mar de forma pessoal, falando diretamente para ele. É uma confissão dramática de uma mulher abandonada. Nos primeiros quatro dísticos observamos uma enorme acumulação das descrições do choro (choro que "salga a espuma" do mar, que "engrossa as marés", que causa até "dores de rins"). Para a mulher que fala o mar constitui uma ameaça terrível, devido à sua associação à incerteza e ao fado desconhecido que atinge cada homem, incluindo o dela. Aparece descrito como o "mar das Trevas" que "some galés", "ninho do tufão", é chamado "abafadiço". A voz feminina implora ao mar, que traz tantos perigos que poupe o seu homem. A voz lírica não entende o porquê das explorações marítimas. Para ela os nomes quem não quis Amor que viver possa,/ Porque is aventurar ao mar iroso/ Essa vida que é minha e não é vossa? [...])" 44

exóticos das terras longínquas – Índia, China, Samatra, Ceilão – são o símbolo do sofrimento. A sua voz é uma denúncia dos Descobrimentos que causam verdadeiras tragédias humanas e não têm nenhuns efeitos positivos. Os marinheiros ou não retornam nunca mais (porque morrem ou porque decidem não regressar e começar a vida nova lá nas terras exóticas) ou retornam depois de muitos anos, não como heróis, mas marcados negativamente e anormalmente envelhecidos pela experiência do mar ("eles partem novos e retornam velhos"). As mulheres que ficam em casa, estão totalmente desorientadas, nem sequer sabem se são viúvas ou não. A mulher que fala na canção já está separada do seu marido há seis anos. Ela não entende porque tem que sofrer tanto. Expressa o seu desespero: "Não sei o que os chama aos teus nevoeiros será fortuna ou bichos-carpinteiros". A mensagem é clara: os Descobrimentos são uma empresa muito incerta, provocada pela cobiça do lucro e pela impaciência e imaturidade dos homens ("ter bichos-carpinteiros" significa estar irrequieto); as suas consequências, por seu turno, englobam os desastres familiares, o choro e o sofrimento.

10.

Mulher D’armas Nesta canção também encontramos uma voz feminina, mas marcadamente

diferente da voz anterior. Desta vez estamos perante uma mulher lutadora, consciente do seu próprio valor, irritada com o seu marido que se foi para as terras distantes, deixando-a sozinha em casa. Nesta canção Carlos Tê tenta resgatar a imagem da mulher como um ser igual ao homem. Esta abordagem exprime o descontentamento em relação aos Descobrimentos portugueses, mas também em relação à ideologia que durante séculos excluia e discriminava as mulheres. É uma voz contra a história oficial, que omitia a mulher e o papel por ela desempenhado. Carlos Tê dá voz a uma personagem feminina para que ela possa censurar a história escrita pelos homens, expressar as suas queixas, falar das suas necessidades e esperanças frustradas, do seu abandono e da incapacidade de tornar a encontrar o amor. A "mulher d’armas" sente-se enganada ("disse que vinha, mas não veio mais"), humilhada ("trocou-me por um navio") e abandonada ("não lhe perdoo com ele não lhe ter levado"). Também tem as suas aspirações ("queria ver mundo, conquistá-lo ao seu lado"), mas estas ficam estragadas por culpa dos homens. Confia na sua força e não entende porque tem que ser reduzida ao estatuto de viúva e de orfã, da "mulher sempre à

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espera", como Penelope à espera de Ulisses. A voz que fala na canção rebela-se contra este papel atribuido-lhe pela sociedade, mas como não pode vencer esta luta desigual, resigna-se diante da realidade. Não obstante, esta resignação significa para ela ser infeliz ("meu destino é carpir") e ter uma vida enfadonha ("e eu nada tenho que descobrir"). Todos estes sentimentos desagradáveis levam-na a constatar que os Descobrimentos são uma "quimera" – um "jogo" arriscado em que o lucro depende exclusivamente da sorte e as perdas sempre são maiores do que os ganhos. Nesta canção rompe-se com a imagem da mulher tímida e indefesa. Aqui, a voz lírica feminina fala abertamente das suas necessidades físicas e psíquicas. Sente-se capaz de cometer adultério ("queria amar outro"). Se não o faz, é porque não pode ("Queria amar outro/ mas partiram todos"). A razão de permanecer fiel é muito prosáica – a falta de um candidato digno de atenção ("partiram todos/ não ficou nenhum de jeito"). Como podemos ver, a situação das mulheres durante a época das viagens marítimas era muito complicada. As mulheres eram forçadas pelos homens a levar vidas solitárias. Nas duas últimas estrofes a apóstrofe ao mar é substituida pela apóstrofe ao coração da mulher. Antes da partida do homem amado este coração estava cheio de amor ("quando me lembro como tu eras/ mais largo do que esse mar"). Agora, por causa da decisão despropositada dos homens de conquistar o mundo, o mesmo coração está rasgado, tendo ficado sem amor ("o amor que tinhas, dei-o à toa a quem o queria agarrar"). O amor foi destruido pelas circunstâncias. A mulher é a vítima dos Descobrimentos. Deixada sem nenhuma esperança, é forçada a desistir das suas aspirações e a perder a sua honra. Para ela o seu amado e o amor que lhe tinha era o mais importante, mas perdeu tudo não por culpa dela, mas por culpa dos homens. 11.

Trovas vicentinas Passamos à terceira e última canção das três com as vozes femininas. O título,

Trovas vicentinas remete-nos para Gil Vicente. A epígrafe que Carlos Tê escolheu como introdução é um excerto do Auto da Índia (1509) – uma das mais famosas obras do dramaturgo quinhentista em que ele apresenta uma mulher abandonada pelo marido que tinha partido para a Índia. Na farsa vicentina destaca a crítica ao adultério, visto como resultado negativo da expansão marítima. No texto da canção encontramos várias influências de Vicente. Chama a nossa atenção a estilização da linguagem, que adquire um tom arcaizante (o tratamento de "vós", alguns vocábulos pouco comuns) numa imitação do estilo de Vicente. Carlos Tê 46

recria o espírito das obras vicentinas (especialmente as farsas) introduzindo o tema do adultério e retratando a vida da Corte: as intrigas e as rivalidades. Segue também os passos do grande dramaturgo em matéria da crítica do império. A mulher da sua canção é uma pessoa contemporânea ao dramaturgo ("Ouvi este ledo trovador por feitos/ de além mar pouco tentado"). Compõe um poema ao gosto de Vicente em que expressa a sua reprovação frente ao comportamento dos homens. A primeira estrofe da canção contém uma crítica explícita dos Descobrimentos, que expõe cruelmente a verdade sobre as motivações que levaram os portugueses a outras terras. Vós que vos ides por ganância debaixo da capa do cruzado. buscando no incerto e na distância a mina delirante do El Dorado.

Os portugueses são acusados de falsa fé e cobiça. A sua "grande gesta" convertese numa perseguição do delírio. Este é provavelmente o fragmento mais acusador de todas as canções, posto na boca de uma mulher irosa que sofre as consequências negativas dos Descobrimentos. Os homens não pensam nas consequências que resultam de ter deixado as mulheres "na rectaguarda". Como chegamos a saber depois da leitura do Auto da Índia de Gil Vicente, já nos princípios do século XVI (a obra foi representada em 1509), só alguns anos depois da descoberta do caminho marítimo para a Índia, existia na sociedade portuguesa um grave problema social – a infidelidade das mulheres. Esta infidelidade na obra de Vicente – e também na canção de Carlos Tê – é parcialmente justificado por três fatores. Primeiro, as mulheres tinham a consciência de que os seus maridos não lhes eram fiéis, juntando-se com as nativas: "Lá há Índias mui fermosas/ lá farieis vós das vossas" (VICENTE [1562] : 21). O segundo fator era a juventude das esposas deixadas sem amor ("não se deixa uma esposa sem amor/ com o trevo da moçidade eriçado"). O terceiro, os mexericos e as intrigas das amigas ("quanta malícia mal ardida/ tangem seus olhares pelas esquinas"). A vida insuportável naquele "faro gineceu desamparado" fazia com que as mulheres não se comportassem bem, mas não eram piores do que os homens. Era uma vingança das mulheres por serem obrigadas a ficar sozinhas. A voz que fala na canção afirma que são os homens que devem sentir vergonha pelos seus feitos ("não sentis testa que vos arda/ durante o sono repousante do soldado"). Reelaborando o tema abordado na obra de Vicente, Carlos Tê mostra o lado pouco glorioso da Era das Descobertas. A significância e o peso simbólico das viagens 47

para o Oriente aparecem aqui totalmente rebaixadas por meio de frases irónicas como: "vieis que melhor que a riqueza é ter alguém à noite na cama" cujo prosaismo contrasta com o esplendor atribuido à expansão marítima. Nesta canção, introduzindo a personagem de uma mulher adúltera e deixando-a expor a sua acusação, o autor mostrou a hipocrisia da sociedade portuguesa da época das viagens, tanto dos homens como das mulheres. Era uma hipocrisia dos homens, "presunçosa e vã nobreza", de esconder a ganância detrás da ideologia da cruzada e era, ao mesmo tempo, uma hipocrisia das mulheres, que se davam o "direito" de serem infiéis, justificando-se com a infidelidade dos homens. Vemos claramente que o mal que dá origem aos comportamentos condenáveis descritos era, com efeito, o Império ("Por isso se as testas vos arderem/ no lume verrinoso do adultério/ às línguas viperinas que vierem/ dizei que ardem pela grandeza do império"). 12.

País do gelo Nesta canção, Carlos Tê, numa perspetiva intertextual manifesta, evoca os

relatos da História Trágico-Marítima (1735-36) e o romance A Nau Catrineta22. O autor ainda intensificou e enfatizou o que há de terrível nestas duas obras para criar um "quadro grotesco e surrealizante da gesta dos Descobrimentos" (MARTINS 1997 [em linha]). Por exemplo, d’A Nau Catrineta tomou os primeiros dois versos e alguns elementos, mas substituiu o final feliz por um outro desastroso. Nem a História Trágico-Marítima, nem A Nau Catrineta foram escritas com um fim parodístico, são relatos da época, ao contrário do texto analisado, no qual a intenção parodística é muito forte. Os elementos parodísticos observados são a caricatura23 e a hipérbole24. Olhemos para o exemplo da canção: "eram mil e doze a bordo nas contas do escrivão/ sem contar os galináceos sete patos e um cão". Mencionar números pequenos mas concretos de cada espécie animal ao lado do número grande das pessoas leva a uma ridicularização. Este tom está presente ao longo do texto inteiro. O jogo da ironia é muito visível na linguagem. Os participantes da "carreira das Índias" também são apresentados de uma maneira ridicularizante. Falando da lista "mui sortida de fidalgos passageiros", o autor menciona na mesma linha as "mulheres de má vida" e os padres. Mais uma vez a fé e o ideal da cruzada ficam rebaixados por justaposição com ideais menos nobres. Os versos 22

23 24

A Nau Catrineta é um poema romanceado por um anónimo, relativo às viagens para o Brasil ou para o Oriente, incluido por Almeida Garret no seu Romanceiro (1843-1851). Caricaturar é o sinónimo de exagerar e distorcer com o fim de obter um efeito cómico ou parodístico. Classifica-se hipérbole o arranjo lingüístico que visa à expressão exagerada da natureza das coisas. 48

seguintes salientam o caráter pouco sério destas viagens: "iam todos tão airosos com seus farnéis e merendas/ mais parecia um piquenique do que a carreira das Índias". O vocábulo "airoso" manifestamente não harmoniza com o resto da frase. O esplendor dos Descobrimentos desaperece ao reduzí-lo a um simples piquenique. Como sabemos da História Trágico-Marítima, a má qualidade da tripulação, a sua falta da preparação conveniente para a viagem era frequentemente uma das causas dos naufrágios. Durante a navegação ao longo da costa africana o navio em que embarca a tripulação da canção topa com uma tempestade. Aqui encontramos as caractéristicas do grotesco. O autor narra os acontecimentos terríveis com certa satisfação e humor. Para descrever a luta dramática do navio contra o mar perigoso, utiliza a metáfora da dança ("a nau deu em bailar"). Com intenção parodística, introduz a figura de Adamastor, o mítico gigante baseado na mitologia greco-romana, referido por Luís de Camões n'Os Lusíadas. Adamastor, sim, foi o símbolo de todos os perigos, tempestades e naufrágios, mas no texto analisado não constitui um simples eco intertextual do episódio camoniano. Nota-se uma forte intenção parodística: "onde o velho Adamastor subiu o ritmo da dança", o que significa a aproximação do perigo mortal, mas encarado sem o dramatismo esperado. Não sem propósito o autor introduz no texto uma alusão à chamada "Dança da Morte". O macabro serve para acentuar o lado "diabólico" das viagens portuguesas ("Foi tamanha a danação foi puxado o bailarico/ Quem safonava a canção era a mão do mafarrico"). Podemos também estabelecer aqui um referência à famosa pintura do artista flamengo Hieronymus Bosch O Navio dos Loucos, uma obra que "critica, de forma alegórica, os costumes da sociedade da época: a devassidão e a profanidade presentes em todos os grupos sociais (incluindo o clero, como se pode ver, em primeiro plano, na pintura), o jogo e o álcool"25. A atitude burlesca de Carlos Tê, muito parecida à de Bosch, também serve para criticar, mas neste caso criticar os vícios, a perda dos valores e a corrupção dos navegantes portugueses. O macabro está constantemente presente na descrição das doenças, sofrimentos e mortes que tomam o controlo do navio. Como consequência da tempestade morreu o piloto, enquanto o capitão, provavelmente ferido, "arde em febre". Com o passar do tempo, aparecem outras doenças. Os dentes ficam podres, fala-se de "sangrias". Chama a nossa atenção o sarcasmo da frase: "morriam da cura os doentes". Só num mundo avesso é que se pode morrer da cura. Carlos Tê faz uso de todas as técnicas parodísticas para criar a sua visão humoristicamente infernal da "carreira das Índias". Introduz o

25

Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Navio_dos_Loucos_%28Bosch%29 Constultado em: 12/01/2012 49

grotesco e o macabro quando se fala do "mau cheiro" dos corpos em decomposição. Nesta descrição não há nenhum poetismo, nenhuma glorificação nem heroicidade, pelo contrário, mostra-se a degeneração e a degradação das pessoas, envolvidas num périplo heroico que se torna em fracasso. A nau, com todas as desgraças e pragas que sofreu, é comparada com "o Inferno de Dante". Nesta canção a crítica dos Descobrimentos está tão presente, que em cada frase encontramos palavras ou expressões que nunca poderiam aparecer numa versão glorificadora daqueles acontecimentos. Ao mito da missão de cristianizar contrapõe-se "a fé vacilante" dos marinheiros. No lugar das "naus fortes" descritas por Camões n'Os Lusíadas, vemos "a pobre nau". O leme, elemento mais importante do navio que serve para lhe dar direção, aqui está sem governo. A expressão "a derrota já perdida" é um eco do fatalismo muito presente nos relatos da História Trágico-Marítima (cf. LANCIANI 1979 : 129) Quando se estabelece o "reino do caos", acontecem as piores coisas que se podem imaginar: as execuções e o canibalismo ("Fizeram auto de fé com as mulheres de má vida/ E foram tirando à sorte quem havia de morrer/ Para que o vizinho do lado tivesse o que comer"). Seria difícil criar uma descrição mais terrível do que esta. Os padres, que no início da viagem não tinham nada contra a presença das prostitutas, mandam matá-las apoiando-se na ideologia falsa da cruzada cristã. O episódio canibalesco é um eco d’A Nau Catrineta, que contem estes versos: "Deitaram sortes ã ventura/ Qual se havia de matar" (GARRET 2000 [1843] : 138). Estamos perante uma degeneração do homem, que se assemelha ao animal selvagem ao cometer tal barbaridade. E recordemos que estamos a falar dos portugueses no momento da sua missão civilizadora, representantes de uma civilização supostamente bem avançada que pretende extirpar tais barbaridades das terras conquistadas. Os atos da tripulação indicam que, quando colocados numa situação extrema, os marinheiros portugueses abandonam os seus ideais e são capazes de fazer tudo para sobreviver. Nesta canção, Carlos Tê mostra-se impiedoso na crítica dos Descobrimentos. Segue com a construção da sua visão dantesca, retomando o tema das três meninas debaixo do laranjal que, em A Nau Catrineta são uma falsa miragem do demónio (cf. GARRET 2000 [1843] : 137). Na versão de Carlos Tê No céu três meninas loiras cantavam o cantochão Todas vestidas de tule para levar o capitão No meio do seu delírio mostrou a raça do bravo Teve ainda força na língua para as mandar ao diabo.

Chama a nossa atenção a expressão muito irónica "mostrou a raça do bravo" que pode também ser aplicada aos tempos modernos nos quais a ditadura salazarista falava muito 50

da "raça" (até celebrava o "Dia da Raça"). Aqui "mostrar a raça do bravo" está ligado apenas ao ato de blasfemar. Assim o povo português aparece como abandonado por Deus. À beira da morte, caem as máscaras da hipocrisia e encontramos a ausência de valores. Nos versos seguintes, as viagens dos Descobrimentos são chamadas um "martírio sem fim" e as naus aparecem totalmente ridicularizadas ao serem comparadas com um "lenho a boiar". Esta visão dantesca é concluida por uma ironia macabra na expressão: "que diria o escrivão se pudesse escrevinhar". Não pode, porque provavelmente está morto junto com a grande maioria da tripulação ("eram mil e doze a bordo e doze haviam de chegar"). Como podemos ver, a perda de vidas humanas é enorme e quase nenhum dos navegantes chega ao fim da viagem. A viagem que deveria ter terminado na Índia, termina no "país do gelo", do frio eterno ocasionado pela morte, onde os portuguseses se deitam nos "lençóis de linho e plumas acolchoadas" e adormecem para sempre "como meninos cansados". A aventura marítima resultou ser uma catástrofe. Desviou o caminho dos portugueses e levou-os à perdição. São chamados "meninos" porque não estavam preparados para aguentar a carga do império. A sua ambição ultrapassou a sua capacidade de realização, gerando a morte dos inocentes. Na realidade, podemos falar do "suicídio coletivo" dos portugueses. O fatalismo, tão característico para este povo, faz com que eles procurem, inconscientemente, esta "paz branca" onde se possam deitar. Na nossa opinião, o que Carlos Tê quer transmitir-nos nesta expressão é que os portugueses não são um "povo da gesta", mas um povo do "descanso mítico", demasiado fraco para realizar os seus objetivos e só capaz de tornar-se num "nevoeiro". Podemos interpretar a frase final desta canção ("dormiram para sempre como meninos cansados") como uma crítica do mito de sebastianismo, já que D. Sebastião foi um menino que aniquilou o império na sua missão suicida em África e dorme para sempre encoberto de névoa. Tanto o próprio "Menino-Rei", como a tripulação do barco apresentado na canção, tornam-se numa metonímia da queda de Portugal. 13.

Nativa A canção que vamos analisar agora traz-nos um quadro, contado na primeira

pessoa, da vida de um português numa colónia. Carlos Tê constantemente dá voz aos personagens fictícios da época das descobertas. O sujeito lírico de Nativa, um marinheiro português, numa apóstrofe, dirige-se a uma mulher africana, e exprime aos leitores a sua história individual que, como no caso de outras canções, não coincide com a versão heroica e "oficial" dos Descobrimentos. É uma história de um homem que 51

tinha vindo a África com a missão cristianizadora e deixou-se paganizar ("adorei Deus em heresia/ dei-lhe outra face sagrada"). Como se isso não bastasse, não tem boa opinião sobre a sua própria civilização. Em vez do "orgulho da raça" e sentimento da superioridade, encontramos nas suas palavras uma admiração pelo lugar, que é para ele um "paraíso na terra". Na primeira estrofe o sujeito lírico, descreve o momento em que estava à beira da morte ("de febre eu morria"), ampliando a lista dos perigos e doenças que conhecemos das canções anteriores. A descrição da doença tropical é bastante pormenorizada: "de febre eu morria/ entre delírios palustres/ e suores me consumia,/ eu ardia em fogo lento". Quem o ajudou e lhe salvou a vida não foram os compatriotas nem o Deus cristão mas uma mulher negra e pagã. Graças a ela e às suas práticas medicinais, ganhou uma nova vida ("passaste em mim um unguento/ muito mais fresco do que orvalho"). Depois da leitura da segunda estrofe, ficamos a saber que a personagem que fala na canção é um degredado ("penas do meu degredo"). Mas neste caso não é um homem rude e simples como o "herói" da canção Lançado, senão um poeta que fala numa linguagem poética com comparações por símile e metáforas. O sujeito lírico de Nativa parece-se a Camões, humano e não mitificado, o poeta degredado mais conhecido de Portugal. O autor d'Os Lusíadas também sentiu na sua própria pele as penas da sua aventura marítima e também, segundo os relatos, teve contactos com as mulheres nativas (p. ex. com a chinesa Dinamene). O sujeito lírico de Carlos Tê assemelha-se ao vate português quanto à dimensão do seu amor pela mulher. A nativa redime o degredado das penas, "mantem [a sua] alma viva" e converte-se na salvação dele. O degredado cai na idolatria, na negação do seu Deus cristão ("adorei Deus em heresia/ dei-lhe outra face sagrada"). Eis uma imagem pouco comum de um português, algo impensável na versão mitificada da história imperial de Portugal, vigente durante a ditadura de António de Oliveira Salazar. Mais adiante, o sujeito lírico utiliza uma metáfora ("à nossa volta no chão foi crescendo uma erva amestiçada") para nos dar a entender que da sua relação com a africana nasceram filhos. No refrão, exalta e idealiza a "terra feliz" que encontrou ("deste-me conchas do mar/ e um sorriso na boca") e passa a uma crítica da sua própria cultura. Estamos perante uma autocrítica ou um exame de consciência que começa com as palavras: "eu nada tinha para dar/ que se comprasse em troca". Cabe também observar aqui o pensamento típico dum comerciante português, que não acredita na generosidade das pessoas e sabe que tudo tem o seu preço. 52

As características atribuidas pelo sujeito lírico à civilização trazida pelos europeus às terras descobertas não são positivas. Mesmo que descreva elementos potencialmente bons dessa civilização, como racionalismo ou fé católica, não pode evitar palavras com conotações negativas ("Dei-te os ferros de razão", "Dei-te a dor do crucifixo"). O navegante português conhece bem o seu papel destructivo de colonizador, tem a consciência de que tudo o que trouxe ao continente africano foi o mal: a guerra ("Dei-te o valor de metal"), o sofrimento ("a gramática do mal") e o sentimento de culpa ("O castigo e o perdão", "Dei-te a cinza do prazer"). A única coisa que considera positiva, o seu "bem mais precioso" e que pode oferecer à nativa é a sua "língua mãe", o português, que se amestiça livremente com o falar local, um caso raro da descrição das consequências linguísticas da colonização. Estas palavras lembram-nos a frase conhecida de Fernando Pessoa: "Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a lingua portuguesa" (PESSOA 1982 [1931] : 17). O valor atribuido à língua materna tanto no texto de Carlos Tê como no de Pessoa, é significativo. A frase de Pessoa é hoje um dos lemas da Lusofonia. No texto de Nativa, a pureza da língua vê-se, porém, questionada ao serem referidas as línguas crioulas que surgiram nas cólonias como consequência da mestiçagem. Todavia, não aparece nenhuma valorização do fenómeno, que tantas repercussões teve na criação da identidade cultural dos povos "hibridizados" – o nascimento de uma língua aparece como facto inevitável, prescindindo de qualquer defesa de pureza linguística. 14.

O ourives mestre João Depois de uma canção mais lírica, com a crítica mais implícita e velada, Carlos

Tê volta à sua atitude abertamente satírica. Desta vez escolhe como sujeito lírico um ourives de Goa. Na época do Descobrimentos, os ourives, apesar de fabricar e vender objetos de ouro, tornavam-se também homens de negócios porque recebiam ouro em penhor e em troca de empréstimos de dinheiro. Diogo de Couto (1542-1616), cronista e o primeiro diretor do Arquivo de Goa, na sua obra Soldado Prático26 considera esses negócios privados uma das principais causas da decadência dos portugueses no Oriente (apud SOUSA 1997 [em linha]). Na epígrafe que vem antes da canção (um fragmento de uma carta da Índia de um missionário italiano a Santo Inácio de Loyola do ano 1550) 26

Obra na renascentista forma de diálogo, publicada no século XVIII, em que o autor lança uma crítica mordaz ao funcionamento da administração portuguesa no Oriente, à corrupção generalizada e à deslealdade para com o rei. 53

fala-se do "pecado da depravação", dos "inúmeros colonos casados que têm quatro, oito ou dez escravas fêmeas e dormem com todas elas" e de "outras desonestidades". Como podemos ver, Carlos Tê decidiu apresentar no Auto da Pimenta mais um dos numerosos pecados cometidos pelos portugueses durante a época das descobertas – a luxúria. Na primeira estrofe, em que o narrador na terceira pessoa descreve a personagem do título, predomina o tom satírico e a linguagem coloquial. A sátira, que serve para a crítica social, primeiro é dirigida à Inquisição e ao antissemitismo. Só por ser um judeu Sefardita, o mestre João, é assediado pelo Santo Ofício ("tem á perna a Inquisição/ bateu-lhe à porta a desdita"). São bem conhecidos os abusos da Inquisição: as torturas e execuções não eram poucas na altura e habitualmente tocavam pessoas que discordavam das crenças católicas. A Igreja sempre tinha relações próximas com o Império Português, tanto no século XVI, como no século XX, durante a ditadura do Estado Novo. Sob o regime de Salazar não se falava mal da pátria nem da Igreja. Carlos Tê, nesta canção, desmitifica estas noções e fala das imperfeições e pecados de ambas. O Império é satirizado por meio de descrição do comportamento do mestre João, que se tornou indiscreto e "mora com duas mulheres debaixo do mesmo teto", o que liga o conteúdo da canção com as "desonestidades" mencionadas na epígrafe. Na segunda estrofe apresenta-se-nos um retrato muito interessante da vida dos portugueses em Goa. Carlos Tê introduz um trocadilho, joga com o sentido da palavra "pagode" ("Em Goa reina o pagode"). Trata-se do templo asiático mas também da pagode no sentido figurado popular de "pândega", "divertimento", "vida dissoluta". Observamos uma acumulação de coloquialismos e da ironia. Destaca a frase: "só não peca quem não pode desde o Bispo ao Ouvidor". Com estas palavras o autor oferece-nos uma visão de uma sociedade totalmente corrupta. Acrescenta também um comentário irónico com as palavras: "talvez seja do calor". A missão colonizadora e cristianizadora dos portugueses cai no ridículo. Os padres católicos e os juizes, representantes do Estado, são privados da moralidade, mas não veem a sua própria miséria, preferem acusar o ourives de ser "devasso e marrano". Ele tem que pagar-lhes muito dinheiro ("levam-lhe couro e cabelo") para que o deixem em paz (paga pelas "bulas", dispensas concedidas pelo bispo). Os subornos e a hipocrisia são práticas habituais no Império Português. Finalmente, as autoridades deixam de ocupar-se do caso do "velho indiscreto" por ser ele "um ourives do melhor que há no pais". Toda essa imagem do meio social do ourives é construida por meio da linguagem coloquial, com uma forte intenção satírica. No refrão já fala a personagem principal na primeira pessoa. Numa apóstrofe a Goa ("Oh Goa, o que eu passei") o ourives conta as condições da sua viagem marítima. 54

O resumo da viagem cabe em duas frases: "seis meses sem me lavar" e "seis meses a enjoar". Mais uma vez no Auto da Pimenta, fala-se das condições miseráveis e desumanas da vida nos navios, manifestamente distintas do aparato com que costumeiramente se descreve as viagens, ignorando a monotonia do caminho em si. "O que eu passei para cá chegar" – exclama o ourives. Para ele o sofrimento pelo qual passou dá-lhe direitos especiais, anula toda a responsabilidade moral, dá o direito de reclamar qualquer coisa. O mestre João explica a sua filosofia nas duas últimas estrofes. Carlos Tê construiu-as com uma intenção muito irónica. A sua personagem, um colono português de origem judaica, é uma pessoa presunçosa e arrogante, um hedonista e relativista, as características que não coincidem com os ideais da cruzada. Pensa que, como recompensa pelos perigos que passou, pode fazer o que quer e justifica-se, dizendo que "toda a gente o faz por cá". Contradiz-se, porém, criticando ao mesmo tempo essa "gente". Constata que prefere "morrer já dum excesso do que de velho amanhã". Na última estrofe com ingenuidade completa confessa os seus pecados, mas na realidade jacta-se deles, mostrando uma vaidade desmesurada. Louva as suas concubinas, "joias morenas e finas bonitas de ficar cego", compara-se com o Rei Salomão, que segundo ele também teve mulheres até fartar. Não vê nada mal no seu comportamento. Na sua opinião, os portugueses têm direito à poligamia. Considera-se ainda superior ao Rei Salomão quando diz que "não passou o que eu passei numa nau para cá chegar". Sente-se livre a pecar e tem confiança (não justificada e abusiva) na indulgência de Deus. Podemos aqui estabelecer uma analogia com a maneira em que António Lobo Antunes apresentou Fransciso Xavier, no seu romance As Naus (1988). O santo-missionário do século XVI, no livro de Antunes, converte-se num explorador de mulheres, dono de uma pensão habitada por prostitutas. A intenção parodístico-crítica de Carlos Tê é parecida quando constrói a personagem do ourives mestre João. Ao mesmo tempo, o sujeito lírico dá uma prova da sua enorme cobiça ("desde que não roube o ouro do sacrário da igreja/ Deus vai-me perdoar mas não me livra desta inveja"). Estas palavras são um eco de um dos episódios da Peregrinação de Mendes Pinto, em que o anti-herói, António de Faria, impelido pela cobiça, planeia roubar os túmulos sagrados dos imperadores da China no santuário de Calempuy (CATZ 1981 : 59). Na canção analisada os portugueses aparecem retratados como pessoas sujas, pecadores e cobiçosos, sem educação nenhuma, que cometem várias barbaridades e violam todas as leis da humanidade e da dignidade. 15.

À sombra da tamareira 55

As canções À sombra da tamareira e a seguinte, Logo que passe a monção, apesar de destacar-se pelo exotismo neles presente, são textos que, falando do passado, falam também muito do presente de Portugal. É uma reflexão sobre a "precária sobrevivência entre fantasmas e fantasias" que permite aos portugueses "o balsâmico sonho de ser/estar numa cultura simbolicamente intemporal", utilizando as palavras de Margarida Calafate Ribeiro (RIBEIRO 2007 : 11). Já o título da primeira destas canções é muito significativo. Existe em português a expressão "dormir à sombra da bananeira" que significa "ficar à sombra de êxitos passados, não progredir". Carlos Tê, ao substituir "bananeira" por "tamareira", esconde, mas ao mesmo tempo sublinha este significado metafórico, o que lhe permite jogar com os dois significados: o literal e o não literal. Esta expressão desempenha o papel principal na construção da canção porque aparece no final de cada estrofe e no final do refrão. Para entender a mensagem desta canção vale a pena citar Fernando Pessoa que constata no seu poema Opiário (1914): "Pertenço a um género de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho" (apud MACHADO 1983 : 10). A mesma ideia, mas em outras palavras, está expressa por Carlos Tê na expressão "à sombra da tamareira". Como podemos ler no livro O mito do Oriente na literatura portuguesa (1983) de Álvaro Manuel Machado, o Oriente é para os portugueses "um «sonho» que nunca foi realizado", "um «trauma» nacional", "uma herança que ficou para sempre perdida, ação que ficou para sempre incompleta" (Ibidem : 16). Para preencher este vazio construiram e desenvolveram um mito. E dentro deste mito permanecem numa forma de "consciência fantasmagórica" (PIMENTEL 2008 : 11). Na realidade, o que observamos na canção de Carlos Tê é uma "psicánalise mítica" 27 do povo português ao modo de Eduardo Lourenço. Antes de passar à análise, temos que esclarecer que na canção não se fala da Índia, como na frase citada de Pessoa, mas de Marrocos. Não obstante, o Norte da África também constitui um espaço mítico para os portugueses porque ali decorreu a desastrosa batalha de Alcáçer-Quibir em que Portugal perdeu o seu rei D. Sebastião e, como consequência, também a sua independência. É talvez "um sonho" e "um trauma" ainda maior, e o mito que gerou – o mito de sebastianismo, também parece ser maior do que o mito do Oriente. Mas com certeza tem o mesmo significado, o da perda que tem que ser compensada. O mito do sebastianismo, entre outras influências que teve na sociedade portuguesa, criou tembém "o perfil acomodado, de quem espera passivamente 27

Expressão tomada do título do ensaio de Eduardo Lourenço, Psicanálise mítica do destino português (1978). 56

por um salvador que lhe resolvesse todos os problemas" (LELLI 2010 : 197). Essas considerações nos ajudarão na análise da canção. Lourenço caracteriza os portugueses como "um povo profundamente sonhador e imagético que ao longo da sua existência sempre teve dificuldade de se ver com realismo" (RODRIGUES 2008 : 2). Em À sombra da tamareira encontramos um representante do povo português (que pode simbolizar todo o povo) que fica sem fazer nada, de braços cruzados, e quer esconder-se e fugir da realidade ("encontro meu refigério,/ cavo a minha trincheira aliso meu cemitério"). Nesta primeira estrofe, que podemos considerar como metonímica para todo Portugal, encontramos alguns traços da decadência e desânimo nacional, resultante da falta do esplendor que o país tinha outrora, bem como da incapacidade de o recuperar – as ideias parecidas às contidas no Opiário de Pessoa. O sujeito lírico da canção chegou a Marrocos com uma missão importante que prometia glória ("aqui cheguei era alferes tinha goma na gibão/ vim defender as muralhas da praça de Mazagão") mas a missão estagnou "à sombra da tamareira" e não trouxe nenhum resultado. Desde então vive num mundo fantasmágorico. Converteu-se num soldado inútil que perdeu a importância para todo o mundo, nem os inimigos dão por ele ("há muito caiu Arzila Mazagão treme e não cai/ vem o Xerife de Fez faz o cerco e depois vai"). É uma guerra errada e desnecessária ("tal como as águas dum lago o tempo deixou de correr") e ele continua na sua posição, tentando agarrar-se aos seus antigos ideais ("mas jurei por Santiago que nunca me hei de render"). Para ele não faz nenhuma diferença quem é o rei ("nem sei bem quem é o rei") porque ele vive só no passado, não sabe o que se passa atualmente ("há muito que não vem mensageiro"). Carlos Tê faz uma referência direta e muito interessante ao mito do sebastianismo: "será que D. Sebastião/ já voltou do nevoeiro/ ou ficou/ à sombra da tamareira?". Parece que o alferes não acredita na volta do "Encoberto", está mais disposto a dar crédito a que o destino de Sebastião é parecido ao seu – ficar para sempre num lugar esquecido. O Sebastião também "alisou o seu cemitério" em Alcáçer-Quibir. Na segunda estrofe vemos como o alferes se dedica a atividades inúteis, tentando defender coisas que já não existem (como, de facto, todo o império): "vigio as areias ruivas faço o turno de atalaia/ já cantou o muezzim não anda mouro na raia". A sua missão cristianizadora falhou, para nada serve o seu juramento por Santiago ("Sopra o vento do deserto recitando-me o Corão/ ladaínha infame e bela sortilégio do Islão"). Está cercado pelos inimigos, mas isto não lhe faz nenhuma diferença para ele porque ele está sempre "à sombra da tamareira". Esquecido por todos e desnecessário permanece sempre no mesmo sítio, entrou num beco sem saída onde se vai desfazendo ("só a 57

saudade me vence só o dever não me esquece, sou o fio que se esgaça na malha que o império tece"). Pensa constantemente no passado, não consegue deixá-lo para trás ("aqui ganhei minha espada aqui ergui a bandeira"). Está vencido pela saudade, tem a consciência de ter perdido o melhor da vida, realizando uma missão sem sentido ("vi passar a mocidade à sombra da tamareira"). Podemos dizer que o sujeito lírico, o português contemporâneo disfarçado de português da época, como consequência das conquistas ficou isolado e esquecido por todos, sozinho, cara a cara com a história do seu país que nunca vai voltar à antiga glória. É uma pessoa perdida no mundo, passiva, sempre à espera de um milagre. Vive no mito que lhe estonteia os sentidos, no sonho delirante de uma grandeza passada. 16.

Logo que passe a monção Como no caso do texto anterior, o primeiro elemento que destaca nesta canção é

o exotismo. Já a palavra "monção" (vento periódico, característico do sul e sudeste da Ásia) indica-nos que a cena se desenvolve na Índia ou na China. Encontramos outros elementos exóticos do Oriente ao longo do texto. Tais palavras como "bambú", "narguilé", "arrozais", constituem uma referência clara ao mundo oriental. Carlos Tê escolheu duas epígrafes como uma introdução para o seu texto. Um deles é um fragmento pequeno, mas muito interessante, do já mencionado poema Opiário de Fernando Pessoa: "Eu vou buscar ao ópio que consola um Oriente ao oriente do Oriente". O segundo é um poema inteiro de Camilo Pessanha, intitulado Água morrente. Pessanha, poeta nascido em 1867 e educado em Coimbra, partiu aos 27 anos para Macau onde se fixou até à sua morte em 1926. Morreu como vítima do ópio. Nos seus poemas simbolistas, reunidos na coletânea Clepsidra, exprime, citando as palavras de Álvaro Manuel Machado, "o que já em Portugal o obcecava: a consciência de uma decadência histórica de Portugal" (MACHADO 1983 : 100). Esta consciência fez com que nos seus poemas encontremos tais sentimentos como a decadência, a tristeza e o vago. Na canção de Carlos Tê, que vamos analisar em seguida, está bem patente o mesmo ambiente emocional. O tema explícito da canção é o fumo do ópio, mas podemos também interpretá-la como uma crítica do "espírito nacional português". Primeiro, temos que introduzir algumas informações sobre o ópio. O uso deste narcótico, mascado ou fumado, espalhou-se no Oriente. A droga estava cercada de uma aura de substância benéfica que aliviava toda uma gama de dores e sofrimentos. O fumo do ópio provoca euforia, seguida de um estado onírico; o uso repetido conduz ao hábito, à dependência química, e posteriormente, a uma decadência física e intelectual e um 58

declínio marcante dos hábitos sociais28. Queremos estabelecer uma relação entre estas características do ópio (especialmente o alívio de dores, a euforia e o estado onírico) e as características da identidade portuguesa apresentadas por Eduardo Lourenço: o desejo da "fuga espacial", da "mitigação da dor interior", a materialização dessa dor "em busca de um espaço simbólico, impensável" (LOURENÇO 2004 : 162). Podemos acrescentar a esses conceitos o "sonho de ser/ estar numa cultura simbolicamente intemporal" definido por Margarida Calafate Ribeiro (RIBEIRO 2007 : 11). Como já mencionámos, o Oriente simboliza para os portugueses uma espécie do paraíso perdido. Podemos arriscar a afirmação de que para eles, fumar ópio (real, como no caso de Pessanha, ou metafóricamente) é uma maneira de manter vivo o sonho do império. Eles não querem que o sonho se vá embora porque só sonhando sentem que ainda existem. Passemos agora ao texto. A canção desenvolve e reelabora o poema de Camilo Pessanha. O sujeito lírico é um marinheiro português (um capitão dum navio) que se encontra na China; fala na primeira pessoa. Na primeira estrofe, apresenta aos leitores o seu estado espiritual. É um homem cansado, triste, quase morto ("enterrado"), que procura a paz e o descanso. Não quer participar em nenhum acontecimento, prefere ficar sozinho no seu refúgio. O único que é capaz de fazer é observar a chuva. Nesta canção, o autor apresenta o português não como um descobridor destemido dos mares, mas como um ser doente e abatido. Na segunda estrofe observamos uma tensão entre a consciência da necessidade de agir e progredir ("sei que tenho que partir") e a vontade de não fazer nada ("não me quero ir embora"). A monção serve ao capitão de escusa para ficar inativo. Alguém consciente e preocupado lhe diz que "já é hora" (como um eco das palavras finais da Mensagem de Pessoa: "É a Hora!") mas ele está vencido pela estagnação e pelo vício e responde: "diga que foi ao meu enterro". Seguindo com a "psicanálise mítica" e com a "diagnose" do espírito português, podemos dizer que os portugueses sabem bem que já é tempo de sair do vazio e despertar do sonho para seguir adiante, mas estão cómodos no seu estado letárgico e não querem progredir. A terceira estrofe pode ser facilmente interpretada neste plano metafórico. Os portugueses dizem às outras nações que os deixem em paz, passivos, submersos nas lembranças do seu passado. É o Portugal descrito por Pessoa no último poema da Mensagem – um Portugal-"Nevoeiro", que não reage ao grito desesperado que lhe lembra da necessidade de agir. O sujeito lírico da canção, no nosso entender a personificação de todo o país, diz que tem "a alma a

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Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%93pio Constultado em: 12/01/2012 59

dormir", palavras parecidas ao "ninguém conhece que alma tem" pessoano. O país é caracterizado como totalmente passivo, que não tem o seu destino nas suas mãos, puxado por forças desconhecidas ("como a folha de bambú a deslizar na corrente"). Também aparece como um país esquecido, abandonado, distante, que quase totalmente perdeu o contato com a realidade ("apenas presa ao mundo por um fio de água morrente")29. Nas palavras do sujeito lírico reconhecemos a conformação com o isolamento e a falta de qualquer ambição (expressa no ato simbólico de desistir da função militar – "abatam-me ao efetivo"). O sujeito lírico acredita que o país, como a chuva, "noutra água há de nascer". Esta convicção de que Portugal nunca vai morrer, inclusive deixada sem leme e sem governo, é para ele uma pretexto que o dispensa de preocupar-se pelo seu destino. Por isso, deixa o destino correr sem o seu controlo, cómodo no seu sonho. Chega a perguntar: "para quê ter de partir logo", para quê fazer um esforço, se o ópio lhe permite permanecer na inconsciência e lhe traz uma felicidade, mesmo que seja efémera ("encontrei toda a fortuna no lume deste morrão"). Carlos Tê apresenta nesta canção um português que não se sente responsável pelo seu país porque acredita ingenuamente na sua imortalidade. Para ele, o império, uma vez dado, é dado para sempre. Dessa maneira pode justificar a sua atitude passiva. Achamos que a intenção do autor é criticar essa atitude, que levou Portugal à decadência, uma atitude autodestrutiva tanto no passado, como hoje. A crença nos mitos é perigosa porque impede o contato com a realidade. Sonhando, vive-se só aparentemente e não verdadeiramente. O fumador do ópio, tal como o português viciado em mitos, pode mitigar as suas feridas e a sua dor, mas em consequência fica embalsamado, quer dizer, morto. Pode ter a ilusão de viver, mas não vive. Quando o sujeito lírico afirma na última linha da canção: "numa névoa me tornei" pensamos de novo em D. Sebastião, o desastre de Alcáçer-Quibir e o desaparecimento de Portugal, as consequências negativas do sonho da grandeza universal e da expansão marítima. 17.

Memorial Se não conhecêssemos o texto, encontrando uma canção intitulada Memorial

num disco oficial dedicado aos Descobrimentos, esperaríamos uma louvação dos grandes heróis do século XV e XVI e uma descrição dos seus feitos gloriosos. Mas lendo o texto, podemos ver facilmente que desta vez Carlos Tê também não mostra a 29

Uma ideia parecida serviu de base para o livro de José Saramago Jangada de Pedra, que conta a história fictícia da separação geográfica da Península Ibérica do resto do continente europeu e a sua navegação à deriva em busca da sua identidade. 60

glória dos portugueses; continua a apresentar os Descobrimentos de uma maneira amarga e irónica. Sendo a penúltima das dezoito, esta canção constitui uma espécie de resumo que recolhe algumas ideias que apareceram nas canções anteriores. Além disso, parece ser de importância especial porque nela encontramos a expressão "auto da pimenta", que deu nome ao álbum inteiro. Nesta canção o autor faz perguntas sobre o sentido dos Descobrimentos e o preço que os portugueses tiveram de pagar pela realização do seu sonho de grandeza universal. A mensagem que esta canção transmite literalmente é: valeu a pena morrer pela pimenta. Nós achamos que, na realidade, o autor quis transmitir o contrário. Era realmente a pimenta tão importante? Talvez sim, se a considerássemos como um símbolo de riqueza. Mas como vamos verificar no texto, aqui fala-se da pimenta no sentido de uma simples planta. Outras expressões irónicas que aparecem no texto parecem confirmar a nossa hipótese. Na nossa opinião, o autor elabora um jogo de contrastes que revela a sua intenção irónica. Por tanto, o objetivo desta canção é censurar e não elogiar os Descobrimentos. Como acontece em quase todas as canções do álbum, o sujeito lírico fala em primeira pessoa. Outra vez é um marinheiro anónimo, um representante emblemático da época dos Descobrimentos. Decidiu embarcar numa nau e perdeu a vida durante a viagem ("morri em serviço"). Como já aconteceu nas canções anteriores, o sujeito lírico descreve a viagem pelo mar como uma experiência desagradável e extremamente difícil, durante a qual a situação tipicamente mudava de mal para pior ("No começo só batalhas e ofensas me faziam passar mal/ mas depois com as cargas e doenças fui perdendo o moral"). Depois refere-se à ingenuidade e à falta de conhecimento dos mares que levou os marinheiros portugueses à situação em que a viagem ultrapassou as suas espectativas. Chama a nossa atenção a expressão irónica: "não sabia que um império era trabalho tão arriscado". É uma frase crucial em que o autor, colocando um artigo indefinido antes da palavra "império", e falando do império como se fosse um trabalho, ridiculariza a ideologia imperial portuguesa. Na opinião do sujeito lírico, os portugueses não estavam preparados para os Descobrimentos e viviam um "destino desmesurado", quer dizer, eram demasiado fracos para conseguir manter os territórios que tinham colonizado. Por um lado, podemos interpretar este texto como uma história pessoal, mas, por outro lado, a experiência do marinheiro coincide com a experiência histórica do país. Segundo Eduardo Lourenço, Portugal é uma "nação-navio" ou um "navio-nação" dentro do qual os portugueses já nascem embarcados. O filósofo comenta que: "nenhuma barca europeia é mais carregada de passado do que a nossa. Talvez por ter sido a primeira a 61

largar do cais europeu e a última a regressar" (LOURENÇO 1997 : 18) É um pais de marinheiros e portanto a história das navegações constitui a história do país. O sujeito lírico fala em nome da nação, cujo destino esteve sempre ligado ao mar. A partir dessa perspetiva, podemos interpretar os primeiros versos da canção como referentes sobretudo ao destino comum. É Portugal que ligou o seu nome à pimenta porque descobriu a rota marítima para a Índia e monopolizou o mercado das especiarias. Mas é também o país que "morreu" como consequência dos Descobrimentos porque não era capaz de suster a carga do império. A nosso ver, este texto (assim como todo o conjunto das dezoito canções) constitui uma tentativa de ajustar contas com o passado. Não merecem crédito os versos "não me queixo nem de nada me arrependo" ou "valeu a pena", que tratam de justificar a história e idealizá-la. Na realidade, todos os versos restantes constituem, nem mais nem menos que uma queixa e um arrependimento. Encontramos a confirmação categórica da nossa hipótese nos versos, repetidos duas vezes: "nem dois quintais do vosso melhor mel/ me aplacam na língua este travo tão salgado". O português é um homem cansado e abatido. Sabe que os custos da expansão foram maiores do que os benefícios. O "auto da pimenta", que simboliza a história inteira dos Descobrimentos, está assinado "a tinta de sangue". Podemos também relacionar estas palavras com o sangue derramado na Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974), o fim trágico de toda a longa era inciada com a expansão. O destino dos portugueses (tanto os descobridores, como os soldados enviados para as colónias pelo regime) foi realmente miserável ("tantos de nós fomos pasto dos cardumes"). A missão tanto dos navegantes, como dos soldados estava condenada ao insucesso. O sujeito lírico tem plena consciência da insignificância atual de Portugal, da expansão marítima e até da literatura das viagens. ("sei que é só letra e só papel/ água com sal morrendo no passado"). Encontramos um tom muito irónico quando o autor reduz o significado e a glória dos Descobrimentos aos simples pratos culinários ("pela pimenta no anho", "pela galinha em caril"). Não se pode negar a grande contribuição dos portugueses para a arte culinária, mas o autor hiperbolicamente insiste em que a cozinha é o único domínio que saiu enriquecido dos Descobrimentos. A "jarra da China" poderia constituir um símbolo das riquezas, se não fosse só "uma jarra"; o autor exageradamente reduz os bens obtidos das viagens a um objeto sem grande valor. Similarmente, podemos constatar o "côr de pau-brasil" não basta para servir de recompensa pelo sofrimento, pelo sangue derramado e pela morte de cada um dos marinheiros e de toda a nação. A parte final da canção em que aparecem os nomes dos mais famosos 62

navegantes portugueses, parece uma listagem de mortos que apresenta os navegantes como as primeiras vítimas do império colonial. Podemos contrastar esta atitude do autor com a atitude que tomou Fernando Pessoa no seu livro Mensagem, onde dedica poemas inteiros a Bartolomeu Dias, a Fernão Magalhães e a Vasco da Gama. Carlos Tê, ao contrário, limita-se a enumerar uns quinze nomes um após outro, diminuindo a sua importância para diminuir a importância do grande mito dos Descobrimentos. 18.

Brizas do Restelo A última canção diferencia-se das restantes porque o autor abandona nela o

disfarce da época dos Quinhentos e introduz um sujeito lírico contemporâneo, que fala a partir da perspetiva do século XX. Depois de apresentar, nos textos anteriores, a sua visão da "epopeia marítima" portuguesa, Carlos Tê propõe um comentário sobre a situação de Portugal no momento histórico próximo ao momento do lançamento do Auto da Pimenta (o sujeito lírico apresenta-se como surfista, e não navegante). Os dois primeiros versos ("já voltei a beber rum/ já sei outra vez quem sou") fazem com que possamos identificar o sujeito lírico com um leitor potencial que acabou de ler todo o Auto da Pimenta e de conhecer a história dos Descobrimentos, tendo como resultado uma sensação de ligação com a história da pátria. Mas o sujeito lírico, a quem foi apresentado o lado escuro daquela época e os erros cometidos pelos portugueses, não se sente preocupado, talvez até não repare na crítica contida naquilo que acabou de ler. A pirataria – um dos "pecados" da época de expansão, simbolizada pela figura de Francis Drake30, atrai-o e enche-o de orgulho ("se Francis Drake é alguém/ foi em mim que se inspirou"). Considera-se como um "jovem do Restelo" que não quer preocupar-se com as advertências e críticas do prudente "Velho do Restelo" camoniano, presentes também nas mensagens das letras do Auto da Pimenta. De facto, vê-se a si próprio como antítese desta atitude crítica ("estou cheio de ser prudente/ em tragédias viciado). Não pensa em fazer um exame de consciência, prefere fugir da verdade sobre o passado e, em vez de repensar a história do seu país, dar um salto para o futuro ("estou em fuga para a frente"). Podemos, de resto, considerar esta canção como um espelho em que o leitor português se pode ver. Os textos de Carlos Tê, que não constituem uma "convocação [dos] fantasmas e a sua sublimação" (LOURENÇO 1997 : 20), mas antes uma crítica do passado, não podem ganhar a simpatia dos portugueses porque "só morto ou mitificado o passado goza da sua complacência" (Ibidem : 21). É mais fácil esconder-se detrás da

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Um pirata inglês famoso da era elisabetana. 63

época áurea que se pode glorificar facilmente do que ver as sombras da história e construir uma imagem real e desmitificada de si mesmo. Os portugueses não querem consciencializar-se, preferem mergulhar na inconsciência. Esta inconsciência é o resultado do conhecimento parcial e imperfeito do passado. Deve-se ler a história, mas não se deve lê-la levianamente e superficialmente. Estamos convencidos de que o autor revelou uma forte intenção parodística na construção do sujeito lírico, cuja autocaracterística é bastante negativa. A sua ousadia está relacionada com a imaturidade e a ridiculez quando o "poeta espadachim" exclama: "tenham cuidado". O "jovem do Restelo" é arrogante e jactancioso ("sou galante e bem formado/ estou apaixonado por mim"). Nas canções anteriores o autor criticava as antigas posturas dos portugueses, nesta critica a sua postura de hoje e as suas implicações para o porvir. Faz uma diagnose do estado do espírito nacional e acusa os portugueses de padecer de megalomania, presente nas palavras: "o mundo é tão pequeno para conter a minha alma". Na realidade os portugueses, depois da queda do império, voltaram à sua "pequena praia lusitana" e têm de dar-se conta disso. Parece que o sujeito lírico da canção rejeita essa realidade e continua a considerar-se a si próprio como o dono do mundo. Compensa o défice de identidade no plano imaginário. Não sem propósito, Carlos Tê escolheu como epígrafe para esta canção um fragmento de uma das escritas de Frei Inácio de Santa Teresa, Arcebispo de Goa entre 1721 e 1740, "convencido de que a monarquia universal portuguesa estava para breve". Este pequeno texto é um exemplo emblemático da teoria messiânica do Quinto Império. Convocando os fantasmas do sebastianismo, Carlos Tê transmite a idea de que os portugueses, até quase vinte anos após a queda do Império, não pensam em abandonar o seu sonho de ser uma potência mundial. Não se sentem bem, encerrados "cá dentro", na margem da Europa, sem o Brasil, sem a Índia, sem a África, e têm saudades de aventuras marítimas ("Brizas do Restelo […] levem-me à aventura/ quebrem esta calma", "Quero voltar a sair e dançar de novo em Babel"). Brizas do Restelo constitui uma crítica desse tipo de pensamento e tem como objetivo mostrar aos portugueses a sua exata medida. A partir desta perspetiva, podemos interpretar a "prancha de surf" que aparece na segunda estrofe como uma antítese para as naus que partiam da praia do Restelo na época das Grandes Navegações. O contraste obtido desta maneira, serve ao autor para sublinhar a diferença radical entre o passado e o presente de Portugal. Há quinhentos anos, os navios portugueses atravessavam os mares, hoje os surfistas vangloriam-se de "bolinar a mais de cem". Os senhores de mares e oceanos de outrora, agora são senhores dos trinta quilómetros da costa ("dou 64

um banho a qualquer um/ desde o Guincho até Belém"). O sujeito lírico, que é identificável com uma representação alegórica do espírito nacional português, tem problemas com a própria identidade ("se me perguntam a idade faço charme de salão") e não conhece a sua exata medida ("tenho oitocentos anos mas ninguém me dá mais de vinte"). Lembremos a frase de José Cardoso Pires sobre o típico Português, citada na introdução da presente tese: "Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos" (PIRES 1997 : 19). Por isso, podemos constatar que o sujeito lírico desta canção é um tipo de português que, tal como o caracterizou Eduardo Lourenço, tem uma "hiperidentidade" e vive com um "excesso de passado". Segundo o filosófo, esse excesso do tempo paralisa os portugueses e rouba-lhes o futuro (LOURENÇO 1997 : 26). O sujeito lírico da canção afirma que tem oitocentos anos, "linhagem e requinte", mas, ao mesmo tempo, é um "dandy sem cura" irresponsável, que se vangloria do seu passado mas não o conhece e não o entende. Não aprendeu nada durante esse tempo todo. Por um lado, considera que o seu "bilhete de identidade" lhe assegura posição privilegiada no mundo mas, por outro lado, quer brilhar nos salões da Europa e esconder a sua linhagem ("faço charme do salão/ o cartão de identidade não reflete o coração"). A jovem democracia portuguesa (no momento do lançamento do disco contava apenas dezasseis anos de existência), é caracterizada como imatura, instável e incerta, que vacila entre a megalomania e a a europeização rápida. Carlos Tê propõe uma visão pessimista do Portugal do final do século XX, um país em que os mitos da glória passada se entrelaçam com o desejo de um futuro fácil. A história de Portugal não foi fácil e deve ser vista na sua complexidade, enquanto o futuro tem de ser inventado a partir de uma reflexão e um conhecimento de si próprio. O sujeito lírico não atua de acordo com essas ideias, mas talvez os leitores portugueses do Auto da Pimenta entendam o seu erro.

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CONCLUSÕES FINAIS O objetivo principal da nossa tese foi realizado na parte prática que consistia na análise e interpretação de todo o conjunto das canções. A perspetiva metodológica póscolonial possibilitou-nos uma interpretação original e inovadora, dado que as nossas observações divergem do discurso oficial. Na nossa opinião as letras analisadas colocam-se em oposição ao pensamento colonial característico para o regime ditatorial salazarista e constituem um reflexo da mudança de paradigmas que se realizou depois da Revolução dos Cravos. Em todos os textos está presente a atitude crítica frente aos Descobrimentos. Algumas das canções constituem uma sátira feroz aos erros e defeitos dos marinheiros e colonizadores portugueses; outras podem ser interpretadas como uma reflexão amarga e irónica sobre a condição do espírito do povo português. O álbum, apesar de pertencer ao genéro rock e ser recomendado pelo Estado, não propõe uma leitura simplificadora ou idealizadora da história, mas resultou ser uma visão complexa e crítica da época dos Descobrimentos. Queriamos neste ponto indicar a originalidade e a complexidade das letras escritas por Carlos Tê. O autor inspira-se em muitas obras literárias que mostraram o outro lado da história dos Descobrimentos. Nas canções Lançado e Faena de mar está bem patente a influência de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, dado que Carlos Tê atribui ao narrador muitas das características do pícaro. Na canção Trovas vicentinas desenvolve o tema que Gil Vicente introduziu na sua obra Auto da Índia – o tema do adultério como uma das consequências nefastas da empresa ultramarina. País do gelo é uma versão muito original dos relatos de naufrágios conhecidos da História TrágicoMarítima. O autor revela um conhecimento assombroso da história e da cultura portuguesas e um verdadeiro engenho satírico. Carlos Tê segue os passos dos antigos críticos do império, mantendo a tradição do pensamento heterodoxo. O regime de António de Oliveira Salazar edificou o Padrão do Descobrimentos onde se podem ver os "heróis de pedra", que olham com calma para o horizonte e não temem nada, homens providenciais que tudo podem resolver. Carlos Tê, ao contrário, apresenta-nos uma versão "não canónica" e "não ortodoxa" daquela época. Conta a história do Descobrimentos a partir da perspetiva dos participantes das viagens que não são nada heroicos. Aqui não fala nem o Rei, nem o Infante, mas o homem vulgar. Carlos Tê, construindo os sujeitos líricos que falam na primeira pessoa, esconde-se atrás da

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máscara dos seus personagens. Não é uma crítica direta, mas antes uma crítica implícita, realizada pelos próprios persongens. O discurso direto enfortece a mensagem dos textos que tratam de desmitificar a história e estigmatizar os defeitos dos navegadores portugueses. Carlos Tê, o homem que junto a Rui Veloso revolucionou a música portuguesa, introduzindo a música rock em Portugal, no Auto da Pimenta fez uma tentativa de revolucionar o olhar dos portugueses sobre os Descobrimentos. Conta-se que muitos dos intelectuais achavam que se deveria editar um disco de fado para a edição comemorativa do quingentésimo aniversário dos Descobrimentos Portugueses e que existiu na época uma enorme polémica acerca da escolha de Carlos Tê e Rui Veloso como autores das canções. Depois de realizar a análise dos textos, podemos constatar que as autoridades mostraram uma grande coragem ao escolher os autores do Auto da Pimenta para a celebração dos Descobrimentos. A decisão foi muito boa dado que, em consequência, nasceu uma obra admiravelmente original e interessante. Carlos Tê, nas suas letras de canções dedicadas aos Descobrimentos, na realidade, fala sobre o passado e o presente simultanêamente. Conta a história remota mas também está debaixo da influência dos acontecimentos recentes. Apresenta a sua visão da colonização portuguesa do século XVI e ao mesmo tempo dos efeitos da descolonização que se realizou depois de 25 de Abril de 1974. Dialoga e polemiza com o passado glorioso e com a experiência difícil dos acontecimentos modernos. No fundo, Auto da Pimenta constitui uma reação à propaganda salazarista, que consistia na exaltação dos heróis nacionais, e no engrandecimento do papel do missionário de Portugal no mundo. O autor leva o passado aos tribunais, questionando a história oficial, e desestabiliza a identidade, mostrando aos portugueses que pela sua grandeza de outrora tiverem de pagar um preço enorme e que já não são grandes nem têm a possibilidade de voltar a ser. A nossa tentativa de aplicar as teorias de Eduardo Lourenço sobre a identidade portuguesa para analisar as canções Á sombra da tamareira, Logo que passe a monção e Brizas do Restelo revelou várias semelhanças nas considerações de Carlos Tê e Lourenço. O autor das letras, inspirado na obra do filósofo, também deu conta do "excesso do passado" e da "hiperidentidade" do povo português. A conclusão que resulta da nossa tese é o facto de que, depois da grande mudança de paradigmas que se realizou depois da queda do império de quinhentos anos, os portugueses já não são capazes de olhar para a sua história sem ver os erros, mas não 68

param de voltar a pensar sobre o seu passado com o fim de reinterpretá-lo. Têm de encontrar a sua identidade no espaço entre o grande mito e a negação e crítica completa dela. O disco Auto da Pimenta, desmitificando a época dos Descobrimentos, oferecenos um contributo importante para a discussão sobre a identidade portuguesa do fim do século XX.

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STRESZCZENIE (RESUMO DA TESE) Celem niniejszej pracy jest analiza krytyczna i interpretacja tekstów piosenek z płyty Auto da Pimenta (1991) Rui Veloso, napisanych przez Carlosa Alberto Gomes Monteiro (Carlosa Tê). Auto da Pimenta to płyta w całości poświęcona epoce Wielkich Odkryć Geograficznych, niezwykle ważnej dla kształtowania tożsamości narodowej przez Portugalczyków. Wskutek Odkryć powstało Portugalskie Imperium Kolonialne, którego istnienie zakończyło się dopiero w latach siedemdziesiątych dwudziestego wieku (po Rewolucji Goździków, w kwietniu 1974 roku). Autorytarny reżim Estado Novo (Nowego Państwa), który trwał w Portugalii w latach 1933-1974, wykorzystywał historię Odkryć do celów propagandowych, chcąc usprawiedliwić swoją politykę utrzymania kolonii zamorskich. Po upadku Imperium Kolonialnego, które przez blisko pięć

stuleci

stanowiło

podstawę

do

kształtowania

tożsamości

narodowej

Portugalczyków, narodziła się, przynajmniej w części społeczeństwa, potrzeba rozliczenia z historią własnego kraju i z mitem Wielkich Odkryć Geograficznych. Zaczęto otwarcie krytykować błędy popełnione przez Portugalczyków w czasie ekspansji i pokazywać „drugą stronę” wydarzeń, do tej pory ukazywanych jako heroiczne i bez skazy. Zdaniem autora pracy, teksty zamieszczone na płycie Auto da Pimenta, mimo iż jest to płyta wydana pod patronatem Państwa przez wykonawcę popularnej muzyki rockowej, są krytyczne wobec epoki Wielkich Odkryć Geograficznych, którą opisują. Teksty, czytane w świetle badań postkolonialnych, ujawniły wiele ukrytych znaczeń. Autor tekstów, Carlos Tê, nie wychwala dzielności marynarzy, ani nie ukazuje Odkryć w sposób powierzchowny jako wielkiej przygody. Przeciwnie, stara się ukazać „ciemne strony” tamtych czasów: nieprzygotowanie marynarzy i wielkie ryzyko, jakie ponosili wskutek swojej niewiedzy, trudy podróży, katastrofy i zatonięcia statków, cierpienia kobiet i rozmaite „grzechy” popełnione przez Portugalczyków, takie jak rozpusta mężczyzn i niewierność kobiet. W niektórych piosenkach Carlos Tê ośmiesza Wielkie Odkrycia, ukazując marynarzy jako kryminalistów, ludzi z marginesu, zdolnych do wszystkiego, co najgorsze i kierowanych przez najniższe instynkty. Zauważywszy podobieństwo między tymi piosenkami a niektórymi interpretacjami książki Peregrinação (1614) autorstwa Fernão Mendes Pinto, w celu interpretacji tych tekstów autor pracy odwołał się do konceptu satyry oraz do postaci „pícaro". 74

W niektórych tekstach Carlos Tê czyni wyraźne aluzje do aktualnej sytuacji społecznej w Portugalii oraz kondycji Portugalczyków jako narodu, który przez lata karmił się mitem swojej wielkości. Bohaterowie piosenek z albumu Auto da Pimenta, którym autor pozwala wyrażać swoje uczucia w pierwszej osobie, są niejako wyrazicielami stanu ducha całego narodu. Autor przedstawia gorzką i pesymistyczną wizję dekadencji duchowej Portugalczyków, ale zarazem zachęca ich poprzez konstruktywną krytykę do walki z mitami i do poszukiwania prawdziwej tożsamości. W rozważaniach o tożsamości przy okazji interpretacji piosenek, autor pracy odwołuje się do refleksji jednego z najbardziej znanych myślicieli i filozofów portugalskich – Eduardo Lourenço, który w swoich pismach nierzadko dokonywał „psychoanalizy mitycznej” swoich rodaków. W pierwszym rozdziale części teoretycznej znajduje się rys historyczny, dotyczący Ekspansji Zamorskiej oraz przedstawienie echa wydarzeń historycznych w myśleniu ludzi epoki. Euforia i entuzjazm, składające się na oficjalną interpretację Odkryć przez Portugalię, znalazły swój wyraz w poemacie epickim Luísa Vaz de Camõesa. Kolejna część dysertacji przedstawia krytyczne spojrzenie na Odkrycia Geograficzne, które było obecne w literaturze portugalskiej już od XVI wieku i do którego autor tekstów z Auto da Pimenta odwołuje się budując swoją wizję obnażającą „ciemne strony” tamtej epoki. Szczególny nacisk położono na Peregrinação Fernão Mendesa Pinto, interpretując ją jako satyrę społeczną. W kolejnym rozdziale przedstawiony został kontekst historyczny i kulturowy Estado Novo, którego upadek doprowadził do reakcji w postaci wzmożonej krytyki Odkryć Geograficznych. Następnie zaprezentowane zostały poglądy Eduardo Lourenço dotyczące tożsamości narodowej Portugalczyków i ich stosunku do dziedzictwa historycznego. Głównym cel pracy został zrealizowany w części praktycznej, która stanowi wyczerpującą analizę i interpretację wszystkich osiemnastu piosenek znajdujących się na płycie. Autor pracy starał się udowodnić, że wszystkie teksty noszą ślady krytycznego spojrzenia wobec Wielkich Odkryć Geograficznych, część z nich jest jednoznaczną i bezwzględną satyrą na błędy i niedociągnięcia marynarzy i kolonizatorów, inne natomiast, gorzką refleksją na temat stanu ducha portugalskiego społeczeństwa. Płyta, która z racji na swoją przynależność do gatunku muzyki popularnej i na fakt, iż była wydana pod patronatem Państwa, mogła przedstawiać uproszczoną bądź wyidealizowaną wersję historii okazała się być skomplikowaną i krytyczną wizją Wielkich Odkryć Geograficznych. 75

ANEXO (as letras das canções de Auto da Pimenta) ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- --

"Depois, D. Pedro visitou o Arsenal, todas as suas oficinas e a fábrica dos galés, com toda a sua aparelhagem. Observou mais de sessenta galés no estaleiro (…) Mais tarde, acompanhado pelo Doge, atravessou a Mercearia, observando as lojas de todos os artigos, as ruas cheias de especiarias, açúcar, veludos, panos de ouro e seda, e fazenda (…)" PASSAGEM DE D. PEDRO I POR VENEZA, IN NAVEGADORES, VIAJANTES E AVENTUREIROS PORTUGUESES, SÉC. XV E XVI, LUÍS DE ALBUQUERQUE, ED CAMINHO

Sete Partidas (Cantiga de Amigo) Ouço uma voz que me canta velhas canções esquecidas e embala o meu sonho num cais de sete partidas como água morrente no longe vai e vem o madrigal Provença que soas ainda nas noites de Portugal. Viajantes de Alexandria mostram laca e seda fina ouro pimenta e marfim porcelana e musselina falam do Preste João dizem do seu paradeiro aos altos da Etiópia vou mandar um mensageiro. Acordo todas as manhãs com ecos desta canção sete partidas cinco chagas vãs água morrente e Sião cantiga de amigo Provença no coração embala o meu sonho e leva-me ao Preste João. Canção que trazes aromas de aloés e benjoim aponta na minha carta onde se cheiram coisas assim para lá da Núbia doirada para lá dos Dardanelos na Pérsia na India encantada até aos rios amarelos. Vejo passar caravanas na língua dos mercadores e as cidades italianas brilham em seus esplendores tenha eu a certeza do que canta essa voz e um dia Génova e Veneza hão de ouvir falar de nós. Acordo todas as manhãs com ecos desta canção sete partidas cinco chagas vãs água morrente e Sião cantiga de amigo Provença no coração embala o meu sonho e leva-me ao Preste João. -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ----------"Em certo tempo, O Infante D. Henrique, desejando descobrir lugares desconhecidos no Oceano Ocidental, com o intuito de averiguar se existiam ilhas ou terra firme, além das descritas por Ptolomeu, mandou caravelas a procurar essas terras (…) Viram terra a ocidente trezentas léguas além do Cabo Finisterra e vendo que eram ilhas entraram na primeira, acharam-na desabitada e, percorrendo-a, acharam muitos açores e aves; e foram à segunda, que ora é chamada S. Miguel (…)" MARTIM BEHAIM, SEGUNDO RELATO DE DIOGO GOMES, IN VIAGENS DOS DESCOBRIMENTOS, JOSÉ MANUEL GARCIA, ED. PRESENÇA

S. Miguel A Oeste de Finisterra ficam as ilhas perdidas disse-me um Corso Galego que um dia as viu e perdeu as velhas cartografias também o dizem assim como ter fortuna de as achar no mar oceano sem fim? Vinha um dia das Canárias ao largo com vento a favor 76

seguimos o vôo das aves que tomamos por Açores até que ouvi do mastaréu a voz rouca do gajeiro Terra à vista lá ao longe no meio do nevoeiro. Ó que ilha tão formosa pisei ao sair do batel, dei-lhe então nome de santo em dia de S. Miguel. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"Este Cabo chama-se Cabo Verde porque os primeiros que o acharam (…) o acharam inteiramente verde pelas grandes árvores que continuamente estão verdes todo o tempo do ano (…) Faço notar que, além do dito Cabo Verde, entra pela terra dentro um golfo; e a costa toda ela é terra baixa, abundante de enormes e formosas árvores (…) e chegam estas árvores à praia a um tiro de besta, que parece que bebem do mar, o que é formosa coisa de se vêr (…) As mulheres deste país são muito prazenteiras e alegres, e cantam e bailam de bom grado, especialmente as novas; mas não bailam a não ser à noite, à luz da lua (…)" LUÍS DE CADAMOSTO, IN VIAGENS DOS DESCOBRIMENTOS, JOSÉ MANUEL GARCIA, ED. PRESENÇA

Cabo Sim Cabo Não Para lá do Cabo Não limite da Criação fica o mar das Trevas onde não foi mouro nem Cristão, vou rumar ao turbilhão de brumas e macareús passá-lo é minha missão já me encomendei aos Céus. Para lá do Cabo Não vou e voltarei ou não. A sul passei muitas léguas com o deserto a par anotei ventos e águas na carta de marear até que surgiu outro cabo bramindo como um trovão de treva cem vezes pior que a treva do Cabo Não. Para lá do Bojador vou e voltarei ou não. Era um mar caldo de enxofre que rugia furibundo tragando barcas e homens até ao limbo do mundo, estava guardado para mim ir buscar toda a coragem conter a bordo o motim e pôr de pé a marinhagem. Para lá do Bojador vou e voltarei ou não. Passei a ponta medonha e o mar era só água e sal mas na costa mais areia e de vivalma nem sinal, cabotamos mais abaixo ao correr da areia e do tempo rumo à estrela do sul para lá do Cabo Branco. Para lá do Cabo Branco vou e voltarei ou não. Um dia já tão cansado de cabo não cabo sim vi um belo cabo verde que ao deserto punha fim, com gente da côr mais negra sem temor nenhum a Deus e vi rios de água doce e o verde ia até aos céus. Para lá do Cabo Verde vou e voltarei ou não. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------"(…) Designavam-se por Lançados os homens que, por determinação superior, ou de livre vontade, desembarcavam isoladamente em determinados lugares da costa e se internavam no Continente, com a missão de obter informações diretas sobre os usos (…) Muitos Lançados foram homens a quem tinham sido impostas penas severas por crimes cometidos (...)" IN NAVEGADORES, VIAJANTES E AVENTUREIROS PORTUGUESES, SÉC. XV E XVI, LUÍS DE ALBUQUERQUE, ED CAMINHO

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Lançado Cometi crime de amor à morte fui condenado mas antes do cadafalso a um capitão fui chamado que partia para a Guiné e me prometeu perdão se fosse numa galé e aceitasse a missão de à sorte ser lançado na má terra do gentio sozinho e abandonado durante meses a fio. Entre o inferno e o algoz dançava meu triste fado medi os contras e os prós e escolhi ser lançado, e assim foi embarcado até às costas da Guiné e em terra foi deixado com biscoito medo e fé, com ordem de haver língua com todas as criaturas saber das fontes do ouro e conhecer essas culturas. Fui lançado às feras o mato foi a minha casa não havia primavera nem outono e era sempre um estio em braza. Venci as febres do mato e o veneno das cobras cativo levei mau trato paguei pelas minhas obras, das gentes tornei-me amigo com artes que já nem sei e ao fim de muitos meses era visita dum rei, fiz-me amante de gentia com ela juntei fazenda a vida até já sorria feliz era a minha emenda, O batel chegou um dia para saber se eu era vivo e nas areias da baía foi um encontro festivo, regressei a Portugal com ideia de ficar e ao Infante contei tudo do que pudera indagar, e tal foi o meu sucesso que El-Rei me deu perdão mas mandou-me de regresso e eu não pude dizer não. Fui lançado às feras o mato foi a minha casa não havia primavera nem outono e era sempre um estio em braza. Mandou-me o senhor Infante em companhia de abade que batizou toda a gente e aumentou a cristandade, "que boa colheita de almas!" disse de contente o Papa ao vêr as chagas de Cristo a tomar conta do mapa e em paga dos meus serviços ali fui feito feitor, e eis tudo o que passei só por um crime de amor. Fui lançado às feras o mato foi a minha casa não havia primavera nem outono e era sempre um estio em braza. -------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ----------------"(…) Primeiramente tomarás a altura do sol por astrolábio ou quadrante ao meio-dia, quando o sol estiver mais emoinado. E quando tomares altura, olharás bem para onde vão as sombras que fazem os mastros da nau ou navio onde fores (…) convém a saber se vão para o norte, se vão para o sul (…)" REGIMENTO DO SOL, ANDRÉ PIRES, LIVRO DE MARINHARIA, MEADOS DO SÉC. XVI, ED. LUÍS ALBUQUERQUE

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Canção de Marinhar Tome-se o astrolábio meça-se a altura solar, dê-se mais grau menos grau conforme o balanço do mar. Imaginem-se latitudes invisiveis meridianos, que a lenta ciência se apure no astros e nos oceanos. Rume-se ao sul sidério e às Indias orientais, complete-se o planisfério com todos os novos locais. Proceda-se sempre de acordo como manda o regimento, fazendo um diário de bordo por causa do esquecimento. Já conheço o sete-estrêlo que me guia e orienta, hei de ver esses bazares de canela e de pimenta. Anote-se boca de rio cabo maré e monção, costume de gente e feitio tudo fique em relação. E mais o que o medo inventar que o senso há de aclarar, assim se descreva e reúna em livro de marinhar. Ao mundo ache-se o centro tire-se até bissetriz, navegue-se por fora e por dentro como se fosse um país. Alterem-se as dimensões nas cartas e nos roteiros. até que ele caiba nas canções dos cafés de marinheiros. Já não oiço as sereias já sei traçar o azimute, faltam poucas luas cheias para chegar a Calecute. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------"(…) Porque é certo que esta gente é boa e de simplicidade pura e que pode facilmente gravar-se neles qualquer crença que se lhes deseje dar. E, demais, nosso senhor deu-lhes belos corpos e boas caras como a homens bons, e se ele nos trouxe aqui, creio, não foi sempropósito (…)" PERO VAZ DE CAMINHA, CARTA DA DESCOBERTA DO BRASIL

Cruzeiro do Sul Sou um pobre timoneiro na noite imensa do mar, a sul da minha solidão o cruzeiro luz no céu para me guiar, lanterna de navegar alivia-me a pressão que o leme está a queimar, estamos longe do destino e eu não sei onde é que isto vai parar. Cruzeiro do sul. Lua não troces de mim tão longe de casa eu sei, o medo dança com as sombras e eu vejo o que imaginei, estou sózinho junto ao leme não é tempo de poetas, já tombaram mais de dez

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e nós ainda aqui às voltas procurando coisas que Deus não fez. Cruzeiro do sul. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"Esses campónios não sabiam distinguir bombordo de estibordo ao largarem do Tejo, e só conseguiram quando foi atada uma réstea de cebolas num dos lados do navio e uma réstea de alhos no outro. Agora – disse João Homem ao piloto –, diz-lhes que virem o leme na direção das cebolas ou na dos alhos e eles depressa comprenderão (…)" ANEDOTA CONTADA PELO CRONISTA FERNÃO LOPES DE CASTANHEDA

Faena de Mar Fiz-me à estrada de Lisboa sem um chavo na algibeira queria aprender um ofício e fazer uma carreira vindo do Ribatejo lá onde o touro se pega picado pela fome e a fugir da peste negra. Ao fim de três semanas vivia de caridade com a turba de mendigos que pedia pela cidade ouvi ler um edital na Rua dos Tintureiros a pedir gente de brega soldados e marinheiros. Pelo soldo pela comida sem medo de ir à aventura era mesmo essa a vida de que eu vinha à procura ao passar no cais de Alfama vi grandes preparativos dei o nome ao escrivão e juntei-me aos efetivos. Aguenta toureiro ensaia a tua faena o touro é sendeiro e escorrega muito a arena, toureia o destino improvisa a tua finta é sobre o joelho que melhor se tira a pinta. Veio o dia da largada ondulavam os pendões faltava gente à armada tiveram de ir às prisões arrebanhar voluntários entre a nata da escumalha rufiões e salafrários grandes barões da navalha. Havia choro no cais e despedidas sem fim e eu triste e feliz por ninguém chorar por mim, pouco antes de zarpar foi tudo benzido a bordo dizem que azul é o mar mas quem me diz onde é bombordo. Aprendi depressa as lides como deve um bom peão conhecer a manha ao bicho é ter meia salvação, já navega a nossa armada tão vistosa e colorida com tão nobre guarnição ninguém a leva de vencida. Aguenta marujo faz das tripas coração a Pátria é pequena mas o improviso não, aprende-se mais com Portugueses num dia do que se aprende com Romanos em cem anos. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"(…) E então, para designar o que nós já conheciamos por "mal das calmarias", trouxeram-nos o termo calentura, que significa apenas febre (…) IN LIVRO DAS ARMADAS

Calmaria Foi medonha a tempestade que a agulha quase enloquecia

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era tal o negrume do céu que não havia noite nem dia. Já eu pensava na morte fez-se súbita acalmia que nos deixou à sorte sem vento na maresia. Relembrei velhos pilotos relatos destas andanças piores que certos maremotos às vezes só certas bonanças. Reparamos os danos nas velas que o vento havia de chegar mas foram passando os dias e nós sem nada mais a inventar Era medonha a calmaria. Segui vôo de albatroz fisguei peixe-voador, cantei para ouvir a minha voz recapitulei cada amor li a noite constelada na folha do firmamento vi a várzea azul semeada de águas sem movimento. A mando do capitão fizemos procissão missa e novena cantada pescamos um tubarão e depois de o cegar no convés com ele fizemos tourada mas do vento de feição é que ninguém sabia de nada. E era medonha a calmaria. Quase a dez dias de pasmo no alto mar sem aragem com o sol tisnando a prumo pus fim à minha viagem tão farto de calmaria pus o pé na amurada e ali me fui na lezíria que o mar se fez margem lavrada. Calentura, calentura, calentura. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"(…) A branca areia as lágrimas banhavam Que em multidão com elas se igualavam (…) E nós, com a virtuosa companhia De mil religiosos diligentes, Em procissão solene, a Deus orando, Para os batéis viemos caminhando (…)" LUÍS DE CAMÕES, LUSÍADAS, CANTO IV

Praia das lágrimas Ó mar salgado eu sou só mais uma das que aqui choram e te salgam a espuma

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Ó mar das Trevas que somes galés meu pranto intenso engrossa as marés. Ó mar da India lá nos teus confins de chorar tanto tenho dores de rins. Choro nesta areia salina será choro toda a noite seco de manhã. Ai ó mar Roxo ó mar abafadiço poupa o meu homem não lhe dês sumiço. Que sol é o teu nesses céus vermelhos que eles partem novos e retornam velhos. Ó mar da calma ninho do tufão que é do meu amor seis anos já lá vão. Não sei o que os chama aos teus nevoeiros será fortuna ou bichos-carpinteiros. Ó mar da China Samatra e Ceilão não sei que faça sou viúva ou não. Não sei se case notícias não há será que é morto ou se amigou por lá. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"(…) E porque faltavam servidores por serem mortos alguns e outro estarem doentes, acudiram as mulheres da fortaleza, assim casadas como viúvas a acarretar materiais (…) e a que ordenou isto foi uma Isabel Madeira (…) e uma filha: esta foi eleita por capitoa de todas, formando-se um muito grande esquadrão delas (…) e Isabel Fernandes, que depois se chamou a velha de Diu, digna do sobre nome que lhe deram, pelas cousas que neste cerco fez (…)" DIOGO DO COUTO, CERCO DE DIU, DÉCADA VI

Mulher d'Armas O meu amor quando se foi pela barra desse rio disse que vinha, mas não veio mais trocou-me por um navio. Ao meu amor não lhe perdoo, com ele não me ter levado, sou mulher de armas, queria ver mundo conquistá-lo ao seu lado. Aqui estou eu viúva e orfã, meu destino é carpir o dele é nobre, navega e descobre, e eu nada tenho a descobrir. O meu amor onde está ele, trocou-me por uma quimera é um mundo de homens a fazer a guerra, e de mulheres sempre à espera. Ao meu amor mando lembranças, quando sozinha me deito queria amar outro, mas partiram todos não ficou nenhum de jeito. 82

Aqui estou eu viúva e orfã, meu destino é carpir o dele é nobre, navega e descobre, e eu nada tenho a descobrir. Meu coração como estás tu, trocado por um convés vê minhas armas, já se calaram e tu perdeste outra vez. Quando me lembro como tu eras, mais largo do que esse mar o amor que tinhas, dei-o à toa a quem o queria agarrar. Aqui estou eu viúva e orfã, meu destino é carpir o dele é nobre, navega e descobre, e eu nada tenho a descobrir. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"Onde não há marido cuidai que tudo é tristura, não há prazer nem folgura; Sabei que é viver perdido, Alembrava-vos eu lá? (…) Lá há Indias mui fermosas lá farieis vós das vossas e a triste de mi cá encerrada nesta casa sem consentir que vezinha entrasse por uma braza por honestidade minha (…) Porém, vindes vós muito rico? (…)" AUTO DA ÍNDIA, GIL VICENTE

Trovas Vicentinas Vós que vos ides por ganância debaixo da capa do cruzado, buscando no incerto e na distância a mina delirante do El Dorado. Vós que deixais só na rectaguarda um farto gineceu desamparado, não sentis testa que vos arda durante o sono repousante do soldado. Ouvi este ledo trovador por feitos de além-mar pouco tentado, não se deixa uma esposa sem amor com o trevo da moçidade eriçado. É vê-las no poleiro das janelas gastando seus furores em vãs intrigas, é vê-las nas ribeiras com as barrelas contando o que só Deus sabe às amigas. Quanta malícia mal ardida tangem seus olhares pelas esquinas, 83

soubesseis os sorrisos de fugida que delas merecem minhas rimas. E vieis que melhor que a riqueza é ter alguém à noite na cama, que o diga que a presunçosa e vã nobreza que goza especiaria ao pé da dama. Por isso se as testas vos arderem no lume verrinoso do adultério, às línguas viperinas que vierem dizei que ardem pela grandeza do império. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"(…) É surpreendente vêr a facilidade e frequência com que os portugueses embarcam para a Índia (…) Todos os anos saem de Lisboa quatro ou cinco carracas cheias deles; e muitos deles embarcam como se não partissem para mais longe do que uma légua de Lisboa, levando consigo apenas uma camisa e dois pães grandes na mão, e transportando um queijo e um frasco de compota, sem qualquer outro tipo de provisões (…)" ALEXANDRE VALIGNANO, JESUÍTA ITALIANO, SÉC. XVI

País do Gelo Lá vai a Nau Catrineta que tem tudo por contar ouvi só mais uma história que vos vai fazer pasmar, eram mil e doze a bordo nas contas do escrivão sem contar os galináceos sete patos e um cão. Era lista mui sortida de fidalgos passageiros desde mulheres de má vida a padres e mesteireiros iam todos tão airosos com seus farnéis e merendas mais parecia um piquenique do que a carreira das Indias. Ao passarem Cabo Verde o mar deu em encrespar, logo viram ao que vinham quando a nau deu em bailar, veio a cresta do Equador e o Cabo da Boa Esperança onde o velho Adamastor subiu o ritmo da dança. Foi tamanha a danação foi puxado o bailarico quem sanfonava a canção era a mão do mafarrico tinha morrido o piloto e em febre o capitão ardia encantada pela corrente para sul a nau se perdia. Subia a conta dos dias ficavam podres os dentes eram tantas as sangrias morriam da cura os doentes e o cheiro era tão mau e a fé tão vacilante, parecia que a pobre nau era o inferno de Dante. Com o leme sem governo e a derrota já perdida fizeram auto de fé com as mulheres de má vida e foram tirando à sorte que havia de morrer para que o vizinho do lado tivesse o que comer. No céu três meninas loiras cantavam um cantochão todas vestidas de tule para levar o capitão no meio do seu delírio mostrou a raça de bravo teve ainda força na língua para as mandar ao diabo. Neste martírio sem fim ficou o lenho a boiar até que um vento gelado a terra firme o fez varar que diria o escrivão se pudesse escrevinhar, eram mil e doze a bordo e doze haviam de chegar. Ao grande país de gelo com mil cristais a brilhar onde a paz era tão branca só se quiseram deitar naqueles lençois de linho a plumas acolchoados e lá dormiram para sempre como meninos cansados. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------84

"(…) Quase todas as pessoas estão convencidas de que a conversão destes bárbaros não se pode conseguir através do amor mas só depois de eles terem sido submetidos pela força das armas (…)" PADRE JESUÍTA FRANCÍSCO DE GOUVEIA, SÉC. XVI, SOBRE A CONVERSÃO DOS BANTOS EM ANGOLA, IN O IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS, C.R. BOXER, ED 70 "(…) A língua portuguesa é uma língua fácil de falar e aprender. Esta é a razão pela qual não podemos impedir os escravos trazidos para aqui de Aracão e que nunca ouviram uma palavra de português (e até os nossos próprios filhos) de preferirem essa língua e de a considerarem a sua (…)" JOAHN MAETSUYKER, SÉC. XVI, GOVERNADOR-GERAL DA BATÁVIA HOLANDESA, IN O IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS, C.R. BOXER, ED 70

Nativa Sorriste-me junto ao rio quando de febre eu morria entre delírios palustres e suores me consumia, eu ardia em fogo lento quando me deste agasalho passaste em mim um unguento muito mais fresco do que orvalho. Redimiste-me nativa das penas do meu degredo mantiveste a minha alma viva por ti voltei a ser ledo, adorei Deus em heresia dei-lhe outra face sagrada e à nossa volta no chão foi crescendo uma erva amestiçada. Deste-me conchas do mar e um sorriso na boca, e eu nada tinha para dar que se comprasse em troca. Dei-te os ferros da razão dei-te o valor do metal o castigo e o perdão e a gramática do mal, dei-te a dor no crucifixo, dei-te a cinza do prazer se não fosse eu era outro e antes eu do que um qualquer. Dei-te a minha língua-mãe nas tardes desse vagar, o meu bem mais precioso que eu tinha para te dar. E esse meu falar antigo de branco fez-se mulato, um dialeto crioulo um viço novo no mato. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"(…) Vossa Reverência dever saber que o pecado da depravação está tão espalhado nestas regiões que não é reprimido de modo nenhum (…) Há inúmeros colonos casados que têm quatro, oito ou dez escravas fêmeas e dormem com todas elas, como é do conhecimento de todos (…) Assim que têm dinheiro para comprar uma escrava utilizam-na invariavelmente como uma amiga, para além de outras desonestidades (…)"

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MISSIONÁRIO ITALIANO EM CARTA DA ÍNDIA A SANTO INÁCIO DE LOIOLA, 1550, IN O IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS, C.R. BOXER, ED 70

O Ourives Mestre João O ourives mestre João é um judeu Sefardita tem à perna a Inquisição bateu-lhe à porta a desdita, como se não bastasse tornou-se o velho indiscreto mora com duas mulheres debaixo do mesmo teto. Em Goa reina o pagode talvez seja do calor só não peca quem não pode desde o Bispo ao Ouvidor implicam com João por ser devasso e marrano levam-lhe couro e cabelo em bulas durante o ano, mas João é um ourives do melhor que há no país hesitam em pôr-lhe a mão vejam só o que ele diz. Oh Goa, o que eu passei para cá chegar oh Goa, seis meses sem me lavar, Oh Goa, o que eu passei para cá chegar Oh Goa, seis meses a enjoar. Depois do que passei quero a minha recompensa morrer leve e feliz tomar vida de licença, não é demais o que peço toda a gente o faz por cá antes morrer já dum excesso do que de velho amanhã. Tenho duas concubinas é verdade não o nego joias morenas e finas bonitas de ficar cego, também o Rei Salomão teve mulheres até fartar não passou o que eu passei numa nau para cá chegar desde que não roube o ouro do sacrário da igreja Deus vai-me perdoar mas não me livra desta inveja. Oh Goa, o que eu passei para cá chegar oh Goa, seis mêses sem me lavar, Oh Goa, o que eu passei para cá chegar Oh Goa, seis mêses a enjoar. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -"(…) Não se julgue, todavia, que os cristãos e os mouros só se defrontavam de lança em riste. Havia momentos de repousante quietação entre duas crises e então as almas sentiam-se tacitamente irmãs, sobretudo na gente humilde que não tem a rigidez dos grandes e quer viver (…) Os mouros não conseguiram nada, mas, depois do feito, Mulei Abraém quis cumprimentar pessoalmente o Conde (…) para o alcaide comer e beber a Condessa mandou-lhe seis pagens com muitos bolos e água fresca, a que ele e a sua gente fizeram excelente acolhimento. Na véspera, a Condessa fizera o mesmo a el-Rei de Fez, em duas azémolas carregadas de bolos, que lhe mandou, pedindo desculpa pela pequenez da lembrança; a culpa era de el-Rei que não tinha prevenido que vinha, mas esperava que de outra vez a avisasse e seria mais bem servido (…)" DAVID LOPES, IN A EXPANSÃO EM MARROCOS, ED. TEOREMA

À Sombra da Tamareira À sombra da tamareira encontro meu refrigério, cavo a minha trincheira aliso meu cemitério. Aqui cheguei era alferes tinha goma no gibão, vim defender as muralhas da praça de Mazagão, à sombra da tamareira. Há muito caiu Arzila Mazagão treme e não cai, vem o Xerife de Fez faz o cerco e depois vai. Tal como as águas dum lago o tempo deixou de correr,

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mas jurei por Santiago que nunca me hei de render à sombra da tamareira. Nem sei bem quem é o Rei há muito não vem mensageiro será que D. Sebastião já voltou do nevoeiro ou ficou à sombra da tamareira? Vigio as areias ruivas faço o turno de atalaia já cantou o muezzim não anda mouro na raia. Sopra o vento do deserto recitando-me o Corão ladaínha infame e bela sortilégio do Islão à sombra da tamareira. Só a saudade me vence só o dever não me esquece, sou o fio que se esgaça na malha que o império tece. Aqui ganhei minha espada aqui ergui a bandeira vi passar a mocidade à sombra da tamareira, à sombra da tamareira. Nem sei bem quem é o Rei há muito não vem mensageiro será que D. Sebastião já voltou do nevoeiro ou ficou à sombra da tamareira? ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -Meus olhos apagados vede a água cair (…) Das beiras dos telhados, cair, sempre cair. Das beiras dos telhados, cair, quase morrer (…) Meus olhos apagados, e cansados de vêr. Meus olhos afogai-vos na vã tristeza ambiente. Caí e derramai-vos como a água morrente. CAMILO PESSANHA, ÁGUA MORRENTE, IN CLEPSIDRA (…) E eu vou buscar ao ópio que consola um Oriente ao oriente do Oriente (…) ÁLVARO DE CAMPOS, OPIÁRIO, IN POESIAS

Logo Que Passe A Monção Num banco de névoas calmas quero ficar enterrado num casebre de bambú na minha esteira deitado a fumar o narguilé até que passe a monção, enquanto a chuva derrama a sua triste canção. Sei que tenho de partir logo que suba a maré mas até ela subir volto a encher o narguilé, meu capitão já é hora de partir e levantar ferro não me quero ir embora diga que foi ao meu enterro. Deixem-me ficar deitado a ouvir a chuva a cair, que ainda estou acordado só tenho a alma a dormir como a folha de bambú a deslizar na corrente apenas presa ao mundo por um fio de água morrente. Nos arrozais morre a chuva noutra água há de nascer abatam-me ao efetivo também eu me vou sem morrer, para quê ter de partir logo que passe a monção 87

se encontrei toda a fortuna no lume deste morrão. Ópio bendito ópio minhas feridas mitiguei meu bálsamo para a dor de ser em ti me embalsamei, ópio maldito ópio foi para isto que cheguei uma pausa no caminho, numa névoa me tornei. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -----Pimenta – untavam a folha de pimenta negra com óleo de coco e aplicava-se no ventre para as cólicas. Utilizavam a pimenta canarim para a cólera, como expetorante, e nas cáries dentárias. Diziam-na diurética, digestiva, etc., e misturada com outras substâncias para as cefaleias e as dores. De todas as três sortes de pimenta se fazia o diatrion pipericum para as doenças do estômago e ventosidades do ventre. ROL DOS MEDICAMENTOS DA BOTICA DE COCHIM, IN LIVRO DAS ARMADAS

Memorial Liguei o meu nome à pimenta por ela morri em serviço não me queixo nem de nada me arrependo, fiz escolha de embarcadiço. No começo só batalhas e ofensas me faziam passar mal mas depois com as cargas e as doenças fui perdendo o moral. Vi que o mundo era um mistério maior do que tinha imaginado, não sabia que um império era trabalho tão arriscado. E assim vivi de mãos ao leme um destino desmesurado, nem dois quintais do vosso melhor mel me aplacam na língua esse travo tão salgado. Aqui lavro este auto da pimenta a tinta de sangue assinado, tantos de nós fomos pasto dos cardumes só para que tudo ficasse mais temperado. Sei que é só letra e só papel água com sal morrendo no passado nem dois quintais do vosso melhor mel me aplacam na língua esse travo tão salgado. Pela pimenta no anho. Por uma jarra da China, pela galinha em caril pel côr do pau-brazil, valeu a pena ser homem ao leme. ...Dias...Perestrêlo...Escobar...Corte Real... ...Vaz de Caminha...Magalhães...Zarco... ...Castro...Gama...Couto...Cabral...Cão... ...Cunha...Coelho...Cabrilho... ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ ------88

"(…) E a razão é porque Deus escolheu deliberadamente os Portugueses de entre todas as outras nações para governarem e reformarem todo o mundo, com comando, domínio, e império, tanto puro como mestiço, sobre todas as suas quatro partidas, e com promessas infaliveis para a subjugação de todo o globo, que será unificado e reduzido a um único império, do qual Portugal será a cabeça (…)" DOM FREI INÁCIO DE SANTA TERESA, ARCEBISPO DE GOA, SÉC. XVIII, CONVENCIDO DE QUE A MONARQUIA UNIVERSAL PORTUGUESA ESTAVA PARA BREVE.

Brizas do Restelo Já voltei a beber rum, já sei outra vez quem sou se Francis Drake é alguém foi em mim que se inspirou estou cheio de ser prudente em tragédias viciado, estou em fuga para a frente por isso tenham cuidado sou um jovem do Restelo um poeta espadachim, sou galante e bem formado estou apaixonado por mim. Brizas do Restelo agitem-me o cabelo, ouçam o apelo deste dandy sem cura levem-me à aventura, quebrem esta calma que o mundo é tão pequeno para conter a minha alma. Na minha prancha de surf bolinando a mais de cem dou um banho a qualquer um. desde o Guincho até Belém se me perguntam a idade faço charme de salão – o cartão de identidade não reflete o coração, pois não! sou um dandy afetado com linhagem e requinte, tenho oitocentos anos mas ninguém me dá mais de vinte. Brizas do Restelo agitem-me o cabelo, ouçam o apelo deste dandy sem cura levem-me à aventura dai-me o vosso gel quero voltar a sair e dançar de novo em Babel. Jovens do Restelo ouçam este apelo, levantem o cabelo que há de haver sempre um mar à vossa espera nas praias de Portugal.

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